Procedimento Administrativo n. 2103/2010-11

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Procedimento Administrativo n. 2103/2010-11
PROMOÇÃO DE ARQUIVAMENTO
Trata-se de Procedimento Administrativo autuado a partir de Representação do
Procurador Regional da República, Dr. Carlos Eduardo Copetti Leite, na qual solicita
providências relativas à Resolução ANVISA RDC n. 44/2010, publicada em 26/10/2010, que
dispõe sobre o controle de medicamentos à base de substâncias classificadas como
antimicrobianos. Alega o Representante, em síntese, que a referida Resolução materializa
extrapolação do poder regulamentar por parte da ANVISA, violando, ademais, os princípios da
proporcionalidade e da razoabilidade.
Oficiada, a ANVISA manifestou-se sobre o teor da Representação,
apresentando os motivos que ensejaram a edição da Resolução RDC n. 44/2010, as
justificativas para a fixação do prazo de validade de 10 (dez) dias para as receitas de
antimicrobianos e os procedimentos de consulta à população adotados previamente à edição
da Resolução (fls. 75-111).
É o breve relatório.
A Resolução da Diretoria Colegiada – RDC nº 44 de 26 de outubro de 2010 –
veio a dispor sobre o controle de medicamentos à base de substâncias classificadas como
antimicrobianos, de uso sob prescrição médica, isoladas ou em associação. Dita Resolução
estabelece, em seu art. 1º, parágrafo único, que a dispensação de medicamentos contendo as
substâncias listadas no anexo (à resolução) fica sujeita à retenção de receita e escrituração em
farmácias e drogarias.
O art. 2º da referida Resolução dispõe que a dispensação de medicamentos a
base de antimicrobianos de venda sob prescrição somente poderá ser efetuada mediante
receita de controle especial, sendo a primeira via retida no estabelecimento farmacêutico, e a
segunda via devolvida ao paciente, atestada, como comprovante do atendimento.
Já o art. 3º determina que as prescrições somente poderão ser dispensadas
quando apresentadas de forma legível sem rasuras, por profissionais devidamente habilitados
e contendo, dentre outras informações, identificação do emitente, do usuário e do comprador.
O art. 11, parágrafo único, reza que as receitas de antimicrobianos terão
validade de dez dias a contar da data de sua emissão.
São esses os principais dispositivos contestados na representação. Os
argumentos veiculados pelo r. representante podem ser sintetizados da seguinte forma: (a)
abuso de poder regulamentar por parte da ANVISA ao editar a Resolução contestada; (b)
violação dos princípios da proporcionalidade e da razoabilidade. Nesta última, entendo como
abarcadas as sustentações no sentido de que a exigência forçará pacientes do SUS a
aguardar (por longo tempo) o agendamento de consulta médica para, então, conseguirem uma
receita para antimicrobianos; é desarrazoada a exigência de que o paciente seja o único
habilitado como comprador; não há provas de que a automedicação com antimicrobianos seja
relevante no Brasil, ou que esteja ligada ao desenvolvimento de superbactérias; a restrição
aumentará a busca de tais medicamentos pela via judicial; a restrição aumentará o mercado
ilegal de tais substâncias; o prazo de 180 dias pode ser insuficiente para adequação dos
estabelecimentos farmacêuticos à Resolução ANVISA RDC n. 44/2010 e que o prazo de
validade de 10 (dez) dias da receita é demasiadamente curto.
Cabível analisar, inicialmente, se as imposições veiculadas na Resolução
representam abuso de poder regulamentar da ANVISA.
O art. 24 da Carta Magna elenca as matérias cuja competência para legislar é
concorrente da União, Estados e Distrito Federal, estando referidas, nos incisos V e XII, “a
produção e consumo” e “a proteção e defesa da saúde”. No entanto, em que pese cumpra à lei
ordinária estabelecer normas acerca dessas matérias, tenho que isso não obsta que os Entes
de fiscalização venham a editar atos normativos específicos adequados e necessários ao
exercício do seu poder de polícia administrativa, desde que esses se afigurem consonantes
com a legislação.
Nesse sentido, aliás, o art. 197 da Constituição Federal disciplina serem de
relevância pública as ações e serviços de saúde, cabendo ao Poder Público dispor, nos termos
da lei, sobre sua regulamentação, fiscalização e controle.
Mais especificamente no que diz respeito ao poder regulamentar da ANVISA,
merecem destaque os seguintes dispositivos da Lei nº 9.782/99 (“Define o Sistema Nacional de
Vigilância Sanitária, cria a Agência Nacional de Vigilância Sanitária, e dá outras providências.”)
que tratam da matéria:
“Art. 2º Compete à União no âmbito do Sistema Nacional de Vigilância Sanitária: (...)
III - normatizar, controlar e fiscalizar produtos, substâncias e serviços de interesse para
a saúde;”
“Art. 7º Compete à Agência proceder à implementação e à execução do disposto nos
incisos II a VII do art. 2º desta Lei, devendo: (…)
III - estabelecer normas, propor, acompanhar e executar as políticas, as diretrizes e as
ações de vigilância sanitária;”
“Art. 8º Incumbe à Agência, respeitada a legislação em vigor, regulamentar, controlar e
fiscalizar os produtos e serviços que envolvam risco à saúde pública.
§ 1º Consideram-se bens e produtos submetidos ao controle e fiscalização sanitária
pela Agência:
I - medicamentos de uso humano, suas substâncias ativas e demais insumos,
processos e tecnologias; (…)”
Nos termos da legislação pátria, os produtos que envolvam risco à saúde da
população podem – e devem – ter sua comercialização submetida a restrições e controle. Da
mesma forma, como ressaltado na nota técnica da ANVISA, as farmácias e drogarias não
podem
ser
tidas
como
no
exercício
de
atividade
meramente
lucrativas,
sendo
estabelecimentos de saúde com função de prestação de serviços de interesse público, haja
vista a natureza dos produtos comercializados.
A legislação confere à ANVISA o exercício do poder normativo e de controle no
que se refere às substâncias e serviços de interesse para a saúde, dentre as quais obviamente
incluem-se os medicamentos de uso humano. E não poderia ser diferente, na medida em que
seria inviável exigir-se previsão em lei ordinária dos procedimentos de fiscalização e controle
de tais substâncias.
Analisadas sob esse prisma as normas supramencionadas da Resolução RDC
nº 44 de 26 de outubro de 2010, verifica-se não existir abuso do poder regulamentar da
ANVISA, uma vez que trata de ações necessárias ao controle da comercialização dos
medicamentos, medicamentos esses que já eram de “venda sob prescrição médica” (nesse
sentido, o Decreto nº 79.094, de 1977). A Resolução não está a estabelecer propriamente
“nova obrigação”, e sim regras de controle e fiscalização de obrigação já existente.
A contrário sensu, se não pudesse a ANVISA exercer tal poder regulamentar
por estabelecer obrigações, haveríamos que considerar ilegal, de idêntica forma, a Portaria nº
344, de 12 de maio de 1998, que aprova o regulamento técnico sobre substâncias e
medicamentos sujeitos a controle especial. O aludido ato normativo disciplina o uso da
notificação de receita e da receita de controle especial, veiculando suas características físicas
e impondo sua retenção pela farmácia/drogaria (art. 35 e seguintes; arts. 52 e seguintes). No
entanto, ao menos nos dias atuais não se questiona a legalidade dessa Portaria.
Portanto, a adoção, pela ANVISA, de uma lista de medicamento sujeitos a
controle especial (Resolução RDC n. 44/2010) que coexista com lista anterior (Portaria
SVS/MS nº 344/98) não constitui abuso de poder regulamentar.
Superada a alegação de abuso de poder regulamentar, subsiste ainda a
questão da violação, ou não, aos princípios da proporcionalidade e da razoabilidade. Acerca do
tema, trago à lume trecho do parecer do Procurador da República Juliano Stella Karam nos
autos do Processo n. 5028933-37.2010.404.7100 – acolhido na sentença do Juízo da 5ª Vara
Federal de Porto Alegre -, uma vez que aborda o assunto de forma irretocável:
Com relação à alegação de violação ao direito à saúde, tem-se que a imposição de exigências
para a dispensação de determinados medicamentos não pode ser vislumbrada como supressão do
aludido direito constitucional - como entende o Autor -, mas sim como restrição que visa justamente
à plena efetividade do direito em comento, porquanto visa a salvaguardar a coletividade dos riscos
associados ao uso (e mau uso) de determinadas substâncias de interesse para a saúde.
Com efeito, não pretendeu o constituinte que o direito à assistência farmacêutica adquirisse o
status de irrestrito, tendo inclusive previsto, no art. 197 da Constituição Federal, que cabe ao Poder
Público dispor, nos termos da lei, sobre regulamentação, fiscalização e controle das ações e
serviços de saúde.
Saliente-se ainda que a alegação do Autor acerca dos prejuízos que a edição da RDC n. 44/2010
trará especialmente aos pacientes do SUS não conta com qualquer respaldo fático. Isso porque é
notório que tais pacientes buscam as farmácias públicas para a retirada dos medicamentos os
quais fazem uso, incluídos aí os antimicrobianos, e que mesmo antes da edição da RDC n.
44/2010 já se fazia necessária a apresentação de receita médica (não retida) para a obtenção dos
fármacos em tais estabelecimentos.
Destarte, os pacientes do SUS já eram obrigados a demonstrar a existência de prescrição médica
para a obtenção dos antimicrobianos – e, por conseguinte, a aguardar o atendimento por médico
do SUS que provesse tal receita –, não se podendo falar em modificação da situação fática
anteriormente observada no que se refere a essa parcela da população.
(...)
Superadas as alegações supra, subsiste ainda a questão concernente à observância do princípio
da proporcionalidade pela ANVISA na edição da RDC n. 44/2010. E considerando o atual conjunto
probatório dos autos, especialmente tudo quanto informado nas Notas Técnicas produzidas pela
ANVISA a respeito das motivações que ensejaram a edição da RDC n. 44/2010, entendo que as
medidas determinadas pela referida RDC se coadunam com o princípio da proporcionalidade,
assim compreendida a proibição do excesso por parte da Administração.
As disposições constantes da RDC n. 44/2010 atendem a todas as máximas parciais do postulado,
quais sejam, são adequadas – utilizam-se de meios aptos a produzir o fim pretendido –,
necessárias – valem-se de meios pouco gravosos à coletividade – e proporcionais em sentido
estrito – porque as vantagens que promovem superam as desvantagens eventualmente
provocadas.
Com efeito, há que se ter cautela na aplicação dos princípios da razoabilidade
e da proporcionalidade, eis que não pode o judiciário adentrar no mérito dos atos
administrativos, anulando-os sempre que não os considerar, sob sua ótica, “razoáveis”. Nesse
caso, o poder judiciário estaria substituindo o administrador em seu juízo de valor. Tais
princípios são, na verdade, instrumentos de controle dos atos estatais abusivos.
Nas palavras de José dos Santos Carvalho Filho, o grande fundamento do
princípio da proporcionalidade é o excesso de poder, e o fim a que se destina é exatamente o
de conter atos, decisões e condutas de agentes públicos que ultrapassem os limites
adequados, com vistas ao objetivo colimado pela Administração, ou até mesmo pelos Poderes
representativos do Estado. Significa que o Poder Público, quando intervém nas atividades sob
seu controle, deve atuar porque a situação reclama realmente a intervenção, e esta deve
processar-se com equilíbrio, sem excessos e proporcionalmente ao fim a ser atingido (in
“Manual de Direito Administrativo”, 17ª edição, editora Lumen Juris, RJ, 2007, p. 32 e 33).
No caso em tela, a ANVISA explica, em síntese, que a Resolução da Diretoria
Colegiada RDC nº 44/2010 propõe um maior controle sobre a prescrição e dispensação de
antimicrobianos em farmácias e drogarias, visando ao combate à automedicação e incentivo ao
diagnóstico e tratamento eficazes. O diagnóstico e a prescrição por profissionais habilitados
promovem a melhor seleção dos antibióticos, aperfeiçoando o resultado terapêutico e
reduzindo o risco de efeitos adversos. O uso indiscriminado de antibióticos aumenta, ademais,
os riscos de resistência bacteriana aos antibióticos e surgimento de novas bactérias
resistentes.
Mais especificamente em relação à resistência bacteriana, admite a ANVISA
não existirem dados que demonstrem a contribuição da automedicação para a infecção por
KPC (Klebsiella pneumoniae Carbapenemase), ponderando que também não existem dados
que demonstrem o contrário. Há, contudo, estudos que demonstram que “infecções por
microorganismos resistentes são adquiridas também na comunidade, e não unicamente nos
hospitais”, havendo, ainda, exemplos de resistência associados à penicilina e ao Streptococcus
pneumoniae, que estariam relacionados ao uso “despreocupado” de antibióticos pela
população em geral (fl. 79).
Refere ainda a ANVISA que a adoção de restrições relativas à dispensação de
antibióticos encontra guarida em publicação da Organização Mundial de Saúde (“Estrategia
Mundial OMS para la Contención de la Resistencia a los Antimicrobianos”), que recomenda a
“criação ou aplicação de leis destinadas a acabar com a venda de antibióticos sem prescrição”,
o que bem revela ser essa a tendência em nível internacional.
Muito embora possam muitas pessoas não concordar com a Resolução da
ANVISA (e aqui, frise-se que o que é inteiramente razoável para uns pode não ser para
outros), não se pode dizer que a Agência esteja a atuar com excesso de poder. A Resolução
vem a cumprir os fins almejados pelo administrador – fins esses lícitos e razoáveis -,
sem excesso e dentro dos padrões normais de aceitabilidade.
O representante veicula argumento relevante e que não pode ser
desconsiderado, no sentido de que a exigência da ANVISA seria suscetível de gerar filas ainda
maiores no SUS. Não se pode negar que a resolução da ANVISA pode ocasionar um aumento
da procura por médicos do SUS. Todavia, esse fato não há que justificar a falta de controle
sobre a prescrição e dispensação dos antimicrobianos. Deve o administrador buscar, isso sim,
melhoria no SUS para que atenda esse possível aumento da demanda.
Frise-se, outrossim, que as farmácias públicas já exigiam a apresentação de
receitas anteriormente à RDC 44/2010, além do que a dispensação de medicamentos pelo
programa Farmácia Popular do Brasil – alternativa também bastante utilizada por usuários do
SUS, por oferecer medicamentos a preços subsidiados – igualmente exige a apresentação de
receita, conforme dispõe o art. 27, II, da Portaria MS n. 184/2011, o que reforça o entendimento
de que a novel exigência de receita médica para a compra de antibióticos não irá alterar os
procedimentos já adotados por grande parcela da população brasileira.
A representação traz alegações no sentido de que a restrição da ANVISA pode
aumentar a busca por antibióticos pela via judicial, bem como aumentar o mercado ilegal
dessas substâncias. Tais possibilidades, contudo, de igual forma não servem para afastar a
necessidade de maior controle dos medicamentos antimicrobianos.
Ainda acerca do tema, mais especificamente sobre a afirmação de que a
Resolução RDC n. 44/2010 estaria limitando o direito constitucional à saúde, cabe pontuar que
a noção estampada na Representação, de que antibióticos podem ser utilizados de forma
“eventual” para o tratamento de “doenças recorrentes”, materializa justamente a cultura de
automedicação da população brasileira, que nem sempre é acertada e que causa prejuízos
não só aos cidadãos, mas também à toda sociedade.
Não há que se falar em violação ao direito constitucional à saúde quando o
que se quer é o direito de utilizar medicamento para tratamento de uma moléstia em relação a
qual sequer houve diagnóstico realizado por profissional; tratar com antibiótico uma amigdalite
viral, ou uma infecção urinária de origem fúngica; ou mesmo tratar uma infecção bacteriana
com antibiótico sem ação sobre aquele determinado organismo, ou com posologia inadequada.
Quanto à suposta exigência de que apenas o paciente possa comprar o
medicamento prescrito, tem-se que as informações da ANVISA esclarecem que a receita
distingue a pessoa indicada na prescrição (paciente) do comprador (art. 3 da Resolução
ANVISA RDC n. 44/2010), não existindo determinação no sentido de que somente o paciente
possa adquirir o medicamento prescrito. Bastará que o campo “identificação do comprador”
seja preenchido com o dados do comprador de fato no momento da compra.
Sobre o prazo de 180 (cento e oitenta) dias para que os estabelecimentos
farmacêuticos passem a cumprir a norma em comento, tem-se a notícia recente (12/04) de que
o aludido prazo foi estendido (cópia anexa) pela ANVISA, o que demonstra o ânimo da
Autarquia em encontrar uma solução que leve em conta as dificuldades/necessidades dos
estabelecimentos farmacêuticos.
Por fim, no que toca à alegação de que o prazo de validade da receita (dez
dias) seria demasiadamente curto, esclarece a ANVISA que o prazo fixado levou em conta
possíveis dificuldades que o paciente possa encontrar para adquirir o medicamento (ser
habitante de localidade isolada, falta de estoque em farmácia, etc.), bem como o curso usual
de um quadro infeccioso, que certamente exigiria uma reavaliação caso o paciente não fosse
tratado no período de dez dias. “Neste contexto, é fundamental ter em mente que um quadro
infeccioso não tratado transcorrido tal prazo precisa ser novamente reavaliado pelo
profissional, pois certamente pode ter se agravado e o antibiótico prescrito corre o risco de já
não ser mais efetivo”. (fl. 84)
Diante do exposto, não se vislumbrando inconstitucionalidade ou ilegalidade na
edição da Resolução ANVISA RDC n. 44/2010, determino o ARQUIVAMENTO do presente
procedimento administrativo.
Notifique-se o Representante, para, querendo, apresentar recurso dirigido à
Procuradora Federal dos Direitos do Cidadão.
Encaminhem-se os autos à PFDC.
Porto Alegre, 18 de maio de 2011.
Suzete Bragagnolo
Procuradora da República
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