soberania, constitucionalismo e mundialização do direito

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SOBERANIA, CONSTITUCIONALISMO E MUNDIALIZAÇÃO DO DIREITO.
(SOVEREIGNTY, CONSTITUCIONALISM AND LAW MUNDIALIZATION)
Álvaro Osório Do Valle Simeão
Advogado da União – Conjur/MP
Especialista em Processo Civil – UCAM/RJ
Mestrando em Relações Internacionais – Uniceub/DF
Professor de Direito Constitucional – Unieuro/DF
RESUMO: O objetivo do presente trabalho consiste na análise dos conceitos clássicos de
soberania e constituição como pontos a serem revistos em face do processo de
mundialização do direito. A pesquisa ocorre em três momentos. No primeiro deles,
fazemos um cotejo histórico-filosófico das idéias clássicas sobre soberania e
constitucionalismo enfocando, sobretudo, as flexibilizações conceituais pelas quais
possam estar passando, na atualidade, estes fenômenos. Num segundo momento
faremos análise do processo de mundialização do direito, onde abordaremos as possíveis
fontes deste processo, de modo a demarcar-lhe os limites, enunciando alguns dos seus
atributos. Num terceiro momento pretendemos traçar pontos de contato entre os
conceitos anteriormente estudados, procurando mostrar que alguns dos sentidos
clássicos que davam tessitura à idéia de Estado soberano, constitucional e democrático
precisam ser reformulados para que se possa dar um esteio legítimo e razoavelmente
conduzir o processo de internacionalização das normas.
PALAVRAS-CHAVE: Constitucionalismo. Democracia. Mundialização.
SUMÁRIO: 1 Os caminhos que levam a um direito
comum; 2 Concepções clássicas sobre soberania; O
constitucionalismo de ontem e hoje; 4 Uma ética global
e voluntária para um direito mundial; 5 A
mundialização imposta por riscos globais; 6 Conclusão;
7 Referências.
1 OS CAMINHOS QUE LEVAM A UM DIREITO COMUM
A atribuição progressiva de competências e de capacidades dos Estados às
organizações supranacionais, com a conseqüente multiplicação dos temas tratados pelo
direito internacional, assuntos que antes eram afetos, com exclusividade, à disciplina
interna das nações, é fenômeno que induz à revisão conceitual do que seja soberania e
Constituição. 1
A soberania absoluta de Bodin, entendida como poder de autodeterminação que
não admite outro que lhe seja superior ou mesmo concorrente dentro de um mesmo
território, não existe mais.
Essa idéia sobre a soberania foi basal para a existência e afirmação histórica do
Estado moderno que, durante o desenvolvimento de suas características, passou a trazer
consigo a idéia de Estado dos nacionais, ou Estado-Nação. Somente um poder supremo e
ilimitado poderia ser esteio existencial para o leviatã, pois o estudo do poder no Estado
moderno mostrou que, quando não existe soberania, não há direito (no sentido jurídico
do termo).
1
VARELLA, Marcelo Dias. A crescente complexidade do sistema jurídico internacional: alguns problemas de coerência sistêmica.
Brasília: Revista de Informação Legislativa do Senado Federal, ano 42, nº 167, jul/set 2005, separata.
1
Pela capacidade normativa, cujo princípio ele extrai da razão humana, o poder
político se mostra apto para refrear e controlar os ímpetos da força bruta; por essa
aptidão, ele se caracteriza, sob a Constituição, como criador de direito, isto é, como
potência reguladora. Ora, no Estado moderno o conceito de soberania conota essa
vocação fundamental do Poder. A soberania constituiu-se, assim, em requisito para a
independência e onicompetência do Estado constitucional moderno. 2 Exaltando-se a
supremacia e rigidez da Carta reguladora de garantias individuais, expressão primeira da
soberania normativa, anular-se-ia o risco de retorno ao absolutismo monárquico.
A soberania leva a marca característica do poder estatal que possibilita a
autodeterminação do Estado perante outros estados (soberania nacional ou externa).
Pela soberania popular, ou interna, a capacidade normativa é condicionada e traduz a
idéia de outorga e coordenação entre Povo e autoridade, sendo a base de todo regime
democrático. A coletividade, num dado território, ainda que através de um regime
representativo, escolhe seu próprio destino.
A primeira notícia histórica deste pensamento está em Aristóteles, que teceu a
designação “sumum imperium” para qualificar o poder dirigente, tendo sido o primeiro a
declarar que “a majestade e forma da República” residem em sua “autoridade civil
soberana” ou em seu “comando soberano”. Não há, contudo, uma análise e uma
definição desses conceitos nas obras aristotélicas3.
Essa análise só foi feita no século XVI por Jean Bodin. Os seus estudos sobre o
assunto serviram de base para o Tratado de Westfália, de 1648, que consagrou o modelo
de soberania externa absoluta, iniciando uma ordem internacional protagonizada por
nações com poder supremo dentro de fronteiras territoriais estabelecidas. Também foi
Bodin quem primeiramente fixou as características da soberania na modernidade,
declarando ser ela ilimitada.
Essa autodeterminação sem limites revela a idéia de soberania nascida nos
adventos revolucionários que marcaram a passagem da idade média para a idade
moderna, fixando as bases do constitucionalismo liberal: Revolução Gloriosa Inglesa,
Revolução Francesa e lutas de independência nos Estados Unidos da América. Esse
quadro projetou-se, sem muitos questionamentos, pelo menos até a primeira metade do
século XX.
A Constituição, no contexto liberal, representa uma técnica para manutenção da
liberdade individual contra o poder arbitrário do Estado. O pensamento era o de garantir,
com um texto escrito distante da herança consuetudinária medieval, os direitos dos
cidadãos. Para atingir esta finalidade, contudo, a Constituição deve ser necessariamente
rígida e inflexível, no sentido de que suas normas representam o ápice hierárquico de
positivação estatal, não podendo ser modificadas pelo poder legislativo ordinário e nem
interpretadas de forma ampla.
No ideário liberal, para fazer eficaz a supremacia da Constituição é necessário
estrutura-se um poder judicial para controle da justiça da lei, ou seja, sua conformidade
com a carta política, pois de outra maneira não existiria nenhum remédio legal contra a
possível violação da Constituição pela autoridade pública. Uma vez que a Constituição é o
próprio contrato social, nenhuma ação que parta do Estado pode distanciar-se da sua
maneira de ser prevista neste documento escrito, de forma que os tratados
internacionais, dependentes de ratificação, não podem se sobrepor à lei maior interna,
expressão da soberania.
O constitucionalismo da modernidade se liga, desta forma, ao utilitarismo presente
na Doutrina de Rousseau, tendo por fim não apenas dar uma legitimação distinta ao
2
GOYARD-FABRE, Simone. Os princípios filosóficos do direito político moderno. 1. ed, São Paulo: Martins Fontes, 2002.
3
A autora francesa Simone Goyard-Fabre cita o texto “Methodus”, de Jean Bodin, escrito em 1556, para fundamentar essa sua posição. Cf.
GOYARD-FABRE, Simone. Os princípios filosóficos do direito político moderno. 1. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2002, p.123.
2
poder, mas alterar o seu modo de exercício para garantir aos cidadãos liberdades
políticas e civis concretas, permitindo-lhes o livre desenvolvimento de sua personalidade.
Uma luta ferrenha para deter o absolutismo, fantasma do passado que não poderia
ressurgir.
A perseguição da liberdade, contudo, não se mostrou suficiente para consecução da
plena democracia almejada pelo iluminismo, que apesar de possuir vocação universal não
impediu a crescente exploração do homem, pelo homem, até o final do século XIX. O
laisseiz-faire não gerou uma acomodação natural do homem em posição confortável, de
maneira que surgiram, no final dos oitocentos, idéias de intervenção programática do
Estado, no corpo coletivo, para favorecimento de uma igualdade material, com uma
redistribuição orientada dos benefícios advindos do contrato social. Destaca-se, por esta
época, a produção intelectual de Karl Marx.
O liberalismo havia produzido um divórcio entre o Estado e a sociedade, mas a isso
se sucedeu um novo e imprevisto quadro de absorção da sociedade pelo Estado. O auge
da crise no constitucionalismo liberal vem documentado pela Constituição Mexicana de
1917 e pela Constituição Alemã de Weimar, de 1919, que abandonando o individualismo
volve-se basicamente para a sociedade através de normas programáticas.4
O caráter programático das normas, principal característica do chamado
constitucionalismo social, tentou fazer uma reaproximação dos poderes constituinte e
constituído, mas gerou uma crise no conceito jurídico de Constituição, pois colocou em
dúvida a própria efetividade e eficácia do seu texto.
Importa salientar que ainda hoje um dos principais desafios da ciência jurídica
centra-se na busca de meios viáveis para a concretização dos direitos sociais presentes
nas cartas ocidentais posteriores a Weimar. Não faltam críticos ao caráter vetorial das
Constituições sociais. Para alguns esse tipo de Constituição não representa um
verdadeiro exercício de poder, pois são formadas por duas categorias de preceitos
completamente destituídos de força coercitiva: uma parcela, que é constituída de normas
que jamais passam de programáticas e são praticamente inalcançáveis pela maioria dos
Estados; e uma outra sorte de normas que não são implementadas por simples falta de
motivação política dos administradores e governantes responsáveis.5
Para outros, o constitucionalismo terá dado um largo passo a frente caso se atribua
eficácia vinculante à norma programática, não importando que a Constituição esteja ou
não repleta de proposições desse teor, ou seja, de regras relativas a futuros
comportamentos estatais, pois a incompatibilidade entre os fundamentos políticos e
jurídicos da Constituição, apesar de ser um dogma que permeia dois séculos da história
da humanidade, é algo duvidoso.6
De toda forma, a inclinação social dos Estados após a virada dos anos oitocentos
pontifica a retomada das preocupações com os direitos do homem, tanto assim que os
juristas da época passaram a se preocupar em identificar princípios comuns,
relativamente ao direito humanitário e outros ramos da ciência jurídica, nas várias
codificações nacionais, formando-se a primeira Sociedade de Legislação Comparada na
Europa, em 1869. Os “comparadores” reunidos em Paris, em 1900, para o Primeiro
Congresso Internacional de Direito Comparado, imaginaram um direito que fosse comum
a todas as “nações civilizadas”.7
A eclosão da primeira grande guerra e o surgimento de uma teoria social do Estado
como freio aos abusos humanitários decorrentes do absenteísmo liberal marcaram a
necessidade de flexibilização do direito nacional. No início do século XX surgiu um núcleo
4
BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 21. ed. Malheiros editores: São Paulo, 2007.
5
DROMI, José Roberto. La reforma constitucional: El constitucionalismo del porvenir. In: El derecho público de finales del siglo: Una
perspectiva iberoamericana. Madri: Fundación BBV, 1997.
6
BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 21. ed. Malheiros Editores: São Paulo: 2007.
7
DELMAS-MARTY, Mireille. Três desafios para um direito mundial. Rio de Janeiro: Lumen Júris, 2003.
3
constitucional quase uniforme entre os países ocidentais que exigia uma postura próativa do Estado na concretização dos direitos sociais (welfare state), ao contrário dos
textos anteriores, que se limitavam a manter um campo de força em favor unicamente
do indivíduo contra potenciais violações estatais.Nesse contexto surge a Organização
Internacional do Trabalho (OIT), em 1919, considerada o ponto de partida da expansão e
prevalência das normas internacionais sobre o direito interno.8
Após o surgimento da OIT vimos florescer, no entre guerras, a Sociedade das
Nações, criada com o propósito de tratar da resolução dos conflitos pelo diálogo,
evitando a guerra. A Liga das Nações, como ficou conhecida, tomava por base a proposta
de paz conhecida como Quatorze Pontos, feita pelo presidente americano Woodrow
Wilson, em mensagem enviada ao Congresso dos Estados Unidos em janeiro de 1918.
Wilson tinha por objetivo fixar as bases para uma paz duradoura com a reorganização
das relações internacionais ao fim da primeira grande guerra. O pacto para a criação da
Sociedade das Nações constituiu os trinta primeiros artigos do Tratado de Versalhes. O
Senado Americano, contudo, não ratificou esse tratado, de maneira que os Estados
Unidos não se tornaram membro da Sociedade das Nações, o que precipitou o seu
enfraquecimento e contribuiu para a sua dissolução.
Após a segunda guerra mundial intensificou-se, por urgência humanitária, a
atribuição de capacidade normativa pelos Estados aos organismos internacionais. O
surgimento da Carta das Nações Unidas – ONU, em 1945, pontua o início de uma
capacidade normativa que tem por esteio político não o poder soberano de um Estado,
mas a conjugação de vontades nacionais voluntárias na tentativa de coordenar ações
mínimas para garantir a paz e a segurança mundiais no início da chamada “guerra fria”.
Passa-se a obrigar, inclusive com sanções por descumprimento, as nações ratificadoras
do pacto. 9
Esse movimento de internacionalização da capacidade normativa propagou-se com
a publicação de vários outros diplomas internacionais, entre os quais podemos citar a
Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948, o Pacto Internacional de Direitos
Econômicos, Sociais e Culturais, o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos, ambos
de dezembro de 1966, e o Protocolo de Kyoto, em vigor desde fevereiro de 2005.
O conteúdo dessas normas internacionais demonstra que as maiores outorgas de
poder estatal têm ocorrido em relação aos direitos humanos, direito econômico e direito
ambiental, ainda que esta separação entre ramos nos pareça cada vez mais dificultosa,
pois dignidade do homem, comércio e meio-ambiente parecem, hoje, cada vez mais
ligados.
Há um elemento comum nesses direitos que os tornam merecedores de um
disciplinamento mundial uniforme. A natureza difusa dos mesmos é de tal forma ampla
que o desrespeito a esses preceitos cria riscos globais. A título de exemplo podemos
mencionar o aquecimento do planeta provocado por violações ao meio ambiente. Os
danos, nesse caso, não se limitam aos principais emissores de poluentes da terra, sendo
que as suas conseqüências econômicas negativas são sentidas por todo o planeta. A
queima de uma floresta, uma perseguição étnica ou uma ação comercial protecionista,
em qualquer lugar do mundo, são acontecimentos que geram reflexos negativos para
toda a humanidade, de maneira que nesta seara é despiciendo se falar em nacionalidade.
No plano regional ou continental podemos citar, em relação à reformulação do
conceito de soberania, o caso relacionado à cooperação e integração entre os Estados
europeus. Essa internacionalização normativa, calcada inicialmente na Comunidade
Européia do Carvão e do Aço, criada pelo Tratado de Paris (1951), significou a partida
8
VARELLA, Marcelo Dias. A crescente complexidade do sistema jurídico internacional: alguns problemas de coerência sistêmica.
Brasília: Revista de Informação Legislativa do Senado Federal, ano 42, nº 167, jul/set 2005, separata.
9
A Carta das Nações Unidas foi assinada em 1945 pelos países em guerra contra o Eixo, reunidos em San Francisco, nos Estados Unidos,
com o objetivo de garantir a paz e a segurança mundiais e instituir, entre as nações, uma efetiva cooperação econômica, social e cultural.
No mesmo momento entrou em vigor o Estatuto da Corte Internacional de Justiça. Ambos os documentos passaram a viger em 24 de
outubro de 1945.
4
para a formação da Comunidade Econômica Européia, que realmente se concretizou seis
anos mais tarde, com a assinatura do Tratado de Roma, em 1957.
Nesses últimos cinqüenta anos, o que era uma associação entre países com vistas a
um mercado comum, alargou-se e aprofundou-se a ponto de alguns autores afirmarem
que a Comunidade Européia é o primeiro caso de renúncia formal de soberania, situação
em que os Estados atribuem às organizações internacionais o direito de estabelecer
normas sobre alguns assuntos, sem conservar para eles mesmos esse direito. Nesse caso
não se fala em simples atribuição, mas em uma transferência de competência e
capacidade. Os tratados comunitários europeus – Roma, Maastricht, Amsterdã, Nice e
Lisboa - são diplomas contundentes em relação à extinção do conceito clássico de
soberania sob ótica política. Ainda que tenha havido recusa popular em relação à adoção
de uma Constituição Européia, o conjunto destes atos internacionais vigentes pode,
muito bem, ser entendido como a própria Carta Política comunitária, uma Constituição
que, mais do que formal, é material.
Os tratados fundadores da Comunidade Européia de Nações formam o chamado
direito comunitário originário e, como acontece em um sistema federal típico, se o juiz de
um dos países, solicitado a aplicar o direito comunitário, se vir perante um conflito entre
uma norma nacional e uma disposição comunitária, cumprir-lhe-á reconhecer a primazia
da disposição comunitária, excluindo a aplicação da norma nacional contrária, ainda que
a mesma integre a Constituição Estatal, pois esta encontra fundamento em um poder
decorrente.
Tudo isso abre espaço para discussão a respeito de um futuro Direito Mundial. O
lugar do político no direito nacional, considerando-se a concepção liberal ainda reinante,
encontra-se na Constituição, principal e primeira demonstração de soberania estatal, de
modo que é forçoso concluirmos que a idéia de mundialização normativa impõe a
necessidade de revisão quanto a alguns dogmas do constitucionalismo. Reforça tal
necessidade um consenso mínimo ou padrão ético comum baseado no caráter cada vez
mais difuso, em nível planetário, dos direitos imanentes à pessoa humana.
A unificação do direito, no que diz respeito às relações internacionais, constitui uma
das mais importantes tarefas de nossa época. Alguns, ligados à visão particularista do
século XX, denunciam-na como uma quimera; no entanto, a posição quimérica é bem
mais a das pessoas que julgam poder perpetuar, no estado atual do mundo, uma
situação que consagra a anarquia nas relações internacionais de direito.10
No século XX era quase impossível pensar numa realização da unificação
internacional do direito substituindo os diferentes direitos nacionais. Essa etapa, contudo,
resta transposta, e as legislações internas de quase todos os países cedem a preceitos
fundamentais positivados internacionalmente.Hoje representa desafio, diante do que
entendemos por democracia, pensar num direito supranacional uniforme decretado por
um legislador mundial.
As duas guerras mundiais interromperam o processo pelo qual os direitos humanos
fundamentais começavam a ser entendidos como direitos naturais que extrapolam o
poder de positivação estatal. Nada obstante, foi justamente o sofrimento e o horror
extremos provocados pelas práticas de extinção étnica vividas na segunda grande guerra
que fizeram com que surgisse a percepção de que determinadas ações do Estado criam
um “risco globalizado”, de maneira que a soberania não deve ser vista como absoluta e o
direito nacional não pode, em todos os casos, ser inflexível e estar no ápice hierárquico
de um sistema jurídico.
A rigidez das Constituições não encontra justificativa diante da mundialização. Isso
explica, entre outras coisas, a formidável alteração no eixo de positivação dos direitos
fundamentais, que no pós-guerra passou a ser a principal preocupação da Organização
das Nações Unidas.
10
DAVID, René. Os grandes sistemas do direito contemporâneo. São Paulo: Martins Fontes, 2002.
5
Tendo em vista o caráter tridimensional do direito e a avançada globalização dos
fatos sociais e humanos, que leva a uma uniformização dos valores, torna-se imperioso
fazer com que haja uma descentralização do poder de criação das normas jurídicas
fundamentais, tornando pulverizada, entre os Estados pactuantes, a fonte do direito
constitucional.A idéia de Constituição estática e legitimadora do poder soberano, segundo
a idéia de direito, é algo ultrapassado. Em seu lugar faz-se necessária uma concepção de
que há um bloco de direitos fundamentais que extrapola as fronteiras, projetando-se
para além do multiculturalismo. A Constituição de um país deve ser aberta a tudo o que
projeta o bem comum dos povos. Este constitucionalismo de direito internacional possui
correlação com um conjunto de normas para a conduta dos Estados, cuja validade
intersubjetiva é diversa do sistema de normas fixado pelo próprio Estado político e
soberano.
Esse conjunto de normas se aproxima do que podemos denominar de direitos
naturais, invocáveis ante a simples condição de humano. A sua prevalência sobre o
direito positivo decorre da sua própria antecedência, pois por reivindicar validade em si,
o direito natural é epistemologicamente anterior e eticamente superior ao direito
positivo. Disso resulta normativamente que, em caso de conflito, o ius naturale prevalece
sobre quaisquer legislações positivadas por um único Estado. 11 Existe uma axiologia
mínima e universal para a humanidade e esta pode ser referência para um
constitucionalismo de direito internacional, justificando, a qualquer tempo, a adoção de
um verdadeiro monismo jurídico.
O processo de mundialização dos princípios jurídicos mantenedores da paz e da
dignidade humana enfrenta, contudo, diversos desafios. Podemos citar, entre estes
obstáculos, a ausência de coerência sistêmica no plano jurídico internacional, as tensões
advindas das desigualdades econômicas entre os países, as particularidades culturais
muitas vezes antagônicas entre as nações, sobretudo quando se considera Ocidente e
Oriente e, por último, a dificuldade em se desenvolver meios de preservação do princípio
democrático num quadro de produção normativa internacional, ou seja, como manter a
vontade geral dos povos neste processo e se limitar o poder, seja hegemônico ou contrahegemônico.
O objetivo do presente trabalho consiste na análise dos conceitos clássicos de
soberania e Constituição como pontos a serem revistos ou recriados em face do processo
de mundialização do direito. 2 Concepções clássicas sobre soberaniaNo nascedouro, o
conceito de soberania era flexível diante do direito das gentes. Essa constatação surge
quando se estuda o fenômeno a partir da doutrina de Frei Francisco de Vitoria (14921546), teólogo renascentista dominicano nascido na Espanha. É considerado por muitos o
pai do Direito Internacional Moderno, por ter sido o primeiro a traçar diretrizes sobre a
“guerra justa”, antecipando-se às idéias de Hugo Grotius. Vitoria trabalhou a dimensão
externa da soberania e suas idéias, neste particular, serviram de justificativa teórica para
a conquista e colonização da América pelos espanhóis, redundando no genocídio sobre os
indígenas que habitavam o novo mundo. Apesar da sua doutrina se ligar a essa atividade
de conquista, o autor defendia uma ordem mundial configurada como sociedade natural
de Estados soberanos, onde o Direito Internacional, conjugação das vontades estatais,
prevalece sobre o direito interno. 12
A doutrina vitoriana foi inovadora em vários pontos, seja na formulação da idéia de
communitas orbis, seja na criação de limites mais racionais para a guerra, ainda que não
totalmente desvinculadas de misticismo religioso (o direito de expandir a fé católica,
catequizando indígenas, era encarado como natural).
Hugo Grotius (1597-1645) marchou rumo à total secularização, tendo a seu crédito
o fato de ter formulado pela primeira vez, ainda que cautelosamente, a “hipótese
11
BOBBIO, Norberto. Nazioni e diritto: Umberto Campagnolo allievo e critico de Hans Kelsen, Revista Diritto e cultura, 1993, p.117-132
12
FERRAJOLI, Luigi. A soberania no mundo moderno . Tradução de Carlo Coccioli e Marcio Lauria Filho. São Paulo: Martins Fontes,
2002.
6
impiíssima” de prescindir do papel constituinte de Deus na formação de um direito do
gênero humano; o qual, portanto, teria vigência „etiamsi daremus Deum non esse‟. 13
Na Europa Ibérica a preeminência da fé cristã, sobretudo personificada no
catolicismo, tinha passado a ser contrastada por um fundamento religioso diverso e não
tão irrisório, em termos de força, como aquele encontrado nas lutas de conquista do
novo mundo. A ética muçulmana tinha colocado a Europa ibérica na condição de
conquistada, e com isso era preciso tecer fundamentos mais utilitaristas para a “guerra
justa”, uma vez que o direito natural de expansão do cristianismo, ainda que presente no
pensamento dos cruzados, estava órfão de uma doutrina racional que englobasse esses
novos acontecimentos.
Jean Bodin fixou, antes mesmo de Grócio, um conceito absoluto para a soberania.
Formulou definição segundo a qual a soberania seria o poder absoluto e perpétuo de uma
República. A principal inovação de Bodin situou-se em identificar o Estado soberano como
sujeito e único titular do poder político. A definição de Estado é, assim, jurídico-política, e
permite diferençar o soberano do governo, distinguindo a fonte do poder do seu exercício
material, algo como um protoparlamentarismo. A soberania, distanciada da
responsabilização por atos de governo, concebe-se como o princípio de independência e
onicompetência do Estado moderno.
O filósofo reporta-se à tradição monárquica da França e distingue,
escrupulosamente, a forma de governo da forma de estado. A primeira está submetida a
controle. Já a segunda, essência da República, identifica-se com o Rei e qualquer que
seja o regime deve ser designada como potência soberana que, em si, é uma summa
potestas. A substância da República precisa sempre da forma soberana.
A concepção de soberania em Bodin tem por marca, no âmbito das relações
internacionais, a ilimitação. Os Estados têm poder de autodeterminação absoluto, de
maneira que no relacionamento com outros Estados não há necessidade de respeito a
preceitos não positivados. Trata-se do paradigma vestfaliano de 1648, segundo o qual a
discricionariedade dos Estados na escolha de suas opções diplomáticas é incondicionada,
não existindo crivo a ser colocado sobre a decisão tomada por um país. 14
Bodin era adepto da metafísica cosmológica dos Gregos, presente no pensamento
aristotélico. Hobbes, pelo contrário, considera que somente existe Estado soberano por
força de um projeto racional e físico (uma vez que puramente humano). Ora, o
contratualismo tem justamente essa base, ou seja, a idéia de soma de poderes
individuais confiados ao Leviatã diretamente ou por delegação representativa.A soberania
do Estado é útil porque é antagônica à beligerância do Estado de Natureza. Essa visão de
poder pacificador é necessária para contenção do caos social, numa visão de certa forma
proto-utilitarista. A soberania, para Hobbes, é daqueles que firmam o pacto inicial do
Estado – o povo - e não do monarca.
O contratualismo prosseguiu com Rousseau, que varreu em definitivo a idéia de
soberania dos príncipes. Desvendar o significado da soberania popular de Rousseau é, no
entanto, tarefa um pouco complexa. No Contrato Social Rousseau nos revela que o
homem é bom, tanto que a sua involuntária permanência no estado de natureza (a
guerra de todos contra todos) é, para os mesmos, um prejuízo à sua conservação. De
maneira que:
como é impossível aos homens engendrar novas forças, mas apenas unir
e dirigir as existentes, não lhes resta outro meio, para se conservarem,
senão formando, por agregação, uma soma de forças que possa arrastálos sobre a resistência, pô-los em movimento por um único móbil e fazê15
los agir de comum acordo.
13
GROTIUS, Hugo. O direito da guerra e da paz. 2. ed. v II, Ijuí: Unijui, 2002.
14
BODIN, Jean. The six books of the Commonwealth. Oxford: Basil Blackwell Oxford, 1955. Tradução para o inglês de M. J. TOOLEY.
Disponível em: <http://www.constitution.org/bodin/bodin_.htm> .
15
ROUSSEAU, Jean-Jacques. O contrato social e outros escritos. Introdução e tradução de Rolando Roque da Silva. São Paulo: Cultrix,
7
O produto desta soma de forças é o Estado, que através da soberania,
característica indissoluvelmente ligada ao seu elemento humano, persegue o bem
comum. Esse acordo entre pessoas que se identificam por vínculos geográficos,
genealógicos e naturais, chamado pacto social, faz nascer o Estado. O poder que faz esse
parto está na vontade coordenada da coletividade dos indivíduos, chamada vontade
geral. A volonté genérále, procedente do conjunto social, é que faz da multidão povo. Ela
é a soma de forças populares e pode ser identificada como a própria soberania, por isso
designada de popular.
A natureza da soberania só pode derivar do procedimento contratual segundo o
qual a multidão, unanimemente, substitui as vontades particulares pela vontade geral: a
essência da soberania se identifica então com a vontade geral. 16 A soberania popular de
Rousseau é, portanto, o exercício da vontade geral. Essa é, a nosso ver, sua principal
contribuição teórica.
Outra contribuição marcante de Rousseau foi a caracterização da soberania
popular, que no seu entender seria inalienável e incomunicável, ou seja, teria de haver
uma forma de expressão direta da soberania do povo, não nos moldes das democracias
diretas atenienses, o que seria hipótese pouco prática fora de uma cidade-Estado, mas
partindo de uma formulação que afastasse o regime representativo, uma vez que para
Rousseau,
não sendo a soberania senão o exercício da vontade geral, jamais se pode
alienar, e que o soberano, que nada mais é senão um ser coletivo, não
pode ser representado a não ser por si mesmo; é perfeitamente possível
17
transmitir o poder, não porém, a vontade.
Pensamos que as lições de Rousseau relativas à inalienabilidade da vontade geral
denotam a simples impossibilidade de distanciamento entre a volição dos que exercem o
poder e o querer dos cidadãos, numa interpretação extremamente atual. O governante
está sempre vinculado ao titular do poder, sob pena da ilegitimidade do seu governo, que
pode findar mesmo antes do final da legislatura18.
Podemos salientar que Rousseau deitou por terra toda a base filosófica e política do
antigo regime, ao proclamar que as leis, sendo atos constituídos pela vontade geral, são
impessoais e abstratas. O direito, estando acima do titular do poder, submete mais ainda
o monarca, que não é titular de nada, tirando seu mando da vontade geral, ou nas
próprias palavras do filósofo:
Quando digo que o objeto das leis é sempre geral, entendo que a lei
considera os vassalos em corpo e as ações como sendo abstratas, jamais
um homem como indivíduo, nem uma ação particular” e na mesma
página, relativamente à submissão de todos à soberania popular,
expressada através das leis, ponderou “que quem se recusar a obedecer à
vontade geral a isto será constrangido pelo corpo em conjunto, o que
19
apenas significa que será obrigado a ser livre.
Rousseau definiu o Estado Democrático de Direito, no sentido até hoje conhecido,
onde o direito vincula, em termos isonômicos, governantes e governados, e onde o
ordenamento tem no povo a sua fonte, sendo abstrato e impessoal. Isso foi muito
2004. p.30
16
GOYARD-FABRE, Simone. Os princípios filosóficos do direito político moderno. 1. ed, São Paulo: Martins Fontes, 2002.
17
ROUSSEAU, Jean-Jacques. O contrato social e outros escritos. Introdução e tradução de Rolando Roque da Silva. São Paulo: Cultrix,
2004. p.38.
18
ROCHA. Maria Elisabeth Guimarães Teixeira. Limitação dos Mandatos Eletivos. Nova Visão do Contrato Social. Porto Alegre:
Sergio Antonio Fabris Editor, 2000.
19
ROUSSEAU, Jean-Jacques. O contrato social e outros escritos. Introdução e tradução de Rolando Roque da Silva. São Paulo: Cultrix,
2004, p.32-33.
8
importante sob ótica interna, pois abriu caminho definitivamente para a limitação do
poder em face da necessidade de obediência ao princípio democrático. Se a soberania de
um Estado pertence aos cidadãos, a autoridade constituída está automaticamente
limitada no exercício deste poder, não podendo violar as liberdades individuais daqueles
que representam as partes do contrato social.
Mas será que a soberania contratualista guardava alguma limitação no plano do
direito internacional, ou nesse aspecto ela era tão absoluta e ilimitada quanto a
defendida por Bodin? É difícil encontrar em Hobbes e Rousseau passagens em que reste
explícita uma limitação da soberania no plano internacional, mas tomando a concepção
contratualista como conjunto podemos afirmar que a gênese desta doutrina traz
influências de cunho jusnaturalista, o que pode revelar a necessidade de observância a
parâmetros mínimos, pelo Estado, no exercício da sua autodeterminação.
Sieyès também defende que a soberania pertence ao povo, mas este, após o pacto
social, transmuta-se em nação a partir da obediência a uma lei comum e suprema: a
Constituição do Estado. A nação é uma categoria definida por Sieyès como sendo “um
corpo de associados vivendo sob uma lei comum e representados por uma mesma
legislatura”. 20 A soberania é o fundamento que cria o Estado.
Não existe Estado sem uma lei comum que seja a expressão, dogmática ou não, de
como o Estado é, a sua maneira de ser. Desta forma, um mesmo território poderia servir
de abrigo a vários Estados numa cronologia temporal, bastando para isso que houvesse
uma sucessão de Constituições.
A idéia de representação em Sieyès é conecta com uma soberania limitada. O
filósofo francês não adota a idéia de mandato, delegação, procuração, tal como vemos na
atualidade. Ao contrário disto, deveria haver uma total independência entre o dirigente e
o povo, sem sistemas de controle. Este controle sobre o governante adviria unicamente
da Constituição do Estado, produto de uma nação soberana.
A soberania popular e o poder constituinte originário se confundem, mas este
último sairia de cena ao cumprir a sua missão, consubstanciada na elaboração da
Constituição do Estado. Assim, o poder popular permaneceria latente após a
promulgação da Carta Política e as suas formas de expressão após esse momento
seriam, por decorrência, limitadas (poder constituinte derivado).
A Constituição, expressão maior e primeira da soberania popular, teria por missão
proteger os direitos individuais contra a ação dos governantes, preservando a liberdade
pessoal. Há, portanto, uma limitação aos poderes constituídos no plano internacional,
pois o Estado não poderia fazer valer, em seu território, tratados que contrariassem os
preceitos da Constituição, pois esta norma seria o produto do poder constituinte
originário, tido por inicial, ilimitado e incondicionado.
O caráter inicial deste poder está no fato de que ele inaugura o ordenamento
jurídico. A entrada em vigência da Constituição revoga todos os atos normativos estatais
pretéritos e impõe a compatibilidade de todas as normas estatais futuras, sob pena de
ter-se que expurgar forçadamente os preceitos incongruentes sob ótica formal ou
material.
Conforme lição de Manoel Gonçalves Ferreira Filho: “o Poder Constituinte edita atos
juridicamente iniciais, porque dão origem, dão início, à ordem jurídica, e não estão
fundados nesta ordem”. 21
Assim, o poder constituinte é uma forma originária de construção do Estado, tanto
assim que a Constituição não retira fundamento de validade em nenhuma outra norma
precedente. Conforme nos ensina Anna Cândida da Cunha Ferraz, o poder constituinte de
20
SIEYÈS, Emmanuel. Qu´est-ce que le tiers état? (1789), Rio de Janeiro: reedição PUF, 1982.
21
FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves, O poder constituinte. 3 ed. São Paulo, Saraiva, 1999, p.15
9
Sieyès tem essas características, uma vez que“cria a ordem jurídica, não havendo
direito, antes dele, que possa limitá-lo ou condicioná-lo”. 22
Nas últimas décadas, contudo, o caráter ilimitado do Poder Constituinte Originário
tem se relativizado por alguns novos personagens, entre os quais podemos destacar o
chamado poder constituinte supranacional, que se baseia na outorga de competências
estatais a entidades ou organismos internacionais. Da mesma forma, a fixação de um
padrão ético universal entre os povos revela a necessidade de submeter o poder
constituinte originário a certos valores atemporais e universais – como a liberdade,
dignidade do homem, democracia, vida. Seria absurdo, por exemplo, que a Constituição
estabelecesse uma sanção premial para todos que praticassem homicídio, pois a
preservação da vida é uma premissa natural para todo e qualquer ordenamento. Provase, assim, que o poder constituinte originário não é, de maneira alguma, ilimitado.
3 O CONSTITUCIONALISMO DE ONTEM E HOJE
O constitucionalismo liberal rompe com o absolutismo monárquico. O crescimento
econômico da Europa favorece o nascimento de novas classes além das que compunham
o primeiro e segundo Estados (nobreza e clero). A burguesia, formada por comerciantes
prósperos, rompe o delicado equilíbrio dos estamentos e reivindica para si participação
nas decisões políticas. Some-se a esse quadro o humanismo iluminista e o anseio de
retorno a uma justiça natural típica do medievo. 23
Na tradição absolutista os assuntos de Estado (gubernaculum) se resolvem de
maneira discricionária, e não por lei, sendo confiados à sabedoria e prudência do
monarca. Acumulam-se na figura do soberano tanto o assunto de Estado como o poder
de dizer e aplicar a lei (iurisdictio). A coexistência destes dois poderes numa mesma
figura entra em crise a partir do final do século XVII. Ainda na idade média se reforça a
necessidade de separação entre as funções de Chefe de Estado e de criador da lei
(gubernaculum x iurisdictio). Aos estamentos sociais deve ser dado poder de crivo sobre
as opções políticas do monarca. Cria-se a Câmara dos Lordes e a Câmara dos Comuns na
Inglaterra.
Essa divisão do poder, institucionalizada com o surgimento do parlamento inglês,
representa o ataque primeiro e mais importante ao exercício absoluto do poder pela
monarquia e resultou num primeiro modelo de separação de poderes. Esse paradigma se
propagaria por todo o ocidente a partir da influência capitaneada pela defesa doutrinária
de Montesquieu, ainda que os outros países passassem a adotar a divisão do poder sob
fórmula distinta da estruturada na Inglaterra.
O parlamento, na monarquia constitucional inglesa, passa a impor normas que
limitam o poder real, garantindo direitos individuais, entre os quais os petition of right,
de 1628, e o Habeas Corpus Act, de 1679. Para se manter e fazer com que haja paz e
progresso a monarquia inglesa admite essas declarações de direitos, num sistema de
equilíbrio constante baseado num consenso possível. Conforme José Levi do Amaral
Júnior “A democracia parlamentar começa a tomar forma na Idade Média. Evolui
por meio da adoção de mecanismos de limitação e de controle político do poder
real. Os parlamentos surgem para limitar e controlar o poder do rei”. 24
No mesmo sentido é a lição de Raul Machado Horta:
22
FERRAZ, Anna Cândida da Cunha Ferraz O poder constituinte do Estado-Membro. São Paulo, RT, 1979.
23
MATTEUCCI, Nicola. Organización del Poder y Libertad. Madrid: Trotta, 1998, p.25.
24
AMARAL JÚNIOR. José Levi Mello do. O poder legislativo na Democracia Contemporânea. A função de controle político dos
parlamentos na democracia contemporânea. In: Revista de Informação Legislativa, n. 168, p. 7-17, out/dez. 2005. p. 8.
10
Há relação de causalidade entre monarquia constitucional e regime
parlamentar. O processo histórico de redução e de controle dos poderes
do Monarca e o concomitante fortalecimento dos poderes do Parlamento
conduziu ao nascimento do regime parlamentar. A trajetória desse
processo é identificável na Inglaterra, nos fins do século XVIII, e nas
monarquias constitucionais do século XIX. A institucionalização do poder
monárquico nas regras constitucionais preparou o terreno para a
25
implantação do regime parlamentar.
Assim, há uma paulatina mudança na titularidade da soberania na Inglaterra, que
passa do Monarca ao Parlamento. Na França, o processo de limitação do poder real foi
posterior e mais traumático, resultando de uma reação burguesa à concentração de
poder nas mãos do Rei, que contava com o apoio do clero. A bandeira das liberdades
individuais foi utilizada para fazer valer o liberalismo, conveniente à classe que passava a
deter o poder econômico e pregava um Estado não intervencionista. O processo
revolucionário francês redunda na Constituição de 1791, mas a sua importância maior
não está em seus resultados, mas na aplicação prática da filosofia iluminista. As
conquistas liberais defendidas por Robespierre e Danton não perduram, pois a ditadura
napoleônica sucede o quadro revolucionário. Isso significa o retorno a uma situação de
concentração de poder. A mudança está apenas em quem a carrega consigo: se antes
havia uma monarquia absoluta, após a Revolução Francesa estrutura-se um governo
militar também absoluto.
De toda forma, o constitucionalismo, seja na França ou na Inglaterra, baseou-se
numa pretensão de controle do governante. Sob ótica política podemos entender o
fenômeno como ligado à correta e legitima forma de se decidir, atendo-se à preservação
dos direitos estampados na Constituição, que preservam a liberdade contra o poder
arbitrário. 26
O seu aspecto jurídico nos é revelado na pregação de um sistema dotado de um
corpo normativo máximo, que se encontra acima dos próprios governantes – a
Constituição. O objetivo é impedir o exercício absoluto do poder, de maneira que seja
vedado ao governante fazer valer seus próprios interesses e regras na condução do
Estado. 27
É possível elegermos algumas características que nos levem a reconhecer o
fenômeno constitucional. Entre elas podemos citar a existência de um núcleo de direitos
civis que devem ser respeitados e assegurados pelo governo; a prevalência da soberania
popular; supremacia e rigidez da Constituição; sistema democrático; divisão e limitação
do poder; caráter impessoal e abstrato das leis e instituições que monitorem e
assegurem o respeito à Constituição. 28
O século XIX constituiu-se num período de vivência e aprofundamento do
liberalismo construído no século anterior. Esse aprofundamento redundou num período
de constituições rígidas que, nas palavras de Paulo Bonavides, traduziam um sentimento
de profunda e inevitável desconfiança contra o poder, aquela desconfiança ou suspeita
clássica do liberalismo com sua doutrina de valorização da sociedade burguesa e
individualista29.
As constituições do positivismo foram as que se espalharam nos países de sistema
romano-germânico durante o século XIX, a exemplo da Lei Fundamental Belga, de 1832.
A população internalizava a suprema garantia representada pela Constituição e, a conta
disto, omitia-se em cobrar efetividade às suas normas.
25
26
HORTA, Raul Machado. Direito Constitucional. 4. ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2003, p.658
MATTEUCCI, Nicola. Organización del Poder y Libertad. Madrid: Trotta, 1998.
27
TAVARES, André Ramos. Curso de Direito Constitucional. São Paulo:Saraiva, 2003.
28
HENKIN, Louis. NEUMAN, Gerald L. ORENTLICHER, Diane F. LEEBROM, David W. Human Rights. New York: The foundation
press incorporated, 1999
29
BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 21. ed. Malheiros editores: São Paulo, 2007, p. 225.
11
Os postulados liberais passam a sofrer deturpação e o que antes gerava a paz de
espírito nos povos transforma-se em mera folha de papel. A Constituição burguesa
embebe-se de anticoletivismo, transformando-se em expressão escrita de forças
econômicas e políticas imbuídas do único propósito de manter um Estado omisso em
integrar grupos marginalizados.
O reflexo visível desta crise estampa-se na exploração trabalhista que pontua a
revolução industrial inglesa e no fortalecimento de pseudodemocracias em Estados
periféricos, entre os quais o Brasil recém-independente. Reações acadêmicas são
produzidas. Ferdinand Lassale, Carl Schmitt e Hans Kelsen trazem novos e diferentes
sentidos ao constitucionalismo.
O sociologismo e o decisionismo marcam distinção entre Constituição formal e
material. No pós-liberalismo revela-se a positivação de direitos fundamentais de segunda
geração, prática inaugurada com a Constituição Mexicana de 1917 30. Hans Kelsen define
quem deve ser o “guardião da Constituição”, fixando as bases da jurisdição constitucional
concentrada.
Em reação ao positivismo dos oitocentos, a teoria material afirma que a produção
do constituinte é questionável, pois o valor e a durabilidade da Constituição formal
dependem da sua congruência com os fatores sociais subjacentes, ou seja, com a
Constituição real. Havendo choque entre as duas, deve-se descumprir a Constituição
formal. Essas idéias foram lançadas por Ferdinand Lassale durante palestra proferida em
1863 para intelectuais e operários da antiga Prússia, onde questionou sobre qual era a
essência da Constituição. Para o autor francês os problemas constitucionais não
consistem em problemas de direito, mas de poder, estando ligados à sociologia.
Parte-se da premissa de que ordenamento e realidade devem ser mutuamente
condicionados, pois a pretensão de eficácia jurídica está ligada às condições sociais, bem
como ao que o autor chama de substrato espiritual de determinado povo, que são os
valores que influenciam a conformação, o entendimento e a autoridade das proposições
normativas. A Constituição visa imprimir ordem e conformação à realidade política e
social, devendo guardar congruência com essa realidade. 31
Aprofundando o sociologismo de Lassale, Konrad Hesse explica que a eficácia da
Constituição se encontra ligada à sua correspondência em relação aos elementos sociais,
políticos, econômicos e ao estado espiritual do presente. Para que a Constituição possa
se adaptar às mudanças que tipicamente ocorrem nos fatores reais de poder, deve-se
limitar o texto constitucional a alguns poucos princípios fundamentais. 32
As freqüentes reformas diminuem a força normativa da Constituição, o que
compromete a sua estabilidade. A problemática da Constituição real e da Constituição de
papel liga-se à diferenciação entre Constituição material e Constituição formal. A primeira
pode ser compreendida em duas acepções. Uma ampla, identificada com a organização
do Estado: “significa a situação total da unidade e ordenação política, ou a concreta
situação de conjunto da unidade política e ordenação social de determinado Estado”. 33
Na acepção restrita, Constituição material significa o conjunto de preceitos escritos que
regulam a estrutura estatal, sua organização política e os direitos fundamentais.
A sociologia constitucional de Lassale significou um reencontro do Estado com a
sociedade, elementos separados pelo individualismo burguês. Lassale fincou o marco a
partir do qual se inicia a discussão sobre a constitucionalização de direitos coletivos.
Restringir o texto a um conteúdo liberal negativo (é vedado ao Estado) torna-se algo que
30
Alguns autores, entre os quais impende destacar Paulo Bonavides, colocam a Constituição Bolivariana de 1811 (Venezuela), como sendo
a precursora na positivação de direitos sociais. Vide palestra proferida pelo professor da Universidade Federal do Ceará na UNAM –
Universidade Autônoma de Madri/Espanha, sob o título “Constitucionalismo social e democracia participativa”, disponível em:
<http://www.juridicas.unam.mx/sisjur/constit/pdf/6-234s.pdf>.
31
LASSALE, Ferdinand. Essência da Constituição. Trad. Walter Stoner. São Paulo: Líber Júris, 1999.
32
HESSE, Konrad. Escritos de Derecho Constitucional. Madri: Centro de Estudios Constitucionales, 1983.
33
SILVA, José Afonso da. Aplicabilidade das normas constitucionais. São Paulo: Malheiros, 2004, p. 23
12
não satisfaz completamente os anseios sociais. É necessário impor comportamentos
positivos ao Estado em relação à consecução de seu fim maior, qual seja: a busca pelo
bem comum.
A Constituição passa a ser vista como uma obra que representa uma opção política
da sociedade. A este respeito impende ressaltar a contribuição teórica de Carl Schmitt,
cujo conjunto do pensamento sobre a Constituição e o Direito Constitucional se encontra
exposto na Teoria da Constituição, sua obra mais sistemática. 34 Schmitt nos revela que
a Constituição em seu sentido positivo é a decisão quanto ao modo e à forma de
existência de uma determinada comunidade ou unidade política. 35 A Constituição
significa uma decisão conjunta e fundamental sobre o modo e a forma de unidade de um
povo. 36
Diferentemente da Constituição em sentido positivo, a lei constitucional caracterizase por não conter nenhuma decisão fundamental acerca da forma e modo de existência
política de uma comunidade. A lei constitucional poderá vir a ser uma norma
constitucional simplesmente em função de sua inserção no corpo de um documento
constitucional, sendo constitucional em razão da forma e não em razão de seu conteúdo.
Carl Schmitt filiou-se ao partido nacional-socialista alemão por convite do filósofo
Martin Heidegger, mas é importante assinalar que a adesão de Schmitt ao regime de
Hitler se deu em meio a uma série de expurgos que varreram cerca de 11% dos
professores das universidades alemãs, dentre eles vários juristas, como Hermann Heller,
Hans Kelsen e Gustav Radbruch. A filiação partidária lhe permitiu manter contatos
freqüentes com membros do alto escalão do partido nazista, tais como Hermann Göring,
Joseph Göebbels, Rudolf Hess e Heinrich Himmler. Schmitt manteve, em aparente
contradição política, amizade com intelectuais judeus como Hugo Preuss, Walter
Benjamin e Fritz Eisler – a quem dedicou a sua "Teoria da Constituição".
Muito se discutiu sobre o envolvimento do autor com o regime nazista, mas alguns,
como Raymond Aron, defendem que isso não reflete a realidade. 37 Não há dúvidas,
contudo, de que Carl Schmitt contribuiu para o exercício arbitrário do poder na
Alemanha. Essa contribuição está na idéia de que a guarda das garantias políticas
expressas na Constituição não poderia caber, por afronta à soberania popular, ao poder
judiciário. Ao invés da fórmula americana, de base jurisdicional, a função de controle dos
atos legislativos e governamentais contrários à Constituição caberia, na visão de Schmitt,
unicamente ao chefe de Estado, num resgate republicano da teoria do poder neutro do
monarca, doutrina estruturada por Benjamin Constant na primeira metade do século
XIX.38
Ora, tal assertiva era extremamente condizente com a doutrina do partido nacionalsocialista alemão, que cada vez mais era uma agremiação governante centralizada na
pessoa do führer. Uma vez que coubesse ao chefe de Estado a interpretação prática da
Constituição, estaria aberta a possibilidade de um neo-absolutismo republicano, o que
realmente veio a ocorrer.
A reação a este ponto da doutrina de Schmitt não tardou, e veio capitaneada por
Hans Kelsen, jurista austro-húngaro que foi expurgado das universidades alemãs durante
o regime nazista e que operou uma revolução no constitucionalismo europeu do pósguerra. Em texto publicado numa revista de direito, em 1930, Kelsen pondera que a
função política da Constituição é estabelecer limites jurídicos ao exercício dos poderes
estatais. Desta forma, ao contrário do que pregava Schmitt, o controle dos atos
34
SCHMITT, Carl. Teoría de la Constitución. México: Nacional, 1981.
35
SCHMITT, Carl. Teoría de la Constitución. p. 15-23.
36
BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. Malheiros editores, São Paulo: 2007, p. 175- 176
37
De Schmitt, diz Raymond Aron: “Carl Schmitt nunca pertenceu ao partido nacional-socialista. Homem de grande cultura, ele não podia
ser um hitlerista e nunca foi” (apud PASQUINO, Pasquale. “Carl Schmitt - Teoria da Constituição”. In: CHÂTELET, François et ali.
Dicionário das Obras Políticas. Rio de Janeiro: Civilização brasileira, 1993).
38
SCHMITT, Carl. O guardião da Constituição. Del Rey: Belo Horizonte, 2005.
13
emanados do parlamento e do governo não poderia ficar a cargo de quaisquer das
funções estatais típicas. Essa tarefa deveria ser exercida por um órgão independente e
que tivesse por única missão o cotejo de compatibilidade entre a Constituição e os atos
infraconstitucionais. 39
Tornaram-se clássicas algumas passagens em que o jurista de Viena critica a
posição de Schmitt:
É pois surpreendente o fato de uma nova coleção de monografias sobre
direito público, as „Contribuições para o direito público da atualidade‟,
iniciar sua série com um trabalho que, com o título „O guardião da
Constituição‟ (Der Hüter der Verfassung), está dedicado justamente ao
problema da garantia da Constituição. Mais surpreendente ainda, porém,
é que esse escrito tire do rebotalho do teatro constitucional a sua mais
antiga peça, qual seja, a tese de que o chefe de Estado, e nenhum outro
órgão, seria o competente guardião da Constituição, a fim de utilizar
novamente esse já bem empoeirado adereço cênico na república
democrática em geral e na Constituição de Weimar em particular. O que
mais admira, porém, é que o mesmo escrito, que pretende restaurar a
doutrina de um dos mais antigos e experimentados ideólogos da
monarquia constitucional – a doutrina do „pouvoir neutre‟ do monarca, de
Benjamin Constant – e aplicá-la sem qualquer restrição ao Chefe de
Estado Republicano, tenha como autor o professor de direito público na
Berliner Handelshochschule, Carl Schmitt, cuja ambição é mostrar-nos „o
quanto muitas formas e conceitos tradicionais estão estreitamente ligados
a situações passadas, não sendo hoje mais nem sequer „vinho velho para
odres novo, mas sim apenas rótulos falsos e antiquados‟, e que não se
cansa de lembrar „que a situação da monarquia constitucional do século
XIX, com sua separação entre Estado e sociedade, política e economia,
encontra-se superada‟ e que portanto as categorias da teoria do Estado
constitucional não são aplicáveis à Constituição de uma democracia
40
parlamentar-plebiscitária como a Alemanha de hoje.
Mais adiante Kelsen pondera sobre a assertiva de Schmitt de que o controle de
constitucionalidade caberia ao chefe de Estado, afirmando que tal idéia é contrária à
própria letra positiva da Constituição:
[...] Essa fórmula de Constant torna-se, nas mãos de Schmitt, um
instrumento capital para sua interpretação da Constituição de Weimar.
Somente com esse auxílio ele consegue estabelecer que o „guardião da
Constituição‟ não seja, digamos – como se poderia supor a partir do seu
art. 19 -, o Tribunal Federal ou outro Tribunal, mas sim apenas o
presidente do „Reich‟, e isso já com base na própria Constituição em vigor,
41
e não, por exemplo, depois de uma reforma constitucional.
Kelsen acrescenta, tecendo já características para o tribunal constitucional,
que ele deve ser o verdadeiro guarda da Constituição, desempenhando uma tarefa distante das
funções típicas do Estado:
Para sustentar a tese de que o presidente do „Reich‟ seria o guardião da
Constituição, Schmitt tem que se voltar contra a instituição,
freqüentemente reclamada e em muitos Estados também concretizada, de
uma jurisdição constitucional, ou seja, contra a atribuição da função de
garantia da Constituição a um tribunal independente. Este funciona como
39
O texto foi traduzido do alemão por Alexandre Krug e publicado no Brasil pela Editora Martins Fontes como capítulo integrante do livro
“Jurisdição Constitucional”, de 2003. O título em português é “Quem deve ser o guardião da Constituição?”.
40
KELSEN, Hans. Jurisdição Constitucional. Martins Fontes: São Paulo, 2003. pp. 243/244
41
Ibidem, p. 245
14
um tribunal constitucional central na medida em que, num processo
litigioso, deve decidir sobre a constitucionalidade de atos do parlamento
(especialmente leis) ou do governo (especialmente decretos) que tenham
sido contestados, cassando tais atos em caso de sua inconstitucionalidade,
e eventualmente julgando sobre a responsabilidade de certos órgãos
colocados sob acusação. Pode-se certamente discutir sobre a conveniência
de tal instituição, e ninguém afirmará que se trata de uma garantia
absolutamente eficaz em qualquer circunstância. Mas de todos os pontos
de vista segundo os quais se possa debater o problema político-jurídico de
um tribunal constitucional central e estabelecer seus prós e contras, um
ponto é de fato insignificante: o de se tal órgão seria um „tribunal‟ e sua
função verdadeiramente „jurisdicional‟.42
Assim, passados mais de duzentos anos que o princípio da supremacia da
Constituição havia sido proclamado nos Estados Unidos da América, em que se
estruturou um controle dos atos políticos de maneira difundida por todo o poder
judiciário (controle jurisdicional difuso), a Europa inicia a estruturação do seu modelo de
controle concentrado em um órgão independente dos poderes estatais (controle político):
o Tribunal Constitucional. A primeira Constituição a abrigar as idéias de Kelsen sobre o
controle por um órgão central foi a Carta da Áustria, de 1920. Órgãos semelhantes
encarregados do controle de constitucionalidade foram também criados na
Tchecoslováquia em 1920; na Espanha democrática em 1978; Itália em 1947; Chipre,
1960; Turquia, 1961; Iugoslávia, 1963; Guatemala, 1965 e Chile, 1925. 43
A jurisdição constitucional é necessária, na visão de Kelsen, para fixar um sistema
que garanta a Constituição, no sentido de manter a regularidade das regras
imediatamente subordinadas à Lei Fundamental. A noção hierarquizada do ordenamento
decorre dos diferentes níveis de aplicação do direito patrocinados pelo Estado. A
Constituição é o primeiro destes níveis, pois carrega em si uma idéia de princípio
supremo determinando a ordem estatal inteira e a essência da comunidade constituída
por essa ordem.
Como a atividade de controle encerra a contrariedade de interesses políticos,
inclusive com a atividade de responsabilização constitucional e civil dos órgãos que
viessem a produzir atos irregulares, ao Tribunal Constitucional devem ser outorgadas
garantias pela própria Constituição. Entre estas garantias impende frisar as que são
consideradas por Kelsen como típicas da jurisdição: inamovibilidade e irredutibilidade de
proventos. Contudo, a preocupação maior deve ser com a garantia de independência,
que envolve a forma de escolha dos membros do Tribunal Constitucional. Uma parte das
vagas deve ser preenchida por eleições realizadas pelo parlamento, enquanto outras
seriam preenchidas por indicação dos próprios membros que já integrem o Tribunal
Constitucional e, por último, para manutenção de condições técnicas, deveria haver o
preenchimento das demais vagas através do recrutamento de juristas em Faculdades de
Direito.
No Brasil adotou-se um modelo híbrido de repressão aos atos inconstitucionais.
Trata-se de uma junção de características do critério difuso e concentrado. Alguns
problemas se verificam. A decisão tomada na via difusa não opera os efeitos gerais e
vinculantes próprios de um sistema de common law, onde a jurisprudência é fonte formal
do direito. Isso pode ensejar uma afronta à isonomia material, uma vez que as decisões
judiciais brasileiras podem ser diferentes para uma mesma situação. O controle
concentrado é feito pelo Supremo Tribunal Federal, que integra o poder judiciário, tem
ministros não eleitos e desempenha outras missões além do controle de
constitucionalidade. Desta maneira, a Excelsa Corte brasileira não possui os requisitos
exigidos por Hans Kelsen para um Tribunal Constitucional.
42
KELSEN, op. cit., p. 247-248
43
POLETTI, Ronaldo. O controle da constitucionalidade das leis. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1997
15
4 UMA ÉTICA GLOBAL E VOLUNTÁRIA PARA UM DIREITO MUNDIAL
A preocupação com a supremacia constitucional é algo, contudo, ultrapassado. Ao
contrário do que pregava Sièyes, o poder constituinte originário deve permanecer após a
entrada em vigor do texto constitucional, pois é este poder difuso, anônimo e político que
manterá a força normativa da realidade e do meio social. Trata-se, em outras palavras,
de uma faticidade que transforma a Constituição e a rejuvenesce. O poder constituinte
remanescente não desampara a Constituição depois de feita, antes a acompanha e
modifica. Esse poder, que dinamiza o sistema de garantias, exercita-se por múltiplas vias
na concepção atual. 44
Uma destas vias nos é revelada através do resgate e da reestruturação de alguns
ideais jusnaturalistas, ainda que distantes da concepção que encara o direito como
absoluto e válido para sempre. Esse resgate, ao contrário, baseia-se numa ética difusa,
segundo a qual ao lado do texto escrito existem preceitos gravados na consciência social
e postos em evidência pela competição dos grupos componentes da sociedade. Esses
preceitos suplantam a imagem de Constituição como produto da soberania de um Estado,
pois são onipresentes e difundidos em nível global a partir da idéia de solidariedade.
Como nos explica Leonardo Boff, em seu Ethos mundial, todos os seres estão
relacionados entre si e por isso são reciprocamente solidários. 45
Para o autor brasileiro, esta é a lei do universo, mas não só: a solidariedade é uma
categoria política, e foi em toda a história da humanidade condição essencial ao
desenvolvimento e a sobrevivência. Ao mesmo tempo, o homem, enquanto ser de um
planeta – parte de um todo – é diretamente responsável por tudo que lhe diz respeito e,
para sobreviver, tem o dever de ser solidário para com os outros.
Dessa forma, responsabilidade de todos e solidariedade entre todos estão
intrinsecamente ligadas ao novo modelo democrático, à democracia participativa em
escala global. Calcada na ética da solidariedade, a concepção democrática moderna
possibilita uma efetiva e real participação de toda a humanidade na gestão de interesses
mundiais.
Essa democracia planetária nasce de uma reformulação no conceito de Estado de
Direito, por força do fim do Estado nacional como monopólio exclusivo de produção
jurídica. A solução da crise pela qual passa o Estado de direito encontra-se na
perspectiva de um constitucionalismo de direito internacional, disseminado pela Carta da
ONU e por muitas declarações e convenções internacionais sobre direitos humanos. Tais
atos, até os dias de hoje, são desmentidos pelos bloqueios econômicos, pelo recurso à
guerra como meio de solução dos conflitos internacionais, pelo aumento das
desigualdades e pela rígida clausura das fortalezas “democráticas” do primeiro mundo
ante a pressão dos excluídos em países periféricos. As deportações de latino-americanos,
africanos e asiáticos em aeroportos norte-americanos e europeus são cada vez mais
freqüentes.
É certo que no espaço de poucas décadas, os atuais processos de integração nos
conduzirão, de todos os modos, a uma ordem jurídica global. A qualidade desta nova
ordem dependerá da política e do direito calcados na vontade de dar alguma atuação a
um projeto racional de uma ordem internacional informada pelo paradigma de um
constitucionalismo universal, do qual depende a paz e a própria segurança da
democracia. 46
Nesse sentido é que se alude ao respeito, pelo poder constituinte, à situação
histórica da comunidade política, aos ideais de Justiça, ao Direito Internacional, a um
Direito Natural, a grupos de pressão (presentes em toda Assembléia Constituinte), a
44
BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. Malheiros editores, São Paulo: 2007.
45
BOFF, Leonardo. Ethos mundial: um consenso mínimo entre os humanos. Letraviva: Brasília, 2000. pp. 109-111.
46 FERRAJOLI, Luigi. A soberania no mundo moderno. São Paulo: Martins Fontes, 2002. Tradução de Carlo Coccioli e Marcio Lauria
Filho
16
crenças ou a uma realidade social subjacente e limitadora do poder constituinte (o
fenômeno da normalidade, na visão de Hermann Heller), ou a princípios superiores de
convivência humana ou entre países. Esse conjunto fático está presente no fenômeno da
internacionalização do poder constituinte, pois precisamente por derivar de
compromissos institucionais assumidos pelo Estado, a internacionalização representa,
essencialmente, esse movimento incessante de interação, em todos os níveis, que está
na base da vida política da sociedade.
A ilimitação e o caráter incondicionado do poder constituinte originário, titularizado
na soberania, é um mito. A arquitetura hierárquica escalonada por Kelsen e conhecida de
todos os operadores do direito, não resiste à pressão fática calcada em valores cada vez
mais universais e que crescem diante da experiência histórica. A história é objetiva e
lógica ou, como expressou Gadamer “é uma fonte de verdade muito distinta da razão
teórica”. 47
Conforme aponta Luís Cláudio Coni:
[...] a inserção do Estado na comunidade internacional, por meio da
celebração de Tratados que, cada vez mais, impedem a oposição de
reservas, amplia a recepção de cláusulas pactuadas que são
frequentemente inconstitucionais. Sendo assim, resta proceder à revisão
constitucional para a devida conformação (agora, de fato, da Constituição
ao Tratado) ou, simplesmente, denunciar o Tratado. Não resta dúvida, a
este ponto de interdependência global e de necessidade de ampliação dos
mercados, sobre qual será a resposta jurídico-política a esse problema.
A internacionalização do Poder Constituinte, portanto, provoca um
deslocamento dos grandes equilíbrios institucionais do Estado, porque as
normas internacionais interferem na formação das normas internas,
materiais ou processuais, e afetam as próprias estruturas estatais, a
48
saber, a organização política e a distribuição de competências.
É necessário, assim, um deslocamento do constitucionalismo, que deve passar do
plano nacional para o internacional, com garantias de direito positivo invocáveis por todo
homem. Apesar de já existirem normas internacionais voltadas para essa perspectiva
(Carta da ONU, Declaração Universal dos Direitos do Homem), estes documentos têm
tido força apenas retórica, pois não encetam no seu texto meios de coerção que possam
ser executadas no caso de desrespeito aos direitos humanos e contra as violações da
paz.49
A internacionalização do direito resgata valores que haviam se esvaído em contato
com a multiplicidade constitucional dos Estados nacionais e podemos afirmar, ainda que
pecando por excesso de idealismo, que esse neo-jusnaturalismo, no sentido de uma
axiologia mínima e universal para a humanidade, significa a teleologia maior do
fenômeno constitucional em nossos dias. 50
Assim como Bachelard nos revela que as forças imaginativas da mente levam
sempre ao primitivo e eterno, também as forças imaginativas dos juristas comparadores
buscam algo que seja universal ou universalizável, ainda que não seja eterno. Cabe ao
direito internacional transpor os obstáculos a essa procura. Entre esses obstáculos
podemos citar a descontinuidade normativa, os desequilíbrios de poder em nível global e
o dilema entre o relativismo normativo e o universalismo filosófico de valores. 51
47 GADAMER. Hans Georg. Verdade e método, 4. ed., tradução de Flávio P. Meurer. Petrópolis: Vozes, 2002.
48 CONI, Luís Cláudio. A internacionalização do poder constituinte. 1. ed., Sergio Antonio Fabris Editor: Porto Alegre, 2006, p. 72.
49 Ibid., p. 53-54
50 HECK, José N. Jusnaturalismo e dialética. Goiânia: UFG. Disponível em:<htto:// www.ufg.gov.br. Acesso em: 21 jun. 2006>.
51
DELMAS-MARTY, Mireille. The imaginative forces of law. Beijing: Chinese Journal of International Law, 2003, p. 623-627.
17
No plano de fatos internacionais concretos, Segundo o Professor Nicolas Maziau
(Université de Toulon et du Var, França), existem três níveis de internacionalização do
poder constituinte. 52
O primeiro nível ocorre quando as relações internacionais do Estado enquadram o
poder constituinte derivado, que fará o trabalho de adequação da Constituição aos
Tratados, através da sua reforma pontual.
No segundo nível pode ocorrer a internacionalização parcial do poder constituinte
originário. Essa internacionalização parcial poderá decorrer de um Tratado celebrado ou
da força normativa dos fatos. Nesse caso, não se trata de um enquadramento do poder
constituinte derivado, pois a adequação que se quer operar na Lei Fundamental diz
respeito à materialidade constitucional, em regra protegida pelo apanágio da superrigidez consubstanciada em cláusulas “pétreas”.
No terceiro nível, segundo Maziau, teríamos a chamada “heterodoxia constitucional”
ou “heteronomia completa da Constituição”, onde o estatuto político emana, por
completo, de uma fonte de direito internacional, estranha ao conceito de soberania
popular defendido por Rousseau ou Sieyès. Neste caso, a Constituição é criada por um
ato supranacional estranho à decisão dos cidadãos que vão sofrer os efeitos daquele
diploma. O exemplo relacionado a esse nível seria aquele protagonizado pelos Acordos
Internacionais de Dayton, onde o anexo IV passou a ser a Constituição da recém-criada
Bósnia-Herzegovina, em 1995. O texto, neste caso, foi elaborado e aprovado pela
Organização das Nações Unidas - ONU, sem a participação da população que seria regida
por aquele diploma. O organismo internacional apenas ratificou, formalmente, a
soberania do país, surgido a partir do conflito nos Bálcãs.
Em todos esses três níveis de internacionalização o que se constata é a
relativização do conceito de soberania e de toda forma de poder normativo centrado
unicamente no Estado. A ascensão de novas fontes de produção jurídica, situadas em
nível externo, leva a uma real perda de poder soberano pelo Estado. O fenômeno das
integrações regionais exclui diversos tópicos da capacidade decisória estatal. Esses
assuntos passam a ser regidos por meio de acordos internacionais.
A origem da soberania não está mais em um único povo circunscrito a um dado
território, mas no homem em qualquer parte que esteja. Para ser fonte deste poder
basta ter em si a condição humana, e não a condição de nacional. Da mesma forma, o
limite da soberania está agora em seu conteúdo e não nas fronteiras do Estado. Uma
decisão prolatada por um Estado e que repugne a natureza humana não pode ser mais
considerada expressão de soberania unicamente por ter sido tomada por uma instância
de poder independente e geograficamente delimitada. Existe um parâmetro mínimo e
universal de humanidade a ser respeitado. 53
Uma sociedade mundial somente se viabiliza através de um consenso ético. Alguns
dirão, certamente, que a existência de um entendimento e concordância concernentes a
determinados valores e normas em nível global seria uma grande ilusão: o ápice do
idealismo na teoria das relações internacionais. É verdade que a diversidade tem sido um
dos próprios fatores que justificam a existência de Estados, pois se todos fossem iguais
nada justificaria, por exemplo, o nacionalismo cultural ou o fundamentalismo religioso.
Contudo, a diversidade pode ser encarada também como fator que torna indispensável
um consenso ético, pois se ele não existir não haverá garantia alguma para o homem em
face da crescente entropia nas relações internacionais.
Conforme estudos do historiador americano Samuel Huntington, a política mundial
se redesenha, nos dias atuais, segundo linhas culturais e, portanto, presa mais a valores
do que a fatos. Os conflitos mais abrangentes, importantes e perigosos não se dão entre
classes sociais, ricos e pobres, ou entre outros grupos definidos em termos econômicos
52
MAZIAU, Nicolas. L’internationalisation du Pouvoir Constituant. Essay de typologie: le point de vue heterodoxe du
constitutionnaliste. Paris: Revue Generále de Droit International, p. 549-579, 2002-3.
53
GOYARD-FABRE, Simone. Os princípios filosóficos do direito político moderno. 1. ed, São Paulo: Martins Fontes, 2002.
18
(como anunciava Marx), mas sim entre povos pertencentes a diferentes entidades
culturais. As guerras tribais e os conflitos étnicos tornam-se as principais razões para a
guerra. Entretanto, a violência entre Estados e grupos de civilizações diferentes carrega
consigo o potencial para uma escalada na medida em que outros Estados e grupos
dessas civilizações acorrem em apoio a seus „países afins‟. Existem linhas de fratura
entre civilizações, sobretudo entre os valores culturais do Ocidente e a cultura e religião
islâmica, o que pode envolver choques em face de fatos atuais. As pretensões
universalistas do Ocidente o levam cada vez mais para o confronto com outras
civilizações, em especial, com o Islã. 54
Alguns pensadores de linha católica, entre os quais se destacam Hans Küng 55 e o
teólogo brasileiro Leonardo Boff56, defendem um projeto de ethos mundial para
preservação da democracia e da paz. Para fundar uma ética planetária a humanidade
precisa criar certos consensos, coordenar certas ações, coibir certas práticas e elaborar
expectativas e projetos coletivos com uma referência ética e moral comum em face da
interdependência humana.
É preciso uma superação do “logocentrismo” grego e das cogitações cartesianas
para que o homem chegue a uma capacidade de sentir, afetar e ser afetado, pois o
sentimento é, em si, uma forma de conhecimento. O logos e o pathos devem se conjugar
para promover uma identificação transformadora do homem em face da realidade. Essa
realidade está impregnada de riscos globais que impõem dever de cuidado ou
responsabilização pela falta com este dever.
O cuidado expressa a importância da razão cordial, que respeita e venera
o mistério que se vela e re-vela em cada ser do universo e da Terra. Por
isso, a vida e o jogo das relações só sobrevivem se forem cercados de
cuidado, de desvelo e de atenção. A pessoa se sente envolvida
afetivamente e ligada estreitamente ao destino do outro e de tudo o que
for objeto de cuidado. Por isso o cuidado provoca preocupação e faz surgir
57
o sentimento de responsabilidade.
Percebe-se, desta forma, que a ética global envolve um patamar mínimo de
garantias para a dignidade humana. Essas garantias se relacionam, contudo, a diversos
direitos difusos que cercam o homem, entre os quais podemos salientar a liberdade,
igualdade, o meio-ambiente, a segurança, a proteção contra a fome, a livre existência
étnica e cultural. Entre a crença em padrões unicamente regionais e o pluralismo radical
há aqueles que acreditam na existência, entre os homens de diferentes culturas, nações
e religiões, alguma coisa em comum que possa ser posta em evidência: padrões éticos
de validade universal.
Frise-se, contudo, que não se trata de um consenso integral ou total, concordância
plena, mas um mínimo de valores, normas e atitudes que sejam comuns a todos os
homens. Portanto, um consenso mínimo.
Consenso ético quer dizer a concordância nos padrões éticos fundamentais
que é necessária para a sociedade pluralista de hoje, que apesar de todas
as diferenças de orientação política, social ou religiosa pode servir como a
58
base mais reduzida possível para a convivência humana e o agir comum.
Existe, conforme aponta Michael Walzer, um elemento universal na percepção dos
conflitos políticos. 59 Entre esses elementos estão a verdade e a justiça. Contra todos os
54 HUNTINGTON, Samuel. O choque de civilizações. Rio de Janeiro: Objetiva, 1997.
55 KÜNG, Hans. Uma ética global para a política e a economia mundiais. Petrópolis: Vozes, 1999.
56 BOFF, Leonardo. Ethos Mundial: Um consenso Mínimo entre os Humanos. Rio de Janeiro: Sextante, 2003.
57 Ibidem, p. 85.
58 KÜNG, Hans. Uma ética global para a política e a economia mundiais.Petrópolis: Vozes, 1999, p. 171-176
59
WALZER, Michael. Thick and thin. Moral argument at home and abroad. Paris: Notre Dame Press,
1994.
19
que de maneira regionalista ou relativista contestam as idéias de valores universalmente
válidos e de exigências morais, é preciso tornar claro que existe algo assim como um
“núcleo da moral”: todo um feixe de padrões éticos elementares, nos quais se incluem o
direito fundamental à vida, ao justo tratamento (também por parte do Estado), à
integridade moral e psíquica. Walzer chama isto de uma “moral mínima”, ou um
“minimalismo moral”. 60
5 A MUNDIALIZAÇÃO IMPOSTA POR RISCOS GLOBAIS
O utilitarismo estatal, frente a valores universalmente válidos, é completamente
insuficiente para fundamentar deveres normativos que se projetem como meios para
alcance de uma justiça intercultural. O contrato social de um determinado Estado,
pretensamente exposto através de sua Constituição, não possui a força de garantir
valores universais voluntariamente queridos e, além disso, cada vez mais necessários à
manutenção de uma existência digna para todos os povos. A mundialização, que já foi
encarada como simples opção, transforma-se a cada dia em imposição.
O direito mundial também parte de uma premissa involuntária. O crescimento
populacional para um patamar de 10-11 bilhões de pessoas é previsto para ocorrer ainda
no século XXI. 61 Esse dado nos leva a indagar sobre a possibilidade de um
desenvolvimento planetário sustentável. Não parece haver dúvida de que a Terra é finita
e os sistemas de suporte da vida são limitados.
O meio ambiente está ligado ao valor mais universal, que é a vida. A atividade
humana em diversos setores cria, entretanto, riscos à necessária preservação ambiental.
É ilógico consagrar um modelo de desenvolvimento que não se equacione com a
manutenção dos recursos naturais do planeta. 62 Esse equacionamento, uma vez que
guarda inerência com a própria preservação do homem, não pode, por outro lado, ser
tratado de maneira desordenada e não uniforme por Estados diferentes.
As normas de Direito Ambiental Internacional tentam encontrar, de modo forçado,
o equilíbrio entre a atividade econômica e a preservação do meio ambiente, para
sobrevivência da geração atual e das futuras. Fere o conceito mais basal de justiça que
determinado país possa desenvolver-se à custa da qualidade de vida humana, sendo
certo que quando se escreve “humana” há um distanciamento completo em relação às
noções de cidadão ou estrangeiro, pois nesta seara tanto faz.
O Protocolo de Kioto, por exemplo, é um acordo internacional que estabelece metas de
controle dos gases causadores do aquecimento global. Os efeitos deste aquecimento são ou
serão sentidos tanto por países comprometidos com a redução das emissões como por aqueles
não comprometidos. A pergunta, diante desta realidade, é a seguinte: existe alguma soberania
que possa embasar uma negativa estatal em se colaborar com a prevenção do efeito estufa?
Parece-nos que a resposta é necessariamente negativa.
Na nova ordem mundial operam forças sociais, econômicas e políticas em escala
mundial. Estas forças desafiam e reduzem os espaços de poder da nação, mesmo em
pontos de maior expressão política, onde se situa o constitucionalismo de base liberal, o
que obriga reformulações profundas em seus projetos nacionais.
É viável pensar-se num governo supranacional, num governo global?
60 Idem, p. 145
61 UNITED NATIONS Fund for Population Activities. The state of the World population, 1991.
62 CORDANI, Umberto C. As ciências da Terra e a mundialização das sociedades. Palestra feita pelo autor em 18 de abril de 1995 no
IEA-USP. Disponível em: < http://www.scielo.br/pdf/ea/v9n25/v9n25a03.pdf>
20
Para respondermos a esta pergunta é preciso assinalar, antes de tudo, que a
mundialização não significa homogeneização, similaridade ou igualdade no sentido de
nulificação de nacionalismos e regionalismos. Estes muitas vezes são milenares e
permanecem em estado letárgico, sendo despertados justamente pelo valor global da
liberdade, que compõe o processo de mundialização.
Cordani pontua, em relação à extinta União das Repúblicas Socialistas Soviéticas,
que:
[...] mais de 70 anos de domínio por um governo centralizado e potente
não foram suficientes para apagar a identidade das muitas nações e etnias
que faziam e fazem parte da Rússia, hoje ela mesma remanescente do
que foi a União Soviética, tendo de encarar fortes movimentos
63
separatistas, como os que ocorrem na Ossétia ou na Tchetchênia.
A mundialização impõe reformulação nas condições de soberania e de hegemonia.
Neste processo, concordamos com aqueles que defendem a idéia de que a Organização
das Nações Unidas poderia ser o embrião de um poder político central, mundial.
Entretanto, com seus 50 anos de vida, ela continua sendo muito mais uma promessa.
Com suas diversas ramificações, vem se constituindo em espaço para discussões
intermináveis, além de centro de decisões tímidas e ações burocratizadas, de pouca
eficácia e praticidade. A guerra no Iraque simplesmente chancelou essa timidez.
Octávio Ianni nos ensina, a este respeito, que:
Somente no âmbito de uma sociedade global aberta, uma espécie de
sociedade civil global, isenta das estruturas de dominação que garantem a
alienação de muitos por alguns, somente nessa sociedade pode nascer o
cidadão do mundo. Neste caso, a cidadania traz consigo a soberania,
64
traduzindo a essência da hegemonia.
6 CONCLUSÃO
Já existe um direito mundial, ainda que minimalista. Esse direito comum para a
humanidade possui, na atualidade, um caráter essencialmente programático, como
denotam os tratados da ONU sobre direitos humanos. Isso significa que ainda existe um
longo caminho rumo a uma verdadeira força normativa para estes documentos, mas
demonstra, por outro lado, que alguns pilares do Direito Público, tais como a soberania e
o constitucionalismo, já foram atingidos por este processo e são, neste momento, objeto
de profunda reformulação.
Esses três fenômenos: soberania, constitucionalismo e mundialização, podem
inclusive ser entendidos como integrando uma linha evolutiva e interdependente na
história do Direito Político.
A noção de soberania absoluta, que ajudou a fundar e manter o absolutismo
monárquico europeu, ruiu diante da idéia de subordinação indistinta aos ordenamentos
nacionais, que ainda hoje têm por base a limitação do poder dos governantes, paradigma
maior do constitucionalismo e da democracia. Essas duas últimas categorias, por seu
turno, são confrontadas, hodiernamente, pelos novos parâmetros impostos pela
universalização dos valores basais do homem.
63
Cordani, Umberto C. As ciências da Terra e a mundialização das sociedades. Palestra feita pelo autor em 18 de abril de 1995 no IEAUSP. Disponível em: < http://www.scielo.br/pdf/ea/v9n25/v9n25a03.pdf>.
64
IANNI, O. A sociedade global. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1992.
21
É claro que a transição entre soberania absoluta e constitucionalismo não ocorreu
de forma imediata, assim como não está sendo imediata a transição entre o
constitucionalismo estatal e o direito mundial. Essa última transformação já conta mais
de cem anos.
A soberania, que na sua gênese medieval cedia ao direito das gentes, conforme
demonstra Francisco de Vitória, cobriu-se de inflexibilidade por força do pensamento de
Bodin e Grotius, tendo assim permanecido, como conceito absoluto, até a metade do
século XX.
O monarca deixou de ser expressão da soberania absoluta no bojo das revoluções
liberais que solidificaram o constitucionalismo como movimento em prol da limitação do
poder. A Constituição passou a ser entendida como expressão da soberania por força,
sobretudo, da obra de Sièyes. Isso originou a era das Constituições super-rígidas, pois se
partia da idéia de que nada podia estar acima da Carta Política de um Estado, nem
mesmo o direito das gentes.
Os primeiros questionamentos sobre a rigidez absoluta das Constituições nos foram
trazidos através das chamadas teorias materiais, onde se destacam o sociologismo de
Ferdinand Lassale e o decisionismo de Carl Schmitt. As teorias materiais foram
aprofundadas pelo integracionismo de Rudolf Smend e o historicismo de Gadamer.
Para esses autores, numa síntese que nem de longe revela a grandeza dos seus
pensamentos, a Constituição é, em essência, o que a dinâmica social e política mostra a
cada dia, e como os fatos e valores estão em constante mutação, a rigidez constitucional
é um mito.
Ademais, a concretização dos preceitos constitucionais deve ocorrer a partir de uma
integração constante com os anseios sociais, considerando-se a renovação do direito
todas as vezes que o mesmo é aplicado, pois nesse processo de aplicação há sempre um
choque entre os horizontes históricos do legislador e os do juiz. Desse choque é que
nasce a Constituição real, aquela que desvenda a vontade humana.
O positivismo de Hans Kelsen, apesar de ter aprofundado a noção de supremacia
da Constituição no âmbito interno, revelou-nos que, no universo puro do Direito as
relações internacionais não podem ser vistas como algo estranho ao Estado (monismo
jurídico). Assim, há de se ter em vista a supremacia do direito internacional, uma vez
que o mesmo representa uma vontade conjugada e supra-estatal.
Isso foi decisivo para que se retomasse a idéia de supremacia do direito das gentes
diante das especificidades normativas nacionais. A partir desse marco, e tendo em vista
a necessidade de preservação da paz em face dos horrores da segunda guerra mundial,
os Estados passaram a atribuir competências e capacidades a organizações
supranacionais com o objetivo de que determinados valores fossem mantidos a salvo de
eventuais soberanias absolutas, desvirtuamentos de poder patrocinados por algum
déspota ou ditador faminto por conflito. Retoma-se o sonho kantiano de paz perpétua.
Propaga-se o ideário de que existe uma ética mínima e universal, um consenso
axiológico que perpassa as fronteiras do Estado e que pode ser o conteúdo, a matéria de
um constitucionalismo de Direito Internacional. O documento que mais se aproxima
deste ideário é lançado pelas Nações Unidas em 1948 e subscrito por mais de cento e
cinqüenta países, iniciando o debate sobre um Direito comum em nível planetário,
vinculando todos os povos e nações.
A mundialização significa a positivação de direitos naturais em nível global a partir
da constante identificação de valores que ultrapassam a noção de povo e território.
Tal processo está em curso, e demanda a superação de diversos desafios, entre os
quais podemos destacar a crescente complexidade do direito internacional, as
desigualdades econômicas, culturais e religiosas entre as nações e um questionamento
ainda não resolvido sobre quais seriam as vias de legitimação democrática de um Direito
Mundial.
22
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