DIREITOS HUMANOS, DIREITOS SOCIAIS, FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE E AS QUESTÕES HABITACIONAIS BRASILEIRAS João Paulo Rezende Russo 1 RESUMO: O artigo traz uma análise dos direitos humanos em especial dos direitos sociais, adotando como base o desenvolvimento dos mesmos no âmbito das cidades aliado ao conceito atual a respeito da função social da propriedade, visando por fim abordar as questões habitacionais brasileiras, com foco nos principais programas implementados pelo governo federal, destacando-se o Banco Nacional da Habitação, Programa de Arrendamento Residencial e Programa Minha Casa Minha Vida. Palavras-chave: direitos humanos; direitos sociais; função social, políticas sociais; habitação. ABSTRACT: The paper presents an development base in the cities along with to finally address the housing issues in government, especially the National Home My Life. analysis of human rights in particular social rights, adopting astheir the current concept concerning the social function of property in order Brazil, focusing on major programs implemented by the federal Housing Bank, Residential Leasing Program and Program My Keywords: human rights, social rights, social function, social policies, housing INTRODUÇÃO O presente trabalho busca analisar as políticas brasileiras de habitação e como os direitos humanos e direitos sociais influenciaram a concretização das mesmas. O Brasil vem atravessando nos últimos dez anos mudanças substanciais no âmbito da habitação, com programas direcionados às várias classes sociais, principalmente no que diz respeito a financiamentos para aquisição da casa própria como também para construção desta. O foco do estudo está nos programas do governo vigentes e que abrangem todo o território do país. Entretanto, a fim de adentrarmos no mérito da questão, necessário se faz um esboço dos direitos humanos, direitos sociais e a evolução do direito à habitação no Brasil, no intuito de se estabelecer referências históricas e a conceituação destes importantes direitos para o avanço e estudo da moradia, visto esta como um elo de ligação entre o cidadão e a cidade. Cabe também realizar uma rápida digressão sobre o instituto da posse e o direito de propriedade, a fim de estabelecer suas diferenças, formas como os mesmos são tratados pelo 1 Advogado. Mestre em Política Social pela Universidade Católica de Pelotas. Estado e suas influências no desenvolvimento social. Agregada ao direito de propriedade encontramos a função social da propriedade, hoje considerada como peça chave na correta utilização dos espaços, principalmente os urbanos privados. 1. DIREITOS HUMANOS A sociedade há muito vem travando conflito com a proteção do ser humano, tendo por base os direitos inerentes a cada pessoa ou então de titularidade de uma coletividade. Com o passar dos anos o homem passou a entender como se pode encontrar suscetível a todo tipo de violência, seja física ou psicológica. Ao princípio o ser humano vivia de forma individualista, sem uma organização social. Com o passar do tempo e evolução do próprio homem, este ingressou em nova fase, a qual transformou o modo de viver. O homem ultrapassa o pensamento individual e ingressa no campo da coletividade, inicia seus contatos com os demais e acaba por criar o que chamamos hoje de sociedade. Muitos motivos podem ser levantados para explicar a união dos homens para viver em sociedade, sendo assim, não seria possível identificar uma razão exclusiva, no dizer de Celso Ribeiro Bastos (BASTOS, 2002, p. 4): “Ela se confunde com o próprio evoluir do homem, perdendo-se, portanto, nas origens da própria espécie humana”. A sociedade transforma o modo de viver, o convívio entre semelhantes gera problemas e conflitos e, paralelamente à resolução dos mesmos surgem estruturas de poder, as quais, mais tarde, darão base à criação do Estado. Instituição esta que vem se modernizando ao longo do tempo, principalmente no que atine à garantia de direitos dos indivíduos, em especial os direitos humanos. O Estado detém soberania em seu território, mas que pode se mostrar vulnerável na hipótese de violação de alguns direitos do cidadão, visto que atualmente, a idéia de humanidade ultrapassa fronteiras e rompe paradigmas, ocasionando irresignação e revolta aos demais estados contra aquele que não defende tais prerrogativas dos cidadãos. Por tal motivo, os direitos humanos são estudados de forma contínua e densa, gerando o debate e aperfeiçoamento do tema. Pois bem, ao adentrarmos na análise dos direitos humanos não se pode deixar de destacar um marco histórico na positivação internacional dos mesmos, qual seja, a Declaração Universal dos Direitos Humanos, assinada em 1948, na qual constam os direitos que todo o ser humano detém independentemente de suas condições, tendo sida ratificada pelo Brasil. Em tal carta encontramos os mais variados tipos de direitos: direito à vida, direito à educação, direito à habitação (foco central do presente artigo), etc. São os chamados direitos humanos, portanto, fundamentais. Os direitos humanos emergiram de forma positivada e tomaram cadeira no cenário internacional em meados do século XX, muito embora o seu surgimento efetivo remonte ao final do século XVIII, através do pensamento de Thomas Hobbes e John Locke, filósofos que defendiam a idéia de que existem direitos naturais, inerentes a todos os seres humanos a partir do nascimento e ainda, inalienáveis, como o direito à vida e o direito à liberdade. Com a evolução dos direitos humanos convencionou-se distribuí-los e classificá-los em categorias, sendo a mais atual dividida em cinco tipos: direitos de primeira, segunda, terceira, quarta e quinta gerações. Nos considerados de primeira geração se enquadram os direitos relacionados à proteção da vida e da liberdade, os quais impõem obrigações negativas ao Estado, de não intervir na esfera pessoal do indivíduo. Nos direitos humanos de segunda geração encontramos os direitos sociais, culturais econômicos, sendo que estes carecem para sua efetivação de uma intervenção positiva do Estado. Com relação aos direitos de terceira geração, estes se tratam dos direitos coletivos e difusos. Estão atrelados à idéia de proteção do todo social e apresenta como base um dos pilares da Revolução Francesa, a fraternidade. Em sua gama de cobertura encontramos os direitos dos consumidores e de proteção ao meio ambiente. Já no que diz respeito aos direitos de quarta geração, os mesmos têm com escopo abarcar as questões relacionadas com a biotecnologia, bioengenharia e bioética. Direitos estes surgidos a partir das inovações tecnológicas no estudo do genoma humano. Por fim, são considerados direitos humanos de quinta geração aqueles que versam sobre a realidade virtual, informática, cibernética. Questão complexa e de difícil controle e atualização, tendo em vista a velocidade que acompanha seu desenvolvimento e evolução. Diante da breve exposição acerca da classificação dos direitos humanos, destacam-se os direitos de segunda geração, direitos sociais, em especial o direito à moradia, tema a ser tratado no presente estudo. 2. DIREITOS SOCIAIS A noção de direitos sociais surgiu no século XX e teve como norte de positivação a Constituição Mexicana de 1917, a qual institui diversas disposições relativas à previdência social e aos direitos dos trabalhadores, merecendo destaque a definição de jornada máxima de oito horas de trabalho, proibição de trabalho aos menores de quatorze anos e direito à capacitação ao trabalho. No entanto, ao se analisar a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789 pode-se vislumbrar que a partir de então os direitos sociais começaram a fazer parte das discussões, ainda que de forma velada. Com a evolução dos direitos, os ditos sociais foram classificados como de segunda geração, muito embora uma parcela de autores afirmar que o mais correto seria denominar de dimensões de direitos e não gerações. Mas, o que importa referir é como os direitos sociais ingressaram no ordenamento jurídico pátrio e influenciaram o desenvolvimento de políticas sociais. No Brasil, os direitos sociais ingressam de forma positivada através da Constituição de 1934, a qual instituiu normas sociais de proteção ao trabalhador, destacando-se (BRASIL, 1934): Art 121 - A lei promoverá o amparo da produção e estabelecerá as condições do trabalho, na cidade e nos campos, tendo em vista a proteção social do trabalhador e os interesses econômicos do País. § 1º - A legislação do trabalho observará os seguintes preceitos, além de outros que colimem melhorar as condições do trabalhador: a) proibição de diferença de salário para um mesmo trabalho, por motivo de idade, sexo, nacionalidade ou estado civil; b) salário mínimo, capaz de satisfazer, conforme as condições de cada região, às necessidades normais do trabalhador; c) trabalho diário não excedente de oito horas, reduzíveis, mas só prorrogáveis nos casos previstos em lei; ... Após este marco constitucional, os direitos sociais passaram a evoluir a passos largos, consubstanciado, essencialmente, na luta da classe dos trabalhadores frente à industrialização acelerada do país e seus efeitos nefastos aos operários. Atualmente, vários autores abordam a questão dos direitos sociais e intentam descrevê-los e conceituá-los. Ainda que nos pareçam direitos individualistas, os direitos sociais apresentam um fim maior, qual seja o benefício de toda a sociedade, como bem explana Júlio César de Carvalho Pacheco (2009, p. 148): Dessa forma, pode-se dizer que os direitos sociais são voltados para o ser humano e a coletividade, escapando do viés individualista. Por isso, atingem as pessoas individualmente, embora se destinem à sociedade em geral, e não apenas a uma pessoa ou a um grupo isolado. Ante a relevante importância dos direitos sociais, os mesmos se encontram protegidos na atual Constituição Federal, sendo que o pensamento do Autor acima citado nos leva a crer que tais direitos não podem nem mesmo ser objeto de alterações através de Emenda Constitucional: Essa é uma questão polêmica entre os constitucionalistas, já que há autores, como se irá verificar, que não consideram os direitos sociais como cláusulas pétreas. Entretanto, o mais adequado é considerá-los como integrantes das limitações materiais arroladas no art. 60 da CF/88, de sorte que as expressões direitos e garantias individuais se referem aos direitos fundamentais e sociais, estando, assim, protegidos dos atos do poder reformador (Congresso Nacional e Poder Executivo) de alteração constitucional, seja, como menciona Sarlet, na condição de limites expressos, seja como limites implícitos (PACHECO, 2009, p. 156). 3. EVOLUÇÃO DO DIREITO À HABITAÇÃO NO BRASIL O direito à habitação, dada sua característica de universalidade, isto é, de ser considerado direito essencial ao desenvolvimento do ser humano, sempre foi muito resguardado. Muito embora seja um direito social de grande importância, o mesmo somente passou a ser inserido de forma clara nos textos legais a partir da Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948, a qual o Brasil ratificou, como já referido. Constou no artigo XXV da referida Declaração (ONU, 1948): Artigo XXV. 1. Todo ser humano tem direito a um padrão de vida capaz de assegurar-lhe, e a sua família, saúde e bem-estar, inclusive alimentação, vestuário, habitação, cuidados médicos e os serviços sociais indispensáveis, e direito à segurança em caso de desemprego, doença, invalidez, viuvez, velhice ou outros casos de perda dos meios de subsistência em circunstâncias fora de seu controle. Assim, o direito à habitação já se encontrava protegido, de forma clara e específica, em texto de lei universal desde o ano de 1948. Por certo que, mesmo não havendo legislação específica sobre o tema, o direito à moradia se encontrava intrínseco em normas gerais sobre os direitos do cidadão. A partir de 1988 com a promulgação da atual Constituição Federal, o direito à moradia deixou de ficar na penumbra da legislação nacional e passou a ser tratado de forma mais evidente, entretanto, não ainda específica. A Constituição Federal de 1988 em seu artigo 7º, inciso IV assim estipulou: Art. 7º São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição social: IV - salário mínimo , fixado em lei, nacionalmente unificado, capaz de atender a suas necessidades vitais básicas e às de sua família com moradia, alimentação, educação, saúde, lazer, vestuário, higiene, transporte e previdência social, com reajustes periódicos que lhe preservem o poder aquisitivo, sedo vedada sua vinculação para qualquer fim; Então, a Constituição apenas vinculou a moradia de forma indireta, ou seja, tendo como base a fixação de remuneração mínima, o salário mínimo, sendo que este deve atender as necessidades básicas do cidadão, como por exemplo, a moradia. Mais tarde, no ano 2000, através da Emenda Constitucional nº 26 o artigo 6º da Constituição Federal foi alterado e com isto restou incluído o direito à moradia, agora de forma específica, conforme a redação a seguir: “Art. 6º São direitos sociais a educação, a saúde, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição”. Portanto, a maneira tímida como o direito à moradia vinha sendo tratado abriu espaço para uma maior garantia e importância no meio jurídico e político. O direito à habitação passou a ser protegido diretamente pela Constituição Federal, o que passou a gerar discussões e preocupações sobre a efetividade de disponibilização de tal direito ao cidadão. E, como veremos no decorrer deste estudo, algumas medidas eficazes e de grande abrangência com relação ao direito à moradia foram criadas após a alteração da Emenda nº 26 a qual, como visto, incluiu definitivamente, o direito à habitação de forma distintiva na Constituição Federal. 4. A POSSE E O DIREITO DE PROPRIEDADE A fim de tratarmos da função social da propriedade a seguir, necessário se faz uma análise prévia, ainda que sucinta do instituto da posse e do direito de propriedade, os quais ocasionam conflitos desde os primórdios da humanidade. A posse se trata de uma situação de fato, na qual um sujeito exerce sua vontade sobre determinada coisa, sobre determinado bem, entretanto, sem que lhe seja atribuído a característica da propriedade. A posse então é uma situação de aparência, isto é, se mostra no meio social como uma aparência de um direito, aparenta o direito de propriedade. Assim, quando uma pessoa está residindo em um imóvel, não se questiona se a mesma é proprietária daquele bem ou apenas um inquilino. Mas, a primeira impressão de tal hipótese é presumir-se que seja o proprietário daquele imóvel. Entretanto, ao contrário do detentor do direito de propriedade, aquele que detém a posse não pode alienar, vender o imóvel, quando muito pode apenas ceder seus direitos de posse. Além disso, a realização de obras e melhoramentos em um imóvel que não é de propriedade do indivíduo, se mostra temerária, uma vez que alijado do bem pode nem mesmo ter direito à indenização pelas benfeitorias efetivadas. A posse se constitui no exercício de um dos poderes ou das faculdades inerentes à propriedade, isto é, consiste no exercício de usar e/ou gozar do imóvel. Então, aquele que exerce o direito ou faculdade de usar e/ou gozar do imóvel detém a sua posse. Porém, como já esposado, o possuidor apesar de poder usar e gozar do imóvel não pode transferir a propriedade deste. Além disso, a posse é um direito temporário e precário, uma vez que pode ser cessada contra a vontade do seu possuidor, o que via de regra não acontece com relação ao direito de propriedade. Importante salientar que a posse é adquirida desde o momento em que se torna possível o exercício, em nome próprio, do uso e/ou gozo do imóvel. Destarte, qualquer pessoa pode adquirir a posse de um bem. E, aquele que exerce a posse pode defendê-la através de ações judiciais, contra terceiros. Mesmo a posse sendo um instituto precário, a lei a protege, resguarda o possuidor de ser privado do bem no qual está exercendo sua vontade por um período razoável de tempo. A posse se apresenta no meio social como algo tangível a qualquer pessoa, seja por ser possível seu exercício sobre um bem móvel como um bem imóvel. Neste ponto há que se salientar que as moradias exercidas apenas através da posse geram muitos conflitos, tanto entre cidadãos, como entre estes e o Estado. A disputa pela posse de imóveis é notícia corrente no meio social, enquanto que, na medida em que se concede a propriedade do imóvel ao cidadão estes conflitos diminuem e tendem a se extinguirem. Não são poucos os cidadãos que, em razão de dificuldades financeiras se apossam de terrenos desocupados e nestes locais passam a residir, ou seja, exercendo precariamente a posse, contudo, sem exercer o direito de propriedade. Em razão dessas circunstâncias, suas habitações se apresentam subumanas e insalubres, ocasionando inclusive a proliferação de doenças. Dadas as características que permeiam os institutos da posse e da propriedade, passemos à análise desta, a qual é de maior interesse ao presente trabalho. O direito de propriedade é talvez a mais antiga das prerrogativas humanas. Nasce o "ter" quase que simultaneamente ao "ser". Em Roma (principal referência de leis escritas da antiguidade), construiu-se aquilo que é, até hoje, a estrutura do direito real de propriedade, consistente em um complexo de direitos ou prerrogativas exercidas por uma pessoa sobre uma determinada coisa. Fixou-se, desde então, que o direito de propriedade é o direito conferido a determinada pessoa de usar, gozar e dispor da coisa (vendê-la, trocá-la), além de poder reavêla das mãos de quem injustamente a possua ou a detenha. Bruno Bauer, citado por Karl Marx expõe sobre o tema: O direito humano da propriedade privada, portanto, é o direito de fruir da própria fortuna e de dela dispor como se quiser, sem atenção pelos outros homens, independentemente da sociedade. É o direito do interesse pessoal. Esta liberdade individual e a respectiva aplicação formam a base da sociedade civil. Leva cada homem a ver nos outros homens, não a realização, mas a limitação da sua própria liberdade. Afirma acima de tudo o direito de desfrutar e dispor como se quiser dos seus bens e rendimentos, dos frutos do próprio trabalho e diligência (MARX, 1975, p. 57). Ao contrário da posse, a propriedade tem como características ser: absoluta, tendo em vista que é oponível contra todos; exclusiva, porque é integral de seu titular não admitindo o fracionamento do direito mas apenas da coisa; definitiva: visto que somente pode ser retirada de seu titular com a sua autorização (excepcionalmente o Estaddo pode retirar a propriedade contra a vontade do titular, como nos casos de desapropriação). A propriedade pode ser adquirida por diversas formas como por exemplo através de herança. Entretanto, dado o tema do presente artigo, trataremos da aquisição da propriedade de imóveis através do meio mais corriqueiro, qual seja, a compra e venda. O direito de propriedade é por demais protegido pela lei e pela constituição, uma vez que exerce importância fundamental sobre os direitos básicos do cidadão, em especial o direito à moradia, o qual se encontra resguardado no artigo 6º da Constituição Federal de 1988. De se enfatizar mais uma vez que a inclusão do direito à moradia no artigo 6º da Constituição Federal, o qual trata dos direitos sociais, ocorreu apenas no ano de 2000, através da Emenda Constitucional nº 26, a qual alterou o referido artigo. Realizadas tais considerações, cabe analisarmos a função social da propriedade, mais especificamente da propriedade imóvel urbana. 5. FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE URBANA A função social da propriedade pode ser vislumbrada de forma positivada desde 1891, quando da publicação da Encíclica Rerum Novarum, de autoria do Papa Leão XIII, a qual é considerada como base para a mais tarde chamada de doutrina social da igreja. A referida encíclica, além de estabelecer direitos aos trabalhadores, humanidade e justiça nas relações de trabalho, também realizou considerações a respeito do uso da propriedade. Ao tratar desta a Carta Papal estabelecia que a propriedade é tanto individual como coletiva, isto é, no sendido de aquisição ela é individual, mas no sentido de uso, coletiva. Assim, a utilização da propriedade pelo particular que a adquiriu deve ser para o bem comum, com algum benefício para o bem social, de toda a coletividade. No Brasil, a função social da propriedade teve sua introdução marcada na Constituição de 1946, a qual dispôs que o uso da propriedade deve ser condicionado ao bemestar social, conforme artigo 147, que assim determinava: “Artigo 147. O uso da propriedade será condicionado ao bem-estar social. A lei poderá, com observância do disposto no artigo 141, §16, promover a justa distribuição da propriedade, com igual oportunidade para todos” (BRASIL, 1946). Entretanto, foi na Constituição de 1967 que a função social da propriedade adquiriu o status de princípio, demonstrando o interesse de se valorizar o uso adequado daquele direito, muito embora o Estado autoritário da época tenha resguardado para si muitas prerrogativas sobre os direitos individuais. Proconizava o artigo 157, inciso III: “Artigo 157. A Ordem Econômica tem por fim realizar a justiça social. Com base nos seguintes princípios; ... III – função social da propriedade” (BRASIL, 1967). Dessa forma, a função social da propriedade ingressa no ordenamento constitucional brasileiro com caráter de princípio, com grande relevância no que pertine ao tratamento a ser dado ao direito dos proprietários de imóveis urbanos. Nas constituições que se seguiram, em especial a que está em vigor, promulgada em 1988, a função social da propriedade foi mantida como princípio, sendo ainda mais enaltecida com a legislação infraconstitucional que também trata da questão, como por exemplo o Estatudo da Cidade, Lei nº 10.257, vigente desde 10 de outubro de 2001. No entanto, mesmo com o ingresso no ordenamento jurídico brasileiro da função social da propriedade como princípio, a cenceituação da mesma não se mostrou tarefa simples e muitas teorias foram elaboradas a respeito, inclusive com o fim de definir políticas públicas de planejamento do solo urbano, o que nos instiga a efetivar uma análise a respeito de tal tema, nas linhas a seguir. A função social da propriedade urbana está inserida em um contexto maior, qual seja, a cidade, entendida esta como o espaço territorial organizado no intuito de estabelecer convivência, segurança e provisão para seus habitantes. A cidade pode ser considerada um organismo vivo, em constante mutação e que tem de se adaptar às mudanças introduzidas por seus próprios cidadãos, visando o bem comum, o bem social. Assim, para que a propriedade urbana possa cumprir com sua função social, a mesma deve se adequar aos ditames da cidade, mais especificamente ao Plano Diretor da mesma, se houver, e ao Estato da Cidade, tendo em vista que nestes, via de regra, devem existir disposições que orientam e determinam o desenvolvimento urbano ordenado e sustentável, atingindo assim o bem social. Neste ponto, tem-se que a a função social da propriedade para que esteja presente deve o imóvel cumprir com algumas das funções da cidade, as quais segundo Lilian Regina Gabriel Moreira Pires são a habitação, o trabalho, o lazer e a circulação (PIRES, 2007, p. 95): A cidade passa a ter como funções essenciais a habitação, o trabalho, o lazer, a circulação e tudo isso visando à qualidade de vida. Todas essas funções estão ligadas, principalmente, à forma de uso do solo apresntando, portanto, a propriedade urbana especial relevo. Essa realidade veio estampada em nossa Constituição Federal, que dedicou um capítulo à política urbana. Contudo, pode se afirmar que a cidade apresenta uma função social em si mesma e, portanto, a propriedade privada deve se adequar aos interesses daquela, cumprindo assim com a sua função social. Alguns autores, dentre eles Jacques Távora Alfonsin, arriscam afirmar que o cumprimento da função social da propriedade seria de responsabilidade objetiva do proprietário do imóvel (ALFONSIN, 2004, p. 55): Visto o cumprimento da função social do direito de propriedade privada, de outro lado, como responsabilidade do seu titular, e tendo em conta as balizas constitucionais que tanto para o meio urbano quanto para o meio rural estão previstas para o gozo e exercício desse direito, parece claro que tal responsabilidade é objetiva, seja para aferição dos efeitos jurídicos que ela desencadeia, no plano do direito material, seja para a distribuição do ônus da prova, no plano do direito processual. O pensamento do citado Autor, encontra guarida na teoria de que a propriedade em si transfere ao seu titular direitos e também deveres inerentes, dos quais não se pode esquivar, sendo que o vínculo se mostra tão intenso que a responsibilidade sobre o bem em questão adquire caráter de objetiva, no sentido de que, não é necessário se investigar a presença de culpa ou não em algum ato danoso advindo da propriedade ou de seu mau uso. Em uma reflexão aberta pode-se constatar que o não cumprimento da função social com relação à propriedade apresnta responsabilidade objetiva ao seu titular, o que vale dizer que os efeitos daquele não cumprimento são julgados de forma objetiva contra o proprietário do bem, apesar de que a mensuração e constatação específica dos mesmos seja atividade difícil de se implementar, uma vez que se dão sobre um todo, sobre a cidade, sobre a sociedade. Dentre tais efeitos, se encontra o direito de morar dos não proprietários, os quais se quedam a mercê de oscilações imobiliárias ou de programas habitacionais capitaneados pelo Estado mas que não suprem a necessidade de todos, ou suprindo o direito à moradia, esta se mostra precária ou em área de risco. Por óbvio que a inutilização ou subutilização de um imóvel pode acarretar efeitos indesejados aos não proprietários e até mesmo aos programas de financiamento imobiliário, dada a especulação de valores que gera no mercado. A partir destas considerações a respeito da função social da propriedade, passemos à análise dos programas habitacionais brasileiros. 6. PROGRAMAS HABITACIONAIS BRASILEIROS Historicamente a proteção aos direitos individuais sempre foi maior que aquela concedida aos direitos sociais, até porque aqueles dependem de uma não interferência estatal, mas sim uma abstenção do Estado na esfera particular do indivíduo, como é o caso do habeas corpus, que protege o cidadão contra arbitrariedades estatais. Por outro lado, os direitos sociais necessitam de ação estatal direta, de medidas e programas que visem estabelecer na prática o direito que é assegurado na Constituição Federal. A primeira medida de grande repercussão na garantia do direito à moradia foi a criação do Banco Nacional da Habitação, ocorrida em 1964, o qual detinha como principal função conceder crédito imobiliário para que o cidadão pudesse adquirir a casa própria, desenvolver a estrutura básica de saneamento urbano, bem como evitar a favelização. O BNH compunha o Sistema Financeiro de Habitação, que concedia empréstimos através de recursos advindos do Fundo de Garantia por Tempo de Serviço e do Sistema Brasileiro de Poupança e Empréstimo (SBPE). A necessidade da criação do BNH se deu muito em razão do acelerado crescimento urbano e migração do homem do campo para a cidade a partir do ano de 1930. Esta migração e conseqüente crescimento acelerado urbano foi motivado pelo desenvolvimento de manufaturas e surgimento do setor industrial. Aliado ao grande desenvolvimento econômico da época surgiram também os problemas sociais, característica típica do sistema capitalista o qual prega a acumulação do capital a todo custo. Dessa forma, houve uma maior aglomeração nos meios urbanos, os quais não estavam preparados para receber o grande contingente oriundo do meio rural, com uma desigualdade social que ia além das questões relativas à fome, ao desemprego e à segurança. A conseqüência drástica da situação se revelou com o aparecimento de cortiços e alojamentos em condições precárias, favelas e habitações em áreas de risco ambiental, em sua maioria através do instituto da posse. A miséria se instalou ao lado da riqueza, em função da grande diferença entre classes as quais tinham de conviver lado a lado, enquanto as desigualdades não fossem solucionadas. O Banco Nacional da Habitação então se revelou de grande importância para o desenvolvimento da infra estrutura urbana, principalmente no saneamento básico, como também no suprimento de moradia, porém, como medida mais paliativa do que de mudança nos paradigmas sociais. Outro fator que influenciou na escassez de habitação foi a explosão demográfica ocorrida em torno da década de 1950, na qual não só o Brasil mas todo o mundo assistiu a um crescimento expressivo da população. A explosão demográfica por si só já é capaz de influenciar nos direitos sociais, como explana Boaventura de Souza Santos (2000, p. 287): “A explosão demográfica torna-se um problema quando produz um desequilíbrio entre a população e os recursos naturais e sociais para a sustentar adequadamente, e é um problema tanto mais sério quanto mais grave for esse desequilíbrio”. Mesmo que o Autor não tenha feito referência direta à moradia, se vislumbra que há uma correlação entre a explosão demográfica e um desequilíbrio nos recursos sociais disponíveis, no que se inclui a habitação. Pois bem, todo o problema surgido com aceleração do crescimento, urbanização e explosão demográfica transformaram a moradia em tema extremamente relevante e, ao mesmo tempo preocupante para as autoridades públicas, as quais criaram então o BNH, como já esposado. Cabível salientar que, o Banco Nacional da Habitação além de suprir uma necessidade de origem no desenvolvimento acelerado, também contribuiu com este, na medida que gerou inúmeros empregos e criação de novas empresas, especialmente na área de construção civil. Acontece que, o sistema de financiamento imobiliário do Banco Nacional da Habitação passou a apresentar problemas após alguns anos, visto que todos os recursos advindos do BNH foram focalizados na disponibilização de valores apenas para a aquisição da casa própria, sem contudo, auxiliar o cidadão nesta construção, o que vale dizer, o mutuário na maioria das vezes construía sua moradia sem o auxílio de engenheiros e outros técnicos, acarretando em edificações fora de padrão e em alguns casos irregulares. E mais, quando a intervenção do sistema era para o mesmo administrar obras ou licitar para construir, o problema persistia, tendo em vista que eram construídos prédios de apartamentos padrão para toda e qualquer região do país, sem respeitar as peculiaridades de cada zona urbana, gerando uma desorganização urbanística. Além disso, a maioria dos empreendimentos eram construídos na periferia, causando uma segregação espacial das classes que optavam por adquirir estes imóveis, na maioria operários. A falta de planejamento urbano para a construção das moradias também é motivo de crítica, pois a urbanização desordenada ocasionou grandes aglomerações e até mesmo surgimento de favelas no entorno dos empreendimentos, um dos problemas que se propunha a evitar. A partir de 1980 o sistema do Banco Nacional da Habitação atravessou período de incertezas e diminuição de capacidade, em muito pela crise econômica pela qual o país lutava para sobreviver. Em razão da recessão econômica, desemprego, muitos mutuários não conseguiam mais adimplir com as parcelas dos financiamentos, acabando por perderem seus imóveis e, portanto, gerando novamente o problema de moradia indigna, visto que tais cidadãos foram buscá-la em locais de habitações subumanas, insalubres ou em favelas, muitas vezes voltando para a condição de posseiros. Apesar das mazelas enfrentadas pelo BNH, o mesmo foi responsável pela maior expansão de habitações para população de classe média e baixa. Mas, como se pode vislumbrar, os problemas eram muitos e com o fim do regime militar em 1985, o Banco Nacional da Habitação foi extinto e o gerenciamento do Sistema Financeiro da Habitação passou a ser exercido pela Caixa Econômica Federal. A Caixa Econômica Federal passa a desenvolver o controle de todos os financiamentos e em 1990 passou também a gerir toda a administração do Fundo de Garantia por Tempo de Serviço, o que facilitou a operacionalidade dos sistemas de financiamento imobiliário, em razão de que muitos dos recursos advêm daquele. Muito embora tenha havido um avanço no modelo administrativo dos financiamentos imobiliários para cidadãos de baixa renda, no período compreendido entre 1991 e 1995 houve uma diminuição na concessão dos benefícios, por uma gama de decisões políticas, inclusive por reflexos de suspeita de corrupção no governo federal, o que veio a se confirmar mais tarde. Por outro lado, a partir de 1995 grandes avanços na área de habitação foram alcançados. Não há como negar que a maior abertura dos mercados, gerando entrada de capital no país alavancou em parte a economia e também um maior investimento do Estado nas políticas sociais. Em tal ponto pode-se estabelecer uma relação muito próxima entre o contexto econômico e as políticas sociais. É bom lembrar que, historicamente, as diferentes formas de expressão da questão da moradia, tais como, o déficit de construções, as habitações subnormais, a segregação espacial, o alto valor dos aluguéis, estão relacionadas ao contexto social e refletem as determinações econômicas, sociais e políticas inerentes a cada época (GONÇALVES, 2007, p. 177). A evolução das políticas sociais na área da habitação passou a ocorrer de forma mais dinâmica e em maiores proporções, destacando-se entre aquelas efetivadas a partir de 1995 o Programa de Arrendamento Residencial – PAR, implementado pela Caixa Econômica Federal no ano de 2001. O PAR é destinado às famílias com rendimentos de até R$ 1.800,00 (mil e oitocentos reais), com exceção dos profissionais da área de segurança pública, particularmente policiais civis e militares, para os quais o limite de renda é de R$ 2.400,00 (dois mil e quatrocentos reais). No Programa de Arrendamento Residencial o arrendatário tem de quitar parcelas mensais de arrendamento, durante quinze anos e ao final é concedida opção de compra do imóvel, com o pagamento do saldo residual, se houver, além das taxas para transferência do bem para a titularidade do mutuário, junto ao registro de imóveis. No entanto, além da questão referente à renda máxima familiar, o Programa ainda impõe outros requisitos ao pretendente (CAIXA ECONÔMICA FEDERAL, 2014): ▪ Ser brasileiro nato ou naturalizado ou, se estrangeiro, detentor de visto permanente no país; ▪ Ser maior de 18 anos ou emancipado; ▪ Possuir capacidade de pagamento compatível com as despesas mensais do arrendamento; ▪ Não ser proprietário ou promitente comprador de imóvel residencial no local de domicílio nem onde pretende fixá-lo, ou detentor de financiamento habitacional em qualquer local do país; ▪ Apresentar idoneidade cadastral. O PAR trouxe novamente ao meio social os empreendimentos que remontam ao tempo do Banco Nacional da Habitação, ou seja, a construção de prédios de apartamentos ou de habitações térreas, estas também em forma de condomínios. As construções são realizadas por construtoras privadas, credenciadas através de licitações. Outro fato importante é a abrangência nacional, característica também do extinto BNH, sem limitação espacial, abrangendo diversas cidades em todos os Estados da Federação. Porém, ao contrário do que ocorria no tempo de atuação do Banco Nacional da Habitação, os empreendimentos hoje não são alocados na periferia, evitando a segregação espacial. Apesar de o Programa ser de criação e gerenciamento da Caixa Econômica Federal, para uma maior operacionalidade a mesma realizou também licitações entre administradoras de imóveis, imobiliárias, as quais foram cadastradas a realizarem desde a triagem entre os pretendentes como a administração dos condomínios. Atualmente, o número de arrendatários ultrapassa 240.800 em todo o país, sendo o Estado de São Paulo o que concentra o maior número de unidades e a cidade que contém o maior número de beneficiários do Programa é Salvador (CAIXA ECONÔMICA FEDERAL, 2014). Outro política habitacional implementada em nível nacional que merece destaque é o Programa Minha Casa Minha Vida, criado em março do ano de 2009, também sob a administração operacional da Caixa Econômica Federal. Assim como o PAR, o Programa Minha Casa Minha Vida tem como objetivo atender as necessidades de habitação da população de baixa renda nas áreas urbanas, garantindo o acesso à moradia digna com padrões mínimos de sustentabilidade, segurança e habitabilidade. Os beneficiários estão, na sua maioria, na faixa de renda de três salários mínimos, equivalente hoje a R$ 1.635,00 (um mil seiscentos e trinta e cinco reais), porém, os beneficiários das faixas de renda mais elevada é que estão obtendo maior êxito com o Programa. O Programa funciona por meio da construção de moradias pelo próprio poder público, como também pela concessão de financiamentos a beneficiários e apresenta como fonte de recursos o Orçamento Geral da União – OGU, aportados ao Fundo de Desenvolvimento Social – FDS (a previsão de investimento inicial no Programa foi de 34 bilhões de reais). Além desses recursos, pode haver ainda a contrapartida complementar de Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, por intermédio do aporte de recursos financeiros, bens (por exemplo: doação de terrenos) e/ou serviços economicamente mensuráveis, necessários à composição do investimento a ser realizado (MINISTÉRIO DAS CIDADES, 2014). Este, portanto, é um programa misto, isto é, para a construção de moradias pelo poder público, como também para a concessão de financiamento para que o próprio cidadão construa, ao contrário do que ocorre no Programa de Arrendamento Residencial, no qual não existe esta última opção. Entretanto, mesmo após um ano de implementação, o Programam Minha Casa Minha Vida entregou apenas 3.500 imóveis de um total de 400 mil previstos inicialmente (O GLOBO, 2014). No campo institucional, o Ministério das Cidades é o órgão responsável pela Política Nacional de Habitação - PNH, tendo como principal projeto o Plano Nacional de Habitação – PlanHab, o qual apresenta três etapas: a contextualização, a elaboração de cenários e metas, e a definição do plano de ação, estratégias e implementação. Entretanto, apesar de ter sido criado no ano de 2007, atualmente o Plano se encontra apenas na segunda fase, com a elaboração da proposta para debate de cenários e metas. Apesar de não haver celeridade no processo, importante destacar um aspecto muito positivo que está sendo implementado, qual seja, a participação da população. A realização de reuniões e de consultas aos conselhos de participação e controle social durante o processo de elaboração das propostas está garantida (MINISTÉRIO DAS CIDADES, 2014). Em um país democrático como o Brasil, a participação é essencial. Muito embora a democracia brasileira seja do tipo representativa, em alguns pontos a mesma tem se apresentado de forma mista, incluindo o tipo participativo, como visto acima. Além do exemplo citado, na cidade de Porto Alegre – RS, também houve um movimento por uma maior participação da sociedade na tomada de decisões, com o desenvolvimento do programa chamado Orçamento Participativo, no qual a comunidade decide a destinação de parcela do orçamento público. O Programa teve grande aceitação dos cidadãos e passou a ser adotado em outras cidades do país. Mas, estes representam somente poucos exemplos da democracia participativa no Brasil, a qual se desenvolve a passos lentos, em razão de diversos motivos, pelo que destacamos três de maior importância, senão vejamos: Em primeiro lugar, em razão da democracia participativa encontrar dificuldade de se desenvolver em grande escala, isto é, em uma territorialidade muito abrangente, em países com dimensões espaciais muito amplas. Quanto maior o território a ser abrangido, maior será a necessidade de delegação das decisões, até porque há dificuldade de reunir a comunidade em assembléias para as discussões. Boaventura de Souza Santos cita Robert Dahl (SANTOS, 2005, p. 48): [...] quanto menor for uma unidade democrática maior será o potencial para a participação cidadã e menor será a necessidade para os cidadãos de delegar as decisões de governo para os seus representantes. Quanto maior for a unidade, maior será a capacidade para lidar com problemas relevantes para os cidadãos e maior será a necessidade dos cidadãos de delegar decisões para os seus representantes. Em segundo lugar, por razões políticas, uma vez que os representantes do cidadão não têm interesse em repassar a estes as decisões, resguardando assim seu poder e influência sobre os mesmos. Robert Michels (MICHELS, 1982, p. 24), citando Proudhon explana sobre a matéria: Podemos completar esta crítica do sistema representativo com uma observação política de Proudhon: “Os representantes do povo, dizia ele, mal conquistam o poder e logo procuram consolidá-lo e reforçá-lo. Eles cercam incessantemente suas posições com novas trincheiras defensivas, até conseguirem se libertar por completo do controle popular. É um ciclo natural percorrido por todo representante: oriundo do povo ele acaba por cima do povo. Em terceiro lugar, porque o país está adotando cada vez mais uma postura capitalista e este tipo de sistema, o qual necessita de decisões rápidas, dada a globalização dos mercados, apresenta dificuldade em comportar a participação popular. O Brasil atravessa uma fase de grande desenvolvimento econômico, o que reflete na habitação como um todo, tanto na iniciativa privada como nos financiamentos habitacionais disponibilizados por órgãos ou instituições financeiras ligadas ao Estado, como é o caso da Caixa Econômica Federal. Entretanto, o sistema capitalista adotado não valoriza os aspectos sociais como deveria, o que acarreta em programas governamentais que, na sua maioria se tratam de paliativos para os reais problemas. Assim é o caso também de assistencialismos sem que sejam paralelamente gerados meios de inserção dos excluídos. Obviamente que, a curto prazo, tais benefícios geram satisfação ao cidadão, mas se pensarmos em longos períodos, constatamos que o problema voltará ou então outros surgirão em razão daquele. Atualmente, o déficit habitacional brasileiro é de 5,8 milhões de domicílios, o que representa 10,1% do país, sendo que do ano de 2007 até o presente, houve redução de 7,9% no déficit (MINISTÉRIO DAS CIDADES, 2014). Enquanto que o Produto Interno Bruto cresceu 11,2% no mesmo período (BANCO CENTRAL DO BRASIL, 2014). Por certo, em números gerais, há um descompasso entre o desenvolvimento econômico e a adoção de políticas sociais voltadas à habitação. Como se pode vislumbrar então, o país adota uma democracia essencialmente representativa, dificultando o estabelecimento da habitação como prioridade. Aliado a tal fato, nos parece que o país cada vez mais adota o espírito do capitalismo, o qual se mostra tão perigoso para a sua própria subsistência. Max Weber expõe de forma contundente o referido espírito (BANCO CENTRAL DO BRASIL, 2014): A aquisição econômica não mais está subordinada ao homem como meio de satisfazer suas necessidades materiais. Esta inversão do que poderíamos chamar de relação natural, tão irracional de um ponto de vista ingênuo, é evidentemente um princípio orientador do capitalismo, tão seguramente quanto ela é estranha a todos os povos fora da influência capitalista. Porém, mesmo com a adoção do sistema capitalista, é possível a inserção de políticas sociais voltadas à moradia, como é caso do Programa de Arrendamento Residencial, como também do Programa Minha Casa Minha Vida. Por outro lado, não se pode olvidar que a ausência de mobilização e organização dos interessados em políticas habitacionais soma-se aos problemas já apontados para que o governo não invista mais em tais medidas. Em razão de que a classe de baixa renda já carece de poder econômico e também de espaço para expor suas idéias, necessita de organização e mobilização, a fim de que possa ver atendidas suas reivindicações. Michels há muito salienta a questão: Vivemos numa época em que a idéia da cooperação aprofundou nos espíritos raízes tão fundas, que mesmo os milionários percebem a necessidade de uma ação comum. Do mesmo modo concebe-se que a organização, cuja ausência torna todo êxito possível, a priori, tenha se tornado o princípio vital da classe operária. O operário que se recusa a participar da vida coletiva de sua classe só pode atrair conseqüências funestas para ele próprio. Por seu grau de cultura, por suas condições econômicas, físicas e fisiológicas o proletariado é o elemento mais fraco da nossa sociedade. O operário isolado encontra-se, na realidade, submetido sem defesa à exploração dos que são economicamente mais fortes. Apenas aglomerando-se e dando à sua aglomeração uma estrutura é que os proletários adquirem a capacidade de resistência política, e ao mesmo tempo, uma dignidade social. CONCLUSÕES A habitação, como meio essencial ao desenvolvimento humano, tanto no que tange à questão da saúde e proliferação de doenças, como também na capacidade do cidadão de poder viver de forma digna e desenvolver suas aptidões, deve ser tratada com um olhar sério e crítico, até porque está presente na Constituição Federal como direito social e como tal deve ser tratado. Como vimos, as moradias estabelecidas através do instituto da posse geram conflitos, instalações subumanas e insalubres, aglomerações, favelização, ocupações em áreas de preservação ambiental, entre outras irregularidades. Dessa forma, as políticas sociais neste setor devem ter como norte a busca pela efetivação da moradia concedendo a propriedade do terreno, da casa, do apartamento ao cidadão. Além de que também deve ser oportunizado acompanhamento técnico nos casos em que o próprio beneficiário construirá sua moradia. Em verdade, o país vem avançando na área das habitações populares, diminuindo o déficit, porém, o desenvolvimento econômico e a aceleração do crescimento da economia não têm acompanhado a necessidade de habitações. O desenvolvimento capitalista voltado à acumulação do capital acaba por deixar em segundo plano a questão social e com o Brasil não é diferente. Não é demais asseverar também que o país carece de um controle e fiscalização do cumprimento da função social dos proprietários de bens imóveis, o que acaba por prejudicar o desenvolvimento da cidade como um todo e principalmente os não proprietários, os quais, muitas vezes, ficam a mercê da especulação do mercado. O Brasil se encontra em pleno crescimento o que não justifica a falta de maior investimento nos programas sociais. O Programa de Arrendamento Residencial, bem como o denominado Minha Casa Minha Vida vem se mostrando muito positivos no sentido de conceder moradia ao cidadão, mas a falta de maior investimento, principalmente no acompanhamento do beneficiário no momento da construção, vem gerando problemas secundários, aliado ao fato de que mesmo com recursos já disponíveis o último programa citado não vem atingindo resultados satisfatórios. Contudo, em se tratando de direitos sociais, cabe ao Estado intervir com maior empenho e eficácia a fim de suprir o déficit habitacional no auxílio para que o cidadão deixe de habitar na forma de posse e se torne proprietário, adquira uma moradia digna, essencial ao desenvolvimento de cada indivíduo. No entanto, para que isto seja possível, deve-se guardar uma relação entre o avanço da economia e as medidas sociais, um maior investimento social em detrimento da valorização excessiva do capital. Mas, tal intento pode barrar na vontade política, sendo necessária uma estratégia paralela, qual seja, a adoção de uma maior participação popular, através do aumento considerável de mecanismos de democracia participativa no momento da tomada de decisões iniciais e não apenas quando os programas já se encontram em andamento. REFERÊNCIAS AGUIARIAN, Hércules. Curso de Direito Imobiliário. 6. ed. Rio de Janeiro: Lúmen Juris, 2006. ALFONSIN, Jacques Távora. A Função Social da Cidade e da Propriedade Urbana como Propriedade de Funções. In Direito à moradia e segurança da posse no Estatuto da Cidade. 1. ed. Porto Alegre: Editora Fórum, 2004, p. 55. BANCO CENTRAL DO BRASIL. Indicadores Econômicos. Disponível em: <http://www.bcb.gov.br/?INDECO>. Acesso em: 22/12/2010, às 10:22. BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de Direito Constitucional. 3. ed. São Paulo: Celso Bastos Editor, 2002. BEHRING, Elaine Rossetti, BOSCHETTI, Ivanete. Política Social. Fundamentos e História. 5 ed. 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