Uma reflexão sobre o papel de empresas e organizações no investimento social privado Por Ricardo Voltolini* Estudos sobre investimento social privado apontam, como tendência, que as empresas brasileiras preferem colocar seus recursos em projetos sociais próprios. Para organizar suas atividades, algumas criam fundações e institutos, definem estruturas e estabelecem orçamentos, passando a atuar no terceiro setor. Outras delegam a um departamento - Recursos Humanos, Comunicação ou Relações Institucionais - a tarefa de planejar e implementar ações sociais, obedecendo a uma lógica de gestão interna dos seus esforços voltados para comunidades. Há dois modos distintos de interpretar esse cenário. O primeiro, francamente otimista. Ao contrário do que suspeitavam os mais céticos no início da década de 90, o investimento de empresas em projetos sociais - um dos vetores da responsabilidade social empresarial - não corre mais o risco de ser tratado como uma nuvem passageira. Pesquisas como as do Ipea e da Fiesp-Ciesp mostram aumento tanto no volume de recursos quanto na qualidade e amplitude das ações. Quaisquer que sejam as bases - sociológicas ou simplesmente mercadológicas - para analisar a motivação do setor privado, é certo que o seu interesse pela atividade social veio para ficar, inseriu-se nas estratégias institucionais, tornou-se definitivamente agenda de reunião de negócios. O líder empresarial mais antenado com o seu tempo sabe que o investimento social produz efeitos positivos de imagem junto aos consumidores, melhora o relacionamento com as comunidades próximas e também com os funcionários. É crescente uma certa consciência humanizadora de que a empresa - símbolo da geração de riquezas na sociedade moderna - não pode enfiar a cabeça na terra diante de um contexto de miséria, graves carências, desigualdade e exclusão social. Em um movimento lento mas seguro de evolução, a experiência do investimento social privado parece amadurecer no País, deixando o conforto inicial das ações pontuais, tópicas e meramente compensatórias para se transformar, nas boas corporações, em políticas de intervenção nas comunidades, planejadas para atingir resultados de mudança social. Ainda há, sem dúvida, repasse de recursos para entidades sociais, doações de equipamentos, produtos e serviços e apoio a campanhas emergenciais de assistência social. Mas crescentemente o que mais se observa nesse novo movimento é o interesse por uma participação mais organizada na solução de problemas estruturais relacionados à educação, à saúde, à qualificação profissional e à geração de trabalho e renda. A preferência pelos projetos próprios é um indicador desse quadro: se uma companhia sabe o que quer a ponto de escolher uma linha de atuação tão distinta da natureza original do seu negócio, é porque a cultura interna hoje favorece, estimula, confere valor e relevância à temática social. Ponto para a idéia dos projetos próprios! Embora não diminua a importância do primeiro, um segundo modo de interpretar esse cenário precisa ser considerado. A opção preferencial pelos projetos próprios parece revelar, por outro lado, uma dificuldade das empresas em estabelecer relações de parceria efetivas com organizações de terceiro setor. E vice-versa. Essa dificuldade decorre, em nosso entendimento, de uma relação ainda marcada por reservas e desconfianças de parte a parte. Longe do discurso politicamente correto, próprio dos eventos públicos, muitos dirigentes de empresas admitem resistência a dividir a realização de seus projetos sociais com organizações em razão de vários receios básicos, entre os quais destacaria três: o da má gestão de recursos, por falta de competência ou mesmo de transparência; o de não terem suas opiniões ouvidas e incorporadas ao processo de intervenção graças à inflexibilidade dos parceiros; e o de serem vistos apenas como meros financiadores do projeto, não seus efetivos proponentes. Entre as organizações de terceiro setor, o principal foco de resistência está - segundo nossa observação - na preocupação de serem dirigidas pelas empresas, transformando-se em meros instrumentos da consecução de políticas de investimento privado de cuja formulação não participaram e de cujos objetivos podem não compartilhar. A rigor, as duas partes têm motivos para justificar suas desconfianças, muito embora elas estejam escoradas, quase sempre, em lógicas distintas, em visões de mundo muito parciais, em generalizações indevidas e em falta de prática mesmo de parceria - até porque, vale lembrar, o relacionamento entre as duas instâncias, nesse modelo atual de cooperação pelo desenvolvimento socioeconômico, é bastante recente no Brasil. Não deixa de ser curioso, portanto, que o temor de empresas e organizações seja simetricamente o mesmo: a limitação de seu papel diante do papel da outra parte. Esses dilemas - longe de serem banais - só serão superados com maior diálogo, tolerância e capacidade de compreender expectativas. Se as corporações desejam ser mais ouvidas, devem aprender a ouvir, substituindo os tradicionais modelos autoritários de tomadas de decisão - do tipo "eu financio, logo dou a última palavra" - por outros mais colaborativos, fundamentados na horizontalidade que deve caracterizar a noção de parceria. Uma relação mais tolerante deve nascer da constatação de que o melhor investimento social - tomando como medida o impacto das ações sobre uma comunidade - ocorrerá sempre que empresas e organizações sociais atuarem em sinergia de propósitos, somando competências. Para que essas idéias tão fluentes no discurso, não enrosquem nas práticas, as duas partes devem reavaliar alguns comportamentos. Uma sugestão de reflexão às empresas: não é necessário reinventar a roda na busca de soluções que muito provavelmente já foram testadas, desenvolvidas e experimentadas por alguma organização de terceiro setor com a vantagem de terem surgido de diagnósticos muito mais próximos da realidade social de comunidades. Nunca é demais enfatizar: o terceiro setor autêntico, aquele que se estrutura a partir de um conjunto de organizações paridas na sociedade civil, é hoje um campo profícuo de soluções criativas, baratas e eficazes. Por melhor, mais competente e mais bem intencionada que seja uma empresa, ela jamais terá a mesma inserção na vida de uma comunidade que uma organização gestada no ventre dessa mesma comunidade. O melhor a fazer, portanto, é selecionar o parceiro adequado e, em conjunto com ele, realizar um diagnóstico correto, estabelecer metas e estratégias de atuação e definir indicadores para avaliar os resultados obtidos. Os projetos sociais só têm a ganhar. Uma sugestão de reflexão para as organizações sociais: se desejam ser mais do que prestadoras de serviços de projetos sociais de empresas, comecem por alterar o foco de suas abordagens. Em vez de buscar captar recursos financeiros para seus projetos próprios, identifiquem nas empresas parceiros potencialmente compromissados com a solução do problema dos públicos que almejam beneficiar. Na mesma linha de pensamento, convém que se abram mais ao diálogo, permitam-se rever posições, aceitem a opinião do financiador como uma efetiva contribuição e sejam mais flexíveis na negociação de pontos que acomodem expectativas sem descaracterizar a ação central. Fazer junto significa também pensar junto. Essa é uma importante experiência de aprendizagem. As comunidades atendidas pelos projetos sociais agradecem de coração. Ricardo Voltolini é jornalista, especialista em comunicação organizacional, MBA em Marketing pela FEA-USP, professor de Marketing Social da FIA-USP, consultor em terceiro setor e responsabilidade social da Oficio Social e comentarista desses temas na TV Cultura; Artigo redigido com exclusividade para o Notícias da Semana, boletim informativo do Instituto Ethos.