A sífilis, a gravidez e a sífilis congênita

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A sífilis, a gravidez e a sífilis congênita
Valéria Saraceni
Texto extraído da Tese de Doutorado intitulada “Avaliação da Efetividade das
Campanhas para Eliminação da Sífilis Congênita, Município do Rio de Janeiro,
1999 e 2000”, apresentada e aprovada na ENSP – FIOCRUZ em 29/03/2005,
modificado pela autora.
Valéria Saraceni – A sífilis, a gravidez e a sífilis congênita -- 2005
1
Sumário
Título
Página
Um pouco da história da sífilis
3
Os testes sorológicos para sífilis
3
O quadro clínico da sífilis adquirida
5
A evolução do tratamento para a sífilis
6
A sífilis e a gravidez
7
A sífilis congênita
10
A notificação da sífilis congênita
11
A notificação da sífilis na gestação
11
Referências bibliográficas
12
Anexos
Quadro 1 – Testes diagnósticos para sífilis na gestação
18
Quadro 2 - Risco de transmissão vertical da sífilis
18
Quadro 3 - Momentos de realização do VDRL na gestação
19
Quadro 4 - Conduta no primeiro VDRL negativo durante o pré-natal
19
Quadro 5 - Controle sorológico de cura na gestação
20
Quadro 6 - Condutas nos títulos baixos de VDRL (VDRL < 1:8)
20
Quadro 7 - Tratamento da sífilis na gestação
21
Quadro 8 - Tratamento da sífilis em gestantes alérgicas à penicilina
21
Quadro 9 - Testagem e conduta junto aos parceiros da gestante portadora de
22
sífilis
Valéria Saraceni – A sífilis, a gravidez e a sífilis congênita -- 2005
2
Um pouco da história da sífilis
A sífilis é uma doença antiga, com mais de 500 anos de existência. Relatos de sua
presença na Europa logo após o descobrimento da América mesclam-se com a sua existência
no velho continente em período anterior às viagens de Cristóvão Colombo ao novo mundo 1.
A introdução da sífilis na Europa, por Colombo e seus marinheiros, se assim ocorreu, foi
seguida pela disseminação do espiroqueta pelo continente. A sífilis transformou-se em uma
pandemia, com um quadro clínico muito agudo, freqüentemente fatal no estágio secundário,
descrita por muitos autores na passagem para o século XVI 1.
O agente etiológico da sífilis e a sua transmissão
O agente etiológico da sífilis foi descoberto por Fritz Richard Schaudinn e Paul Erich
Hoffman em 1905, trabalhando em Berlim. Por não ser facilmente corado pelas técnicas em
uso à época, a espiroqueta em tela foi denominada Spirochaeta pallida 2. O achado foi
confirmado por Karl Landsteiner, que visualizou o microrganismo pela técnica de microscopia
de campo escuro, por ele desenvolvida em 1906. Neste mesmo ano a denominação
Treponema pallidum já estava vigorando, com a demonstração feita por Reuter da presença
do agente na parede da artéria aorta de um indivíduo acometido pela sífilis 3.
O Treponema pallidum sub-espécie pallidum é um dos quatro patógenos do gênero
Treponema que causam doenças em seres humanos. Grande parte do conhecimento sobre
ele advém da manutenção da cepa Nichols em coelhos de laboratório, desde 1912 3.
A transmissão do agente se dá de pessoa a pessoa, durante o contato sexual, na
maior parte dos casos. A transmissão por contato com lesões mucocutâneas ricas em
treponemas pode ocorrer, sendo particularmente importante nos recém-nascidos que
necessitam de manipulação freqüente. A transmissão pode ocorrer, também, através da
transfusão de sangue contaminado, pela via transplacentária para o feto e pela contaminação
do último no canal de parto. A transmissão ocupacional é rara. O risco de transmissão por
parceiro sexual foi estimado em 60% 4. Todos os seres humanos são susceptíveis ao
T.pallidum, porém apenas cerca de 30% das exposições terminam em doença. A infecção
leva ao desenvolvimento gradual de imunidade contra esse agente. Os casos tratados na fase
aguda (sífilis primária ou secundária) não gerarão imunidade, sendo casos susceptíveis à reinfecção 5.
Os testes sorológicos para a sífilis
O primeiro teste sorológico para a doença tornou-se disponível em 1906, através de
Wassermann, Neisser e Bruck, utilizando a técnica de fixação de complemento. O antígeno
para sua reação foi preparado a partir do extrato hepático de um natimorto de mãe com sífilis
6
. Esse primeiro teste permitiu o diagnóstico da enfermidade e possibiltou o encaminhamento
de muitos portadores não diagnosticados clinicamente para o tratamento. De outra forma,
Valéria Saraceni – A sífilis, a gravidez e a sífilis congênita -- 2005
3
contribuiu para o tratamento desnecessário de outros indivíduos por apresentarem reações
falso-positivas com esse teste. Com a evolução da medicina, inúmeros outros testes foram
desenvolvidos.
O diagnóstico da sífilis na ausência de manifestações clínicas é feito por exames
sorológicos (Quadro 1). A triagem é feita por métodos ditos não treponêmicos, por utilizarem
antígenos não derivados do agente causal. Os testes, que são de floculação, utilizam
antígenos como a reagina, formado da cardiolipina, a lecitina e o colesterol, baseados na
suposição da formação de anticorpos anti-lipídicos durante a reação imune entre agressor e
hospedeiro 7. O mais utilizado no nosso meio é o teste do VDRL (Venereal Disease Research
Laboratory), que tem como antígeno a cardiolipina, com métodos qualitativo (positivo ou
negativo) e quantitativo (titulação). A titulação é extremamente importante, pois permite o
controle de cura, através da comparação periódica dos títulos 8. Em outros países é muito
utilizado o RPR – reagina rápida do plasma. Os dois testes têm sensibilidade e especificidade
semelhantes. A sensibilidade do VDRL é de 70% na sífilis primária, 99% na sífilis secundária e
cerca de 75% na terciária 9. Possui alta especificidade para o diagnóstico da sífilis congênita,
98%
10
.
Nos pacientes portadores de sífilis primária o exame do VDRL torna-se positivo entre
quatro a sete dias após o aparecimento do cancro duro. O VDRL é capaz de estabelecer o
diagnóstico em 85% dos casos nessa fase. Nos indivíduos recém-infectados, o VDRL pode
ainda ser negativo, configurando um quadro de exame falso-negativo. Na sífilis secundária e
na latente precoce (até um ano de duração), a positividade pode alcançar 100%. Essas duas
fases apresentam os valores mais altos na titulação no exame quantitativo
11
.
O VDRL é um exame de baixo custo, de fácil execução, mas suscetível a resultados
falso-positivos. Os anticorpos antilipídicos detectados por esses testes podem aumentar de
maneira inspecífica no curso da gravidez
12
e em outras situações, como idade avançada, uso
de drogas ilícitas, neoplasias, desordens auto-imunes e doenças causadas por vírus (como o
Epstein-Baar e as hepatites virais), por protozoários e por Mycoplasma spp
13
. O VDRL
também pode apresentar resultados falso-negativos, quando os títulos são muito altos, não
ocorrendo a floculação da reação nas diluições iniciais, fenômeno conhecido como efeito
prozona, que ocorre na sífilis primária e na secundária
14
. É recomendada a realização do
VDRL em diluições do soro (1:4) no pré-natal, para evitar a ocorrência do fenômeno, e a
conseqüente perda do caso de sífilis materna
15
.
Para a confirmação do diagnóstico, utilizam-se testes treponêmicos, como o FTA-Abs
(Fluorescent
treponemal antibody absorption), o MHA-TP (microhemaglutinação de
anticorpos para T.pallidum), o TPHA (hemaglutinação de anticorpos para T.pallidum), o teste
imuno-enzimático (ELISA) e o teste rápido Determine TP®, todos com resultados
qualitativos. Esses exames tornam-se positivos antes dos seus equivalentes nãotreponêmicos. Os testes treponêmicos tendem a se manter positivos por toda a vida do
Valéria Saraceni – A sífilis, a gravidez e a sífilis congênita -- 2005
4
indivíduo, não permitindo sua utilização em controle de cura
16
. Por se tratarem de testes
confirmatórios, uma amostra de sangue com resultado de VDRL positivo, cujo teste
treponêmico resulte em negativo, indicará um VDRL falso-positivo.
O TPHA tem sido utilizado no município do Rio de Janeiro (MRJ) para a confirmação
do diagnóstico de sífilis. É um teste de realização simples e mais barato do que o FTA-Abs,
prescindindo do uso de microscópio de fluorescência. Possui alta sensibilidade e
especificidade para o T.pallidum
17
.
O teste de realização rápida Determine TP® tem antígeno treponêmico, logo
equivalendo a um teste confirmatório. Entre suas vantagens destaca-se a realização do
exame em sangue total, a partir de coleta em polpa digital com lanceta e capilar,
aumentando seu campo de atuação, por não depender de estrutura laboratorial. Sua maior
limitação para a utilização em larga escala na eliminação da sífilis congênita está no fato de
ser um exame qualitativo, não permitindo o controle da cura. Outro fator limitante é o custo,
podendo chegar a 25 vezes o custo de um VDRL. Um estudo evidenciou a sensibilidade do
Determine TP® em 91% e a especificidade em 98% 18.
O quadro clínico da sífilis adquirida
A sífilis é uma doença crônica que, em sua história natural, evolui por estágios,
alternados entre sintomáticos e assintomáticos. Qualquer órgão do corpo humano pode ser
afetado, inclusive o sistema nervoso central
19
. O período de incubação da sífilis tem uma
mediana de três semanas, variando de três a noventa dias
20
.
A sífilis primária se caracteriza pelo aparecimento do cancro, úlcera de fundo limpo e
indolor, geralmente única, no local de inoculação do agente, com pequeno aumento dos
linfonodos satélites, cerca de 20 a 30 dias após o contágio. No homem a lesão se localiza na
genitália, mais comumente no sulco bálano-prepucial e na glande, em área de fácil
visualização por parte do paciente e do profissional de saúde que o examinar. Na mulher, as
lesões da sífilis primária podem ocorrer no interior do trato genital, o que as torna difíceis de
serem notadas, ou nas partes externas, notadamente nos grandes lábios, nos pequenos
lábios ou na fúrcula. No primeiro caso, pode não ocorrer procura por assistência médica,
perdendo-se a chance de se fazer o diagnóstico da sífilis primária na mulher.
Podem ocorrer lesões primárias em locais extragenitais. As lesões primárias são muito
contagiosas. O cancro tende a desaparecer em 30 a 60 dias, mesmo sem tratamento, sem
deixar marcas.
As lesões da fase secundária seguem-se ao desaparecimento do cancro e acometem
a pele e as mucosas, com a apresentação mais comum sendo na forma de máculas (roséolas
sifilíticas). Entretanto, as lesões cutâneas podem assumir diversos aspectos, dificultando o
diagnóstico se não há um alto grau de suspeição para a doença. As lesões palmo-plantares
apontam para o diagnóstico, mas não são patognomônicas. Não há uma demarcação
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5
específica de tempo entre a lesão primária e as lesões mucocutâneas. Em média, fala-se em
cerca de oito semanas de intervalo entre o desaparecimento do cancro e o aparecimento das
lesões de pele
21
.
As lesões da sífilis terciária são raramente vistas hoje, mas foram amplamente
divulgadas com as descrições de um estudo da história natural da doença que ainda corria
nos EUA até a década de 70
22
. O Estudo Tuskegee, iniciado pelo U. S. Public Health Services
em 1932, manteve pacientes da raça negra sem tratamento após o advento da penicilina e
da sua utilização no controle da sífilis
23
, com o objetivo de aumentar o conhecimento sobre a
história natural da doença.
Os quadros das fases primária e secundária sofrem regressão espontânea, mesmo se
não tratados. A sífilis latente, aquela sem demonstrações clínicas de doença, se divide em
precoce e tardia. A fase latente precoce se estende do desaparecimento dos sintomas do
secundarismo até o final do primeiro ano da doença. A doença assintomática com mais de
um ano de duração recebe o nome de fase latente tardia e, ao longo dos anos, se não
diagnosticada e tratada, levará ao acometimento de vários sítios, notadamente, do sistema
nervoso central, das grandes artérias e da pele, na chamada sífilis terciária, em cerca de 40%
dos indivíduos infectados
24
.
A sífilis tem sua história natural modificada nos casos de indivíduos com infecção pelo
Vírus da Imunodeficiência Humana (HIV)
11,25
. Podem ser encontradas respostas sorológicas
ao VDRL verificadas como falso-positivas em pacientes com infecção por esse vírus
26
.
A evolução do tratamento para a sífilis
A evolução do tratamento da sífilis foi mais lenta do que o desenvolvimento dos
testes diagnósticos. Em primeiro lugar, ocorreu a utilização de compostos mercuriais. O
iodeto de potássio também foi utilizado, sem sucesso 6. Em 1910, Paul Erlich trouxe para a
prática clínica um composto de arsênico, a arsfenamina, conhecida como composto número
606 ou salvarsan. As pesquisas subseqüentes sobre os compostos arsênicos levaram ao
composto número 914 ou neosalvarsan, que não se provou mais eficaz que o 606 1.
A introdução da penicilina para o tratamento da sífilis na década de 40 do século XX
modificou o panorama, trazendo alento aos pacientes, os quais se viram livres do tratamento
sofrido e prolongado com salvarsan em injeções endovenosas
27
. Logo após a introdução
dessa droga como terapia, as taxas de sífilis começaram a diminuir nos EUA, incluindo as
taxas da sífilis congênita
28
. Apesar da penicilina ser o tratamento recomendado para a sífilis
desde 1947, até hoje não existem relatos concretos de emergência de resistência à penicilina
pelo T.pallidum. Este agente não é passível de cultura in vitro, o que impede, até o momento,
estudos de sensibilidade aos antibióticos.
Por sua capacidade de penetração no sistema nervoso central, a penicilina é bastante
eficaz no tratamento da sífilis, que para tal sítio pode se propagar. A baixa biodisponibilidade
Valéria Saraceni – A sífilis, a gravidez e a sífilis congênita -- 2005
6
da penicilina por via oral impede seu uso nos casos de sífilis, principalmente nos casos da
doença em mulheres grávidas. Outras drogas que são eficazes para tratar a sífilis adquirida,
como a eritromicina, não conseguem atravessar a barreira hematoencefálica e, assim, não
são eficazes no caso da transmissão transplacentária, pois não penetram no sistema nervoso
central dos fetos
20
.
Outras drogas têm sido utilizadas em ensaios clínicos ou relatos esporádicos para o
tratamento da sífilis adquirida. Uma cefalosporina de amplo espectro, a ceftriaxone, foi
estudada por Hook et al.
29
para o tratamento da sífilis nos estágios primário e secundário,
com resposta satisfatória. Essa droga é usada em injeção intramuscular, com aplicação uma
vez ao dia. Ela tem a vantagem de penetrar bem no sistema nervoso central, entretanto, sua
utilização em pacientes soropositivos para o HIV, com sífilis latente ou neurosífilis
assintomática, resultou em falha terapêutica em 23% dos casos
30
.
O uso da azitromicina, um antibiótico macrolídeo, foi inicialmente testado em treze
indivíduos com sífilis primária ou secundária
31
. Posteriormente, um estudo randomizado de
azitromicina versus penicilina G benzatina para casos de sífilis com até um ano de duração
mostrou ser a primeira uma boa alternativa à segunda
32
. Porém, estudos mais recentes
apontam para uma má performance da azitromicina, com o relato de emergência de
resistência à droga
33
.
A sífilis e a gravidez
“A sífilis no nosso meio não constitui preocupação obstétrica, tendo deixado com
freqüência de fazer parte da rotina pré-natal” 34.
A autora acima citada encontrou 22,7% de positividade ao VDRL em 44 casos de
abortamentos tardios, entre julho de 1983 e julho de 1988, em Goiânia. No mesmo período,
56,5% dos natimortos pré-termo e 13,3% dos natimortos a termo de sua casuística foram
diagnosticados como casos de sífilis congênita.
A sífilis na mulher que engravida pode causar o abortamento, a morte intrauterina,
levar ao óbito neonatal ou deixar seqüelas graves nos recém-natos. A transmissão do
T.pallidum se faz da gestante infectada para o concepto, por via transplacentária, em
qualquer momento da gestação
35
. Os casos de recém-nascidos assintomáticos estão mais
relacionados à transmissão no terceiro trimestre
36
.
Quanto mais avançada a doença materna, menor o risco de transmissão para o feto,
conforme postulado por Kassowitz em 1876. Wicher & Wicher
37
chamam a atenção para o
fato de existirem duas possibilidades para a ocorrência de sífilis congênita. Na primeira, a
mulher já tem sífilis e engravida. Na segunda, a mulher grávida se infecta com o espiroqueta.
Dessa forma, existiria um espectro variado de desfechos possíveis, de acordo com os estágios
de gravidez e de infecção, que pode ainda ter um terceiro determinante, o desenvolvimento
do sistema imune fetal. As crianças menos afetadas são as concebidas nos estágios tardios
Valéria Saraceni – A sífilis, a gravidez e a sífilis congênita -- 2005
7
de doença materna, com uma taxa de transmissão de cerca de 40% na fase latente precoce
e de 10% na fase latente tardia
38,39
. A cada gravidez sucessiva na mulher não tratada, a
chance de transmissão vai diminuindo
40
(Quadro 2). Contudo, o risco não é eliminado,
persistindo a cada gestação da mulher não tratada
41
. Hira et al.
42
descrevendo a situação da
sífilis na gravidez em Zâmbia, encontraram uma prevalência de 8%, com 57% das gestações
tendo um desfecho adverso, como abortamento, óbito fetal, prematuridade e baixo peso ao
nascer. No município do Rio de Janeiro, a primeira Campanha para eliminação da sífilis
congênita, em 1999, revelou uma prevalência de sífilis ente as gestantes captadas de 4,8%
43
. A mortalidade perinatal por sífilis congênita tem-se mantido estável no MRJ, apesar dos
esforços para o controle da sífilis na gravidez
44
.
O diagnóstico da sífilis na mulher pode ser feito antes da gestação, durante a mesma,
no momento do parto, ou em uma oportunidade posterior em que ela se apresente ao
serviço de saúde. Em não acontecendo uma demanda espontânea da mulher com uma
queixa específica, a triagem sorológica está indicada, e uma revisão sistemática para
diagnóstico e tratamentos anteriores, inclusive dos parceiros, deve ser feita.
O Ministério da Saúde do Brasil (MS) recomenda a triagem sorológica pré-natal para
a sífilis, com realização do VDRL na primeira consulta e, em sendo a mulher negativa no
45
primeiro teste, a repetição do mesmo no início do terceiro trimestre
nos países desenvolvidos, o screening se mantém importante
(Quadro 3). Mesmo
46,47,48,49
. Contudo, mesmo em
áreas de prevalência baixa, a contaminação da gestante pode ocorrer durante a gestação,
acarretando maior morbidade e mortalidade para o produto da gestação (Quadro 4).
Para as gestantes positivas, o controle do tratamento e da cura deve ser realizado
através de exames mensais até o parto (Quadro 5). Também é recomendada a testagem de
mulheres internadas para curetagem pós-aborto e de todas as parturientes. Sempre que
possível resultados com títulos baixos de VDRL devem ser confirmados com testes
treponêmicos e, na impossibilidade de realizá-los, todos os títulos devem ser encarados como
doença ativa, e as mulheres tratadas como portadoras de sífilis (Quadro 6).
Barsanti et al.
51
encontraram 2,4% de positividade ao VDRL em mil parturientes
estudadas, e apenas duas delas não foram confirmadas ao TPHA, sendo consideradas casos
de VDRL falso-positivos, não se confirmando a presença da infecção pelo T.pallidum. Para os
autores permanece a importância da triagem sorológica com o VDRL no momento do parto,
pois 22 recém-nascidos realmente precisavam ser tratados para sífilis congênita. Também
não encontraram nenhum caso de VDRL positivo entre os filhos de mães VDRL negativo. Para
Southwick et al.
52
o diagnóstico de sífilis deve ser feito no pré-natal, com o tratamento
acontecendo imediatamente, por ser esta a única maneira de evitar o caso de sífilis
congênita. Nos locais aonde a prevalência de sífilis é alta, os mesmos autores consideram não
haver justificativa para a realização do teste confirmatório.
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8
O tratamento da gestante infectada pelo T.pallidum deve ser realizado com penicilina
G benzatina, droga que é capaz de atingir níveis séricos bactericidas no feto (Quadro 7).
Qualquer outro tratamento ou o tratamento instituído nos trinta dias que antecedem o parto
é considerado inadequado para a prevenção da sífilis congênita
53,54
. De longa data se sabe
que o tratamento com penicilina é eficaz para a mulher e para o feto, se administrado com
tempo suficiente para o tratamento do segundo
55
. Os primeiros estudos da aplicação da
penicilina benzatina na prevenção da sífilis congênita mostraram taxas de incidência de cerca
de 3% nas mulheres tratadas durante a gravidez
47
. O tratamento de 90 gestantes com
2.400.000 UI de penicilina benzatina resultou em apenas um caso de sífilis congênita nascido
de uma mulher tratada seis dias antes do parto
56
.
No caso de alergia à penicilina, a gestante poderá ser dessensibilizada para usar a
mesma penicilina, ou ser tratada com estearato de eritromicina, o que levará à cura da
gestante, mas não do feto
57,58
(Quadro 8).
Ao avaliar as recomendações dos Centers for Disease Control and Prevention (CDC)
para tratamento da sífilis na gravidez, Alexander et al.
59
evidenciaram um maior risco de
falência do tratamento fetal se a mãe fosse um caso de sífilis secundária (p=0,03). Faz-se
necessário um esclarecimento sobre as recomendações do CDC e do MS, que diferem
justamente no tratamento da sífilis secundária. Para o CDC, a terapia é a mesma indicada
para os casos de sífilis primária, ou seja, uma única dose de 2.400.000 UI de penicilina G
benzatina
60
. Para o MS aplica-se o critério de duas doses de 2.400.000 UI da mesma droga,
com intervalo de sete dias.
Numa
revisão
sistemática,
Walker
61
não
encontrou
estudos
controlados
randomizados de tratamento da sífilis na gravidez e concluiu que a penicilina é o tratamento
de escolha, mas advertiu para o fato de que o melhor esquema ainda provocar discussão
62,63,64
. Chamou a atenção para a possibilidade de falha no tratamento no pré-natal estar
associada à coinfecção pelo HIV.
Nathan et al.
65
chamam a atenção para o fato de que as modificações fisiológicas da
gravidez podem alterar a farmacocinetica da penicilina, principalmente ao se aproximar do
termo, quando 60% das mulheres por eles estudadas apresentaram níveis subterapêuticos da
droga.
Quando o tratamento é feito na fase secundária da doença ocorre uma maior
possibilidade de ocorrência da reação de Jarish-Herxheimer, que decorre de uma liberação
maciça de antígenos treponêmicos mortos na circulação. Seus sintomas mais comuns são
calafrios, febre, dor de cabeça e dores musculares, que geralmente aparecem entre a
segunda e a quarta hora pós-administração da penicilina benzatina. A duração da
manifestação é de 1 a 2 dias. Em mulheres grávidas, tal reação pode acometer o feto e levar
à morte fetal
66
, indicando uma necessidade de acompanhamento mais próximo do
Valéria Saraceni – A sífilis, a gravidez e a sífilis congênita -- 2005
9
tratamento das grávidas nessa fase da doença, ou com títulos altos de VDRL, sugestivos de
fase secundária da sífilis.
O tratamento durante o pré-natal pode resultar em falha em até 14% dos casos
67
.
Além disso, uma gestante, identificada como portadora de sífilis e tratada durante o prénatal, pode sofrer uma re-infecção por contágio sexual com seu parceiro no curso da
gravidez, se o parceiro não for tratado também.
A convocação de parceiros ao local de pré-natal tem se mostrado difícil por várias
razões, sendo sugeridos fatores como horário de trabalho não compatível com o
funcionamento dos serviços de saúde, falta de vontade de procurar saber de uma doença da
qual não apresenta sintomas, não acreditar ser portador de doença sexualmente
transmissível, entre outras. As ações que viabilizem o comparecimento do parceiro ao serviço
de saúde para testagem e tratamento devem ser perseguidas à exaustão. Pela definição de
caso em vigor, o parceiro não tratado implica em que o recém-nascido seja considerado um
caso de sífilis congênita e, de tal forma, investigado e tratado (Quadro 9).
O controle dos casos novos das formas primária e secundária, com diagnóstico,
tratamento e busca de parceiros desses casos de sífilis altamente transmissível na relação
sexual e no contato direto com as lesões cutâneas, deve ser acoplado a todas as ações que
visem a eliminação da sífilis congênita
68
. Tal controle é necessário devido ao fato de que
essas duas formas clínicas, junto com a sífilis latente precoce (tempo de infecção menor do
que um ano), são as responsáveis pela transmissão da doença por contato sexual. Um
portador de sífilis latente precoce ainda é considerado como um potencial transmissor por
apresentar um risco de 25% de recorrência das lesões mucocutâneas da sífilis secundária, o
que pode se estender até o segundo ano da infecção. Após quatro anos de doença, o
paciente não é mais considerado um transmissor sexual
69
.
A sífilis congênita
As primeiras descrições da sífilis congênita são atribuídas a Lopez de Villalobos e
Fracastoro. Para estes autores, a sífilis congênita estava relacionada ao contágio durante o
parto, ou a uma transmissão pelo aleitamento materno ou cruzado. Paracelsus parece ter
sido o primeiro a aventar a transmissão in utero. Para ele e outros, o pai infectado pelo
agente da sífilis era capaz de infectar diretamente o ovo em formação, pois muitas mães não
pareciam infectadas
28
. Esse conceito só foi abandonado após a introdução dos testes
sorológicos para o diagnóstico da sífilis. Sir Jonathan Hutchinson é a personalidade do meio
acadêmico mais ligada à sífilis congênita por sua descrição da tríade de Hutchinson, com a
má-formação dos dentes que recebeu seu nome, a ceratite intersticial e a surdez neurosensorial, por lesão do oitavo par craniano
70
.
Valéria Saraceni – A sífilis, a gravidez e a sífilis congênita -- 2005
10
As manifestações clínicas da sífilis congênita se dividem em precoces, quando
ocorrem até os dois anos de idade, e tardias, quando aparecem após os dois anos
71
.
Na sífilis congênita precoce, os sinais e sintomas mais comuns incluem: febre,
anemia, retardo no desenvolvimento, irritabilidade, lesões mucocutâneas (rash maculopapular
no tronco, palmas das mãos e plantas dos pés; condilomata lata; erupções bolhosas), rinite
sero-sanguinolenta,
hepatoesplenomegalia,
icterícia,
linfadenopatia,
dactilite,
e
pseudoparalisia devido à osteocondrite. Esta última pode ser generalizada e se acompanhar
de pericondrite, afetando todos os ossos do esqueleto, mais acentuadamente no nariz e na
tíbia. O óbito neonatal geralmente se deve à insuficiência hepática, pneumonia grave ou
hemorragia pulmonar
38
.
A sífilis congênita tardia se caracteriza por manifestações ósseas variadas, como
fronte olímpica e tibia em lâmina de sabre, pelos chamados dentes de Hutchinson, nariz em
sela, rágades (cicatrizes lineares periorais), paresia juvenil, ceratite intersticial, surdez por
lesão do 8º nervo craniano e articulações de Clutton (derrames articulares indolores). Estas
manifestações de sífilis congênita tornaram-se raras, na época, após o uso da penicilina para
o controle da doença
28
.
A doença nos recém-nascidos evoluiu para um quadro clínico menos agressivo na era
pós-penicilina, conforme se observa na literatura
72,73
.
O diagnóstico clínico no recém-nascido se baseia na ocorrência de sinais e sintomas
descritos na sífilis congênita recente e na investigação de todas as crianças cujas mães
apresentaram sífilis na gravidez, detectada durante o pré-natal ou no parto. A definição de
caso de sífilis congênita para fins de vigilância epidemiológica ajuda a orientar os passos para
a investigação
74
. Todo recém-nascido de mãe com história de sífilis tratada ou não na
gestação, mais os recém-nascidos de mães identificadas como portadoras de sífilis apenas no
momento do parto devem fazer o exame de VDRL ainda na maternidade e, também,
radiografias de ossos longos e punção lombar para a pesquisa de neurosífilis. Outros exames
mais sofisticados de diagnóstico no recém-nascido ainda precisam provar sua valia
75,76
.
O tratamento do recém-nascido com sífilis congênita deve ser realizado com
penicilina procaína ou cristalina, por 10 dias, na dependência do acometimento ou não do
sistema nervoso central
77,78
.
Notificação da sífilis congênita
A sífilis congênita é uma doença de notificação compulsória no Brasil, existindo uma
definição de caso própria, revisada periodicamente, e uma ficha que deve ser preenchida
para cada caso
79,80
. Cabe à Vigilância Epidemiológica de cada serviço de saúde estabelecer o
melhor fluxo de noticação dentro de cada unidade básica, hospital ou maternidade.
Valéria Saraceni – A sífilis, a gravidez e a sífilis congênita -- 2005
11
Notificação de sífilis na gestação
Atualmente, no Município do Rio de Janeiro, utilizamos uma planilha padrão,
instituída após a Primeira Campanha para a Eliminação da Sífilis Congênita, em 1999, onde as
unidades informam os números dos seus atendimentos relativos ao pré-natal, VDRL
realizados, gestantes e parceiros tratados. As maternidades também informam sobre os casos
de sífilis congênita. O “Relatório de Investigação de Casos de Sífilis Congênita” coleta dados
trimestrais e deve ser enviado à Gerência de DST/AIDS da SMS-RJ. Depois de 2003, esse
relatório recebeu uma nova planilha no verso, onde devem constar nominalmente as
gestantes cujos VDRL foram positivos no pré-natal ou no parto.
Até 2006, a notificação de sífilis na gestação passará a ser de notificação complusória
em todo o país, e contará com ficha própria elaborada pelo Ministério da Saúde.
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Valéria Saraceni – A sífilis, a gravidez e a sífilis congênita -- 2005
17
Anexos
Quadro 1 – Testes diagnósticos para sífilis na gestação
Triagem
Confirmação
Testes não treponêmicos
Testes treponêmicos
VDRL ou RPR
TPHA ou MHA-TP ou FTA-Abs
Titulação
Positivo / Negativo
Controle de cura
Marca sorológica
Quadro 2 – Risco de transmissão vertical da sífilis
Transmissão vertical da sífilis (Fiumara, 1952)
Fases da sífilis
Risco de TV
Primária
70 – 100%
Secundária
90 – 100%
Latente precoce
40 – 80%
Latente tardia
10 – 30%
Terciária
10 – 30%
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Quadro 3 – Momentos de realização do VDRL na gestação
Momento
Justificativa
1ª consulta
Prevenção de doença de
de pré-natal
transmissão vertical
Início do 3º trimestre
Prevenção de doença de TV
(nas susceptíveis)
recém-adquirida, diminuir
prematuridade
Parto
Prevenção de doença de TV
recém-adquirida, reinfecção
Aborto
Diagnóstico antes de nova
gravidez
Quadro 4 – Conduta no primeiro VDRL negativo durante o pré-natal
VDRL negativo
Negativo
Nova diluição
Positivo
Repetir VDRL no
Efeito
3º trimestre
Prozona
Positivo
Tratar
Resultado do 1º
VDRL falso- negativo
Sífilis de
aquisição recente
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Quadro 5 – Controle sorológico de cura na gestação
Controle sorológico de cura pelo VDRL
Controle em gestantes: VDRL mensal
Queda de 2 titulações ou
4 vezes os títulos
Exemplos: de 1:8 para 1:2, de 1:64 para 1:16, de 1:4 para 1:1
Quadro 6 – Condutas nos títulos baixos de VDRL (VDRL < 1:8)
VDRL < 1:8
Negativo
Confirmatório
Positivo
(TPHA)
VDRL falso-
Não disponível
positivo
Investigar
História /
Antecedentes
Tratar
sempre
Investigar
História
colagenoses, etc.
ignorada
História conhecida e
tratamento adequado
Tratar
Cicatriz sorológica
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Quadro 7 – Tratamento da sífilis na gestação
Tratamento da sífilis na gestação (MS, 1999)
Droga de escolha: Penicilina benzatina
Fases da sífilis
Tratamento
Primária
2.400.000 UI
(cancro duro)
IM, dose única
Secundária
2.400.000 UI
(lesões mucocutâneas)
IM, 2 doses com
7 dias de intervalo
Latente precoce
2.400.000 UI
(até um ano de
IM, 2 doses com
duração)
7 dias de intervalo
2.400.000 UI
Latente tardia
IM, 3 doses com
7 dias de intervalo
Quadro 8 – Tratamento da sífilis em gestantes alérgicas à penicilina
Tratamento da sífilis na gestação – alergia (MS, 1999)
Preferência: dessensibilização para penicilina
Não sendo possível:
Droga de escolha: Estearato de Eritromicina
Fases da sífilis
Tratamento
Primária, Secundária,
500 mg, 6/6 h,
Latente precoce
por 15 dias
Latente tardia
500 mg, 6/6 h,
por 30 dias
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Quadro 9 – Testagem e conduta junto aos parceiros das gestantes portadoras de
sífilis
Resultado do VDRL
Tratamento
Justificativa
Negativo
Penicilina Benzatina
Profilaxia para contactante
2.400.000 UI, IM, dose única
de sexual de sífilis
Positivo
Penicilina Benzatina
(qualquer titulação)
2.400.000 UI, IM, 3 doses com
Sífilis de duração ignorada
7 dias de intervalo
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