a contribuição dos arquitetos josé e francisco nasser hissa paiva

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CAMINHOS DA ARQUITETURA MODERNA EM FORTALEZA:
A contribuição dos Arquitetos José e Francisco Nasser Hissa
PAIVA, Ricardo A (1); DIÓGENES, Beatriz. (2)
1. UFC. DAU-PPGAU+D
Rua Jaime Benévolo, 801/204
Fortaleza-CE Cep 60050-081
[email protected]
2. UFC. DAU-PPGAU+D
Rua Frei Mansueto, 483/301
Fortaleza-CE Cep 60175-070
[email protected]
RESUMO
O objetivo do artigo é abordar a contribuição dos arquitetos José Nasser Hissa (1944) e Francisco
Nasser Hissa (1949) à arquitetura moderna na cidade de Fortaleza, por intermédio da análise das
suas trajetórias profissionais e das obras mais relevantes. Nascidos em Fortaleza e formados pela
Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal do Rio de Janeiro em 1968 e 1971,
respectivamente, os irmãos passaram a atuar em Fortaleza na década de 1970, quando criaram o
escritório Nasser Hissa Arquitetos Ltda., responsável desde então por inúmeras obras residenciais –
unifamiliar e multifamiliar -, comerciais, corporativas, hoteleiras e institucionais na Cidade, obras
essas que alteraram substancialmente o panorama arquitetônico da capital cearense, no que se
refere a inovações formais e tecnológicas, verticalização e diversidade de programas. O escritório é
hoje um dos mais importantes do Norte e Nordeste e sua atuação se estende por outras cidades
brasileiras. A fase inicial da vasta produção dos arquitetos, compreendida entre as décadas de 1970 e
início de 1980 – recorte temporal da análise – possui vínculos com os princípios da arquitetura
moderna então vigentes, ao mesmo tempo em que revela ajustes às especificidades da cultura
arquitetônica local. Ambos exerceram também influência marcante em gerações de arquitetos,
atuando paralelamente como docentes no Curso de Arquitetura e Urbanismo da UFC, na disciplina de
Projeto Arquitetônico. A importância da atuação dos irmãos Nasser Hissa reside ainda no fato de
terem sido os primeiros a instituírem de maneira mais formal e empresarial as atividades de gestão e
profissionalização do escritório, que sempre contou com uma equipe formada por vários arquitetos,
desenhistas e estagiários de arquitetura, constituindo também um lugar de aprendizado da prática
profissional, onde eles transmitiam suas experiências arquitetônicas. A organização e a estrutura do
escritório possibilitaram receber encomendas de projetos de porte para o a clientela pública e privada,
colaborando assim para o reconhecimento do profissional arquiteto e da arquitetura na Cidade. A
trajetória profissional (prática e docente) e a obra dos irmãos Nasser Hissa constituem, sem dúvida,
relevante contribuição à arquitetura cearense das quatro últimas décadas, sendo a fase de influência
modernista importante acervo a ser documentado, devido ao acelerado processo de desaparecimento
e descaracterização deste relevante patrimônio cultural e edificado, que testemunha o processo de
modernização, metropolização e verticalização de Fortaleza e que, mais recentemente sofre as
conseqüências deletérias da dinâmica imobiliária da Capital. Com o artigo, almeja-se incrementar o
fortalecimento do debate sobre a documentação, conservação e preservação da arquitetura moderna
em Fortaleza, assim como contribuir para a escrita da sua história, complementando e consolidando
as pesquisas em andamento no Departamento de Arquitetura e Urbanismo da UFC e no Programa de
Pós-graduação em Arquitetura e Urbanismo e Design da UFC , assim como as atividades do LoCAU Laboratório de Crítica em Arquitetura, Urbanismo e Urbanização, envolvendo professores,
pesquisadores, alunos de Mestrado e iniciação científica.
Palavras-chave: documentação, arquitetura moderna, Nasser Hissa Arquitetos Ltda., Fortaleza.
4º Seminário Ibero-Americano Arquitetura e Documentação
Belo Horizonte, de 25 a 27 de novembro
Formação e influências: à guisa de introdução
José Nasser Hissa (1944) e Francisco Nasser Hissa (1949) são cearenses descendentes de
sírio-libaneses que migraram para o Ceará na passagem do século XIX para o século XX,
juntamente com outras famílias de mesma origem. Em 1951 se mudaram com os pais e
outros dois irmãos para o Rio de Janeiro, em busca de melhores oportunidades de estudo.
José Nasser Hissa, o irmão mais velho, estudou no Colégio São Bento e desde cedo
revelou interesse pelo desenho, e teve o primeiro contato com a arquitetura através de seu
colega de classe, Márcio Roberto, filho de Maurício Roberto, um dos irmãos MMM Roberto,
pioneiros da arquitetura moderna no Brasil.
Depois do retorno da família à Fortaleza em 1961, José, tendo estudado no Liceu do Ceará,
decidiu prestar o vestibular para arquitetura na Faculdade Nacional de Arquitetura da
Universidade do Brasil, onde ingressou em 1964 e concluiu o curso em 1968. Incentivado
pelo irmão, Francisco Nasser Hissa, que a princípio almejava cursar Engenharia Civil, em
função das facilidades com a matemática e a geometria descritiva, acabou por seguir seus
passos nos caminhos da arquitetura. Após ter realizado um curso de desenho com o artista
suíço radicado no Ceará, Jean Pierre Chabloz (1910-1984) para se preparar para a prova de
habilidade específica (desenho), Francisco também ingressou na Faculdade Nacional de
Arquitetura no Rio de Janeiro em 1967 e se graduou em 1971, quando a Escola passou a
ser Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal do Rio de Janeiro, com
o advento da Reforma Universitária introduzida pela Lei de Diretrizes e Bases de 28/11/68.
A esta altura, o Ceará já contava com a sua Escola de Arquitetura, que iniciou suas
atividades em 1965 e já nasceu com certo prestígio, em função do seu projeto pedagógico
moderno, da sua autonomia em relação às heranças das escolas de belas artes e
politécnicas que deram origem a diversas escolas de arquitetura no país, da participação do
arquiteto Hélio Duarte, da Universidade de São Paulo e de um grupo de arquitetos
cearenses com sólida formação modernista no Rio de Janeiro e em Recife. Ainda assim, a
decisão do Francisco em estudar no Rio foi motivada pelo desbravamento inicial do irmão,
além da importância da Cidade e da Faculdade no contexto da cultura arquitetônica
brasileira.
Conforme o relato dos arquitetos, o processo de formação foi bastante intenso, pois o
Curso, de origem secular, possuía uma biblioteca rica em referências históricas e
contemporâneas, com importantes periódicos e revistas internacionais. Além disso, o
edifício que abrigava a Escola, projeto de 1957 do arquiteto carioca Jorge Machado Moreira
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(1904-1992), era um ambiente adequado e propício para o aprendizado da profissão,
constituindo uma referência modelar dos ensinamentos do modernismo arquitetônico.
Embora tenham estudado em uma Faculdade na qual havia emergido a essência do debate
arquitetônico modernista, fundado na síntese entre modernidade e tradição, e onde se
formaram os primeiros arquitetos modernos no Brasil, para eles, os princípios modernistas
não eram ensinados de forma programática ou teórica, mas estavam imbuídos no
pensamento e na cultura arquitetônica do contexto social e histórico de sua inserção e,
sobremaneira, na prática de projeto, dentro e fora da Faculdade. A hegemonia do
modernismo no ensino e na prática da arquitetura estava então plenamente consolidada
como um certo consenso, ainda que não se recorresse ao termo “moderno” para designar a
linguagem a que eles estavam alinhados, pois se tratava na verdade de uma postura
arquitetônica contemporânea à geração dos arquitetos.
É importante destacar ainda que o período de formação dos dois arquitetos coincide com as
mudanças de rumo no panorama da arquitetura moderna brasileira que, para Bastos (2003),
tem Brasília como marco, seja porque foi o apogeu do período heróico da arquitetura
moderna brasileira, identificado com a exaltação dos valores da escola carioca e suas
representações face à modernização pretendida, seja porque foi um ponto de inflexão
político, com o golpe militar em 1964. Some-se a isto o surgimento de uma nova expressão
formal na arquitetura moderna brasileira que se desenvolveu a partir do discurso mais
teórico e engajado politicamente liderado por Vilanova Artigas e criou uma polarização entre
a escola carioca e a escola paulista brutalista.
Os irmãos arquitetos declararam que se mantiveram à margem desta discussão política e
teórica, ética e estética e que foi muito mais decisivo para a sua formação o envolvimento
com as disciplinas técnicas de materiais de construção e estrutura, para eles o “ponto forte”
da formação, tendo sido alunos de ilustres professores, como Aderson Moreira da Rocha
(1911-1996), Adhemar Fonseca (1915-1996) e Adolpho Polillo (1928). Na área específica do
projeto de arquitetura, foi de grande relevância o contato com os arquitetos professores
Paulo Casé (1931) e Luis Paulo Conde (1934-2015).
Estes professores, envolvidos com o ensino da arquitetura, sobretudo nas disciplinas
práticas de projeto, atuavam como arquitetos em seus escritórios particulares, e as suas
experiências profissionais justificavam a sua condição de professor-arquiteto. As influências
que os estudantes recebiam eram, inclusive, provenientes desta atividade compartilhada
com os professores também por meio de estágios em seus escritórios. José e Francisco
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construíram suas trajetórias profissionais conforme este perfil, atuando no escritório
paralelamente à atividade didática.
No período da faculdade, ambos trabalharam no SESI do Rio de Janeiro, desempenhando
atividades na área de comunicação visual. José também fez perspectivas de arquitetura
para o escritório do Edison Musa (1934) e estagiou com o arquiteto Luiz Eduardo Índio da
Costa (1938). Francisco cumpriu estágio no escritório do Hélio Modesto (1921-1980),
urbanista responsável pelo Plano Diretor de Fortaleza de 1963.
O repertório de referências arquitetônicas e urbanas dos irmãos foi potencializado pelo
ambiente cultural e cosmopolita do Rio de Janeiro que, mesmo com a transferência da
Capital Federal para Brasília, mantinha evidentemente grande tradição e efervescência
cultural no campo das artes em geral, no cenário nacional.
O regresso à Fortaleza: desafios profissionais
A perspectiva de trabalho que se apresentava em Fortaleza era bastante ambígua pois, ao
mesmo tempo em que se abriam oportunidades relacionadas ao ensino da arquitetura (com
a criação da Escola) e ao mercado de trabalho, também apresentava, desde a chegada dos
primeiros arquitetos, os desafios de uma cidade que começava a se modernizar e pouco
tinha ciência da profissão do arquiteto.
José Hissa voltou para Fortaleza e ingressou, depois de prestar concurso, como professor
da Escola de Arquitetura da UFC em 1969. A princípio se dedicou ao ensino das disciplinas
de representação, sobretudo de Comunicação Visual, com o respaldo da formação que teve
à época que trabalhava no SESI-RJ. José pode ser considerado da segunda geração de
arquitetos de formação moderna atuantes no Ceará. A primeira geração se identifica com os
pioneiros migrantes, que se formaram no Rio de Janeiro e em Recife e que introduziram os
princípios da arquitetura moderna na Cidade; alguns deles estiveram envolvidos com a
fundação da Escola. Para Segawa (2002) estes “arquitetos peregrinos, nômades e
migrantes” cumpriram um papel fundamental na afirmação da arquitetura moderna brasileira
a partir da década de 1960. A segunda geração, da qual José faz parte, se caracteriza por
arquitetos mais jovens, quase todos cearenses, que se juntaram aos pioneiros e foram
incorporados como professores da Escola, como Roberto Martins Castelo (1939) formado
em Brasília, José da Rocha Furtado (1943), formado na FAUUSP, Gherard Bormann (19391980), Nícia Bormann (1942) e Antônio Carvalho Neto (1944), diplomado em 1971 no Rio de
Janeiro. Por fim, os primeiros arquitetos egressos da Escola de Arquitetura da UFC podem
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ser considerados como da terceira geração, como Fausto Nilo (1944), Delberg Ponce de
Leon (1944) e Paulo Cardoso (1945).
Francisco Hissa, conhecido entre os arquitetos como Chico, embora sendo mais jovem e só
tenha ingressado como professor na UFC em 1987, também pode ser considerado da
segunda geração. Aliás, foi como professor de projeto que a carreira docente de ambos
ficou marcada, compartilhando suas experiências práticas com várias gerações de
arquitetos.
Os arquitetos afirmaram que a intenção de ingressar na universidade, como professores, se
deu pelo interesse em conciliar a teoria com a atividade prática, já exercida por ambos. José
se aposentou em 1998 e Chico ainda continua no Curso de Arquitetura e Urbanismo da
UFC, sendo responsável há anos pelo fechamento da sequência de Projeto Arquitetônico,
sempre com temas e programas de alta complexidade funcional e urbana.
É notória a marca deixada por ambos os arquitetos em várias gerações de egressos da
UFC, sendo lembrados como referência de conhecimento técnico e inovação em sua prática
projetual e no ensino.
Com relação à atividade profissional, antes de abrir o escritório de arquitetura com o irmão
Francisco, José Hissa esteve à frente de uma empresa de publicidade, a BIT –
Programação Visual e Propaganda Ltda., juntamente com o cineasta Eusélio Oliveira e o
publicitário Augusto Pontes. A BIT prestava serviços de produção de peças de propaganda,
vídeos e marcas, tendo sido responsável pelas conhecidas marcas da Receita Federal e do
IAB nacional – Instituto de Arquitetos do Brasil, esta concebida por ele, José Hissa, e pelo
arquiteto Ricardo Bezerra, no ano de 1972.
Com o retorno de Chico do Rio, começaram as atividades de escritório de projetos de
arquitetura no início da década de 1970. Neste período, a cidade contava com poucos
arquitetos e todos militavam para que a profissão tivesse reconhecimento por parte de
empresários, construtores e a clientela em geral, uma vez que grande parte dos projetos,
até a década de 1960, eram elaborados por práticos, desenhistas e engenheiros. A
linguagem moderna adotada pelos arquitetos em geral contribuiu para legitimar e distinguir
esta produção de caráter mais erudito, destacando-se no período o escritório dos arquitetos
José Neudson Braga (1935), José Liberal de Castro (1926) e Enéas Botelho.
A estrutura e a organização do escritório “Nasser Hissa Arquitetos Associados”, marcadas
desde a sua origem por uma gestão mais profissional e empresarial, possibilitaram receber
encomendas de projetos de porte para a clientela pública e privada, colaborando assim para
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o reconhecimento do profissional arquiteto e da arquitetura na Cidade. No início da década
de 1980, o escritório já possuía uma equipe significativa de arquitetos e absorvia grande
parte das demandas do mercado imobiliário, que se fortaleceu após a liberação da
verticalização fora do centro urbano, prevista no Código de Obras de 1979. Desde então,
houve grande efervescência na construção de edifícios residenciais multifamiliares, sendo
os arquitetos Nasser Hissa protagonistas neste processo e responsáveis, em grande
medida, pelo novo “desenho” que a capital cearense adquiriu.
Em entrevista a José Wolf na Revista AU nº 20, várias passagens confirmam esta
consciência dos arquitetos em relação ao papel que cumpriram na mudança de relação dos
arquitetos com o mercado, ao afirmarem que “somos uma espécie de veículo de levar o
mercado para um caminho mais adequado” (p. 61), ou ainda que “e somos nós, de forma
ampla, arquitetos mais empresários, que estamos fazendo o desenho da cidade” (p. 62).
Vale destacar a formação complementar que tiveram os muitos arquitetos – mais de 150,
conforme depoimento de Francisco Hissa - que passaram pelo escritório desde a sua
criação, até os dias atuais. Esses profissionais são unânimes em afirmar o enorme
aprendizado e experiência que obtiveram, no que se refere à prática de projeto e às técnicas
de desenho.
É reconhecida a forma pioneira de representação gráfica utilizada por eles e a importância
dada à técnica. No início, os desenhos eram confeccionados a lápis – uma novidade à
época -, segundo modelo já utilizado nos projetos do arquiteto carioca Paulo Casé e era
dada grande ênfase ao detalhamento arquitetônico. Tornou-se padrão por muito tempo entre
os escritórios locais. O desenho a lápis foi, posteriormente, substituído pelo uso do
computador, sendo o primeiro escritório da cidade a empregar a informática na
representação dos projetos, método rapidamente assimilado e utilizado com eficiência pelos
estagiários e arquitetos.
As Obras Modernas
A arquitetura moderna em Fortaleza revelou sua expressão mais marcante na década de
1970 e no início da década de 1980, quando a Cidade conheceu um processo mais intenso
de modernização, em função das práticas econômicas, políticas e culturais suscitadas pela
implementação de planos governamentais na esfera estadual e pela criação de um aparato
institucional alinhado à política nacional de desenvolvimento pelo viés da industrialização,
preconizada desde a década de 1960 pela SUDENE, com repercussões incontestáveis no
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processo de urbanização e modernização das estruturas urbanas e edilícias da capital
cearense.
A arquitetura moderna e os valores simbólicos da sua linguagem vão então responder às
demandas
públicas
e
privadas
deste
contexto
sócio-histórico,
por
intermédio
respectivamente, do projeto de sedes de instituições públicas federais e estaduais
(administrativas, financeiras e educacionais) sediadas em Fortaleza; de edifícios de
apartamentos, centros comerciais, alguns poucos hotéis e incontáveis residências
unifamiliares.
Ao longo dos anos 1980, a arquitetura em Fortaleza experimenta um processo de transição,
em que coexistem persistências do modernismo arquitetônico e se insinuam, sobretudo a
partir da segunda metade da década, as primeiras influências e atitudes pós-modernas. É
evidente que estes limites não são nítidos, mas pode-se afirmar que a publicação do
Panorama da Arquitetura Cearense em 1982 constitui um marco que define “um recorte”,
uma periodização da arquitetura moderna em Fortaleza (PAIVA e DIÓGENES, 2014). A
publicação editada pela Revista Projeto, em dois volumes, traz um apanhado de obras de
diversos arquitetos cearenses, inclusive dos irmãos Nasser Hissa, nas quais é patente a
centelha moderna.
A contribuição dos irmãos Nasser Hissa à arquitetura moderna em Fortaleza pode ser
compreendida dentro deste recorte temporal, muito embora a atuação dos arquitetos não se
restrinja a este período, e muito extrapola o limite metodológico estabelecido neste artigo.
As obras analisadas a seguir possuem esta inserção temporal, tendo sido algumas delas
publicadas no Panorama da Arquitetura Cearense, citado acima.
O Center Um, o primeiro shopping de Fortaleza, foi inaugurado em 1974 e constitui um
marco na redistribuição das funções urbanas na Cidade. Este equipamento foi responsável,
igualmente ao que ocorreu em outras cidades brasileiras, por induzir o surgimento de uma
nova área de centralidade na Cidade - sendo sintomática a decadência do centro principal,
com a perda da sua centralidade econômica, política e simbólica (PAIVA, 2005) -, e a sua
excessiva especialização, concomitante ao descolamento de atividades terciárias na direção
dos fluxos de expansão da função residencial das classes mais abastadas (VILLAÇA, 1998).
O shopping, construído no eixo leste de expansão de Fortaleza desde o Centro, contribuiu
para o processo de consolidação da centralidade formada na Aldeota, com impactos
significativos na dinâmica urbana, imobiliária, de fluxos e de verticalização de Fortaleza
(DIÓGENES, 2005).
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O edifício ocupa uma quadra inteira e os três pavimentos (subsolo, térreo e pavimento
superior) se distribuem em um terreno com um declive de mais ou menos um pavimento
entre a Rua Desembargador Leite Albuquerque e a Av. Santos Dumont. O partido do projeto
se desenvolve em torno da criação de um pátio interno aberto, o que constitui uma
particularidade, uma vez que é recorrente nesta tipologia soluções mais herméticas e
isoladas em relação ao entorno.
À época de sua inauguração, o programa comportava lojas diversas, um supermercado
âncora (Jumbo-Pão de Açúcar) e um cinema, que dinamizou sobremaneira a oferta de
comércio da Aldeota, constituindo ainda hoje um local de lazer e consumo da Cidade.
O acesso ao shopping a partir da Av. Santos Dumont se dava por intermédio de uma
generosa rampa e as lojas do segundo pavimento se debruçavam sobre o pátio interno
como uma grande área avarandada, protegendo e abrigando a circulação das lojas do
pavimento térreo, evidenciando a preocupação dos arquitetos com as condicionantes
ambientais da Cidade e a adoção da varanda como elemento arquétipo da cultura
arquitetônica local.
A solução estrutural é bastante regular e modulada que, alinhada aos princípios modernos,
repercute claramente na forma do edifício, traduzida na clara definição dos elementos de
suporte e de vedação. Destaque para o uso da laje-cogumelo do subsolo, que constituía
uma inovação estrutural na década de 1970.
Ao longo destes quarenta anos de existência, o Shopping Center Um (Figura 1 e 2) mantém
suas atividades, mas já passou por algumas reformas, empreendidas por projetos dos
próprios arquitetos, como o fechamento do vazio da coberta do pátio e o conseqüente
condicionamento do ar.
Figura 1 e 2: Shopping Center Um (1974)
Fonte: http://www.fortalezaemfotos.com.br/
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O Shopping Portugal (início da década de 1980), já demolido, foi outra experiência de
centro comercial em que os arquitetos se valem do pátio com elemento estruturador do
espaço. Em escala menor, em termos de área, e apenas com um pavimento, os autores do
projeto valorizaram a inserção de varandas e o emprego de uma coberta tradicional
(madeira e telha cerâmica) e alvenarias brancas. A adoção de uma técnica construtiva
convencional foi condicionada pelo tempo exíguo demandado pelos clientes para a
construção do shopping, que precisava ser construído entre 3 e 4 meses. “O exterior do
edifício sugere bem o seu funcionamento centralizado, através da transparência de vitrines
que permite a visualização da praça para quem olha para o exterior” (PONCE DE LEON;
NEVES e LIMA NETO, 1982, p. 55). Localizado na Praça Portugal, importante referência
comercial da Aldeota, o edifício (Figura 3) foi demolido para dar lugar a uma torre comercial,
destino de vários edifícios modernos (residenciais e comerciais) ameaçados pela dinâmica
da valorização imobiliária de terrenos bem localizados em Fortaleza.
Figura 3: Shopping Portugal
Fonte: Foto Carlos Barrocas e Cláudio Albuquerque
O edifício da Teleceará – Centrais de Comutação e Escritórios (1982) foi implantado
dentro da estrutura fundiária tradicional do Centro de Fortaleza e apresenta uma solução
formal alinhada às exigências funcionais demandadas pela tecnologia empregada pela
concessionária à época, uma vez que:
a ocupação funcional do edifício reflete-se no seu aspecto exterior. As duas
funções que o prédio abriga, centrais telefônicas e escritórios, são
enfatizados pelo tratamento das fachadas respectivamente através de um
grande pano cego para os andares onde funcionam as centrais telefônicas e
paredes-cortina para os andares de escritórios (PONCE DE LEON; NEVES
e LIMA NETO, 1982, p. 132)
A solução final resultou em um volume prismático austero e com grande força plástica,
revelando matriz notadamente modernista. Atualmente, o edifício (Figura 4) passou por
transformações apenas no seu espaço interno em função das significativas mudanças na
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tecnologia da telefonia, mantendo-se de forma digna na paisagem, face à longevidade da
solução formal adotada.
Figura 4: Antiga Teleceará (Atual TIM)
Fonte: Acervo LoCAU
Os arquitetos contribuíram sobremaneira para a consolidação da tipologia do edifício
multifamiliar em Fortaleza. Ainda na década de 1970, quando era proibida a construção em
altura nos bairros residenciais, projetaram prédios de apartamento com soluções bastante
adequadas às especificidades locais ambientais e às formas de morar, ao mesmo tempo em
que estavam de acordo com legislação1, que autorizava a construção de edifícios com pilotis
e mais três pavimentos. Destacam-se, entre outros, os edifícios Água Marinha (1974)
(Figura 5), Guarani (1976) (Figura 6), Village Costa Brava (década 1970) (Figura 7), Berma
(1979) (Figura 8).
É comum nestes edifícios o uso de elementos de concreto aparente na fachada, marcando a
estrutura e as varandas, além de revestimentos como cerâmica e cobogós e esquadrias de
madeira tipo veneziana2, conciliando aspectos da arquitetura moderna com as condições
locais, no que se refere a materiais e clima.
1
o
Um dispositivo inserido na Lei n 4.486, de 1975, permitia aumentar o número de pavimentos com o uso do
pilotis, nos edifícios multifamiliares e mistos, em quase todas as zonas da cidade.
2
As venezianas de madeira foram posteriormente quase todas substituídas por esquadrias de alumínio e vidro.
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Figura 5: Edifício Água Marinha (1974)
Fonte: Acervo Márcia Cavalcante
Figura 7: Ed. Village Costa Brava(década 1970)
Fonte: acervo Márcia Cavalcante
Figura 6: Edifício Guarani (1976)
Fonte: Acervo Márcia Cavalcante
Figura 8: Edifício Berma (1979)
Fonte: Acervo Márcia Cavalcante
Com a mudança da legislação em 1979, quando foi liberada a construção de edifícios em
altura nos bairros, os irmãos Nasser Hissa passaram a projetar diversos edifícios verticais
na Cidade, sendo pioneiros neste nicho de mercado e valorização imobiliária que teve início
na década de 1980. O Edifício Veneza 1 (1980) é um exemplar emblemático na produção
dos arquitetos. Localizado em um terreno de esquina no Bairro do Meireles, possui um
implantação que valoriza a integração entre o espaço público e privado, dispensando o uso
de muros e grades, resolvendo estes limites com o recurso de desníveis. A valorização
desta interface entre a rua e o pilotis do prédio é reforçada pela introdução de uma loja no
nível do térreo, voltada para o passeio, criando uma diversificação no programa que, de
alguma forma, contrariou a cultura local, que considerava a incorporação do uso comercial
como um elemento de desvalorização imobiliária do edifício, além do fato de se identificar
como um recurso programático mais direcionado para as classes menos abastadas.
Com apenas um apartamento por andar, o edifício apresenta grande qualidade formal,
visível no agenciamento dos volumes contrastantes: o da circulação vertical e o outro, curvo
com balcão de concreto que conforma a marcação horizontal das varandas. As referências
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ao modernismo aparecem não apenas na utilização do concreto aparente mas, sobretudo,
no fato de que a forma se apresenta como expressão da estrutura e da solução funcional,
ao mesmo tempo em que há uma preocupação com as proporções, as escalas, os ritmos e
os materiais que moldam as fachadas.
Em ótimo estado de conservação, o edifício (Figuras 9, 10, 11 e 12) recentemente cedeu
aos imperativos simbólicos que permeiam a cultura da violência urbana e implantou um
gradil nos limites do lote, comprometendo a solução original e, de alguma forma, o seu
exemplo demonstra as possibilidades de um desenho diferenciado para a integração entre
os domínios públicos e privado.
Figura 9: Edifício Veneza 1 (1980)
Fonte: Acervo Márcia Cavalcante
Figura 10: Edifício Veneza 1 (1980)
Fonte: Acervo Márcia Cavalcante
Figura 11: Edifício Veneza 1 (1980)
Fonte: acervo Márcia Cavalcante
Figura 12: Edifício Veneza 1 (1980)
Fonte: acervo Márcia Cavalcante
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É importante admitir que os princípios da arquitetura moderna não se revelam na obra dos
arquitetos de forma acentuada e intencional, como discurso ou manifesto, pelo contrário,
são incorporados para atender e solucionar problemas pragmáticos, funcionais, estruturais e
construtivos. O uso do concreto aparente em algumas obras foi utilizado para buscar
aderência ao que estava em voga na década de 1970 e início de 1980, já que era uma
tendência predominante no âmbito da arquitetura moderna brasileira.
Considerações Finais
O trabalho dos arquitetos José e Francisco Nasser Hissa pode ser tomado como referência
importante para o desenvolvimento da arquitetura cearense, ao contribuir de forma relevante
para a difusão e consolidação da arquitetura moderna em nosso meio. Uma maior
consciência por parte dos arquitetos do emprego de princípios modernos em seus projetos
até início da década de 1980 só foi possível, segundo eles, com o início do debate em torno
do pós-modernismo. Desde então, o arquitetos passam a incorporar novas influências aos
seus projetos, sem necessariamente abandonar o compromisso com o desenvolvimento
técnico e os seus desdobramentos no projeto de arquitetura.
Ao longo da década de 1980, o escritório vai testemunhar dois processos importantes de
transição. O primeiro, relacionado à continuidade e às rupturas do modernismo frente às
influências pós-modernas e o segundo, em relação à incorporação do desenho assistido por
computador, método que os tornou pioneiros em Fortaleza, quiçá no Brasil, uma vez que
foram os primeiros a comprar uma licença do Autocad em todo o país, abandonando
sistematicamente o desenho à mão. Some-se a isto as transformações ocorridas na Cidade
em relação ao processo de verticalização. A atividade dos arquitetos se mantém intensa e
sua produção bastante significativa. Suas contribuições à arquitetura contemporânea são
também de grande relevância para reflexão da arquitetura no Ceará.
Em conformidade com os objetivos do trabalho, a fase de influência modernista constitui
importante acervo a ser documentado, devido ao acelerado processo de desaparecimento e
descaracterização deste relevante patrimônio cultural e edificado.
É importante salientar, por outro lado, seu legado como professores de várias gerações de
arquitetos formados no Curso de Arquitetura e Urbanismo da UFC e a importância de sua
produção no contexto da cidade, pela atividade prática do escritório, pelo volume de projetos
realizados e pelas inovações introduzidas no conjunto da obra. A atuação dos irmãos
Nasser Hissa propiciou, incontestavelmente, uma nova feição no desenho da cidade formal.
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O estudo sobre a contribuição de diversos arquitetos à inserção e desenvolvimento da
arquitetura moderna em Fortaleza constitui uma das atividades do LoCAU (Laboratório de
Crítica em Arquitetura, urbanismo e Urbanização) no âmbito do PPGAU+D (Programa de
Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo e Design) da UFC. A sistematização destas
trajetórias profissionais tem fortalecido sobremaneira a documentação deste acervo, bem
como potencializado o debate sobre a valorização da arquitetura moderna em Fortaleza,
com perspectivas de colaborar para o debate sobre a conservação, além do compromisso
com a escrita da história da arquitetura no Ceará.
Referências bibliográficas
BASTOS, Maria Alice Junqueira. Pós-Brasília: Rumos da Arquitetura Brasileira. São
Paulo: Ed. Perspectiva, 2003.
DIÓGENES, Beatriz H.N. A centralidade da Aldeota como expressão da dinâmica intraurbana de Fortaleza. Dissertação (Mestrado). FAUUSP, São Paulo, 2005.
PAIVA, Ricardo Alexandre ; DIOGENES, B. H. (Org.) . Pequeno Guia da Arquitetura
Moderna de Fortaleza (1960-1982) Momotur - 5° Seminário DOCOMOMO Norte/Nordeste.
1. ed. Fortaleza: Departamento de Arquitetura e Urbanismo – UFC/Expressão Gráfica, 2014.
v. 1. 118p .
PAIVA, Ricardo Alexandre. Entre o Mar e o Sertão: Paisagem e memória no Centro de
Fortaleza. Dissertação de Mestrado. FAUUSP. São Paulo, 2005.
PONCE DE LEON, Delberg; NEVES, Nelson Serra e; LIMA NETO, Otacílio (Orgs).
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SEGAWA, Hugo. Arquiteturas no Brasil 1900-1990. São Paulo. Edusp, 2002.
VILLAÇA, Flávio. Espaço Intra-Urbano no Brasil. São Paulo: Studio Nobel, 1998.
Agradecimentos
Aos arquitetos José Nasser Hissa e Francisco Nasser Hissa, pelas entrevistas concedidas
aos autores em outubro de 2015 e à arquiteta Márcia Gadelha Cavalcante, pelas imagens
cedidas.
4º Seminário Ibero-Americano Arquitetura e Documentação
Belo Horizonte, de 25 a 27 de novembro
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