A vida d`Eficiente e as especiais necessidades

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Encontro Mundial de Saúde e Tecnologia
Brasília, 21 a 23 de setembro de 2006.
– A vida d’Eficiente e as especiais necessidades –
Fazer por consciência e não só para cumprir a lei
– Arquiteta Flavia Boni Licht –
Quando me pediram para falar neste encontro sobre o tema “fazer por
consciência e não só para cumprir a lei”, a primeira associação que fiz foi com
o Código de Ética da minha profissão, o Código de Ética de todas as
profissões vinculadas ao Conselho Federal de Engenharia, Arquitetura e
Agronomia. Busquei o texto do Código e destaco aqui, rapidamente, dois
conceitos que lá encontrei.
No artigo 6º, lê-se que “o objetivo das profissões e a ação dos profissionais
volta-se para o bem-estar e o desenvolvimento do homem, em seu ambiente
e em suas diversas dimensões: como indivíduo, família, comunidade, sociedade,
nação e humanidade; nas suas raízes históricas, nas gerações atual e futura ”.
Um pouco mais adiante, onde é descrita a natureza das profissões se
reconhece que elas são um “bem cultural da humanidade construído
permanentemente pelos conhecimentos técnicos e científicos e pela criação artística,
manifestando-se pela prática tecnológica, colocado a serviço da melhoria da
qualidade de vida do homem”.
Portanto, de acordo com o Código de Ética Profissional, nosso trabalho
enquanto arquitetos – as edificações de uma cidade, seus espaços abertos
e a própria cidade – tem como foco prioritário o bem-estar e o
desenvolvimento do ser humano; e nossa profissão deve ser colocada a
serviço da melhoria da qualidade de vida do homem.
Sabemos, infelizmente, que esses objetivos nem sempre são respeitados,
que é grande a distância entre a teoria – e aí podemos incluir o nosso
Código de Ética – e a prática. Como vencer esse abismo? É o que temos
que aprender!
Não querendo criar desculpas, é importante lembrar que nós, arquitetos,
também somos resultado de uma cultura construída por uma soma de
conceitos que leva à idealização (inclusive física) do ser humano; uma
cultura que, desde o começo da civilização, privilegia os fortes sobre os
fracos, os que têm mais sobre os que têm menos, os que se encaixam nos
módulos de beleza construídos pelos grupos sociais dominantes (e aceitos
universalmente, pois universalmente disseminados por esses dominantes)
sobre os que se distanciam desses padrões. Uma cultura, portanto,
excludente. E o produto do nosso trabalho revela também essa exclusão.
Só que, talvez pior que em outras profissões, modelamos
preconceitos em pedra, em concreto, em tijolos, à vista de todos.
esses
O que mais explicaria, além de uma cultura baseada em exclusão, as
sempre presentes e indiscutíveis rampas de acesso para automóveis às
garagens e as quase sempre ausentes e eternamente questionadas rampas
para uso de cadeirantes?
O que mais explicaria, além de uma cultura baseada em exclusão, o
convite que recebi para fazer uma palestra ocorrida na 8ª Jornada da
Sociedade Brasileira de Geriatria e Gerontologia sobre “moradia segura”?
Sabemos que uma casa para ser digna desse nome deve, obrigatoriamente,
proteger, abrigar, dar segurança ao ser humano, independente de idade ou
condição física. Ou deve deixar de ter o título de moradia...
O que mais explicaria a necessidade de estarmos aqui reunidos discutindo
como “fazer por consciência e não só para cumprir a lei”?
Mesmo reconhecidos pelo profundo engajamento nas lutas pela
redemocratização do nosso país, mesmo sonhando em mudar, pela
arquitetura, a sociedade, muitos de nós, arquitetos, quando pegamos a
lapiseira – hoje, o mouse – parecemos esquecer tudo isso e nos tornamos
antidemocráticos e excludentes no que é mais caro e específico da nossa
profissão: o desenho.
No projeto de uma edificação, por exemplo, o pequeno degrau na soleira ou
a estreita porta de banheiro, estampa aos olhos de todos que estamos
sendo seletivos. Será por ignorância que privamos uma parcela
significativa da população do usufruto dos espaços que projetamos?
(convém lembrar que muitos cadeirantes – especialmente os idosos – não
vencem sozinhos alturas superiores a cinco milímetros e que qualquer
cadeira de rodas tem mais de sessenta centímetros de largura).
Quando ampliamos nosso olhar da edificação à cidade, seguimos
esquecendo o ser humano e sua diversidade. Hoje, parece que o mais
importante é nos fazer cruzar de automóvel – em alta velocidade e sem
vínculos – os espaços urbanos. Citando o arquiteto argentino Luís
Grossman, “uma curiosa miopia limita a questão da mobilidade urbana ao
trânsito de veículos”. E os pedestres? Como atravessam essas autênticas
rodovias urbanas? De quando em quando, em faixas de segurança com
semáforos. Mas, até nesses pontos, o automóvel tem o seu privilégio
assegurado... De acordo com uma pesquisa sobre mobilidade urbana, a
‘velocidade de marcha’ utilizada para regular o funcionamento dos
semáforos de pedestres é de 1,2 m/s; os idosos, em média, dão passos a
0,4m/s. Ou seja, sem fazer grandes cálculos, pode-se concluir que um
idoso jamais chegará ‘do outro lado’ sem forçar o seu andar (como?). E
também podemos incluir nesse grupo que dificilmente chegará ‘do outro
lado’, entre outros tantos exemplos, alguém voltando do mercado com um
Encontro Mundial de Saúde e Tecnologia – FAZER POR CONSCIÊNCIA E NÃO SÓ PARA CUMPRIR A LEI – arquiteta Flavia Boni Licht
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carrinho de compras, uma gestante, um pai com um bebê no colo, uma
criança com o seu triciclo. E, certamente, um cadeirante.
Acredito que nos caberia, então, repensar e revisar esses conceitos –
preconceitos? – que foram nos distanciando do foco da nossa profissão. E,
apesar de sabermos, como nos ensinou Einstein, que é mais fácil
desintegrar um átomo que um preconceito, temos que
 criar uma nova consciência, desconstruindo o que aprendemos, para
que seja possível esquecer a idealização que nos leva a projetar para
um padrão humano inexistente;
 assumir efetivamente que a população é composta por pessoas
diferenciadas, cada um com as suas características e com
necessidades distintas e que todos têm os mesmos direitos;
 projetar ambientes amigáveis que compensem e não acentuem as
diferenças, ambientes que incluam e não excluam, propiciando
segurança, conforto e autonomia;
 implantar uma nova educação nas faculdades de arquitetura, para
que possa ser sempre renovado o compromisso ético dos arquitetos
com o bem-estar e o desenvolvimento do ser humano;
 cumprir leis e normas não por medo de multas, mas sim por acreditar
que elas nos dão o respaldo necessário para colocar a nossa
profissão a serviço da melhoria da qualidade de vida de todos;
 reclamar o direito a uma fiscalização exigente e qualificada que
conheça a legislação e que apóie a eliminação de barreiras
ambientais;
 aprender com o sociólogo argentino Eduardo Joly, que “a deficiência é
uma construção social, que se edifica diariamente nas relações entre as
pessoas, entre os grupos, no tecido urbano; a deficiência se constrói nas
decisões que tomamos, nas atitudes que assumimos, na forma que
estruturamos o entorno físico, social, cultural e ideológico no qual nos
desenvolvemos”.
Vale lembrar que em 1991, o órgão máximo da nossa profissão, o
Congresso Brasileiro de Arquitetos reunido em Belo Horizonte na sua 13ª
edição, aprovou, por unanimidade, moção em defesa de uma arquitetura
sem barreiras. Naquela ocasião, os arquitetos assumiam em conjunto que
“a deficiência só se manifesta por falhas da organização espacial em facilitar a
expressão das habilidades de cada indivíduo” e comprometiam-se em garantir
o respeito à diversidade humana na elaboração de seus projetos.
Passaram-se os anos e, em 2004 no Rio de Janeiro, os arquitetos mais
uma vez reunidos, quando do 17º Congresso Brasileiro, novamente por
unanimidade decidiram “reforçar a necessidade de adotar os princípios do
desenho universal, que visa atender a maior gama possível de pessoas, planejando
espaços e dimensões apropriados para a interação, o alcance e o uso de produtos
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em geral, independentemente do tamanho, postura ou mobilidade do usuário,
respeitando a diversidade física e sensorial entre as pessoas e as modificações
pelas quais passa o corpo do ser humano da infância à velhice ”.
De novo, belos conceitos, infelizmente traduzidos em pouca ação prática
efetiva. E, uma vez mais, nos vemos frente ao imenso abismo entre teoria e
prática. Para tentar vencê-lo – como bem nos sugere este tema do
Encontro Mundial de Saúde e Tecnologia, “fazendo com consciência e não
só para cumprir a lei” – talvez devêssemos ficar mais atentos ao que
afirmou o historiador de arte e prefeito de Roma do final dos anos 1970,
Giulio Carlo Argan:
“Nunca se projeta para, mas sempre contra alguém ou alguma
coisa: contra a especulação imobiliária e as leis ou autoridades que a
protegem, contra a exploração do homem pelo homem, contra a
mecanização da existência, contra a inércia do hábito e do
costume, contra os tabus e a superstição, contra a agressão dos
violentos, contra a adversidade das forças naturais; sobretudo,
projeta-se contra a resignação ao imprevisível, à desordem, aos
golpes cegos dos acontecimentos, ao destino”.
Brasília, 21 de setembro de 2006.
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