Portal RP-Bahia www.rp-bahia.com.br Hiperinflação: os casos da Hungria, Alemanha, Argentina e Brasil Marcello Chamusca Márcia Carvalhal Ao contrário do que a maioria das pessoas imaginam, a inflação é um elemento importante para o crescimento econômico de um país. Ela estimula a produção e dá fôlego ao mercado de bens e serviços. Contudo, deve ser controlada rigorosamente para estar sempre em níveis baixos e aceitáveis. Quando o governo perde o controle da inflação, ela pode transformar-se em hiperinflação, fenômeno que destrói completamente a economia de um país. Num ambiente com hiperinflação, o dinheiro perde o valor a cada dia e dependendo do nível que ela se encontre, essa perda pode acontecer até mesmo a cada hora. Passa a ser interessante para o trabalhador dispensar o seu salário e dar preferência a receber pelos serviços prestados mercadorias ou bens de primeira necessidade, como alimentos e roupas. Além disso, as pessoas começam a estabelecerem negócios através do escambo, porque a moeda perde totalmente seu valor. Situações inusitadas acontecem quando os governos tentam num ambiente de hiperinflação continuar a fazer circular a moeda nacional, pois, esse ambiente reflete a sua total impotência diante da derrota econômica do país. Isso porque, só é considerada uma hiperinflação quando há um descontrole geral de preços na economia e a taxa mensal de inflação atinge mais de 50%. Em países que adotam o sistema monetarista existem alguns fatores que podem contribuir para deflagrar e consolidar uma hiperinflação. Um desses fatores é a expansão da base monetária, ou seja, quando a quantidade de moeda em circulação aumenta. Para compreendermos melhor, vamos usar a equação quantitativa do valor da moeda: P= MV Q P = nível de preços M = montante de moeda em circulação V = velocidade de circulação da moeda Q = quantidade de bens e serviços transacionados Vamos imaginar que existem 500.000 de moedas circulando numa economia, que essas moedas passem na mão de 100.000 pessoas e tenhamos 200.000 produtos para vender: P1 = 500.000 x 100.000 = 200.000 50.000.000.000 200.000 = 250.000 Portal RP-Bahia www.rp-bahia.com.br Por algum motivo, o Banco Central emite mais 100.000 moedas, ou seja, aumenta a base monetária: P2 = 600.000 x 100.000 = 200.000 60.000.000.000 200.000 = 300.000 O nível de preços aumentou de 250 para 300 mil por causa do aumento da base monetária. Alguns fatores que determinam o aumento da base monetária são: superávit no balanço de pagamentos, déficit no governo, compra de títulos públicos, dentre outros. Além da expansão da base monetária existem outros motivos que podem influenciar no aumento generalizado de preços em uma economia, como, por exemplo, quando a procura passa a ser maior que a oferta, seja porque a oferta diminuiu, ou porque a demanda aumentou. Os preços também podem subir quando há aumento de custos para a produção de bens e serviços; quando existem monopólios e/ou oligopólios não estatais; quando os empresários de uma determinada industria se organizam em cartéis; ou ainda, quando a economia é indexada, ou seja, é atrelada a índices anteriores de inflação. Quem mais perde com a hiperinflação são os assalariados, pois, geralmente, eles recebem dinheiro uma vez por mês e nesse intervalo de tempo até receber o próximo salário seu dinheiro desvaloriza totalmente. Para tentar minimizar os efeitos dessa desvalorização, busca-se ao receber o dinheiro gastá-lo imediatamente na troca de bens e serviços que possam garantir sua sobrevivência durante o resto do mês corrente. Através do gráfico abaixo, vamos tentar entender o drama de um assalariado vivendo em um ambiente de hiperinflação. Digamos que um trabalhador receba seu salário no dia 03 de cada mês e que este mês ele receberá R$ 100,00. O ponto (a) se refere ao dia em que recebeu o salário e o ponto (b) se refere ao que ele precisaria ter na mão 18 dias depois para comprar a mesma coisa que ele comprava no dia em que recebeu o salário: Portal RP-Bahia www.rp-bahia.com.br Isso quer dizer que, em apenas seis dias, o seu salário estaria valendo a metade do que valia quando recebeu. Para evitar situações como essa. Todo país tem um Banco Central que através de uma política específica controla a sua base monetária, corrigindo possíveis distorções e adequando-a ao equilíbrio necessário a harmonia do seu sistema econômico. Contudo, historicamente existem muitos casos em que governos perderam o controle da situação e deixaram com isso o país mergulhar em altos índices de inflação, a chamada hiperinflação. Neste ensaio vamos abordar quatro casos de hiperinflação. A saber: • Alemanha, após a Primeira Guerra Mundial, em 1923; • Hungria, a maior hiperinflação de todos os tempos, em 1945-1946; • Argentina, • Brasil, no período final do Governo Sarney, em 1989. CASO ALEMANHA A Alemanha saiu da Primeira Guerra Mundial sem grandes perdas territoriais. A carga de dívidas e as reparações impostas pelo tratado de paz de Versailles é que foram os principais impactos negativos do conflito sobre esse país. Foi criada uma Comissão de Reparações pelos paises aliados. Em Londres no mês de maio do ano de 1921 essa comissão tomou a decisão do montante a ser pago pela Alemanha. Até esta data foram feitos "pagamentos de transição" em ouro e bens, que seriam descontados futuramente na conta das reparações. Além disso, a Alemanha perdeu sua marinha mercante, seu armamento, equipamentos industriais, principalmente peças e equipamentos de ferrovia, e carvão. Mais ainda, perdeu suas propriedades nos territórios cedidos, nas colônias, assim como seus investimentos no exterior. Jonh Maynard Keynes (1987), um dos principais críticos das reparações impostas a Alemanha, achava que o que estava sendo cobrado estava muito acima das possibilidades da Alemanha. O acordo, como previa Keynes, inviabilizou o balanço de pagamentos da Alemanha. O cronograma de pagamentos, estabelecido em 1921 para as reparações, representava quase 85% das suas exportações. Isso se deu, porque, a um só tempo, a Alemanha perdeu mercados que exportava as suas principais matérias primas, pelo fato delas estarem sendo usadas como parte do pagamento das dívidas e o que produziam não era suficiente para abastecer o mercado interno, sendo assim Portal RP-Bahia www.rp-bahia.com.br obrigada a aumentar suas importações. Todos esses fatores somados a muitos outros fatores da economia interna levaram a um aniquilamento da sua balança comercial. Por fim, tornou-se ainda mais grave a situação alemã face a virtual expulsão desse país do mercado internacional de crédito, impossibilitando o financiamento do déficit em conta corrente através da conta de capitais. (BASTOS & WILLCOX, 2000). A desestabilização do balanço de pagamentos que resultou do cumprimento do tratado de 1921 é agravada pela fuga para moeda estrangeira por parte dos alemães. A instabilidade econômica e uma taxa de juros interna baixa levaram os alemãs a procurarem investimento seguro em moeda estrangeira piorando ainda mais a situação do país. Em 1922 a Alemanha declarou a sua impossibilidade de pagar os termos fixados no acordo de 1921 e negociou uma moratória temporária de dois anos. Com a declaração de moratória, os investidores externos e internos juntaram-se num processo de especulação contra o marco, estimulada pela recusa do banqueiro americano Morgan em fornecer empréstimos à Alemanha enquanto a questão das reparações não fosse resolvida. Este processo de fuga de capital acaba levando a desvalorização da taxa de câmbio e a conseqüente aceleração da inflação. Então, neste momento, os mecanismos para o estabelecimento de uma espiral inflacionária de custos estavam assim: o movimento persistente de desvalorização da taxa de câmbio combinado com uma pressão para recuperação dos salários reais por parte dos sindicatos e associações de classe (BASTOS & WILLCOX, 2000). A Alemanha mergulhou então numa hiperinflação em 1923. Para se ter uma idéia do drama alemão, enquanto em 1920 eram precisos 40 (quarenta) marcos para comprar um dólar, no final de 1923 eram necessários 4.200.000.000.000 (quatro trilhões e duzentos bilhões) de marcos para se comprar o mesmo dólar. Só em abril de 1924, com o lançamento do Plano Dawes, que procurava estabelecer um programa de pagamentos das reparações que fosse factível para a Alemanha a hiperinflação foi debelada e o país encontrou novamente rumos econômicos estáveis. E, a partir deste momento o país foi reintegrado ao circuito de financiamento internacional. Conclusão do caso Alemanha No caso alemão de hiperinflação só houve estabilização de preços no momento em que o governo anunciou uma mudança radical, tanto no regime de política fiscal, quanto na política monetária. Foi criado um novo Banco Central, que chegou impondo limites rígidos ao montante de moeda que Portal RP-Bahia www.rp-bahia.com.br poderia circular na economia, adequado ao que o Reichbank estabeleceu como limite para descontar títulos do tesouro. Schacht, presidente do Reichsbank quando da estabilização, afirmava que a hiperinflação na Alemanha teve um problema central: “o fato do pagamento das transferências não poder ser resolvido com um ajuste fiscal dado que o superávit fiscal é um saldo em moeda local, e as transferências em moeda estrangeira”. O problema das transferências era exatamente que a capacidade de pagamento em moeda estrangeira dependia do superávit comercial e não da capacidade fiscal ou emissão de moeda. Portanto, o problema consistia em como obter divisas para fazer os pagamentos impostos pelas reparações, ou seja, uma questão ligada ao balanço de pagamentos e conseqüentemente a desvalorização cambial detonadora da espiral câmbio-salários (FRANCO, 1999). O caso da hiperinflação da Alemanha no começo do século passado teve uma repercussão muito grande devido a importância da economia alemã para os investidores internacionais, mas a maior hiperinflação de todos os tempos ocorreu na Hungria 22 anos depois do caso da Alemanha. CASO HUNGRIA A Hiperinflação da Hungria atingiu os maiores índices de toda a história da humanidade. O índice de inflação acumulado de julho de 1945 a agosto de 1946 atingiu o número aproximado de 400.000.000.000.000.000.000.000.000.000 % (quatrocentos octilhões por cento). Neste período, mesmo o governo envolvendo todas as gráficas do país na emissão de moedas conseguiu dar conta e no final as pessoas já estavam carimbando pedaços de papel com o valor de troca para resolver a situação. Para se ter uma idéia, em junho de 1946, o governo emitiu notas com valor facial de Pn$ 1.000.000.000.000.000.000.000,00 (um sextilhão de pengös). CASO ARGENTINA A Argentina foi a economia mais próspera da América Latina no período que se compreende entre as duas grandes guerras mundiais. Após a Segunda Guerra Mundial, com as novas configurações internacionais o cenário começou a mudar e o país mergulhou numa série de crises políticas e econômicas. Na década de 1980, a economia Argentina sofreu com uma crise muito intensa tendo o seu ápice em 1989, durante o governo Alfonsin, quando a hiper-inflação foi sentida fortemente pelo povo argentino. O aumento de preços dos produtos de consumo se agravava a cada dia e a classe Portal RP-Bahia www.rp-bahia.com.br trabalhadora muito politizada e com níveis de organização dentro dos padrões europeus, como forma de protesto contra a inércia do governo ante a situação, organizaram saques sistemáticos a estabelecimentos comerciais. A hiperinflação argentina não chegou a patamares tão altos quanto os das hiperinflações européias, mas serviu para trazer a tona muitas mazelas nacionais. No mesmo ano, o presidente Carlos Menem assumiu e debelou a inflação equiparando o peso ao dólar e em 1991, ele juntamente com Ministro das Finanças Domingo Cavallo, implementou o “currency board”, um sistema monetário em que o peso (a moeda corrente argentina) seria, permanentemente, indexada ao dólar. A introdução desse regime monetário significava que o governo do país garantiria que 1 peso poderia a qualquer momento ser trocado por 1 dólar americano. O regime funcionou até que vieram as crises do México, da Ásia e a mudança na política cambial brasileira que desvalorizou o real criando uma série de problemas para o vizinho sulamericano. CASO BRASIL Os efeitos do Plano Verão nas contas públicas e no sistema de preços do país, a lentidão do governo para reindexar a economia e o risco de que a falta de atitude das autoridades em relação ao processo de fuga de capital e de queima de reservas pudesse adiantar uma crise cambial acabaram provocando uma forte instabilidade na economia interna levando o país a um processo hiperinflacionário no final do governo Sarney. Como já foi dito no segundo parágrafo deste ensaio, a fronteira para uma hiperinflação foi fixada em 50% mensais, mas seu próprio inventor, Philip Cagan, economista da Universidade de Chicago, recentemente concluiu que não se deve fixar um patamar tão claro. Já Michael Bruno, um dos maiores especialistas em assuntos relativos a inflações e estabilizações do mundo, argumentava que o patamar que define uma hiperinflação deveria ficar em torno de 20% mensais, por que este índice é a fronteira a partir da qual a indexação é deflagrada e a trajetória de índices inflacionários ascendentes se torna irreversível. Baseando-se nesse critério, o Brasil esteve tecnicamente em hiperinflação durante os sete anos anteriores ao Plano Real, desde meados de 1987, após o fracasso do Plano Cruzado, a julho de 1994. Nesse período, o índice de 50% mensais foi ultrapassado apenas em algumas ocasiões, mas isso se deu tão poucas vezes porque tivemos quatro congelamentos de preços, através dos planos Bresser, Verão, Collor 1 e 2. Portal RP-Bahia www.rp-bahia.com.br Levando em consideração os casos históricos de hiperinflação na Europa dos anos 20 aos anos 40, alguns autores chegam a afirmar que não houve hiperinflação no Brasil. Contudo, os piores momentos nacionais em relação a cidadania aconteceram durante esse período de altos índices inflacionários. Muito se falou que a inflação acima dos patamares aceitáveis era a principal causa da desigualdade social no Brasil. De fato a hiperinflação nos permitiu enxergar outras mazelas nacionais como à cultura da especulação financeira, da esperteza, da "Lei do Gerson", além da exarcebação de elementos de traços culturais do nosso povo como a falta de educação no transito, a criminalidade organizada e a corrupção. O ambiente de hiperinflação é propício a todos esses males. Mesmo com índices considerados, por alguns, tão baixos que não se configurava uma hiperinflação, vejamos abaixo um exemplo prático do que acontecia no Brasil no final da década de 80. Observe o detalhe dos preços de uma antiga coleção de revista em quadrinho. São publicações com periodicidade mensal e os números são seqüenciais. Analisem a fantástica variação de preços: Acima; do numero 2 para o numero 3 subiu nada menos do que 55%.... Portal RP-Bahia www.rp-bahia.com.br Portal RP-Bahia www.rp-bahia.com.br Nessas últimas, do numero 1 para o 2 foi introduzida uma nova moeda... do numero 2 para o 9, ou seja, decorridos 9 meses, o preço, na nova moeda, subiu a bagatela de 5.185% (cinco mil, cento e oitenta e cinco, por cento). REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS Keynes, J.M. Las Consecuencias Económicas da Paz, Editorial Crítica, 1987. BASTOS, Carlos Pinkusfeld Monteiro; WILLCOX, Luiz Daniel. Aliados e alemães: as visões alternativas da hiperinflação alemã. Artigo acadêmico apresentado pelos autores na Unicamp –SP. Franco, G. Schacht: Aspectos Econômicos, em Schacht, H. Setenta e seis anos de minha vida, editora 34, 1999. BIBLIOGRAFIA Sargent, T. Os Finais de quatro grandes hiperinflações, in J. M. Rego (org), Inflação Inercial, Teorias sobre inflação e o Plano Cruzado, Paz e Terra, São Paulo, 1986. Franco, G. Moeda e cidadania. OESP 12.07.1999