Barros, Luiz Carlos Mendonça de. “A crise argentina e seu final dramático”. São Paulo: Folha de São Paulo, 27 de outubro de 2000. fsp 27-10 A crise argentina e seu final dramático LUIZ CARLOS MENDONÇA DE BARROS A sociedade argentina vive uma nova crise interna de graves proporções. A terceira em menos de um ano do governo De La Rúa. Ela iniciou-se com um escândalo no Senado, envolvendo denúncias de subornos para a aprovação de uma nova lei de liberalização do mercado de trabalho. A crise política acabou por levar o vice-presidente, representante da ala mais à esquerda da aliança que elegeu De La Rúa, a renunciar, por discordar da forma como o presidente tratou a questão. Da crise política à econômica foi um passo, o que obrigou o governo a tentar mais pacote, agora com o objetivo de livrar o país da profunda recessão em que está mergulhado. Os mercados reagiram com ceticismo às medidas anunciadas e empurraram o sistema de conversibilidade da moeda do país um pouco mais em direção ao precipício. A experiência da Argentina com um sistema cambial do tipo "currency board", no qual a emissão da moeda nacional está vinculada ao volume de reservas externas do país, precisa ser entendida em toda sua profundidade. O regime de convertibilidade do peso é praticamente igual ao velho e ultrapassado padrãoouro, que prevaleceu na primeira metade do século 20 e parecia ter sido sepultado definitivamente na crise monetária dos anos 70 nos Estados Unidos. Ele retorna na Argentina, como uma solução desesperada contra a hiperinflação que atingiu nosso vizinho no primeiro ano do governo Menem. Um exemplo clássico da utilização de uma medida extrema para resolver uma crise conjuntural insuportável para a sociedade e que acaba criando um problema estrutural futuro. Algo semelhante aconteceu na Alemanha da República de Weimar, por ocasião da hiperinflação do pósPrimeira Guerra Mundial. Os alemães, entretanto, foram ágeis e inteligentes. Fugiram da armadilha da moeda lastreada por terras do governo, pedra fundamental da estabilização, na primeira oportunidade que apareceu. Usaram o lastro de sua moeda nacional para dar credibilidade ao marco e, quando os preços se estabilizaram, pularam fora dessa amarra institucional. Já os argentinos, entusiasmados com o sucesso inicial do plano, preferiram acreditar no canto da sereia do padrão-ouro. Estão pagando até hoje por isso. Aliás, coisa muito semelhante ao que aconteceu aqui no Brasil no período 1997/1998 com a dupla Pedro Malan e Gustavo Franco. A lei de conversibilidade do peso corresponde, na prática, a atar a economia argentina à dos Estados Unidos. Isso em um momento em que esse país vive um dos momentos mais ricos de sua história. A dinâmica da chamada nova economia está criando um novo paradigma produtivo e de distribuição de bens e serviços que só existe nos EUA. Mesmo as nações mais avançadas tecnologicamente, como as principais economias da Europa, não conseguem acompanhar os ganhos de produtividade das empresas americanas e apelam para a desvalorização de suas moedas para manter seu parque produtivo em funcionamento. Não foi por outra razão que o euro desvalorizou-se em quase 30% em relação ao dólar durante os últimos dois anos. Na prática, o que os argentinos fizeram, ao vincular sua moeda ao dólar, foi algo como amarrar qualquer um de nós a um desses fantásticos corredores quenianos da maratona. Deixo para cada um dos leitores da Folha imaginar o que aconteceria em uma corrida de 5.000 metros nessa situação. É o que ocorre hoje na Argentina, país com uma infra-estrutura econômica atrasada, com uma indústria velha e ineficiente, que exporta basicamente produtos primários e que não pode desvalorizar. Só uma deflação brutal, o que se pode chamar de desvalorização para dentro, com queda de salários e preços de insumos e serviços, pode manter o setor produtivo funcionando. Mas nesse caso aparece o outro lado terrível dessa moeda: o desequilíbrio das contas fiscais pela queda da arrecadação de impostos em razão da redução da produção. Sugiro ao leitor interessado em uma leitura complementar sobre o que está acontecendo na Argentina de De La Rúa procurar um trabalho de Keynes sobre a Inglaterra nos anos 20, quando o governo conservador restaurou a paridade entre a libra e o dólar que prevalecia antes da Primeira Guerra Mundial. O resultado foi uma recessão brutal, que deu inicio à decadência terminal da vigorosa industria britânica de então. Sugiro essa releitura principalmente ao expresidente do Banco Central do Brasil Gustavo Franco, que declarou nesta última quarta-feira que a Argentina está em crise porque o governo De La Rúa é fraco. No caso inglês, com o sr. Winston Churchill como ministro do Tesouro, o governo era forte e manteve o timão firme por muitos anos. A sociedade argentina está cansada da recessão. As lembranças da hiperinflação são ainda muito fortes, mas o desânimo causado pelo desemprego, pela queda dos salários e, principalmente, pela falta de perspectiva domina hoje a opinião pública portenha. Em fins de 1999, elegeu-se um governo de oposição aos justicialistas de Menem, que prometia a estabilidade com crescimento econômico. O ano de 2000 iniciou-se com o compromisso de um crescimento de 4%; não vai chegar a 0,5%. Além de não cumprir com o prometido na campanha eleitoral, o governo tem hoje um discurso igual ao anterior: é preciso mais sacrifícios para que o nirvana do crescimento seja alcançado em 2001. Não é por outra razão que o presidente tem hoje apoio de menos de 40% da população. O ultimo pacote econômico, anunciado com o objetivo de restaurar o apoio perdido, é uma farsa. Apesar de toda a pompa e circunstância com que foi anunciado internamente, a reação dos mercados externos foi a pior possível. Nesse aspecto, as palavras do sr Gustavo Franco foram corretas ao refletir o sentimento de Wall Street: governo fraco e que não tem coragem de impor ao povo os sacrifícios necessários para a transformação estrutural da economia e da sociedade. Isso apesar de todas as reformas liberais que já foram conseguidas. Sem o apoio dos mercados, o governo está pagando hoje 20% a mais para captar recursos no mercado financeiro interno, já que o externo está praticamente fechado. A megaoperação realizada recentemente com um "pool" de bancos locais, pelo prazo de dois anos, vai custar 13% ao ano. A taxa de risco político associado aos papéis argentinos negociados no exterior superou a marca dos 900 pontos percentuais. Essa nova situação vai aumentar ainda mais o déficit fiscal previsto para 2001 via custo financeiro da dívida. E o ciclo vicioso vai se completar. O governo argentino deve começar a trabalhar seriamente em um plano para devolver à taxa de câmbio a flexibilidade que tem hoje nosso real. Será um processo doloroso, mas a única alternativa que, a longo prazo, devolverá à sociedade argentina o sentido do futuro. ------------------------------Luiz Carlos Mendonça de Barros, 57, engenheiro e economista, é sócio e editor do site de economia e política Primeira Leitura. Foi presidente do BNDES e ministro das Comunicações (governo FHC). Internet: www.primeiraleitura.com.br E-mail - [email protected]