antiguidade grega e contemporaneidade brasileira: o

Propaganda
Anais do I Simpósio de Linguística, Literatura e Ensino do Tocantins
ISBN: 978-85-63526-36-6
220
11 a 13 de Novembro de 2013 – UFT/Araguaína –TO
ANTIGUIDADE GREGA E CONTEMPORANEIDADE BRASILEIRA: O
PROCESSO DE DIDATIZAÇÃO DOS CONHECIMENTOS
LINGUÍSTICOS
Gilmar Ramos da Silva (mestrando UFT)
[email protected]
Luiz Roberto Peel Furtado de Oliveira (UFT)
[email protected]
Universidade Federal do Tocantins
RESUMO: Este artigo se propõe a apresentar um breve histórico sobre a formação da gramática visando
auxiliar a compreensão sobre a situação atual do ensino dos conhecimentos linguísticos em nosso país.
Para isto, com base principalmente em Neves (1987) e em Silva (1996) é realizado um breve percurso
sobre a formação do conhecimento linguístico na história do Ocidente, desde as primeiras e fragmentárias
reflexões sobre a linguagem entre os gregos até o estágio de sistematização dos conhecimentos
gramaticais que culmina com os gramáticos alexandrinos. Na sequência, é feito um apanhado do modelo
de ensino no Brasil do século XVI à atualidade, com especial destaque para o papel da gramática. Por
fim, através do cotejamento da história da formação do conhecimento gramatical no ocidente e da história
da disciplinarização da língua portuguesa no Brasil (RAZZINI, 2000; SOARES, 2012) é evidenciado que,
após vinte e três séculos de ensino gramatical pautado no modelo greco-romano, a partir do final do
século XX e começo deste terceiro milênio, uma nova concepção de lingu(agem) se apresenta,
demarcando o início de um novo paradigma.
PALAVRAS-CHAVE: gramática, paradigma, ensino.
ABSTRACT: This paper aims to present a brief history of the formation of grammar aiming to help the
understanding of the current situation of the teaching of language skills in our country. For this, based
mostly on Neves (1987) and Silva (1996) is performed a short route on the formation of linguistic
knowledge in Western history, from the first and fragmentary reflections on language from the Greeks to
the stage of systematization of grammatical knowledge that culminates with the Alexandrian
grammarians. Following, an overview is made of the teaching model in Brazil sixteenth century to the
present, with special emphasis on the role of grammar. Finally, through the mutual comparison of the
formation of grammatical knowledge in the West and the history of the disciplining of the Portuguese
language in Brazil (RAZZINI, 2000; SOARES, 2012) is shown that , after twenty-three centuries of
grammar teaching guided the Greco-Roman model, from the end of the twentieth century and the
beginning of this third millennium, a new conception of Language appears, marking the beginning of a
new paradigm.
KEYWORDS: grammar, paradigm, teaching.
Realização
Apoio
Anais do I Simpósio de Linguística, Literatura e Ensino do Tocantins
ISBN: 978-85-63526-36-6
221
11 a 13 de Novembro de 2013 – UFT/Araguaína –TO
Introdução
Já dizia Auroux (2009, p. 12) que “sem memória e sem projeto simplesmente não há
saber”. O saber, para o autor, ao contrário do que se pensa frequentemente, não destrói o seu
passado, mas traz o fundamento para a ação do presente e constrói o alicerce do futuro. É
alicerçado neste pensamento que compreendemos que um campo epistemológico somente pode
ser compreendido em profundidade quando examinamos seus fundamentos e seu percurso
histórico ao longo do tempo, com um olhar transdisciplinar que dialoga com um primeiro saber
de referência: o histórico (Cf. ROJO, 2008). Trazendo a questão para o tema que aqui nos
interessa – a gramática e sua didatização ao longo do tempo – convém convocarmos para o
diálogo a voz de Neves (1987, p. 15) para quem “a gramática tradicional constitui uma exposição
de fatos que tem sido examinada sempre como obra acabada” com uma visão pré-concebida que
oblitera a visão do pesquisador. Tentando minimizar esta obliteração o presente artigo se propõe
a apresentar uma breve exposição sobre a gênese da tradição gramatical que fundamenta o
trabalho escolar há vinte e três séculos (SILVA, 1996), constituindo-se numa tradição. Tradição
esta que a partir das últimas décadas do século XX, começou a dar espaço a uma nova forma de
compreensão sobre a língua(gem), evidenciando o surgimento de um novo paradigma.
Da Grécia a Roma: gênese e sistematização do conhecimento gramatical
A linguagem entra no pensamento grego subordinada à questão que marca a transição
entre o pensamento mítico e o filosófico na antiguidade grega (MARTINS, 2009). O início da
reflexão filosófica ou “começo da filosofia” (PLATÃO, 2001, p. 155) nasce com uma mudança –
ocorrida ao longo de várias eras – de postura do homem grego, que deixa de recorrer ao
sobrenatural presente nas lendas e narrativas tradicionais como meio de compreensão do mundo
a sua volta. Contrapondo-se ao fictício, ao imaginário e ao mítico, cujas respostas já não mais
satisfaziam o homem, este pensar filosófico demarca e reivindica para si um território legítimo
para a busca da verdade. A verdade seria encontrada, de acordo com o pensamento grego de
então, através de um processo de busca pela identificação da unidade do mundo, por meio do
princípio (arché) de todas as coisas (a água, para Tales; algo não natural, ilimitado, para
Realização
Apoio
Anais do I Simpósio de Linguística, Literatura e Ensino do Tocantins
ISBN: 978-85-63526-36-6
222
11 a 13 de Novembro de 2013 – UFT/Araguaína –TO
Anaximandro; o logos, para Heráclito): uma busca que, em algum momento deste percurso,
dirige o olhar dos filósofos gregos para a linguagem.
De acordo com Neves (1987) as primeiras reflexões na cultura ocidental acerca da
linguagem e do conhecimento estão registradas nas obras de Homero, Hesíodo, Píndaro,
Heráclito e Parmênides. Este pensadores, que viveram entre os séculos IX e V a.C. deixaram
marcado em seus escritos os primeiros esforços de compreender o logos, termo que, segundo
Neves (1987) remete a linguagem, pensamento, razão, discurso. Através dos escritos destes
pensadores, o pensamento grego parte de uma compreensão em que se confundem palavra e ação
humana para uma progressiva desvinculação entre o ser e a linguagem.
A evolução do estatuto da linguagem no pensamento grego está diretamente relacionada
ao alcance de uma posição privilegiada pelo povo grego, que a partir do século V entra em um
período de apogeu, tornando-se referência nos campos político, militar, social, econômico e
cultural (período denominado helênico). Entre os gregos há uma grande valorização do logos,
seja através da linguagem poética (oriunda das musas inspiradoras, segundo se pensava), seja
através da retórica (base da oratória política desenvolvida na ágora). Neste contexto o
pensamento racional grego de entendimento sobre o mundo se bifurca e polariza dois modos de
compreensão que se antagonizam, dando início a uma grande questão entre dois grupos de
filósofos reconhecidos por sofistas e socráticos. Os sofistas comungam sobre um ponto
importante em relação à linguagem: a “verdade” é o que o discurso declara1, sendo este absoluto
e aquela relativa. Como nos diz Neves (1987, p. 40) para os sofistas “não importa ter razão e
defender uma causa justa, mas importa saber fazer ver como justa a causa que o discurso
defende”. Tal declaração evidencia claramente uma preocupação em compreender a linguagem,
motivo pelo qual os sofistas empreenderam esforços e desenvolveram técnicas de ensinoaprendizagem relativas ao conhecimento da poesia e à capacidade de distinguir entre o bom e o
mau poeta (poética) e também direcionadas à produção de belos discursos (retórica). A aplicação
à forma linguística exterior e o consequente isolamento das entidades linguísticas, embora
tivessem apenas fins retóricos ou exegéticos nos estudos sofistas, constituiriam no futuro as
bases sobre as quais seriam iniciados os primeiros estudos de cunho propriamente gramaticais.
1
Como nos diz Silva (1996, p. 15): “A sofística associou à denominação o falar a verdade, ou seja, o discurso que
se cumpre pela sua eficácia, decorrendo daí o desenvolvimento da retórica no âmbito da sofística”.
Realização
Apoio
Anais do I Simpósio de Linguística, Literatura e Ensino do Tocantins
ISBN: 978-85-63526-36-6
223
11 a 13 de Novembro de 2013 – UFT/Araguaína –TO
Até aqui percebemos algum avanço apresentado pelos sofistas em relação à linguagem, embora
este avanço tenha sido limitado mediante a visão de linguagem que o grupo apresentava
(linguagem fechada = verdade).
Esta forma de entender a linguagem é rompida pelo mais célebre discípulo de Sócrates:
Platão (428-7 – 348-7 a.C.), para quem “a linguagem conduz a alguma coisa que não ela mesma
e, portanto, o discurso pode dizer ou não dizer a verdade” (NEVES, 1987, p. 47). Nas obras
Teeteto e Fédon há o tratamento de forma indireta da questão linguística, mas é no Sofista e no
Crátilo que Platão marca uma divisão fundamental nos estudos de linguagem ao examinar a
adequação entre o que se diz e a coisa dita, procurando chegar ao âmago da natureza da
linguagem. Inaugura-se, desta forma, o uso dialético do discurso (em contraposição ao uso
retórico empregado pelos sofistas), dissociando-se a realidade e a linguagem, esta última é
realçada a objeto de investigação. Como nos diz Neves (1987), Platão “apresenta a linguagem
como objeto de estudo, verdadeiramente” (p. 40).
Aristóteles também entende a linguagem como desvinculada do real, podendo ou não
representar a verdade. Para o filósofo há uma coincidência entre a estrutura da linguagem
universal do pensamento e a estrutura do real (MARTINS, 2009), o que configuraria uma
isomorfia entre o plano do real, o plano dos conceitos e o plano das palavras, ou seja,
examinando-se a linguagem chega-se ao âmago da realidade. Esta forma de pensar faz com que
Aristóteles empreenda um estudo profundo e sistematizado das estruturas linguísticas,
percorrendo um caminho que vai das letras em direção às sílabas e palavras e culmina com as
sentenças ou proposições.
A herança platônico-aristotélica à linguagem é seguida pela contribuição dos estoicos, cujos
trabalhos são desenvolvidos em um longo tempo que se inicia no século III a. C. e perdura até o
século II a. C., abarcando um período que em uma extremidade se define pela reflexão
puramente filosófica e na outra ponta se caracteriza pela sistematização gramatical e pelo
surgimento da gramática como disciplina aplicada.
O período de apogeu da civilização grega, denominado helênico, tem fim a partir do
século II a.C. e em seu lugar nasce a civilização helenística, resultante da fusão entre a cultura
grega e a cultura do Oriente, principalmente persa e egípcia. Esta mistura de povos (grega, persa
e egípcia) trouxe aos gregos a preocupação de preservar sua cultura e, por extensão, sua língua.
Realização
Apoio
Anais do I Simpósio de Linguística, Literatura e Ensino do Tocantins
ISBN: 978-85-63526-36-6
224
11 a 13 de Novembro de 2013 – UFT/Araguaína –TO
Desta forma, os gregos empreenderam com maior afinco uma sistematização das regras da
língua considerada como o grego modelar, através da observação e descrição dos textos
literários, dentre os quais se destacavam as obras de Homero. Esta linguagem-modelo devia ser
ensinada, preservada, em um franco movimento de combate às formas bárbaras de utilização da
língua na época. Nas palavras de Neves (1987, p. 266): “O helenismo precisa ser divulgado, a
língua grega tem de ser ensinada para ser preservada. (...). Agora a necessidade de exposição dos
padrões por se seguirem leva ao estabelecimento dos quadros da gramática”.
Silva (1996, p. 18), relata que “é nessa época, portanto, que se codifica mais ou menos
definitivamente o que veio a chamar-se de gramática tradicional”. Da situação cultural acima
exposta, resultou a natureza gramatical: “limitação à língua escrita, especialmente à língua do
passado, mais especificamente à língua literária (...). Nem interessava a língua coloquial nem
quaisquer línguas de outros povos” (NEVES, 1987, p. 105).
O exame metódico e específico sobre a linguagem grega, realizado durante o período
helenístico, constitui o início da sistematização gramatical. De acordo com Neves (1987) os
Alexandrinos (dentre os quais se destacam Dionísio, o trácio; e Apolônio Díscolo), por terem se
libertado da tradição filosófica, passaram para o terreno da fenomenologia em si, por meio de um
estudo mais prático, voltado para a analogia das formas externas e fundaram o modelo do que
seria mais tarde a gramática ocidental tradicional. Através da contribuição dos Alexandrinos, a
gramática se desvincula definitivamente de seu caráter filosófico e alcança a sistematização (Cf.
NEVES, 1987; AUROUX, 2009). Silva (1996) informa que coube a Varrão (I século a. C.) a
primazia na elaboração de uma gramática de língua latina, ato que se difundirá a partir de então,
atingindo seu auge no Renascimento. Auroux (2009), ao estudar o desenvolvimento das
concepções linguísticas europeias relata que no período compreendido entre o século V e o
século XIX, ocorre uma gramatização2 massiva das línguas do mundo, a partir de uma só
tradição linguística inicial: a greco-latina.
2
Para Auroux (2009, p. 65) “por gramatização deve-se entender o processo que conduz a descrever e a instrumentar
uma língua na base de duas tecnologias, que são ainda hoje os pilares de nosso saber metalinguístico: a gramática e
o dicionário”.
Realização
Apoio
Anais do I Simpósio de Linguística, Literatura e Ensino do Tocantins
ISBN: 978-85-63526-36-6
225
11 a 13 de Novembro de 2013 – UFT/Araguaína –TO
O ensino no Brasil do século XVI à contemporaneidade: o papel da gramática
Compreender o papel desempenhando pela gramática e a constituição da disciplina
escolar língua portuguesa no contexto da educação brasileira passa necessariamente pelo
conhecimento de que à época do descobrimento do Brasil a nação portuguesa respirava os ares
da Idade Média e preservava os valores deste período (CASAGRANDE, 2004), valores, estes
que foram repassados para as colônias portuguesas. O pensamento filosófico-cristão originário
da Idade Média possui a denominação de escolástica, doutrina que tem suas bases na
problemática da relação entre a fé e a razão e que representa o último período do pensamento
cristão, que vai do início do século IX ao fim do século XVII.
Originárias deste modelo medieval de ensino adotado pela nação portuguesa, as práticas
escolares desenvolvidas no Brasil Colônia tinham por base a Ratio atque Estudiorum Societatis
Lesu, documento geral de regras e sistematização dos estudos. Germinada no pensamento
eclesiástico, a Ratio Estudiorum (publicada em 1599) trazia todos os princípios de organização
primária e secundária dos seminários e colégios. O documento estabelecia as diretrizes da
educação jesuíta até regras práticas sobre a ação pedagógica e a organização administrativa.
Entre as diretrizes estabelecidas pela Ratio Estudiorum destacamos a prescrição de realizar todas
as atividades – curriculares e extracurriculares – com o Latim e não na língua vernácula. Em
consonância com as diretrizes ecumênicas, o ensino do Brasil Colônia, fortemente clássico e
humanista, tinha por base o trivium (gramática, retórica e dialética) e o quadrivium3.
A gramática, portanto, esteve presente no currículo escolar do Brasil desde as primeiras
práticas jesuíticas desenvolvidas no século XVI; mas uma gramática da língua latina, pois a
língua portuguesa somente entraria no currículo no século XIX, conforme nos apontam os
estudos de Razzini (2000). De acordo com Soares (2012) nos primeiros séculos da história
brasileira a língua portuguesa era utilizada apenas nas escolas menores, como instrumento de
alfabetização. Cumprido o período de compreensão do sistema de escrita alfabético passava-se
diretamente ao estudo da gramática latina, da retórica e da poética, configurando-se de forma
inequívoca um currículo de base clássica, herdada do trivium medieval. Mas se a retórica, a
3
Conforme Rojo (2000) na Idade Média as sete artes liberais se subdividiam em dois grupos: o quadrivium –
dedicadas ao estudo da natureza representada pelos números; e o trivium – composto pelas disciplinas que se
ocupavam do discurso, da palavra.
Realização
Apoio
Anais do I Simpósio de Linguística, Literatura e Ensino do Tocantins
ISBN: 978-85-63526-36-6
226
11 a 13 de Novembro de 2013 – UFT/Araguaína –TO
poética e a gramática tiveram um papel importante no ensino brasileiro em seus primeiros
séculos de existência, à gramática coube uma participação privilegiada dentre as três, conforme
nos aponta Marinho (2000): “Inaugurando o aprendizado escolar, a Gramática latina permaneceu
sozinha desde o século XVI até o XIX, convivendo com a Gramática portuguesa somente a partir
do século XVIII”.
No século XVIII, movido por interesses econômico-políticos, o Marquês de Pombal
implementa uma série de reformas visando levar a nação portuguesa a reviver o período áureo do
século XVI. Entre suas ações, Pombal implanta uma política monolíngue que trouxe a condição
necessária para o estabelecimento da disciplina língua portuguesa como componente curricular.
Mas as alterações didático-pedagógicas, na prática, se realizam de forma processual e ao longo
de um amplo período. O ensino da gramática da língua portuguesa, embora a partir de então
precedesse o ensino da gramática da língua latina, se constituía, pelo menos no início, em uma
disciplina de caráter quase que instrumental para esta última, conforme podemos verificar no
excerto abaixo:
Para que os Estudantes vão percebendo com mais facilidade os princípios da
Gramática Latina, é útil que os Professores lhes vão dando uma noção da
Portuguesa; advertindo-lhes tudo aquilo, em que tem alguma analogia com a
Latina. (CUNHA, 1985, p. 73 apud SOARES 2012, p. 147).
A escolarização da disciplina língua portuguesa no Brasil, portanto, é marcada pelo
binômio latim-português, sendo o professor de latim o responsável pela entrada dos conteúdos de
língua portuguesa no currículo escolar brasileiro (cf. SOARES, 2012).
A partir do século XVII o latim sofre uma paulatina perda de importância na forma de
interação entre as pessoas cultas do cenário europeu e este processo influenciou as colônias
europeias quanto ao fortalecimento da língua e literatura nacionais. No Brasil, esta mudança é
sentida bem mais tarde, conforme nos aponta Razzini (2000, p. 39), ao falar da educação no
oitocentismo brasileiro: “A gramática geral (...) parece ter orientado o ensino de língua
portuguesa durante quase todo o século XIX, comparando o vernáculo com o latim”. A presença
da língua latina também é confirmada no seguinte trecho: “As denominações gramática geral e
Realização
Apoio
Anais do I Simpósio de Linguística, Literatura e Ensino do Tocantins
ISBN: 978-85-63526-36-6
227
11 a 13 de Novembro de 2013 – UFT/Araguaína –TO
gramática filosófica apareceram nos programas do Colégio Pedro II4 até 1879” (RAZZINI, loc.
cit.). A perda da influência da língua latina em nosso país somente se concretizou de forma
definitiva no século XX, quando esta disciplina foi excluída do currículo do ensino fundamental
e médio (SOARES, 2012). O enfraquecimento do estudo da gramática da língua latina foi
acompanhado de um progressivo fortalecimento da gramática da língua portuguesa, o que
contribuiu para que a língua portuguesa conquistasse autonomia como disciplina curricular.
Todavia, o fortalecimento da gramática também trouxe problemas, pois o ensino de língua
portuguesa acabou por reduzir-se, na prática de muitos professores, ao ensino da sistematização
gramatical, conforme constatado por Batista (1997). Mas o processo de democratização de
acesso da população ao ensino, pautado no desenvolvimento do capitalismo e na expansão
industrial, tidos, na ditadura militar, como o caminho necessário a ser trilhado pelo Brasil; traz
para a escola um novo perfil de alunado – marcado pela heterogeneidade nos letramentos, nas
variedades dialetais – e também um novo perfil de professor cuja profissão “antes conferia status
às moças de classe média e alta; agora, a ascensão social para os que pertencem à classe mais
pobre da sociedade” (CLARE, 2002, s.p.). Estas mudanças tornam ainda mais evidentes uma
grande distância entre o ensino e a efetivação da aprendizagem, que, duramente criticada, aos
poucos apresenta algumas modificações no bojo das novas teorias de referência, dentre as quais
se destacam a teoria da comunicação, da recepção e da psicologia da criatividade. Contudo, a
gramática continua apresentando-se de forma descontextualizada em relação ao ensino da leitura
e da escrita, com enfoque em conteúdos calcados no exótico ou erudito, distantes, portanto, da
língua em uso. A situação começa a mudar em meados dos anos 70, com a virada pragmática da
linguística no Brasil, que, juntamente com outros estudos, configurou esta década e as seguintes
como de grande proliferação de propostas concernentes ao aprendizado da língua materna.
Conforme Bunzen (2009, p. 89), um dos enfoques desta mudança relaciona-se a uma indagação
sobre a forma como o ensino dos conhecimentos linguísticos poderia ser efetivado:
Desde os anos 1970, ganhou força a discussão sobre o ensino-aprendizagem de
língua materna, proporcionada por estudos sobre: a psicogênese da língua
escrita, o fenômeno da variação linguística, a aquisição da língua oral e escrita,
4
“Lembremo-nos aqui de que, desde meados do século XIX, era ao Colégio de Pedro II que cumpria a tarefa de
determinar quais seriam os programas de exame e, assim definidos eram eles difundidos por todas as poucas escolas
oficiais brasileiras” (FÁVERO & MOLINA, 2006).
Realização
Apoio
Anais do I Simpósio de Linguística, Literatura e Ensino do Tocantins
ISBN: 978-85-63526-36-6
228
11 a 13 de Novembro de 2013 – UFT/Araguaína –TO
as interrelações entre a modalidade oral e escrita, o ensino de gramática e sua
relação com a reflexão sobre a língua, a textualidade e os gêneros textuais, as
práticas de letramento escolar, entre outras questões. Um dos focos dessa
discussão foi o que, por que e como trabalhar no ensino de língua materna, com
destaque para o porquê e o como praticar novas formas de refletir sobre os
conhecimentos linguísticos.
Dentre estas novas teorias uma que marcadamente contribuiu para a configuração de um
novo paradigma – ou uma revolução científica, nos termos de Kuhn ([1962], 2003) – foi a
proposta fundada por Mikhail Bakhtin e seu Círculo Linguístico, pois através dela a língua é
finalmente desenclausurada do sistema abstrato de formas a que estava submetida desde a
tradição greco-latina. Uma tradição revisitada, na história da língua portuguesa, pelas gramáticas
produzidas no período que se estende do século XVI até nossos dias. A quebra de paradigma
capitaneada por Bakhtin consiste na vinculação das interações verbais às interações sociais mais
amplas, ou seja, na postulação de que modificações sócio-histórico-ideológicas acarretam em
modificações na língua. O contexto atual, resultante deste novo paradigma, se alicerça em uma
concepção sociointeracionista de língua. Dentro desta concepção, o tratamento dos
conhecimentos linguísticos apresentou um avanço significativo a partir da proposta fundadora de
Geraldi (1984), que propôs o termo análise linguística. Este novo termo, segundo o pesquisador,
“não se deve ao mero gosto por novas terminologias” (GERALDI, 1997, p. 74), mas indica uma
“nova perspectiva de reflexão sobre o sistema linguístico e sobre os usos da língua, com vistas ao
tratamento escolar de fenômenos gramaticais, textuais e discursivos” (MENDONÇA, 2006, p.
205). Além da ampliação dos objetivos de ensino5, as principais mudanças advindas com a
proposta da análise linguística podem ser resumidas nos seguintes pontos6: a) substituição da
desarticulação pela articulação deste eixo com os demais eixos da leitura e da produção
(incluindo-se o trabalho com a forma oral – antes desprestigiada – ao lado da forma escrita); b)
5
Como diz o próprio Geraldi (1997, p. 74): “A análise linguística inclui tanto o trabalho sobre as questões
tradicionais da gramática quanto questões amplas a propósito do texto, entre as quais vale a pena citar: coesão e
coerência internas do texto; adequação do texto aos objetivos pretendidos; análise dos recursos expressivos
utilizados (metáforas, metonímias, paráfrases, citações, discursos direto e indireto, etc.); organização e inclusão de
informações, etc”.
6
Para uma compreensão mais detalhada entre a proposta fundamentada na gramática e a nova proposta denominada
análise linguística, vide excelente artigo de Mendonça (2006) intitulado Análise linguística no ensino médio: um
novo olhar, um outro objeto.
Realização
Apoio
Anais do I Simpósio de Linguística, Literatura e Ensino do Tocantins
ISBN: 978-85-63526-36-6
229
11 a 13 de Novembro de 2013 – UFT/Araguaína –TO
substituição da focalização excessiva no exótico e/ou erudito pelo trabalho com conteúdos
voltados à proficiência linguística, ou seja, privilegiando-se as formas linguísticas usuais.
Esta nova proposta, embora já conte com algumas décadas de existência e, apesar de
institucionalizada oficialmente nos anos 90 (através de documentos como os Parâmetros
Curriculares Nacionais e o Programa Nacional do Livro Didático), ainda apresenta muitas
lacunas na aplicação da prática pedagógica, que, hoje, conta com um professor cheio de
indagações quanto à forma de realizar na prática didática a integração dos eixos; a progressão
dos conteúdos; quanto ao uso ou não de terminologia técnica nas séries iniciais (se sim, em que
medida e quando); quanto ao modo mais profícuo (dedutivo? indutivo? a depender das
especificidades da situação real de ensino?) de garantir ao aluno a sistematização dos
conhecimentos linguísticos. Como nos diz Bunzen (2009, p. 95), “a dificuldade é que apenas
começam a se consolidar propostas claras relativas à análise linguística dos usos da língua nos
diversos gêneros que emergem das práticas sociais de linguagem”.
Vivemos, portanto, um momento único de mudança de paradigma que tem reflexos
diretos na didática dos conhecimentos linguísticos. Um momento marcado pelo hibridismo de
práticas do modelo greco-romano com as do sócio-interacionismo discursivo. Este hibridismo
revela um professor cuja prática é marcada por dúvidas, com passos adiante e atrás em seu fazer
didático-metodológico. Afinal, a nossa razão não encontra resposta para todas as perguntas
brotadas do atual momento da prática educativa relacionada aos conhecimentos linguísticos. E
isto ocorre porque, como dizia Hegel ([1918], 1997) em Princípios da Filosofia do Direito: a
coruja de Minerva alça seu voo somente com o início do crepúsculo7.
Considerações Finais
O mundo ocidental, depois de vinte e três séculos vivenciando o paradigma gramatical de
ensino de língua oriundo da raiz cultural greco-romana, alicerçado na construção de habilidades
de análise estrutural da língua, vem passando, neste final de século XX e início de terceiro
milênio, por uma reestruturação paradigmática que tem balançado as bases educacionais antes
7
Em outras palavras: nossa razão terá maior capacidade de compreender o fenômeno que hoje se processa –
mudança de paradigma e implicações para a didática dos conhecimentos linguísticos – quanto maior for a distância
temporal entre o início deste processo de reorganização de práticas educativas e o momento de reflexão
empreendida.
Realização
Apoio
Anais do I Simpósio de Linguística, Literatura e Ensino do Tocantins
ISBN: 978-85-63526-36-6
230
11 a 13 de Novembro de 2013 – UFT/Araguaína –TO
marcadas por uma longa fase de estabilização. Neste processo (considerando-se a prática
educativa e materiais didáticos que a alicerçam), embora o aspecto lógico-filosófico-normativo
não tenha saído completamente de cena, emergem os (novos) conteúdos fluidos dos campos
discursivo-textuais e também novas práticas de ensino, caracterizadas fundamentalmente pelo
trabalho com a linguagem em uso, através de uma metodologia construtiva/reflexiva fundada na
indução. Novos elementos que certamente, trazem/trarão significativo avanço nas práticas
educativas, auxiliando no enfrentamento dos desafios da contemporaneidade na construção da
cidadania.
Referências Bibliográficas
ANTUNES, Irandé. No meio do caminho tinha um equívoco: Gramática, tudo ou nada. In:
BAGNO, M. Linguística da norma. São Paulo: Loyola, 2012.
AUROUX, S. A revolução tecnológica da gramaticalização. Campinas, São Paulo: Editora da
Unicamp, 2009.
BATISTA, A. A. G. Aula de português: discurso e saberes escolares. São Paulo: Martins
Fontes, 1997.
BUNZEN, Clécio. Conhecimentos linguísticos na escola: como os livros didáticos vêm
caminhando neste terreno nebuloso? In: COSTA VAL (org.). Alfabetização e língua
portuguesa: livros didáticos e práticas pedagógicas. Belo Horizonte: Autêntica/CEALE, 2009.
CLARE, N. A. V. (2002). 50 anos de ensino de língua portuguesa. (1950-2000). Anais do VI
Congresso Nacional de Linguística e Filologia, Cadernos do CNLF, Série VI, Leitura e Ensino
de Línguas, s./p. Fonte: http://filologia.org.br/vicnlf/anais/caderno06-05.html. Acessado em: 23
jul 2013.
CASAGRANDE, N. S. A Gramática da Linguagem Portuguesa de Fernão de Oliveira:
desvelando a relação entre gramática e ensino no século XVI. In: BASTOS, N. B & PALMA, D.
V. (orgs.). História entrelaçada: a construção de gramáticas e o ensino de língua portuguesa
dos séculos XVI ao XIX. Rio de Janeiro: Lucerna, 2004.
FÁVERO, L. L; MOLINA, M. A. G. As concepções linguísticas no século XIX: a gramática
no Brasil. Rio de Janeiro: Lucerna, 2006.
GERALDI, J. W. Unidades básicas do ensino de português. In: GERALDI, J. W. (org.). O texto
na sala de aula. São Paulo: Ática, [1984]1997.
HEGEL, G. W. F. Princípios da Filosofia do Direito. Tradução, Orlando Vitorino. São Paulo:
Martins Fontes, 2000.
KUHN, T. A estrutura das revoluções científicas (1962). São Paulo: Perspectiva, 2003.
MARINHO, M. A Língua Portuguesa nos currículos de final de século. In: BARRETO, E. S. S.
Os currículos do ensino fundamental para as escolas brasileiras. São Paulo: Fundação Carlos
Chagas, 2000.
Realização
Apoio
Anais do I Simpósio de Linguística, Literatura e Ensino do Tocantins
ISBN: 978-85-63526-36-6
231
11 a 13 de Novembro de 2013 – UFT/Araguaína –TO
MARTINS, H. Três caminhos na filosofia da linguagem. In: MUSSALIM, F. & BENTES, A. C.
(orgs.). Introdução à Linguística vol. 3: fundamentos epistemológicos. São Paulo: Cortez,
2009, pp. 439-473.
MENDONÇA, M. R. S. Análise linguística no ensino médio: um novo olhar, um outro objeto.
In: BUNZEN, M.; MENDONÇA, C. (Orgs.). Português no ensino médio e formação do
professor. São Paulo: Parábola, 2006.
NEVES, M. H. M. A vertente grega da gramática tradicional. São Paulo: HUCITEC, Editora
Universidade de Brasília, 1987.
PLATÃO. Crátilo. In: Teeteto – Crátilo; tradução de Carlos A. Nunes. 3ª. Ed. Belém,
EDUFPA, 2001.
RAZZINI, M. P. G. O espelho da nação: a Antologia nacional e o ensino de português e de
literatura (1838-1971). Tese de doutorado. Campinas/IEL/UNICAMP, 2000.
ROJO, R H. R. Gêneros de discurso/texto como objeto de ensino de línguas: um retorno ao
trivium? IN: SIGNORINI, I (org.). [Re]Discutir texto, gênero e discurso. São Paulo: Parábola
Editorial, 2008.
ROJO, R H. R. A prática da linguagem em sala de aula. São Paulo: Educ; Campinas, Mercado
de Letras, 2000.
SILVA, R. V. M. Tradição gramatical e gramática tradicional. São Paulo: Contexto, 1996.
SOARES, Magda. Português na escola: história de uma disciplina curricular. In: BAGNO, M.
Linguística da norma. São Paulo: Loyola, 2012.
ZANON, M. e FACCINA, R. L. S. A Arte da Gramática da Língua Portugueza, de Reis Lobato,
e sua contribuição para o ensino do português do Brasil do século XVIII. In: BASTOS, N. B &
PALMA, D. V. (orgs.). História entrelaçada: a construção de gramáticas e o ensino de
língua portuguesa dos séculos XVI ao XIX. Rio de Janeiro: Lucerna, 2004.
Realização
Apoio
Download