X JORNADAS SOBRE ALTERNATIVAS RELIGIOSAS EN AMÉRICA LATINA “Sociedad y Religión en el Tercer Milenio” Asociación de Cientistas Sociales de la Religión en el Mercosur Área Temática: Religiones afroamericanas Axé, aperê e ori: notas sobre as bases da corporeidade afro-brasileira. Luís Felipe Rios Doutorando em Saúde Coletiva (IMS-UERJ) Av. Mem de Sá, n.º 72, apt.º 414, Centro, Rio de Janeiro – RJ Fone: (21) 221 20 86 E-mail: [email protected] Outubro, 2000 A XÉ, APERÊ E ORÍ: NOTAS SOBRE AS BASES DA CORPOREIDADE AFRO-BRASILEIRA Luís Felipe Rios * Nossa proposta nesta comunicação é a de buscar, junto aos grupos religiosos afrobrasileiros, outras vias, outras apreensões, sobre o que seria esse nosso objeto de estudo: o corpo. Com efeito, o termo corpo está carregado do sentido com que a sociedade ocidental o concebe e concebe a si própria. Assim, problematizando o nosso objeto, recolocamos, na esteia de Le Breton, a nossa questão em um outro nível, qual seja: como os diferentes grupos sócio-culturais pensam o enraizamento do ator na sociedade - corporeidade. Observando os grupos afro-brasileiros a partir do conceito de corporeidade, vimos se configurar um tripé que sustentaria a existência dos seres no mundo: o aperê-suporte, o ori-pessoalidade e o axé-energia. Tomando esta noção como ponto de partida, nossa apresentação buscará analisar estas três categorias, e entender quais as implicações de se conceber o enraizamento no mundo desta forma. Corpo. O que teríamos a acrescentar ao saber sobre ele quando tudo já parece ter sido dito. Saber que o concebe enquanto ferramenta e invólucro de uma mente/razão; instrumento de labor; integrante dos arsenais postos a serviço da reprodução da espécie e da produção do capital. Corpo/carne incessantemente investigado pelas ciências médicas que vêm buscando estratégias para mantê-lo saudável e funcionando; corpo-forma, constantemente moldado para adequar-se a modelos estéticos e significado para servir enquanto demarcador de status e prestígio social ( Cf. Turner, 1989; Le Breton, 1992; Villaça e Góes, 1998, entre outros). Manda-nos os preceitos metodológicos que iniciemos pelo começo, onde tudo teve sua origem. Busquemos então a ontogênese do corpo. Onde? Talvez no mito-gênese do homem – no mito que foi constituído por essa nossa Gaia Ciência e que tem como paradigma o da evolução das espécies? Não. Cremos que o estudo de outros entendimentos sobre o corpo – que não este da ciência ocidental – nos acrescentaria mais neste momento, já que nos permitiria um certo afastamento para refletirmos sobre esta imensa nebulosa de representações, mitos, modelos, etc., nas quais já nascemos mergulhados. Com efeito, enquanto dela herdeiros, ficamos obnubilados por uma série de crenças, já que estamos atados e embaraçados em suas teias de sentido e que, na maior parte das vezes, tomamos como verdades inquestionáveis. * Mestre em Antropologia e doutorando em Saúde Coletiva no IMS-UERJ, Bolsista FAPERJ. Endereço: Av. Mem de Sá, n.º 72, apt.º 414, Centro, Rio de Janeiro – RJ. E-mail: [email protected] Luís Felipe Rios 3 Nossa proposta é a de buscar, na experiência metodológica do contato com o diferente, através do dizer e do fazer de outros grupos sócio-culturais (ainda que integrantes de uma mesma sociedade nacional), outras vias, outras apreensões sobre o que seria esse nosso objeto de estudo. Uma primeira atitude que se impõe é redimensionarmos a nossa questão guia, pois que o termo corpo, como tem mostrado Le Breton (1992), estaria carregado do sentido como a sociedade ocidental hegemônica se concebe. Nesta perspectiva temos, como supracitado, o corpo como sinônimo do fisiológico-anatômicocarne. Assim, na esteia do supracitado autor, refizemos a nossa questão guia do seguinte modo: como os diferentes grupos sócio-culturais pensam o enraizamento do ator na sociedade? Desse modo, assumimos aqui a perspectiva da corporeidade enquanto a dimensão social e cultural do corpo, uma estrutura simbólica, efeito das condições sociais do homem; em outras palavras, a definição coletiva da modalidade física de relação ao mundo dos atores sociais (Le Breton, 1992). Le Breton (op. cit.) ainda distingue corporeidade de corporalidade, esta última é concebida por ele como as distintas manifestações de uma dada corporeidade; a variabilidade das formas que uma dada corporeidade pode tomar. Com efeito, nossa contribuição se dará em pensar as bases do enraizamento dos atores a partir do olhar dos afro-descendentes1 brasileiros sobre o mundo; a partir do que temos apreendido entre o xangô, o candomblé e a umbanda; entre aqueles que, para manter o legado cultural de seus ancestrais – em meio ao transplante a que foram submetidos com a empresa da escravização – constituíram uma plêiade de religiões no Novo Mundo. Religiões que buscaram reconstituir em novos meios ecológicos e em meio a novas determinações sócio-político-econômico-culturais uma realidade que lhes fosse própria. Para fins didáticos e metodológicos, desconsideraremos, aqui, as diferenças regionais, as idiossincrasias surgidas pelas especificidades da formação de cada grupo. Nos colocaremos em um nível onde focaremos o que há de compartilhado entre todas elas2. Do mesmo modo, embora saibamos que os adeptos, enquanto membros da sociedade nacional, têm sido co-socializados em outras matrizes próprias a outros grupos culturais dos quais também fazem parte, consideraremos para fins analíticos apenas os discursos calcados na “matriz afro-brasileira” de pensar o mundo. Contudo trabalhos posteriores deveram retomar estas determinações – aqui postas entre parênteses – enfocando as formas de enraizamento dos atores em contextos específicos; bem como, abordar as interrelações entre a matriz afro-brasileira e as outras integrantes da sociedade brasileira. Descendentes tomado aqui no sentido cultural, enquanto herdeiros de um sistema ou matriz simbólica. Esta perspectiva torna-se possível sobretudo se considerarmos que os adeptos transitam entre as várias formas de religiosidade; são parte de um mesmo campo religioso que está em constante diálogo, negociações e (re)articulações. 1 2 Axé, aperê e orí: notas sobre as bases da corporeidade afro-brasileira 4 Explicitado o enquadre de nossa empreitada, voltemos a pergunta inicial – já redimensionada e dirigida a um dado grupo sócio-cultural – buscando entender “como os afro-descendentes concebem o seu enraizamento no mundo?” Tomemos, então, como ponto de partida, um mito primal e sigamos em busca de acrescentar algo a mais nos dizeres e saberes sobre o “corpo”. A CRIAÇÃO DOS HOMENS NA PERSPECTIVA DOS A FRO-DESCENDENTES ... Contam os mitos que criado o ayê – o mundo da existência pessoal – coube a Obatalá, filho de Olorum a tarefa de fabricar os homens. Usando o barro, Ele modelou o aperê/suporte, entretanto não podia animar as criaturas. Precisava de Seu Pai para dar-lhes o sopro da vida/emí. Apenas aperê e emí não bastavam para os homens viverem na terra, necessitavam também de algo que os distinguissem entre si. Coube a Ajalá3, um velho oleiro, a tarefa de fabricar os orís/cabeças – artefatos capazes de dar aos seres humanos uma singularidade que os caracterizariam pelo resto de suas vidas. Para a confecção das cabeças Ajalá usava dos mais diversos materiais ao seu alcance. Contudo, nem sempre as misturas, ou os moldes, ou ainda o cozimento resultavam em boas cabeças. Não era fácil encontrar entre os orís, que se acumulavam nas prateleiras de sua olaria, algum de boa qualidade. Os filhos de Ogun4, Ijá5 e Orumilá6 quiseram vir ao mundo; precisaram, então, escolher cabeças. Preocupado com seu filho Afuwape, Orumilá procurou o babalaô que consultou o oráculo. Antes de deixar o orun, Afuwape deveria realizar sacrifícios e levar mil cauris para viagem; assim o fez. Seus companheiros, entretanto, se apressaram para chegar na casa do oleiro. Não o encontraram, mas nas prateleiras haviam muitas e belas cabeças; escolheram as de seu agrado; tomaram-nas e partiram para o ayê. Chega, então, o retardatário que também não encontra o oleiro. Em lugar dele, uma velha senhora aguardava o fazedor de cabeças. Afuwape conversa com a senhora e fica sabendo que ela esperava pelo pagamento de mil cauris devidos por uma certa quantidade de cerveja. O filho de Orumilá dá os cauris que trouxera à anciã, que agradece e vai embora. Antes, entretanto, questiona qual o motivo da visita do garoto aquelas paragens. Ele diz estar a caminho do ayê e procurava por uma cabeça. Estando Afuwape sozinho, o oleiro, que estava o tempo todo escondido, aparece. Reconhecido e satisfeito, leva o menino para ver os cobiçados artefatos. O menino fica maravilhado. O oleiro oferece-lhe, então, um bom Orí, advertindo ao garoto que os seres humanos atraiam seu próprio infortúnio porque não sabiam escolher boas cabeças. Afuwape partiu. No ayê tornou-se homem rico e bem sucedido. Seus companheiros, que não tiveram a mesma sorte, se questionavam: “Não foi no mesmo lugar que obtivemos nossas cabeças?”. 7 3 Para alguns, uma qualidade de Oxalá, o Orixá da criação. Deus da guerra. Não identificamos esta divindade no panteão afro-brasileiro. 6 Divindade que preside os oráculos. 4 5 7 Versões mitológicas elaborada a partir de Voguel e colaboradores (1994) e Elbain dos Santos (1976) Luís Felipe Rios 5 *** Uma verdade anterior a este mito aparece implícita, norteando e determinando todo o desenrolar da história; é a separação entre ayê e orun: entre a terra, ou mais amplamente a dimensão cosmogônica da vida pessoalizada, em oposição a dimensão da existência genérica, o mundo habitado pelos orixás, pelos espíritos dos fieis e ancestrais (Voguel, e colaboradores, 1994). A problemática do mito se constitui no momento em que os filhos dos deuses resolvem sair do orun e viver no ayê. Para que a existência se dê no ayê, não basta um suporte, ou o princípio vital que anima os seres, tão pouco apenas a “marca” que distingue cada ser de outro e orienta os seus destinos. Estas três dimensões precisam se dar concomitantemente, caso contrário não há existência no ayê. Desse modo, vê-se configurar no mito um tripé que sustentaria a existência humana e mesmo divina no ayê: O aperê-suporte, o orí-pessoalidade e o emí-axé/energia vital. Tomemos cada uma destas instâncias isoladamente e vejamos como são concebidas e como se articulam na constituição de um ente no ayê. A PERÊ-SUPORTE Conta o mito que o aperê-suporte é dado por Obatalá, que o modela a partir do barro/proto-matéria. Sodré (1998) propõe como tradução para o termo aperê o termo/conceito corpo: “O ser humano é indivíduo[ori]-corpo[aperê] com elementos singulares e intransponíveis na cabeça, ligados a seu destino pessoal; no suporte [aperê], a guarda das forças mobilizadoras [axé] e asseguradoras da existência individual.” Grifos nossos.(Sodré, 1998: 155). Acreditamos, entretanto, que tomar aperê como corpo é continuar seguindo o cogito cartesiano - paradigma da ciência ocidental, forçando a bipolartidade corpo-mente para a cosmologia dos afro-descendentes. Por outro lado, ao nosso ver, os “laços” entre ori e aperê são bem mais complexos do que aquele proporcionado pelo axé – assegurador da existência – na interpretação de Sodré (1998). Com efeito, se é no aperê que o axé-emí será guardado; é também nele que o orí se encrava trazendo os elementos que marcam cada ser em sua singularidade. Se sem axé o aperê se desfaz, transformando-se novamente em proto-matéria; por sua vez sem suporte o orí-pessoalidade8 não pode chegar a existência no ayê. Assim, temos um imbricado jogo de “partes” que não devem ser pensadas como se relacionando anatomicamente – como quando pensamos, do ponto de vista das ciências 8 Nossa tradução para o que Sodré (1998) chama de identidade. Axé, aperê e orí: notas sobre as bases da corporeidade afro-brasileira 6 médicas, por exemplo, a estrutura óssea do corpo, onde cada parte se encaixa com a outra. Como buscaremos mostrar no decorrer deste texto, as três “instâncias” apresentadas no mito se interpenetram em um complexo jogo “alquímico”, onde o que era aperê se transmuta em axé; o que era axé – sem deixar de sê-lo – se transforma em orí, e por aí vão os processos de misturas, sínteses e metamorfoses. ORÍ – PESSOALIDADE Um ponto que aparece de forma mais pregnante no mito – e que é colocado como problemática a ser solucionada para que o drama chegue a bom termo – é a questão da obtenção de boas cabeças, bons orís: pessoalidades que marcam o destino na vida. No Brasil, como na África, o orí assume, entre outras acepções, o caráter de divindade; divindade que é cultuada por todo adepto. Cada pessoa tem o seu, do correto cuidado para com ele depende o destino pessoal. O culto ao orí deve “preceder” o do santo-de-cabeça. Desse modo, antes da feitura do deus9 e do adepto – da iniciação – a cabeça deve ser zelada. Temos então o ritual do oborí, “o dar de comida a cabeça”; pois se o santo virá a se manifestar em transe de possessão, é porque a cabeça o permite (Voguel e colaboradores, 1994). Ao mesmo tempo, o orí também carrega elementos que permitem relacionar o ser aos orixás10. Uma das primeiras providências para o sacerdote que oficializará o rito do oborí é a de descobrir a que divindade o iniciante esta constitutivamente relacionado, quem é o eledá, o seu criador, ou ainda o dono de seu orí. Como vimos no mito, Ajalá, ao modelar os homens em suas pessoalidadades, usa de elementos naturais diversos. Esses elementos são relacionados aos deuses e irão determinar, a semelhança daqueles, o modo como as pessoas serão, como se comportarão, como agirão no ayê11. Embora alguns autores, como Sodré (1998) supracitado, proponham o sentido de individualidade para o termo orí, acreditamos, seguindo a perspectiva de Mauss (1974) e, sobretudo, de Dumont (1993), que uma aproximação/tradução mais coerente para esta categoria seria a de pessoalidade. Lembremos que entre os afro-brasileiros as categorias hierárquicas e os santos-de-cabeça contribuem sobremaneira para localizar as pessoas no sistema social em questão, marcando os indivíduos com personas específicas – funções E aqui é bom lembrarmos, que a feitura consiste em, não apenas fazer um novo sacerdote, mas também, constituir uma divindade pessoal, o santo – daí a expressão fazer o santo -, a partir das divindades genéricas, os Orixás. Nesta medida, várias pessoas podem ser filhas de um mesmo Orixá, mas cada qual terá o seu Santo de Cabeça, o Orixá pessoal. Isso se expressa no momento em que, na festa pública que apresenta o iniciado com o seu santo feito, este é solicitado a dizer o seu nome, que em tese é único, pessoal, embora se remeta ao Orixá genérico. Vide Serra (1995 ). 10 Cada orixá é concebido como relacionado com um elemento natural: Iemanjá, as águas salgadas; Oxum, as águas doces; Iansã, os ventos; etc. 11 Cf. Augras (1983). 9 Luís Felipe Rios 7 rituais e atributos dos santos, respectivamente – que necessitam ser desempenhadas – a depender do lugar do outro na hierarquia sacerdotal – para que o sistema se mantenha operante. Os ideais de fraternidade, igualdade e liberdade – que marcam o sujeito do individualismo (individualidade) – só funcionam para pessoas que ocupem cargos de igual status dentro da hierarquia dos terreiros. Assim, ainda nesta perspectiva, se por um lado o orí marcaria a especificidade de cada ser, por outro seria marcado pelas substancias com que foi feito, determinando o destino do ser humano no ayê12. Estamos, aqui muito longe do ser que se auto-determina, senhor do seu próprio destino, características do sujeito individualista, e mais próximos de uma sociedade holista que, conforme Dumont (1993), é marcado – e se percebe marcado em seu destino – pelo lugar que ocupa – e/ou lhe é atribuído – na ordem social. Contudo, pensando em outras instâncias das comunidades-terreiros, estas parecem bem mais próxima do tipo mixado caracterizado por Da Matta (1991) como sociedade relacional, do que o tipo puro holista de Dumont (op. cit.); ainda assim acreditamos que a categoria orí seria do âmbito da pessoalidade e não do da individualidade. Voltando ao ritual do oborí, vale ressaltar que identificado o eledá da pessoa, o sacerdote deve discernir que materiais deverão fazer parte do rito do oborí: que elementos naturais farão parte dos assentamentos, dos banhos de ervas, quais os alimentos a serem servidos, quais as cores dos fios de conta... E quais os alimentos/elementos são impróprios para o orixá do iniciando e, consequentemente, para sigo próprio. É que estes elementos são aperê para a energia-axé. E essa energia, não é única, ela possui “qualidades” específicas. Existe todo um jogo de forças, de repulsões e atrações entre estas energias e, consequentemente, entre as coisas dos mundos. Já se impõe, então, que adentremos de forma mais consistente no modo como os afro-descendentes concebem o axé. A XÉ – ENERGIA Um primeiro ponto a ser considerado é que para o africano13 e também seus descendentes no Brasil, o universo se apresenta como uma ordenação de forças-enrgias. Existiria uma energia-força cósmica, que no entanto se exprai em uma série de energias12 Vale lembrar que é só por consultar o oráculo e realizar oferendas que Afuwape consegue obter uma boa cabeça e, assim, um bom destino no ayê. Segundo Voguel e colaboradores (1994), este mito serve como “orientação” para o rito do obori. No decorrer deste ritual uma réplica do ori é constituída – o ibáori, e operações são feitas em ambos (ori e ibá-ori) afim de trazer sorte e prosperidade para a vida do adepto. Temos, então, como que um regresso a cena ancestral, uma volta a casa do oleiro – Ajalá. Para mais sobre a concepção africana de cosmos e o papel da noção de energia vital nesta forma de pensar, vide Thomas e Luneau (1981) e Deschamps (1970). 13 Axé, aperê e orí: notas sobre as bases da corporeidade afro-brasileira 8 forças hierarquicamente organizadas; de outro modo, existiria uma energia-força total que assumiria manifestações e qualidades diferentes – cada coisa, cada ser, seria, em sua natureza, manifestação de energias-forças específicas. E aqui, vale salientar a imbricação entre orí e axé, acima pontuada. Os elementos constitutivos do orí, trazem com eles, como que impressos, uma qualidade de axé, o qual a pessoa está apta a receber ou rejeitar. Com efeito, parece existir, na lógica de pensar afro-brasileira, dois tipos de energiaforça, uma provida de intencionalidade e vontade própria – e aqui estamos no âmbito das divindades – e uma outra que careceria destas duas qualidades. No entanto, estas energias podem ser manipuladas, desde que alguém (divindades ou homens) lhes dê direção, aja sobre e/ou através dela. É essa energia-força que os afro-descendentes chamam de axé, que ganha aqui a acepção de energia vital. Nesta medida, o axé parece assumir entre os adeptos um valor supremo. Caberia à religião, enquanto guardiã dos fundamentos-conhecimentos sobre a ordenação da vida e dos mundos, enquanto sistema que regula as relações entre ayê e orun, captar esta força, colocando-a a serviço do reforço da existência dos homens e das comunidades14. É que se todos recebem, para ganhar existência no ayê, uma quantidade (e qualidade) dela através do emí (e aqui o próprio sopro seria aperê para que o axé chegue ao homem), ela não permanece na mesma “quantidade” durante todo o tempo. No decurso da existência no mundo pode-se ter mais ou menos axé. Isto pode ser apreendido através do seu efeito no aperê e no orí. Deixe-nos esclarecer melhor: é que a doença, o sofrimento, a fadiga, se apresentam quando a “vitalidade” diminui. Quando ela aumenta o ser prospera em todas as áreas. Cabe a religião intervir sempre que a desordem ou a ameaça dela exista, buscando reforçar o fluxo das forças intra-pessoa, intra-grupos através da (re)ligação entre existência pessoalizada e existência genérica.15 Pelo que pudemos perceber, o axé possui quatro características: ele pode ser acumulado e transmitido; as coisa que enquanto suporte o acumule possui a qualidade de exercer atração sobre o outro; ele pode ser utilizado de forma intencional; por onde ele migra, ou flui, transmite traços, marcas de seus antigos depositários. (Rios, 1997) Esta última característica nos faz lembrar da Teoria do Dom proposta por Mauss (1974). Segundo ele, no momento das trocas, quem oferece um dom, empresta junto ao presenteado uma parte de sua própria “alma”, o rau . No caso afro-brasileiro, quando um fiel se inicia nos cultos e recebe o axé através da saliva misturada com ervas e nozes especiais mascadas pelo sacerdote e depositada na sua cabeça/orí; recebe não um axé 14 Cf. Barros e Teixeira (1989); Voguel e colaboradores (1993) e Rios (1997). Luís Felipe Rios 9 indiferenciado. Ele recebe um axé que ao fluir por uma coletividade de sacerdotes, foi marcado pelos fundamentos dos quais tal comunidade é depositária [aperê], nesta medida torna-se membro de um determinado axé – que na linguagem do povo-de-santo16 para se referir ao processo iniciático ganha o sentido de tradição. Recebe-se, então, o axé desta ou daquela “nação”, desta ou daquela “rama”17, através do suporte-pessoalidade-energia de um determinado zelador-de-santo18. Recebe-o, o iniciante, através do aperê que são a saliva do zelador, seu hálito e também suas palavras. Com efeito, talvez mais do que na África, entre as religiões afro-brasileiras o axé é a categoria que media e garante a reprodução das comunidades-terreiro. A herança biológica do orixá (como acontece na África onde o santo é herança familiar) é preterida no Brasil. O santo torna-se pessoal, cabendo aos sacerdotes identificá-lo caso a caso. Contudo, com a iniciação, o santo é “feito” em acordo com os preceitos de um certo terreiro e o adepto renasce em uma nova família. Ele é apreendido em uma nova rede social de parentesco, a família-de-santo. Ele adquire o conhecimento de acordo com a progressão na hierarquia religiosa. A tradição é passada junto com o axé. Assim, a reciprocidade perdida com a quebra da estrutura de parentesco (baseada na assimetria e complementaridade das relações de gênero), promovida belo regime escravista19, foi refeita em outros termos: uma reciprocidade entre existência individualizada e existência genérica, mediada por um certo terreiro e o seu corpo de sacerdotes, e as relações hierárquicas entre os adeptos. O resultante das trocas será o compartilhar de um mesmo axé. Axé que garante o enraizamento do ator em um grupo religioso particular e, consequentemente, no mundo. BIBLIOGRAFIA AUGRAS, M. 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