1 Princípios gerais sobre fármacos A farmacologia pode ser definida como a ciência que estuda a ação das substâncias químicas, estruturalmente definidas e denominadas fármacos, num organismo vivo. Assim, faz parte do objetivo da farmacologia o conhecimento a respeito da origem, das propriedades físico-químicas, da absorção, distribuição, biotransformação e excreção, bem como dos usos e efeitos dessas substâncias no organismo. A relação entre a dose de um fármaco administrada a um paciente e a sua capacidade de prevenir e tratar doenças ou infecções ou, ainda, de restabelecer funções fisiológicas desajustadas, pode ser descrita em duas grandes áreas: a farmacocinética (do grego kinetós = móvel) e a farmacodinâmica (do grego dynamis = força) que, juntas, constituem o objetivo da farmacologia. Do ponto de vista operacional, a farmacocinética pode ser entendida como aquilo que o organismo faz com o fármaco, e a farmacodinâmica, o que o fármaco faz ao organismo. A farmacocinética está relacionada a absorção, distribuição, biotransformação e excreção dos fármacos. Esses fatores, associados às propriedades físico-químicas dos mesmos, determinam a concentração destes no seu local de ação e o seu tempo de permanência no organismo. A velocidade com que esses processos ocorrem determina o início, a intensidade e a duração da atividade do fármaco no organismo. O estudo dos efeitos bioquímicos e fisiológicos dos fármacos e dos seus mecanismos de ação é denominado farmacodinâmica. Muitas substâncias estimulam, deprimem ou modulam uma função fisiológica ou um efeito bioquímico no organismo humano, de maneira suficientemente reprodutível, para gerar alívio dos sinais e sintomas ou, em termos ideais, para alterar totalmente a evolução da doença em curso. Todavia, muitos agentes quimioterápicos são úteis no tratamento de determinada doença porque têm efeitos apenas mínimos no corpo humano e altamente lesivos ou destrutivos para os organismos invasores, responsáveis pela evolução do processo patológico. Em algumas situações, a farmacocinética e a farmacodinâmica não se apresentam como características dos fármacos. É o que ocorre com os anti-helmínticos, que, administrados por via oral, são excretados nas fezes. Assim, o mebendazol, um anti-helmíntico polivalente indicado como fármaco de escolha para ancilostomíase, ascaridíase, es- trongiloidíase, necatoríase e tricuríase, administrado pela via oral apresenta biodisponibilidade de apenas 2,5%, sendo excretado inalterado nas fezes na proporção de 95%. Entretanto, no caso dos fungicidas tópicos utilizados no tratamento das micoses superficiais ou dermatofitoses, como o isoconazol, o oxiconazol e o econazol, mesmo apresentando, em determinadas situações, alguma farmacocinética, a atividade não está relacionada a nenhum efeito farmacodinâmico. O isoconazol, por exemplo, utilizado no tratamento de micoses vaginais e vulvovaginais, é absorvido pela mucosa vaginal e o seu uso não é recomendado durante a gravidez e a lactação. O mebendazol e o isoconazol são considerados fármacos? O nitrato de fenticonazol (Fentizol®), disponível no mercado farmacêutico em creme dermatológico para o tratamento de micoses superficiais, pode ser considerado um medicamento? A ivermectina (Ivomec®), indicada como inseticida e acaricida no tratamentos de animais com exoparasitoses, está disponível no mercado farmacêutico (Revectina®) para o tratamento de filariose, oncocercose, escabiose, pediculose e larva migrans cutânea. Ao ser administrada por via oral, a ivermectina liga-se às proteínas plasmáticas, sofre biotransformação hepática, interage com os receptores do GABA, aumentando a permeabilidade da membrana ao cloro, com hiperpolarização das células musculares. Como resultado, induz à paralisação e morte do parasita (Wuchereria bancrofti, Sarcoptes scabiei, Pediculus humanus, etc.). A ivermectina deve ser classificada como fármaco ou simplesmente como um inseticida? O fato de determinado fármaco ser útil na profilaxia, diagnóstico ou tratamento de uma doença ou de uma situação de desconforto depende muito de sua capacidade de produzir seus efeitos previsíveis com efeitos adversos e colaterais considerados toleráveis pelo organismo. Dessa forma, a seletividade do fármaco é uma de suas características mais importantes. Entretanto, em algumas situações, os efeitos adversos não são tolerados pelo organismo em tratamento, exigindo o emprego de um adjuvante para remediar a síndrome provocada pela farmacoterapia. É o que ocorre durante o emprego de fármacos antineoplásicos que, ao provocarem náuseas e vômitos insuportáveis para o paciente, exigem o uso de antieméticos. A terapia medicamentosa baseia-se na correlação das ações e dos efeitos dos fármacos com os aspectos bioquí- 18 Lourival Larini micos, fisiológicos, imunológicos e comportamentais da doença. Além disso, a enfermidade pode modificar as propriedades farmacocinéticas do fármaco, alterando sua absorção, distribuição, biotransformação e excreção; excreção, especialmente as doenças renais e hepáticas. A farmacognosia (do grego gnosis = conhecimento) trata da obtenção, da identificação e do isolamento de princípios ativos, isto é, de matérias-primas naturais encontradas nos reinos vegetal, animal e mineral, passíveis de uso terapêutico. A toxicologia tem por objeto fundamental o estudo da intoxicação, sob todos os seus aspectos. Por intoxicação entendemos a manifestação clínica e/ou laboratorial dos efeitos adversos que se revelam quando há interação do fármaco com o organismo, promovendo alterações na homeostase. A toxicologia estuda não apenas os compostos utilizados na profilaxia, no diagnóstico e no tratamento de doenças, mas também inúmeras outras substâncias químicas que podem estar presentes nos alimentos, no ambiente ocupacional, no domicílio, no ar atmosférico, além daquelas consideradas drogas de abuso. O termo homeostase é empregado para definir as condições normais de vida de determinado organismo. Tabela 1.1 FÁRMACOS E MEDICAMENTOS CORRESPONDENTES Fármacos Medicamentos correspondentes alprazolam bromazepam carbamazepina difenidramina etilefrina famotidina guaifenesina homatropina imipramina lisinopril metildopa nifedipino omeprazol paracetamol ranitidina sildenafil teofilina Frontal®, Apraz®, etc. Lexotan®, Novazepam®, Somalium®, etc. Convulsan®, Tegretard®, Tegretol®, etc. Benadril®, Brontoss®, Notuss®, etc. Efortil® Famodine®, Famotil®, Famox®, etc. Broncofenil® Belacodid® Tofranil®, Depramina®, etc. Vasojet®, Zestril®, Zinopril®, etc. Aldomet®, Dopametil®, Cardiodopa®, etc. Adalat®, Adalex®, Dilaflux®, Nifedin®, etc. Gastrium®, Loprazol®, Losec®, etc. Dôrico®, Cetymol®, Tylenol®, Tylidol®, etc, Antak®, Logat®, Zylium®, etc. Viagra® Teofiline®, Teolong®, Teoston®, etc. Tabela 1.2 CONCEITOS GERAIS • Droga: matéria-prima, de origem natural (mineral, vegetal ou animal), da qual é possível extrair e isolar um ou mais componentes químicos ou princípios ativos. Portanto, a partir deste conceito, os agentes terapêuticos de origem sintética não são considerados drogas. O substantivo “matéria-prima” tem o significado de substância principal utilizada na fabricação de alguma coisa, que está em estado bruto e precisa ser trabalhada e purificada. • Fármaco: substância química, estruturalmente definida, utilizada para o fornecimento de elementos essenciais ao organismo, na prevenção e no tratamento de doenças, infecções ou de situações de desconforto e na correção de funções orgânicas desajustadas. A ação dos fármacos é caracterizada por um conjunto de processos que incluem sempre as fases farmacêutica, farmacocinética e farmacodinâmica (ver “Ação biológica dos fármacos”). • Medicamento: é o mesmo que fármaco, especialmente quando este se encontra em uma formulação farmacêutica. Corresponde ao fármaco na especialidade farmacêutica (comprimidos, drágeas, cápsulas, soluções, pomadas, etc.). Na Tabela 1.1 estão indicados alguns exemplos de medicamentos e os seus fármacos correspondentes. Em algumas situações, determinado medicamento é constituído de dois ou mais fármacos, nas chamadas associações medicamentosas (Tabela 1.2). Esses vocábulos são utilizados por autores ibero-americanos para traduzir a palavra inglesa “drug”. A Organização Mundial da Saúde (OMS) – World Health Organi- ASSOCIAÇÕES DE FÁRMACOS Medicamentos Composição (fármacos) Beserol® diclofenaco, paracetamol, cafeína e carisoprodol bisoprolol e hidroclorotiazida diosmina e hesperidina orfenadrina, dipirona e cafeína losartano e hidroclorotiazida enalapril e hidroclorotiazida hioscina e dipirona ipratrópio e salbutamol azatadina e pseudo-efedrina paracetamol e tramadol clordiazepóxido e amitriptilina paracetamol, fenilefrina e carbinoxamina nifedipino e atenolol Biconcor® Diosmin® Dorflex® Hyzaar® Vasopril plus® Buscopan composto® Combivent® Cedrin® Ultracet® Limbitrol® Naldecon® Nifelat® zation (WHO) – também emprega os vocábulos “fármaco” e “medicamento” como sinônimos. No Brasil, a distinção entre fármaco e medicamento é usual no meio acadêmico. Nos cursos de graduação em Farmácia, as universidades públicas utilizam comumente a expressão “Fármacos e Medicamentos” para caracterizar um dos seus departamentos de ensino. Por sua vez, o termo droga é mais freqüentemente utilizado para especificar as substâncias de uso abusivo e que provocam dependência. No meio leigo, é muito comum o emprego do termo remédio, significando algo utilizado para combater uma moléstia ou uma situação de desconforto, como a secreção nasal ou o prurido. Na comunidade leiga, remédio significa toda subs- Fármacos e medicamentos tância que cura, alivia ou evita uma enfermidade. Portanto, todos os medicamentos são remédios, mas nem todos os remédios são medicamentos. FORMA No mercado mundial, estima-se que cerca de 75% de todos os fármacos disponíveis são bases fracas, aproximadamente 20% são ácidos fracos ou ésteres e apenas cerca de 5% são compostos não-iônicos, anfóteros ou alcoóis. Quase sempre os sais são obtidos a partir de ácidos e bases fortes. Entretanto, em algumas situações, é necessário o emprego de um ácido ou de uma base mais fracos para obter um sal mais estável e de maior hidrossolubilidade. Geralmente, um sal menos solúvel é menos higroscópico e produz soluções menos ácidas ou menos alcalinas, favorecendo a preparação de formulações injetáveis que, idealmente, devem apresentar pH entre 3 e 9 para evitar danos aos tecidos e dor no local da injeção. Assim, o composto benzodiazepínico clordiazepóxido, na forma de base livre, apresenta o valor de pH 8,3 e a solubilidade em água de 2 mg/mL. Por sua vez, o cloridrato de clordiazepóxido apresenta pH, de 2,5; o maleato, de 3,4; o tartarato, de 3,9; o benzoato, de 4,5; e o acetato, de 4,8. A solubilidade em água do maleato de clordiazepóxido é de 60 mg/mL, e a do tartarato, de 18 mg/mL. Uma base fraca terá elevada velocidade de dissolução no meio ácido estomacal, enquanto o ácido fraco terá dissolução mínima neste mesmo local. Com o trânsito do fármaco, o inverso ocorrerá no intestino delgado, aumentando a dissolução do ácido fraco e diminuindo a da base fraca. Entretanto, à medida que a velocidade de dissolução aumenta, a absorção diminui consideravelmente, pois o fármaco, no seu estado ionizado hidrossolúvel, não é capaz de permear-se através das membranas do trato gastrintestinal por difusão passiva. Assim, os sais de bases fracas dissolvem-se prontamente no estômago, onde não são absorvidos, sendo absorvidos no intestino na forma não-ionizada lipossolúvel. Portanto, a biodisponibilidade dos fármacos será amplamente dependente das condições do momento da administração, especialmente o estado de vacuidade (antes das refeições) ou de repleção (após as refeições) do estômago, do tipo de alimento ingerido e do veículo utilizado na deglutição. Portanto, a maioria dos compostos químicos utilizados como fármacos são bases orgânicas fracas ou ácidos orgânicos fracos, não-ionizados e lipossolúveis. Em muitas situações, são utilizados na forma de sais hidrossolúveis quando do emprego pela via injetável, para melhorar a estabilidade e as características organolépticas, ou então para aumentar a potência ou prolongar o efeito terapêutico, ou ainda para reduzir a toxicidade. Também é comum a apresentação de um fármaco na forma livre e em diferentes sais. O antiinflamatório diclofenaco está disponível no mercado nas formas dietilamônio, sódico e potássico, em diversas especialidades farmacêuticas. 19 a) Diclofenaco dietilamônio: Em emulsão oleosa em gel aquoso: Cataflam Emulgel®, Deltaren Gel®, Deltaflogin Gel®, Diclofen Gel®, Fenaren Gel®, Voltrix Gel®, etc. Em aerossol: Biofenac Aerossol®, Cataflam Aerossol®, etc. b) Diclofenaco potássico: Em drágeas ou comprimidos: Benevran®, Cataflam®, Deltaren®, Diclofenaco potássico®, Diclo P®, Voltrix®, etc. Solução injetável: Diclofen®, Diclofenaco potássico®, Flogan®, etc. Em solução oral: Diclofen®, Flogan®, etc. c) Diclofenaco sódico: Em cápsulas, drágeas ou comprimidos: Artren ®, Biofenac®, Biofenac LP®, Biofenac DI®, Deltaflogin®, Diclosod®, Diclofenaco sódico®, Fenaren®, Fenburil®, Flanaren®, Voltaren®, Voltaren SR®, Voltaren Retard®, Vendrex®, etc. Solução injetável: Artren®, Deltaflogin®, Diclofenaco®, Diclofenaco sódico®, Fenaren®, Fenburil®, Ortoflan®, Voltaren®, etc. Em gel: Fenaren Gel®, Voltaren Emulgen®, etc. Em solução ou pomada oftálmica: Still®. d) Diclofenaco ácido: Em suspensão oral: Cataflam® (excepientes: ácido cítrico e ácido sórbico). Em supositório: Cataflam®. O diclofenaco que corresponde ao ácido 2-(2,6diclorofenil) aminobenzeno-acético e o fenoprofeno, ou ácido alfa-metil-3-fenoxibenzenacético, constituem exemplos representativos de compostos utilizados na forma de sais. Com efeito, o diclofenaco está disponível na forma de sal monossódico, e o fenoprofeno, na forma de sal cálcico. Muitas das bases orgânicas contêm grupamentos amínicos. O nitrogênio de uma amina neutra apresenta três átomos associados a ele e mais um par de elétrons não-comuns. Os três átomos podem consistir de um carbono ou radical orgânico e dois hidrogênios, constituindo uma amina primária (R-NH2); de dois carbonos ou radicais orgânicos e um hidrogênio, formando uma amina secundária (R-NH-R); ou de três átomos de carbono ou radicais orgânicos, constituindo uma amina terciária. Pode existir, também, a ligação do nitrogênio com quatro radicais (carbono), constituindo uma amina quaternária. As aminas quaternárias não apresentam elétrons não-compartilhados para ligar-se reversivelmente a um próton H+. Assim, as aminas primárias, secundárias e terciárias podem sofrer protonação reversível e apresentar diferentes graus de lipossolubilidade conforme o pH do meio em que se encontram. Por sua vez, as aminas quaternárias estão sempre na forma iônica pouco lipossolúvel. São exemplos de aminas quaternárias os fármacos colinérgicos: o betanecol (Liberan®), o carbacol (Miostat®) e a metacolina, utilizada em diversas associações (Frixopel®, Pomalgex®) (ver Figura 4.1 em “Fármacos colinérgicos diretos”). 20 Lourival Larini Hiperfunção: anti-hipertensivos, etc. f) No tratamento de uma situação de desconforto (congestão nasal, prurido, etc.). g) Detoxificação do organismo: antídotos e antagonistas. Neste grupo, os antídotos, por não apresentarem nenhum mecanismo farmacodinâmico e farmacocinético para exercer a ação desejada, não se enquadram no conceito básico para a caracterização de um fármaco. h) Outros: compostos utilizados em radiodiagnóstico. AÇÃO BIOLÓGICA DOS FÁRMACOS A ação dos fármacos é motivada por um complexo conjunto de processos, com a intervenção de múltiplos fatores. Esta ação pode ser caracterizada por três fases distintas: FIGURA 1.1 Sais sódicos dos compostos antiinflamatórios diclofenaco e tolmetina. EMPREGO DOS FÁRMACOS Os fármacos, no sentido amplo do termo, são usados para uma ou mais das seguintes finalidades: a) No fornecimento de elementos essenciais ao organismo: vitaminas, aminoácidos, minerais, hormônios, etc. b) Na prevenção de uma doença ou infecção: soros e vacinas. c) No tratamento e cura de doenças infecciosas: agentes quimioterápicos. Estão incluídos neste grupo os agentes antimicrobianos, os anti-sépticos, os antiprotozoários e os anti-helmínticos. Vários destes compostos, para muitos farmacologistas, não se enquadram no conceito básico de fármaco, por serem desprovidos de farmacocinética e por não apresentarem nenhum mecanismo farmacodinâmico para exercer a ação desejada. Assim, por exemplo, a ivermectina (Revectina®), utilizada no tratamento da estrongiloidíase, administrada pela via oral, é excretada na proporção de mais de 98% nas fezes e de menos de 1% na urina, induzindo a paralisação e morte do Strongyloides stercoralis no seu estágio intestinal. Portanto, a ivermectina é um composto que, quando administrado pela via oral, é quase que totalmente excretado nas fezes, de forma inalterada, sem nenhuma farmacocinética, exercendo ação direta sobre o parasita no intestino. d) No bloqueio temporário de uma função normal: anestésicos gerais e locais, anticoncepcionais, etc. e) Na correção de uma função orgânica: Disfunção: cardiotônicos; Hipofunção: colinérgicos, noradrenérgicos, etc.; a) Fase farmacêutica: também chamada de fase de exposição, compreende a disponibilidade farmacêutica do fármaco. As características inerentes ao próprio, com destaque para o tamanho da partícula, para a sua solubilidade e dispersibilidade no meio de dissolução, bem como as características que compõem a formulação farmacêutica e as técnicas empregadas na produção do medicamento a ser disponibilizado no mercado farmacêutico, podem causar variações consideráveis na sua biodisponibilidade e bioequivalência. A avaliação da farmacocinética de duas preparações de ibuprofeno constitui um exemplo útil para demonstrar a importância da fase farmacêutica na determinação da biodisponibilidade dos fármacos. O ibuprofeno, quando administrado em voluntários, pela via oral, em comprimidos normais de 400 mg, proporciona a concentração máxima no plasma de 35 µg/mL. Entretanto, quando administrado pela via oral em cápsulas moles de gelatina, na mesma dose de 400 mg, proporciona pico de concentração no plasma de 58 µg/mL. Um dos exemplos clássicos de como o tamanho da partícula pode alterar a biodisponibilidade de uma substância é o da griseofulvina, um antifúngico disponível no mercado farmacêutico em comprimidos (Fulcin®; Sporostatin®) com ação sistêmica sobre espécies de fungos dos gêneros Epidermophyton, Microsporum e Trichophyton. A redução do tamanho da partícula da griseofulvina de 10 µm para 2,7 µm demonstrou ser capaz de duplicar a concentração do fármaco absorvida pelo organismo. Muitos fármacos pouco solúveis e de dissolução lenta são formulados na forma micronizada, para aumentar a área de superfície de contato com as mucosas do organismo. Nos comprimidos revestidos, ocorre a vedação com uma película fina constituída de polímero pouco solúvel em água, geralmente goma-laca ou acetoftalato de Fármacos e medicamentos celulose, ou solúvel em água, como a hidroxipropilcelulose. A presença de revestimento pouco solúvel na água promove o retardo na liberação do fármaco a partir de uma drágea. Por sua vez, o revestimento com polímero solúvel em água não influencia na velocidade de desintegração da formulação e na dissolução no meio biológico. Quando são utilizadas resinas acrílicas no revestimento, o filme ao redor do núcleo comprimido atua como uma barreira capaz de retardar a velocidade de liberação alterando sua absorção e sua biodisponibilidade. Além disso, o revestimento entérico encontrado em diversas formulações é programado para resistir ao baixo pH do estômago, possibilitando a disponibilidade do fármaco no duodeno. Nessas condições, o tempo de permanência de um comprimido com revestimento entérico no estômago, que oscila de cinco minutos até algumas horas, altera de forma acentuada a biodisponibilidade do fármaco. A legislação brasileira estabelece que, para um medicamento ser registrado como similar ou genérico, é necessária a comprovação da equivalência farmacêutica em relação ao medicamento de referência, conforme indicação da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA). Assim, por exemplo, para os medicamentos em comprimidos, é necessário avaliar o perfil de dissolução em meio semelhante àquele onde ocorre a absorção, com coletas de amostras em 1, 5, 10, 15 e 30 minutos, e determinação quantitativa do composto solúvel no meio utilizado, com o uso de métodos padronizados por espectrofotometria ultravioleta/ visível, cromatografia gasosa, cromatografia líquida de alta resolução, etc. Os estudos dos perfis de dissolução de uma formulação farmacêutica são amplamente utilizados para as seguintes finalidades: 1. avaliação da equivalência farmacêutica entre apresentações de diferentes fabricantes; 2. orientação para o desenvolvimento de novas formulações; 3. avaliação de modificações introduzidas nos processos de fabricação e 4. controle de qualidade em lotes distintos de uma mesma especialidade farmacêutica. b) Fase farmacocinética: compreende a absorção, a distribuição, a deposição, o metabolismo ou biotransformação e a excreção do fármaco e de seus produtos de biotransformação do organismo. Esta fase corresponde à biodisponibilidade do fármaco. O estudo detalhado de todas as etapas envolvidas na fase farmacocinética é apresentado no Capítulo 2. c) Fase farmacodinâmica: compreende os processos envolvidos na interação do fármaco e/ou de seus produtos de biotransformação nos sítios de ação (alvos), representados especialmente pelos receptores e enzimas. Envolve a formação de compostos intracelulares chamados primeiros-mensageiros, que interagem com receptores específicos, promovendo a ativação de sistemas 21 enzimáticos e a formação dos segundos-mensageiros, com seus efeitos particulares. Maiores detalhes sobre estes mecanismos são apresentados no Capítulo 3. DOSES TERAPÊUTICAS Em razão de diferenças observadas na farmacocinética em lactentes, crianças, adultos e idosos, é difícil estabelecer a dose terapêutica ideal para cada faixa etária. Na atualidade, já são conhecidas as diferenças farmacocinéticas que ocorrem na criança e no idoso em relação ao jovem adulto; entretanto, as informações existentes ainda são insuficientes para esclarecer as diferenças farmacodinâmicas, especialmente aquelas relacionadas à interação dos fármacos com seus receptores. Nos dois blocos a seguir, são fornecidas considerações básicas sobre a terapia medicamentosa em crianças e em idosos. Doses pediátricas A absorção dos fármacos em crianças segue os mesmos princípios gerais observados em adultos. Entretanto, nos primeiros dias de vida e durante a lactação, os fármacos devem ser utilizados com cuidados especiais e sempre prescritos por médico especialista. O peso corpóreo do recém-nascido apresenta uma proporção mais elevada de água (70 a 75%) do que o do adulto (50 a 60%). De modo semelhante, o líquido extracelular corresponde a 40% do peso corpóreo no recém-nascido, em comparação com apenas 20% do adulto. A ligação dos fármacos com as proteínas plasmáticas também constitui um fator importante no estabelecimento da dose pediátrica. De maneira geral, a ligação dos fármacos com a albumina é bastante reduzida no recémnascido, o que determina a concentração maior da fração livre de fármaco na circulação. O processo de biotransformação também sofre alterações com a progressão da idade. Em geral, consta que, no início da vida, a atividade dos sistemas enzimáticos responsáveis pelas reações sintéticas e de conjugação é menor do que na idade adulta, determinando aumento da meia-vida do fármaco. Além disso, a taxa de filtração glomerular é muito menor no recém-nascido. Entretanto, essa função melhora bastante nos primeiros meses de vida, atingindo valores semelhantes aos do adulto entre os 6 e os 12 meses. Assim, essas características determinam a necessidade de modificações nos esquemas posológicos indicados para adultos, estabelecendo doses específicas para crianças, em função da idade, do peso e da área de superfície corpórea. Em geral, as informações mais confiáveis sobre a posologia pediátrica são aquelas contidas nas bulas fornecidas pelo fabricante ou em publicações especializadas. Entretanto, quando esse tipo de informação não estiver disponível, é possível utilizar expressões matemáticas, calculando a idade do paciente, o peso corpóreo ou 22 Lourival Larini a área de superfície corpórea para determinar a dose recomendável para cada faixa etária. As doses pediátricas podem ser calculadas a partir dos seguintes métodos: 1. Pela idade (regra de Young) dose idade da × para adulto criança Dose pediátrica = ––––––––––––––––––––––––––––– 12 + idade da criança Assim, para um composto com dose para adulto de 500 mg, a dose pediátrica para uma criança de três anos é de 100 mg, e de 250 mg para uma de 12 anos. Entretanto, para um jovem de 18 anos, com peso corpóreo de 70 quilos, a dose é de 300 mg. Portanto, a regra de Young deve ser aplicada para crianças até cerca de 12 anos. 2. Pelo peso corpóreo (regra de Clark) dose para × peso da adulto criança (kg) Dose pediátrica = ––––––––––––––––––––––––––––– 70 A regra de Clark é um pouco mais precisa do que a anterior. Por esta, para o composto com dose para adulto estabelecida em 500 mg, a dose para uma criança com 15 quilos, peso que corresponde aproximadamente a 3 anos, nos padrões de normalidade, seria de 100 mg. Da mesma maneira, para um jovem de 18 anos, com 70 quilos, a dose seria de 500 mg. 3. Pela área de superfície corpórea dose para × área de superfície adulto da criança Dose pediátrica = ––––––––––––––––––––––––––––––––––– 1,8 Para calcular a área de superfície da criança, observar os valores indicados na Tabela 1.3. Nesta tabela, a superfície corporal é expressa em metros quadrados, po- dendo ser calculada a partir da altura e do peso do paciente da seguinte maneira: metros quadrados de superfície corporal = a raiz quadrada do que for obtido multiplicando a altura em centímetros (cm) pelo peso em quilogramas, dividido por 3.600. A dose terapêutica também pode ser determinada em função da porcentagem da dose do adulto conforme indicado na Tabela 1.3. Doses geriátricas De maneira geral, a sociedade como um todo costuma catalogar qualquer pessoa acima de 65 anos como velha. Entretanto, é muito difícil estabelecer a fronteira cronológica para indicar o final da idade adulta e o início da velhice. Embora seja um conceito arbitrário, os especialistas consideram que o campo da geriatria aplica-se a indivíduos com mais de 70 anos. Com a progressão da idade, ocorrem diversas alterações corpóreas e fisiológicas, determinantes do declínio, por volta dos 45 anos, dos principais sistemas orgânicos caracterizados no início da idade adulta. É importante destacar que, nos indivíduos idosos, as funções fisiológicas não deterioram em proporção acelerada em comparação com os adultos jovens. Porém, os idosos acumulam maior número de deficiências com a evolução da idade, atingindo o auge com a falência de um órgão ou sistema. A taxa de filtração glomerular, o fluxo sangüíneo renal e as funções tubulares sofrem reduções proporcionais à idade, embora o nível sérico de creatinina seja mantido, em virtude da menor liberação conseqüente da massa muscular em fase de diminuição. Na velhice, o tempo de sobrevida das hemácias é normal, sendo a anemia habitualmente secundária à depleção de ferro. Essas alterações proporcionam significativas variações farmacocinéticas e farmacodinâmicas, modificando o padrão ou a intensidade da resposta aos fármacos pela alteração da sua biodisponibilidade. Assim, o profissional de saúde deve estar plenamente consciente das alterações que podem ocorrer nas respostas terapêuticas dos fármacos administrados aos pacientes idosos que, mais Tabela 1.3 ÁREAS DE SUPERFÍCIE CORPÓREA EM FUNÇÃO DO PESO E DA IDADE Peso corpóreo (kg) Idade Área de superfície* Porcentagem da dose do adulto 3a5 6a9 10 a 20 21 a 30 31 a 40 41 a 60 61 a 75 76 a 80 Recém-nascido 3 a 12 meses 1 a 5 anos 5 a 9 anos 9 a 12 anos 12 a 15 anos 15 a 18 anos 19 a 22 anos 0,2 0,3 0,4 a 0,6 0,7 a 0,9 1 a 1,2 1,3 a 1,7 1,7 a 1,8 1,9 a 2 12 13 a 20 21 a 30 31 a 40 41 a 60 61 a 80 81 a 95 96 a 100 *Expressa em metros quadrados. Fármacos e medicamentos do que todos, têm o direito de usufruir do completo bemestar físico, psíquico e social, cuja manutenção sempre é vista como uma obrigação moral da comunidade. As seguintes alterações importantes ocorrem no idoso: 1. Perda de peso, altura e superfície corpórea. A perda de peso ocorre em diferentes proporções no homem e na mulher, sendo motivada pela redução do volume de água, da massa muscular esquelética e do tecido adiposo. Em geral, as mulheres são mais resistentes ao aumento do peso corpóreo na idade adulta, mantendo praticamente o mesmo peso durante a velhice. 2. No sistema nervoso central, motivadas pela redução de 30 a 35% do fluxo sangüíneo e do consumo de oxigênio, além da redução da densidade neuronal. 3. No sistema cardiovascular. Em geral, o estilo de vida sedentário do idoso provoca declínio do débito cardíaco e redução do fluxo sangüíneo, ocasionando menor perfusão tecidual e aumento do tempo necessário para o transporte dos fármacos aos seus alvos celulares. O decréscimo do fluxo hepático e renal produz conseqüências significativas na biotransformação e na excreção dos fármacos. Não há nenhuma redução do volume sangüíneo na pessoa idosa. 4. No sistema respiratório, com modificações principalmente na farmacocinética dos agentes voláteis. Em conseqüência da menor capacidade respiratória e da incidência aumentada de doença pulmonar ativa no idoso, é sempre recomendável evitar a via respiratória para a administração de fármacos e de anestésicos. 5. No sistema renal. A filtração glomerular é geralmente diminuída no idoso, motivada pela redução do fluxo sangüíneo, algo que pode ser melhorado com a prática de atividades físicas. É sabido que ocorre redução na depuração da creatinina e diminuição da albumina circulante (ver Tabela 1.4), determinando aumento da fração livre do fármaco na circulação, significando necessidade de redução da dose administrada ao idoso. O nível sérico da creatinina é mantido, em virtude da menor liberação decorrente da massa muscular em fase de diminuição. O resultado prático dessas alterações consiste no acentuado prolongamento da meia-vida de muitos fármacos e na possibilidade de exacerbação dos efeitos adversos e tóxicos caso não seja efetuada a redução da dose indicada para indivíduos adultos. A finasterida, utilizada no tratamento e controle da hiperplasia prostática benigna, apresenta meia-vida de seis horas em pacientes adultos com menos de 60 anos de idade e de cerca de oito horas em pacientes com mais de 70 anos. O aumento da meia-vida biológica é bastante acentuado para os seguintes fármacos: amobarbital, antipirina, digoxina, diazepam, espironolactona, fenilbutazona, fenobarbital, imipramina e tioridazina. 23 Tabela 1.4 ALTERAÇÕES RELACIONADAS COM O ENVELHECIMENTO QUE MODIFICAM A AÇÃO DOS FÁRMACOS Alterações 1. Água corpórea (% em relação ao peso) 2. Massa corpórea magra (% em relação ao peso) 3. Albumina plasmática (gramas percentuais) 4. Fluxo sangüíneo hepático (percentual) 5. Fluxo sangüíneo no sistema nervoso central (percentual) 6. Perfusão tecidual 7. Filtração glomerular Adulto jovem Idoso (*) 50 a 60 45 a 50 15 a 20 12 a 15 4a5 3,5 a 4 100 55 a 60 100 65 a 70 normal normal reduzida reduzida Os efeitos adversos menos comuns dos digitálicos, como o delírio e as alterações visuais, ocorrem com mais freqüência. Da mesma maneira, os agentes antiinflamatórios não-esteróides devem ser administrados com muita cautela em pacientes idosos que apresentem maior suscetibilidade ao sangramento gastrintestinal e à lesão renal. A toxicidade dos diuréticos tiazídicos, caracterizada pela perda contínua do potássio e aumento da excreção de ácido úrico, é mais acentuada nessa fase da vida. 6. As alterações que envolvem os processos farmacocinéticos são bastante complexas e devem ser avaliadas na sua totalidade, desde a via de administração do fármaco até a sua excreção. a) Absorção: no idoso, é comum o pH gástrico menos ácido, podendo isso interferir na ionização e na solubilidade dos fármacos considerados ácidos fracos. Esta redução na acidez gástrica proporciona maior rapidez na transferência do conteúdo estomacal para o duodeno, alterando sobremaneira o tempo de permanência dos fármacos nesses locais. A biodisponibilidade dos fármacos que apresentam significativo efeito pré-sistêmico de primeira passagem é aumentada pela redução da atividade das enzimas UDP-glicuroniltransferase e sulfotransferase na mucosa intestinal. b) Distribuição: a diminuição da massa muscular e da água total, associada com o aumento da gordura corpórea provoca o aumento do volume de distribuição dos fármacos lipossolúveis e um efeito contrário com os fármacos hidrossolúveis. No paciente idoso, os níveis sangüíneos de albumina podem permanecer inalterados ou sofrer redução entre 15 e 20% (ver Tabela 1.4). Assim, a redução dos níveis de albumina pode causar aumento da concentração da fração livre e ativa do fármaco, 24 Lourival Larini especialmente para aqueles com alto poder de ligação com a substância, como o ibuprofeno, o diclofenaco, o meloxicam, o piroxicam, a varfarina, a digitoxina e outros (ver Tabela 2.8). c) Biotransformação: a capacidade do fígado na biotransformação dos fármacos é reduzida, sendo causada pela diminuição do fluxo sangüíneo. Entretanto, alguns estudos demonstram que a atividade e a concentração do sistema monoxigenase nos microssomas permanece inalterada. As reações sintéticas ou de conjugação não sofrem alterações significativas e a atividade da glicuroniltransferase e da sulfotransferase permanece inalterada. d) Excreção: no idoso, ocorre a diminuição da filtração glomerular causada pela redução do fluxo sangüíneo no local. Entretanto, alguns estudos demonstram grande variabilidade individual na filtração glomerular nas pessoas idosas, colocando em dúvida o conceito de que, com o aumento da idade, ocorre redução na filtração glomerular. Entretanto, a maioria dos pacientes idosos apresenta declínio na depuração da creatinina. A intensidade da filtração glomerular é medida pela depuração de um marcador livremente filtrável nos capilares glomerulares e não-reabsorvido ou secretado pelos túbulos renais. O marcador glomerular ideal é a inulina, um polímero de frutose que, por não possuir cargas, não se fixa às proteínas plasmáticas e, pelo seu peso molecular (cerca de 5.000 dáltons), é livremente filtrada pela parede dos capilares glomerulares, não sendo reabsorvida e nem secretada pelas células tubulares. A substância mais próxima da inulina como marcador do fluxo glomerular é a creatinina, também livremente filtrada, porém secretada em pequena proporção. Dessa forma, a depuração da creatinina sobreestima ligeiramente a filtração glomerular; porém, esta é uma substância endógena, enquanto a inulina necessita ser infundida. A determinação urinária da creatinina é realizada por método colorimétrico, bastante simples e rápido. Além da inulina, a cistatina C é um marcador endógeno da função renal mais sensível do que a creatinina, permitindo a observação de alterações da filtração glomerular de maneira mais precoce que a clearance desta. A cistatina C é livremente filtrada pelos glomérulos e quase totalmente absorvida e metabolizada nos túbulos proximais do néfron, sem sofrer interferência de outras proteínas de baixo peso molecular. Os estudos farmacocinéticos demonstram redução na capacidade de excreção do midazolam (Dormonid®) em cerca de 30% em indivíduos de 80 anos, quando comparados com outros de 20. A depuração da morfina é diminuída em 50% no idoso, sugerindo um prolongamento na duração de sua ação e redução da dose terapêutica. A cetamina (Ketamin®) apresenta efeito anestésico mais prolongado no idoso. REAÇÕES ADVERSAS E EFEITOS COLATERAIS A reação adversa a um fármaco, ou reação adversa medicamentosa (RAM), representa uma resposta nociva, prejudicial, indesejada e não-intencional que ocorre durante o seu uso em doses terapêuticas. Assim, os antiinflamatórios não-esteróides, mesmo em doses terapêuticas, promovem hemorragia gástrica; o acetaminofeno, hipersensibilidade aguda; e a fenilbutazona, anemia aplástica, agranulocitose, pancitopenia e leucopenia. Todo medicamento, por mais seguro que seja considerado, pode acarretar reações adversas inesperadas, de intensidade variável, conforme as características dos usuários. É muito difícil estabelecer com precisão o diagnóstico das relações causais entre as reações adversas causadas por determinado medicamento, pois, na prática, um efeito indesejado, além de ser, em muitas situações, decorrente do chamado efeito placebo, pode ser motivado pelo tipo de alimentação, pelo trabalho físico, por condições socioeconômicas e por outros motivadores que acometam o paciente. Conforme o grau de certeza dessa relação causa-efeito, a Organização Mundial da Saúde distingue seis categorias de causalidade, que pela própria significação dos termos é demonstrativa da dificuldade para caracterizar com precisão as reações adversas causadas por medicamentos. Estas categorias são: definidas, prováveis, possíveis, improváveis, condicionais e não-classificáveis. Quanto à freqüência, as reações adversas podem ser classificadas em: a) b) c) d) e) muito comuns, com freqüência superior a 10%; comuns, com freqüência de 1 a 10%; incomuns, com freqüência de 0,1 a 0,9%; raras, com freqüência de 0,01 a 0,09%; e muito raras, com freqüência abaixo de 0,01%. Conforme a estimativa de freqüência, as reações adversas são classificadas em: a) b) c) d) freqüentes (acima de 10%); ocasionais (1 a 10%); raras (0,001 a 0,99%); e casos isolados (abaixo de 0,001%). Assim, para exemplificar, durante o uso do diclofenaco, podem ocorrer os seguintes efeitos adversos: a) ocasionais: cefaléia, tontura, vertigem, náuseas, vômitos, diarréia, cólicas abdominais, dispepsia, flatulência e anorexia; b) raros: sangramento gastrintestinal, diarréia sanguinolenta, úlceras gástricas ou duodenais, sonolência, urticária e hepatite com ou sem icterícia; c) casos isolados: diplopia, dermatite esfoliativa, eritema multiforme, lesões esofágicas, distúrbios de memória, distúrbios no paladar, deficiência auditiva, zumbido, insuficiência renal aguda e hematúria. Fármacos e medicamentos As reações adversas podem também ser classificadas quanto à gravidade (Tabela 1.5) e quanto à natureza. As reações adversas podem ser classificadas quanto à natureza em: • Tipo A: são farmacologicamente previsíveis, dependentes de dose, com alta incidência e morbidade e baixa mortalidade, podendo ser tratadas com o ajuste da dose do fármaco administrado. Incluem, por exemplo, a bradicardia provocada pelos bloqueadores noradrenérgicos, a sonolência provocada pelos anticonvulsivantes benzodiazepínicos e a úlcera gástrica provocada pelos antiinflamatórios não-esteróides. • Tipo B: são previsíveis e normalmente ocorrem com o uso prolongado do medicamento. Exemplo: a cárie dentária causada pelo uso contínuo de medicamentos contendo açúcar na sua formulação. • Tipo C: ocorrem em função das características químicas e pela concentração do agente agressor, e não pelo seu efeito farmacológico. Exemplo: as lesões dérmicas e gastrintestinais provocadas por compostos irritantes. • Tipo D: são as reações que ocorrem em conseqüência do método de administração do medicamento ou pela natureza física da formulação. Exemplo: a ocorrência de processo inflamatório ou infeccioso ou de fibrose nos locais de implantes ou de injeção do medicamento. • Tipo E: são as reações previsíveis que ocorrem com a suspensão do uso do fármaco, ocasionando a chamada síndrome de abstinência, como aquela gerada pelos barbitúricos, antidepressivos tricíclicos, opiáceos e benzodiazepínicos, entre outros. Uma outra reação que ocorre com a suspensão de um fármaco é a síndrome de retirada, ou efeito rebote, caracterizada pelo aparecimento de manifestações clínicas por causa da suspensão abrupta deste, quando usado em doses terapêuticas por tempo prolongado. Ocorre freqüentemen- 25 te com a suspensão súbita de corticosteróides, quando utilizados diariamente durante mais de quatro semanas. Essa situação leva à necessidade de suspensão gradual do tratamento. • Tipo F: são as reações que ocorrem somente em indivíduos suscetíveis, sendo geneticamente determinadas. Desaparecem com a suspensão do uso do medicamento. Exemplo: a hemólise que ocorre em alguns indivíduos com o uso de sulfonamidas. • Tipo G: são as reações adversas que causam danos genéticos irreversíveis. Estão incluídas nesta categoria a teratogênese provocada pelo uso de fármacos durante a gravidez, incluindo o ácido valpróico, o diazepam e o fenobarbital, entre outros. Mais detalhes sobre essas reações adversas são apresentados no item sobre fármacos na gravidez (ver “Fármacos na gravidez”, neste capítulo). • Tipo H: são as reações adversas mediadas pelo sistema imune, não sendo farmacologicamente previsíveis e não estando relacionadas à dose do fármaco. Estas desaparecem com a suspensão do uso do medicamento. São independentes da dose, podendo ocorrer mesmo em baixas concentrações do fármaco, após sensibilização prévia. A molécula do fármaco é considerada imunogênica quando se liga covalentemente a macromoléculas endógenas para formar haptenos, que reagem com imunoglobulinas, liberando a histamina, os leucotrienos e outras substâncias responsáveis pelas manifestações alérgicas, que se exteriorizam de variadas formas: choque anafilático, urticária, exantema e dermatite de contato, entre outras. Os órgãos e sistemas mais freqüentemente afetados são a pele (prurido, eritema, urticária, dermatite), o trato gastrintestinal (diarréia, dor abdominal), o globo ocular (hiperemia da conjuntiva), o sistema respiratório (rinite, edema de glote, broncoespasmo) e o sistema Tabela 1.5 CLASSIFICAÇÃO DAS REAÇÕES ADVERSAS MEDICAMENTOSAS QUANTO À GRAVIDADE Classificação Significado Leves Correspondem às reações de pequena importância, de curta duração, que não requerem qualquer tratamento médico. Em muitas situações, são semelhantes àquelas que ocorrem com o placebo. Não é necessária a suspensão do medicamento. Exemplos: cefaléia, sonolência, diurese, náuseas, visão borrada, etc. Moderadas São reações que alteram a atividade normal ou profissional do paciente, necessitando atenção médica contínua, com modificações na conduta terapêutica medicamentosa, sem a suspensão do fármaco causador. Exemplos: diarréia persistente, tremores, etc. Graves São as reações que ameaçam diretamente a vida do paciente, necessitando cuidados médicos com internação hospitalar, algumas vezes em unidades de terapia intensiva, ou o prolongamento da estada do paciente já internado. Requerem a interrupção imediata da administração do medicamento causador. Exemplos: choque anafilático, arritmias cardíacas, hemorragias, etc. Letais São difíceis de avaliar, necessitando a instauração de procedimento administrativo e judicial, com exames complementares para caracterizar com precisão a sua ocorrência. Envolvem, obrigatoriamente, a realização de exames anatomopatológicos e toxicológicos. 26 Lourival Larini circulatório (hipotensão, taquicardia, parada cardiorrespiratória). • Tipo I: são reações provocadas por mecanismos ainda não esclarecidos e que não estejam enquadradas nas categorias já citadas. Exemplo: náuseas e vômitos que ocorrem após a anestesia cirúrgica. Há, ainda, alguns autores que preferem classificar as reações adversas em apenas dois tipos (A e B), cujas características principais estão apresentadas na Tabela 1.6. As reações adversas medicamentosas são caracterizadas pelo laboratório responsável pela comercialização do fármaco, por meio de estudos com animais e em voluntários. Os estudos com animais (testes pré-clínicos) abrangem os ensaios com doses elevadas do fármaco, agudos e crônicos (doses múltiplas), incluindo a carcinogenicidade, a teratogenicidade, os efeitos sobre o desempenho reprodutivo, os efeitos hepatotóxicos, nefrotóxicos e em todos os órgãos e sistemas do animal em estudo. Além desses estudos, são necessárias as informações sobre as doses seguras do fármaco, a dose de nenhum efeito observado (DNEO), e a dose máxima em que o efeito tóxico não é observado, ou concentração máxima tolerável (CMT). Depois, quando o fármaco é considerado provavelmente seguro, são realizados ensaios clínicos cuidadosos, com limitação no número de voluntários, até serem atingidos dados que permitam avaliar com precisão a eficácia a que se destina o fármaco e a segurança durante o uso. Evidentemente, os estudos devem levar sempre em consideração a finalidade a que se destina o mesmo. Nessas condições, um antihipertensivo deve merecer atenção diferente daquela necessária para o analgésico indicado para uso externo. Tabela 1.6 CARACTERÍSTICAS DAS REAÇÕES ADVERSAS DOS TIPOS A E B Características Tipo A Tipo B 1. Dependente de dose Existe relação dependente de dose Não existe relação dependente de dose 2. Previsibilidade É previsível em função do mecanismo de ação Imprevisível 3. Freqüência Comum Incomum 4. Gravidade Leve, quase sempre Grave 5. Mortalidade Baixa Alta 6. Primeira evidência Nas fases I, II e III Na fase IV e, ocasionalmente, na fase III 7. Reprodutibilidade em animais É usualmente reprodutível em modelos animais Não-reprodutível Os ensaios clínicos envolvem quatro fases distintas: • Fase I: é o primeiro estudo com seres humanos. Corresponde à fase de avaliação da segurança do fármaco ou de uma nova formulação, observando-se sempre os resultados obtidos nos ensaios com animais. São realizados com voluntários sadios (cerca de 10), com observações sobre os efeitos adversos e os efeitos colaterais. Nesta etapa, é necessária a realização de ensaios laboratoriais para caracterizar todas as variações que podem ocorrer durante o uso do fármaco. • Fase II: o fármaco é administrado em voluntários especialmente selecionados, para a determinação preliminar da segurança e da eficácia na ação terapêutica prevista. Além da eficácia no uso terapêutico previsto, é também necessário um estudo comparativo com outros fármacos já existentes no mercado, especialmente em termos de biodisponibilidade, de tempo necessário para a obtenção do efeito desejado, de extensão do efeito, de número de tomadas diárias, etc. Nesta fase, deve ser possível estabelecer as relações doseresposta, com o objetivo de obter sólidos antecedentes para a descrição de estudos terapêuticos ampliados (fase III). • Fase III: corresponde ao estudo terapêutico ampliado. São ensaios controlados e não-controlados, realizados em 3.000 ou mais pacientes. Nesta fase, é importante observar a tendenciosidade dos pacientes e dos observadores. Muitos pacientes costumam responder de maneira positiva a qualquer intervenção dos observadores, muitas vezes de forma tendenciosa. A manifestação desse fenômeno é a resposta-placebo e pode envolver alterações fisiológicas e bioquímicas objetivas, como modificações nas queixas subjetivas associadas à doença. A resposta-placebo é obtida pela administração de um material (comprimidos, p. ex.) idêntico ao medicamento em experimentação. Os efeitos da tendenciosidade dos indivíduos podem ser quantificados nos ensaios de simples-cego e duplo-cego. No ensaio simples-cego, o paciente desconhece o que está sendo administrado a ele, se o placebo ou o fármaco. No ensaio duplo-cego, é descartada a tendenciosidade dos observadores, que desconhecem o que está sendo administrado ao paciente. Neste, apenas uma terceira pessoa detém o código que identifica o que está sendo administrado ao paciente, que será revelado somente após a coleta de todos os dados clínicos pelos observadores. A fase III não é suficiente para identificar os efeitos adversos de baixa incidência e a gravidade dos mesmos, não consegue avaliar as situações de risco destes efeitos, não determina com precisão os efeitos do fármaco na pediatria e na geriatria e não avalia as interações possíveis do fármaco com outros já disponíveis no mercado e que estão sendo utilizados para outras finalidades terapêuticas. • Fase IV: esta fase compreende a vigilância após a autorização de comercialização do fármaco ou da formu- Fármacos e medicamentos lação farmacêutica e o monitoramento do novo medicamento em condições de uso em um grande número de pacientes. Portanto, são estudos de vigilância póscomercialização. A liberação final para a comercialização do fármaco na sua especialidade farmacêutica deve ser acompanhada atentamente pela Agência de Vigilância Sanitária. Esta vigilância não tem duração fixa e pode ser exercida por profissionais de saúde, universidades, centros de pesquisa e de atendimento ao público. Assim, tem-se uma farmacovigilância adequada sobre o medicamento comercializado, com a descrição de novos efeitos adversos e o correspondente significado clínico destes. Os efeitos colaterais representam os sinais e sintomas que ocorrem nas doses terapêuticas recomendadas, estando sempre relacionados com as propriedades farmacológicas do produto avaliado. São conseqüência da ação primária do fármaco, ou seja, dependem do mesmo mecanismo gerador da ação terapêutica. O alcalóide escopolamina, usado como antiespasmódico pelas suas propriedades anticolinérgicas, tem como efeito colateral a retenção urinária. A tacrina e a galantamina, compostos com atividade anticolinesterásica e utilizados no tratamento da doença de Alzheimer, provocam efeitos colinérgicos, como náuseas, vômitos, cólicas gastrintestinais, salivação, incontinência urinária e fecal e convulsões, que devem ser considerados como efeitos colaterais. O broncoespasmo que ocorre com o uso dos bloqueadores β-noradrenérgicos é considerado um efeito colateral deste grupo de fármacos. Portanto, a ocorrência do efeito colateral é previsível durante a administração dos fármacos. Não corresponde ao que se denomina efeito secundário. Este último não é provocado pela ação farmacológica principal do fármaco. Um exemplo clássico de efeito secundário é a hipoplasia dentária e as manchas permanentes que ocorrem nos dentes em crescimento, provocadas pelos antibióticos do grupo das tetraciclinas (tetraciclina, oxitetraciclina, minociclina e doxiciclina). Em determinadas situações, os efeitos colaterais são utilizados como opção no tratamento de algumas doenças, como alternativa terapêutica (ver Tabela 1.7). Finalmente, podem ocorrer, numa minoria bem-selecionada da população, reações inesperadas durante o uso de fármacos que não são enquadradas nas categorias 27 já identificadas. São as reações idiossincrásicas, ou idiossincrasias, definidas como uma sensibilidade peculiar a determinado fármaco e motivadas por características singulares de algum sistema enzimático do paciente. São reações raras, inesperadas e independentes de dose, geralmente associadas a variações individuais geneticamente induzidas. Um exemplo clássico é a anemia hemolítica grave ocasionada por deficiência da glicose-6-fosfatodesidrogenase (G6PD), que pode ocorrer em 5 a 10% da população negra, do sexo masculino, pelo uso do antimalárico primaquina. Os efeitos idiossincrásicos exigem a suspensão do fármaco. A deficiência da G6PD é a mais freqüente enzimopatia conhecida, afetando cerca de 400 milhões de pessoas no mundo. Os eritrócitos deficientes de G6DP são incapazes de converter a NADP a NADPH em velocidade normal, não conseguindo remover o peróxido de hidrogênio ou os dissulfetos mistos da hemoglobina, formados após a absorção pelo organismo de xenobióticos e em alguns processos infecciosos. Ao que parece, muitas das reações adversas, dos efeitos colaterais e das reações idiossincrásicas são conseqüêntes de alterações farmacocinéticas que ocorrem especialmente nos processos oxidativos de biotransformação, pela variação dos sistemas envolvidos, como o CYP450 e suas isoformas, alterados por fatores genéticos e ambientais como a dieta, o consumo de bebidas alcoólicas, o uso do tabaco e o uso contínuo de determinados fármacos considerados indutores ou inibidores dos sistemas enzimáticos envolvidos nos processos de biotransformação. A Tabela 1.8 mostra algumas reações adversas que podem ocorrer pelo uso de alguns fármacos e as isoformas do CYP450 envolvidas. Nas reações de conjugação, também podem ocorrer variações individuais, alterando significativamente a farmacocinética dos medicamentos, com a ocorrência de reações adversas imprevisíveis. Assim, a depleção da glutationa-S-transferase está relacionada com a predisposição ao câncer. A irinotecana (Camptosar®) é um pró-fármaco com atividade antineoplásica cujo uso é restrito pela ocorrência de reações adversas como diarréia e neutropenia. O composto é biotransformado em uma forma ativa denominada SN-38 que sofre conjugação via UGT1A1, uma forma da UDP-glicuroniltransferase, produzindo um metabólito glicuronídeo com atividade de cerca de 1/50 a 1/100 em relação ao SN-38. A UGT1A1 é importante na reação de conjugação da bilirrubina. Portanto, nos pa- Tabela 1.7 EFEITOS COLATERAIS ÚTEIS Fármacos Uso terapêutico principal Uso terapêutico subseqüente Compostos tiazídicos Difenidramina Fenitoína Quinidina Atropina Diuréticos Anti-histamínico Anticonvulsivante Antimalárico Tratamento da hipermotilidade gástrica Anti-hipertensivo Sedativo Antiarrítmico Antiarrítmico Controle da salivação considerada excessiva 28 Lourival Larini Tabela 1.8 REAÇÕES ADVERSAS CAUSADAS POR ALTERAÇÕES EM ISOFORMAS DO CYP450 Isoformas Fármacos Reação adversa Varfarina Tolbutamida Fenitoína Hemorragia Hipoglicemia Toxicidade aumentada 2C19 Diazepam Sedação prolongada 2D6 β-bloqueadores Antidepressivos Antiarrítmicos Fenformina Bradicardia Confusão mental Arritmias Acidose láctica 2C9 cientes portadores de bilirrubinas elevadas, o uso da irinotecana acarreta o risco de ocorrência de neutropenia. A redução na atividade da UGT1A1 foi demonstrada em pacientes com as síndromes de Crigler-Najjar e de Gilbert. Uma reação adversa interessante é a discinesia tardia observada quando são administrados fármacos antipsicóticos. Ao que parece, esta é causada por uma supersensibilidade dos receptores D3 para a dopamina, caracterizados pela substituição do aminoácido serina pela glicina. A existência de formas polimorfas da acetilcolinesterase na exposição a compostos inibidores da enzima parece ser responsável pelos efeitos adversos neurológicos observados, ocasionalmente, quando do uso de anticolinesterásicos, como a piridostigmina, no tratamento da doença de Alzheimer. Um efeito adverso digno de nota é a arritmia cardíaca que ocorre em algumas pessoas quando da administração de cisaprida, terfenadina e tioridazina. A cisaprida (Cisapan®, Cispride®, Enteropride®, Pangest®), um estimulante gastrintestinal utilizado no tratamento do retardo do esvaziamento gástrico, do desconforto digestivo e da constipação, aumenta o risco de arritmias cardíacas por acarretar o prolongamento do intervalo QT no eletrocardiograma, motivado por alterações em vários canais iônicos responsáveis pela repolarização ventricular normal. O mesmo efeito ocorre quando há uso do antipsicótico tioridazina (Melleril®) ou da terfenadina (Fenasil®, Histadane®, Teldane® e Teldanil®), utilizada no tratamento da rinite alérgica e da urticária. A margem terapêutica de determinado fármaco ou formulação farmacêutica corresponde à relação entre a dose máxima tolerável (DMT) e a dose terapêutica ou concentração mínima necessária para o efeito terapêutico, ou concentração mínima efetiva (CME), ambas expressas em miligramas ou microgramas do fármaco por volume de sangue (litro ou mililitro) (ver “Biodisponibilidade”). AVALIAÇÃO TOXICOLÓGICA DOS FÁRMACOS No século XVII, na França, pela primeira vez uma substância foi banida do mercado em função de sua toxicidade. O fato foi motivado pelo uso freqüente do antimônio no tratamento da febre tifóide. Em 1937, nos Estados Unidos, 107 pessoas morreram em decorrência do uso de um elixir de sulfanilamida contendo dietilenoglicol na sua formulação, cujos efeitos tóxicos eram desconhecidos pelo fabricante. Essa tragédia motivou a criação da Food and Drug Administration (FDA), a qual foi incumbida da tarefa de investigar a segurança de novas drogas antes da permissão de comercialização. Em 1961, foi relatada na Alemanha Ocidental a ocorrência de um surto de focomelia em recém-nascidos de mães usuárias de talidomida, um composto hipnótico nãobarbitúrico. Esse incidente foi alvo de protestos públicos em todo o mundo, provocando a instituição de jurisdições e dispositivos legais para a regulamentação da comercialização de fármacos e o desenvolvimento de uma conduta rigorosa para a realização de ensaios com animais, ensaios pré-clínicos e clínicos na avaliação dos fármacos antes de sua comercialização e, por fim, o reconhecimento muito mais amplo e profundo dos efeitos adversos e dos métodos para detectá-los, inclusive de mecanismos para a denúncia da ocorrência desses efeitos em situações diversas. No Quadro 1.1 estão listados alguns fármacos que foram retirados do mercado farmacêutico. A avaliação toxicológica de um fármaco ou de uma formulação farmacêutica tem os seguintes objetivos: a) definir a classificação toxicológica para o composto em estudo; b) definir as informações necessárias sobre o emprego correto do fármaco ou de suas formulações; c) estabelecer medidas gerais para evitar intoxicações que possam ocorrer pelo uso inadequado; d) estabelecer medidas curativas a serem empregadas quando do uso inadequado do fármaco. A avaliação toxicológica de um fármaco ou de uma formulação farmacêutica é executada por meio de ensaios pré-clínicos com animais e, depois, por ensaios clínicos com humanos (fases I, II, III e IV). Os dados referentes à toxicologia pré-clínica envolvem os estudos da toxicidade aguda (dose única), subaguda (doses repetidas) e crônica (doses repetidas). Os estudos de toxicidade devem ser realizados pelo menos com três espécies de animais, de ambos os sexos, das quais uma deverá ser de mamíferos não-roedores. Os ensaios com animais são realizados conforme protocolos padronizados, para determinar os seguintes parâmetros e efeitos: a) b) c) d) toxicidade aguda; toxicidade crônica (curto, médio e longo prazos); potencial oncogênico (carcinogênico); efeitos sobre a fertilidade, embriotoxicidade e fetotoxicidade; e) efeitos neurotóxicos; f) hepatotoxicidade, nefrotoxicidade e cardiotoxicidade; Fármacos e medicamentos QUADRO 1.1 Fármacos retirados do mercado farmacêutico em razão da ocorrência de reações adversas Fármacos Ano da retirada Talidomida Benoxaprofeno Zimeldina Zomepirac Indoprofeno 1961 1982 1983 1983 1984 Nomifensina Suprofeno Terodilina Centoxina Remoxiprida Troglitazona Sertindol Rofecoxibe 1986 1987 1991 1993 1994 1997 1998 2004 Motivo Malformações congênitas Lesão hepática Hipersensibilidade Anafilaxia Sangramento gastrintestinal Anemia hemolítica Comprometimento renal Arritmias cardíacas Mortalidade aumentada Anemia aplástica Distúrbios hepáticos Arritmias cardíacas Acidente vascular cerebral e ataque cardíaco g) irritação e corrosão dérmica; h) irritação e opacidade da córnea; i) outros ensaios, conforme as indicações de uso do fármaco. No estudo da toxicidade aguda, devem ser utilizadas duas vias de administração, sendo uma delas relacionada com aquela recomendada para o uso terapêutico proposto e outra que assegure a absorção do fármaco. No estudo da toxicidade subaguda e crônica, a via de administração deve estar relacionada com a proposta de emprego terapêutico. A duração dos experimentos deve ser de, no mínimo, 24 semanas. FÁRMACOS NA GRAVIDEZ A preocupação em relação ao uso de fármacos durante a gravidez teve início com o incidente provocado pela talidomida. A talidomida foi sintetizada primeiramente como sedativo, em 1953, e causou um dos mais dramáticos episódios no uso de fármacos. O composto foi considerado excelente no tratamento dos enjôos matinais causados pela gravidez. Entretanto, em 1960, foi sugerido que a talidomida estava associada com neuropatias e, mais tarde, que foi a responsável por causar malformações em recém-nascidos. É interessante notar que, à época, na Alemanha, não foi claramente percebida a correlação entre o seu uso e a ocorrência de focomelia em bebês de mulheres que a haviam utilizado durante a gravidez. Foi retirada do mercado em 1961, com um saldo trágico de cerca de 8.000 crianças com malformação congênita em 46 países, inclusive no Brasil. A partir dessa tragédia, os países concluíram que os fármacos deveriam ser cuidadosamente estudados antes de serem aceitos para o uso terapêutico. Além de causar a focomelia, outras malforma- 29 ções, ou mesmo a morte fetal, e outras reações adversas, incluindo sonolência, neuropatia periférica, hipotensão ortostática e neutropenia estão associadas ao uso da talidomida. As evidências primárias que identificam o potencial embriotóxico e fetotóxico dos fármacos são de origem epidemiológica e experimental com animais de laboratório. Em animais, esses efeitos devem ser observados em pelo menos duas espécies, utilizando protocolos experimentais que envolvam a administração de doses diárias do fármaco em ratas grávidas durante toda a organogênese (21 dias) e em terços distintos da gravidez do animal. As anotações dos protocolos abrangem o peso do feto, o peso da placenta, os pontos de reabsorção, a contagem de corpos lúteos, a ocorrência de mortalidade precoce de embriões e fetos, as anomalias estruturais externas e internas dos órgãos e tecidos, as anomalias ósseas e o comportamento peri e pós-natal da prole, incluindo o desenvolvimento somático, neuromotor, sensorial e comportamental. No ser humano, o período do zigoto em divisão e na implantação, que ocorre nas duas primeiras semanas da gestação, não é suscetível a teratógenos. O período embrionário tem início ao final da segunda semana, atingindo a oitava semana. Nesta fase, ocorrem as principais anormalidades morfológicas, principalmente no sistema nervoso central, nos braços, nas pernas, nas orelhas e no palato. No período fetal a seguir (9 a 38 semanas), ocorrem os defeitos fisiológicos, com a incidência mínima de anormalidades morfológicas. Conforme os riscos que podem ocasionar durante a gravidez, os fármacos são classificados em cinco classes distintas, preconizadas pela FDA (ver Tabela 1.9). A – Estudos adequados e bem-controlados demonstram não haver evidências de riscos. B – Não há estudos adequados e bem-controlados em mulheres. Em animais não houve riscos. C – Não existem estudos adequados e bem-controlados em mulheres. Os estudos com animais demonstram a ocorrência de efeitos adversos. O benefício potencial pode justificar o risco potencial. D – Existem evidências positivas de riscos para o feto. Só utilizar o fármaco na gravidez se o benefício potencial justificar o risco potencial. X – Os estudos realizados com animais e os documentados com mulheres demonstram a existência de anomalias. Os riscos implicados no uso do fármaco duran- FIGURA 1.2 Estrutura química da talidomida. 30 Lourival Larini Tabela 1.9 CLASSIFICAÇÃO DOS FÁRMACOS NA GRAVIDEZ Classificação B Não existem estudos adequados e bem-controlados com mulheres gestantes. Os estudos de reprodução com animais demonstram a inexistência de riscos. Exemplos: Clortalidona, clozapina, famotidina, loratadina, metoclopramida, ranitidina, terbutalina, triantereno, zolpidem, etc. Classificação C O fármaco provoca efeitos adversos no feto em estudos com animais. Ausência de estudos adequados e controlados com mulheres. O benefício potencial justifica o risco provável. Exemplos: Alopurinol, bumetanida, clemastina, clindamicina, clobetasol, cloroquina, clorpromazina, codeína, colestiramina, dexametazona, diclofenaco, dipiridamol, droperidol, econazol, epinefrina, felodipina, fenfluramina, fenilefrina, fenilbutazona, fenoprofeno (primeiro e segundo trimestre), fluconazol, furosemida, glibenclamida, glipizida, metaraminol, metildopa, metoprolol, neomicina, nifedipina, omeprazol, pimozida, terazosina, terfenadina, trimetoprima, etc. Classificação D Existem evidências positivas de riscos para o feto. Só utilizar se o benefício potencial justificar o risco potencial. Exemplos: Ácido valpróico, alprazolam, citarabina, clorambucil, clorazepato, diazepam, estreptomicina, fenitoína, fenobarbital, fenoprofeno (no terceiro trimestre) metotrexato, primidona, etc. Classificação X Os estudos revelam anomalias durante a gestação. Não utilizar em hipótese alguma. Exemplos: Buclizina, ciproterona, clomifeno, estazolam, estradiol, estriol, etinilestradiol, flurazepam, nandronolona, nitrazepam, varfarina, etc. Estão incluídas neste grupo as vacinas da rubeóla e do sarampo. te a gravidez superam claramente os benefícios potenciais. Não utilizar em hipótese alguma. CLASSIFICAÇÃO DOS FÁRMACOS Existem diversos critérios para classificar os fármacos. Geralmente, são classificados conforme: a) A estrutura química: alcoóis, amidas, aminas (primárias, secundárias, terciárias e quaternárias), éteres, ésteres, ácidos carboxílicos, etc. b) A ação farmacológica: depressores do sistema nervoso central, estimulantes do sistemas nervoso central, antihistamínicos, etc. c) O uso terapêutico: antialérgicos, miorrelaxantes, anticonvulsivantes, antitérmicos, analgésicos, etc. d) Os mecanismos de ação: anticolinesterásicos, colinérgicos, noradrenérgicos, GABAérgicos, etc. Normalmente, é adotada a classificação farmacológico-terapêutica, incluindo na mesma os quimioterápicos, as vitaminas, os hormônios e os agentes diversos. Na classificação terapêutica, é utilizado o processo alfabético-mnemônico para facilitar a memorização. Neste processo, a letra A indica os fármacos analgésicos e anestésicos; a letra C, os fármacos cardiovasculares; a letra R, os que atuam no aparelho respiratório, etc. Na Tabela 1.10 estão relacionados os fármacos em grupos conforme o sistema alfa, desenvolvido por Zanini (1996). NOMES DOS FÁRMACOS Existem várias maneiras de designação dos fármacos. As mais importantes são: a) sigla, número do código ou designação do código; b) nome químico; c) nome registrado, nome patenteado, nome comercial ou nome próprio; d) nome genérico ou nome oficial; e) sinônimos e outros nomes. A sigla é formada, geralmente, com as iniciais do laboratório, do pesquisador ou do grupo de pesquisa responsável pela descoberta do fármaco ou pelos ensaios farmacológicos e toxicológicos necessários para a sua comercialização. Não identifica a estrutura química do fármaco. Deixa de ser usada logo que é escolhido um nome genérico adequado para o produto. O nome químico é o único que descreve a estrutura química do fármaco. É dado de acordo com as regras de nomenclatura dos compostos químicos. Identifica plena e exatamente a estrutura química e o isômero ou isômeros considerados ativos. Visto que, às vezes, é muito complexo e longo, o nome químico não é adequado para uso rotineiro. Entretanto, é extremamente útil aos especialistas por identificar de forma precisa o grupo a que pertence o composto e o seu mecanismo de ação. O nome químico deve ser escrito em letras minúsculas. Alguns exemplos de nomes químicos de fármacos: Atenolol = 4-[2-hidroxi-3-[(1-metiletil)-amino] –propoxibenzenoacetamida (anti-hipertensivo; bloqueador alfa-adrenérgico) Bromazepam = 7-bromo-1,3-diidro-5-(2-piridinil)2H-1,4-benzodiazepin-2-ona (ansiolítico benzodiazepínico) Difenidramina = 2-difenilmetoxi-N,N-dimetiletanamina (anti-histamínico; antialérgico) Fármacos e medicamentos 31 Tabela 1.10 CLASSIFICAÇÃO ALFABÉTICA/MNEMÔNICA/TERAPÊUTICA DOS FÁRMACOS A – Analgésicos, antiinflamatórios e anestésicos AA AC AE AG AI AL AM AO AZ – – – – – – – – – C – Cardiovasculares CA CB CD CE CH CK CS CV CZ – – – – – – – – – analgésicos-antitérmicos anticolinérgicos e antiespasmódicos analgésicos utilizados no tratamento da enxaqueca anestésicos gerais antiinflamatórios não-esteróides (FAINEs ou AINEs) anestésicos locais anestésicos miorrelaxantes analgésicos opióides e opiáceos outros utilizados no tratamento de arritmias betabloqueadores cardiovasculares diuréticos inibidores da ECA utilizados no tratamento da hipertensão bloqueadores de canais iônicos simpatomiméticos e hipertensores vasodilatadores e antianginosos outros D – Fármacos que atuam no aparelho digestório DA DB DC DD DE DL DP DZ – – – – – – – – antiácidos e antiulcerosos boca e orofaringe constipantes (antidiarréicos) digestivos e antifiséticos antieméticos laxativos peso e alimentação (orexígenos, anorexígenos e dietéticos) outros E – Eletrólitos e nutrientes EN ER ES EV EZ – – – – – nutrientes pela via oral (ENo) ou parenteral (ENp) reposição de eletrólitos e minerais soluções parenterais contendo eletrólitos e diluentes vitaminas outros G – Fármacos que atuam no aparelho geniturinário GC GO GT GU GZ – – – – – H – Hormônios HC HD HF HM HT HZ – – – – – – I – Fármacos imunológicos contraceptivos (tópicos e sistêmicos) ocitócicos (estimulantes) e inibidores da contração uterina para uso tópico em órgãos genitais vias urinárias (oral e injetáveis) outros corticosteróides utilizados no tratamento do diabete hormônios femininos hormônios masculinos tireóide (tireoidianos e antitireoidianos) outros fármacos com ação hormonal e anti-hormonal IA – alergia (anti-histamínicos) IE – imunoestimulantes IM – imunomoduladores e supressores Fentolamina = m-[N-(2-imidazolin-2-ilmetil)p-toluidino-fenol (bloqueador alfa-adrenérgico) IP – imunoprotetores (imunoglobulinas, soros e vacinas) IZ – outros N – Fármacos neurológicos NC NM NP NZ – – – – O – Fármacos utilizados em oftalmologia e otologia utilizados no tratamento de convulsões e na epilepsia miorrelaxante de ação central utilizados no tratamento da doença de Parkinson outros OF – uso em oftalmologia OT – uso em otologia P – Fármacos utilizados em psiquiatria PA PE PP PS PZ – – – – – Q – Fármacos quimioterápicos sistêmicos antidepressivos e analépticos psicoanalépticos utilizados no tratamento de psicoses e de demência sedativos e ansiolíticos outros QB – utilizados na quimioterapia bacteriana (sulfas, penicilinas, etc.) QM – utilizados no tratamento de micoses QN – utilizados no tratamento de neoplasias QP – utilizados no tratamento de parasitoses QV – utilizados no tratamento de viroses (antivirais) QZ – outros R – Fármacos utilizados no aparelho respiratório RB RG RN RT RZ – – – – – broncodilatadores e antiasmáticos utilizados no tratamento da gripe nariz tosse e expectoração outros S – Hemoterápicos e similares SA SC SF SH SS SZ – – – – – – T – Fármacos de uso tópico (pele e mucosas) TA TH TQ TR TS TZ – – – – – – V – Vários VA VD VG VH VS VZ – – – – – – anticoagulantes coagulantes e hemostáticos fibrinolíticos hemopoiese substitutos do sangue outros aparência e proteção de pele e mucosas hormônios de uso tópico quimioterápicos de uso tópico via retal (anti-hemorroidários e outros) (supositórios) tópicos de uso sintomático (anestésicos e antiinflamatórios) outros antídotos e antagonistas (tratamento das intoxicações) agentes de diagnóstico produtos de origem vegetal (plantas medicinais) homeopatia soluções diluentes e para hemodiálise, etc. outros fármacos não-classificados nos itens anteriores Furosemida = ácido 5-(aminosulfonil)-4-cloro2-[2-furanilmetil)amino]benzóico (diurético) 32 Lourival Larini Medazepam = 7-cloro-2,3-diidro-1-metil-5-fenil1H-1,4-benzodiazepina (ansiolítico benzodiazepínico) Metoclopramida = 4-amino-5-cloro-N-[(2-dietilamino)etil-2-metoxi-benzamida (antiemético) Nifedipino = éster dimetílico do ácido 1,4-diidro2,6-dimetil-(2-nitrofenil)-3,5piridinodicarboxílico (vasodilatador arterial periférico) Prometazina = N,N-alfa-trimetil-10H-fenotiazina10-etanamina (antialérgico) a) a Lei nº 6.360, de 23 de setembro de 1976, que dispõe sobre a vigilância sanitária a que ficam sujeitos os medicamentos, as drogas, os insumos farmacêuticos e correlatos, os cosméticos, os saneantes e outros produtos; b) a Lei nº 9.787, de 10 de fevereiro de 1999, que altera a lei anterior e estabelece o medicamento genérico, dispõe sobre a utilização dos nomes genéricos em produtos farmacêuticos e determina outras providências sobre o assunto. O nome registrado refere-se ao nome individual selecionado e usado pelo laboratório fabricante do fármaco. Corresponde ao medicamento inovador, aquele que apresenta uma marca comercial e que obteve o primeiro registro para comercialização. Se o medicamento é fabricado por mais de uma companhia, como acontece com freqüência, cada empresa tem o seu próprio nome registrado para este. Às vezes, o nome patenteado refere-se a uma formulação e não a uma única substância química. O nome patenteado deve ser escrito com iniciais maiúsculas em cada palavra do nome do composto. O nome genérico refere-se ao nome comum pelo qual um fármaco é conhecido como substância isolada, sem levar em conta o fabricante. O nome genérico de um fármaco deve ser simples, conciso e significativo. É sempre escrito em letras minúsculas, inclusive a inicial. Este nome é escolhido pelos órgãos oficiais. Nos Estados Unidos, o órgão regulador é o U. S. Adopted Names Council (USAN), patrocinado pela American Medical Association (AMA), pela American Pharmaceutical Association (APhA), pela U. S. Pharmacopeial Convention e pela U. S. Food and Drug Administration (FDA). Na Inglaterra, o órgão encarregado da mesma tarefa é a Britsh Pharmacopeial Commission. No Brasil, é a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA), órgão do Ministério da Saúde. Em escala mundial, contudo, a Organização Mundial de Saúde é o órgão oficial incumbido de selecionar, aprovar e divulgar os nomes oficiais de fármacos. Na indicação do nome do fármaco existem regras básicas que devem ser obedecidas, com a finalidade de padronizá-lo conforme o grupo químico a que pertence. Assim, algumas sílabas utilizadas como prefixo ou sufixo no nome oficial permitem identificar o grupo ao qual o fármaco pertence. Entretanto, algumas vezes, um mesmo sufixo pode ser utilizado como indicativo de mais de um grupo de fármacos. Assim, o sufixo amida é indicativo de fármacos inibidores da anidrase carbônica e de hipoglicemiantes orais; o sufixo amina é indicativo de fármacos anti-histamínicos e de antidepressivos tricíclicos; o sufixo aco é indicativo dos antiinflamatórios do grupo do ibufenaco; o sulfixo arol, dos anticoagulantes do grupo do dicumarol, etc. Alguns exemplos estão indicados na Tabela 1.11. No Brasil, dois dispositivos legais regulamentam o assunto: O medicamento genérico corresponde ao medicamento similar a um produto de referência ou inovador, que se pretende que seja com este intercambiável, geralmente produzido após o término ou renúncia da patente ou de outros direitos de exclusividade, comprovada a sua eficácia, segurança e qualidade. É designado pela Denominação Comum Brasileira (DCB) e, na sua ausência, pela Denominação Comum Internacional (DCI), recomendada pela Organização Mundial da Saúde. A intercambialidade dos medicamentos genéricos não tem base apenas nos testes laboratoriais exigidos pela ANVISA antes de conceder o registro e permitir a comercialização desses medicamentos no País. As linhas de produção dos medicamentos genéricos são constantemente inspecionadas e precisam obedecer rigorosamente aos padrões estabelecidos em um regulamento de Boas Práticas de Fabricação (BPF). As BPF constituem-se num conjunto de procedimentos que asseguram a produção de medicamentos dentro de padrões de qualidade, envolvendo todas as etapas de fabricação, desde o fornecimento da matéria-prima até o armazenamento do produto final. Na fabricação do medicamento genérico, o cumprimento das BPF é essencial, porque assegura que os produtos não apresentam diferença em relação aos lotes que foram submetidos aos ensaios de laboratório e que mantêm as mesmas qualidades que exibiam por ocasião do registro como genérico. Assim, as BPF têm a finalidade precípua de garantir, de maneira contínua, a intercambialidade dos medicamentos genéricos. A publicação do Certificado de Boas Práticas de Fabricação (CBPF) no Diário Oficial da União (DOU) constitui o pré-requisito exigido pela ANVISA para a comercialização dos medicamentos genéricos. Isso significa que os fabricantes de medicamentos genéricos precisam, obrigatoriamente, demonstrar que seguem, no processo produtivo, padrões que asseguram a qualidade dos medicamentos disponíveis no mercado. O medicamento de referência corresponde ao produto inovador registrado no órgão federal responsável pela vigilância sanitária e comercializado no Brasil, cuja eficácia, segurança e qualidade foram comprovadas cientificamente junto a esse órgão por ocasião do pedido de registro. No comércio farmacêutico é comum indicar o medicamento de referência pela expressão “produto ético”. Por este último dispositivo legal, os seguintes conceitos são importantes: Fármacos e medicamentos 33 Tabela 1.11 SÍLABAS (PREFIXOS E SUFIXOS) UTILIZADOS NOS NOMES OFICIAIS DOS FÁRMACOS 1. Antibióticos derivados do ac. 6-aminopenicilânico (penicilinas) – cilina: ampicilina, amoxilina, metampicilina, oxacilina, etc. 2. Antibióticos betalactâmicos (cefalosporinas) – cef (prefixo): cefalexina, cefuroxima, cefazolina, cefaclor, etc. 3. Antibióticos derivados da tetraciclina – ciclina: tetraciclina, metaciclina, oxitetraciclina, doxiciclina, etc. 4. Antibióticos aminoglicosídicos – micina: estreptomicina, canamicina, gentamicina, neomicina, etc. 5. Alcalóides e bases orgânicas relacionadas – ina: cafeína, atropina, escopolamina, homatropina, estricnina, etc. 6. Anestésicos locais – caína: lidocaína, procaína, tetracaína, benzocaína, etc. 7. Anti-hipertensivos a) Antagonistas dos receptores alfa-1: – zosina: prazosina, terazosina, doxazosina, etc. b) Antagonistas dos receptores beta: – olol: propranolol, oxiprenolol, atenolol, timolol, practolol, metoprolol, etc. c) Inibidores da enzima conversora de angiotensina (ECA) – pril: captopril, enalapril, perindopril, ramipril, etc. d) Bloqueadores dos canais de cálcio: – dipino: lacidipino, manidipino, nitrendipino. e) Antagonistas do receptor da angiotensina II: – sartano: losartano, temilsartano, valsartano, etc. f) Análogos de prostaglandinas (tratamento da hipertensão ocular): – prost: bimatoprost, latanoprost e travoprost 8. Ansiolíticos benzodiazepínicos a) Compostos 5-aril –1,4-benzodiazepínicos: – azepam: diazepam, medazepam, bromazepam, nitrazepam, lorazepam, etc. b) Compostos diazóis e triazóis: – azolam: midazolam, triazolam, etc. 9. Antifúngicos (azóicos) – azol: miconazol, cetoconazol, fluconazol, econazol, tioconazol, clotrimazol, etc. 10. Antimaláricos (quinolínicos) – quina: mefloquina, cloroquina, primaquina, etc. 11. Anti-helmínticos (benzimidazóicos) – (bend)azol: mebendazol, tiabendazol, albendazol, etc. 12. Anticolinesterásicos (colinérgicos) – stigmina: neostigmina, fisostigmina, etc. 13. Antiinflamatórios não-esteróides a) oxicans: – oxicam: piroxicam, tenoxicam, etc. b) pirazolonas: –azona: fenilbutazona, azapropazona, etc. 14. Andrógenos sistêmicos – sterona: testosterona, fluoximesterona, metiltestosterona, etc. 15. Anticonvulsivantes a) Hidantoínicos: – toína: fenitoína, mefenitoína, etotoína, etc. b) Succimídicos: – suximida: etosuximida, metosuximida, fensuximida, etc. 16. Antidepressivos tricíclicos – ipramina: imipramina, clorimipramina, trimipramina, etc. – triptilina: amitriptilina, nortriptilina, protriptilina, etc. 17. Anti-serotoninérgicos antieméticos – setrona: dolasetrona, granisetrona, ondansetrona e tropisetrona. 18. Anti-histamínicos a) Antagonistas dos receptores H1 (compostos amínicos): – amina: bronfeniramina, carbinoxamina, clorfenamina, difenidramina, doxilamina b) Antagonistas dos receptores H2: – tidina: cimetidina, ranitidina, famotidina, nizatidina, etc. 19. Broncodilatadores adrenérgicos – alina: terbutalina, orciprenalina, isoprenalina, etc. – rina: efedrina, epinefrina, etc. – ol: fenoterol, bitolterol, salbutamol, etc. 20. Descongestionantes nasais – azolina: nafazolina, oximetazolina, etc. 21. Derivados do ácido barbitúrico (hipnóticos) – barb(al): barbital, fenobarbital, pentobarbital, alobarbital 22. Digitálicos glicosídeos – oxina: digitoxina, digoxina, etc. 23. Diuréticos que atuam no túbulo distal – azida: clorotiazida, flumetiazida, benzotiazida, hidroclorotiazida, etc. 24. Esteróides anabolizantes – olona: nandrolona, oxandrolona, oximetolona, etc. 25. Hipoglicemiantes orais – amida: clorpropamida, tolazamida, tolbutamida, etc. 26. Hipoglicemiantes sulfoniluréias (sulfamídicos) – gli (prefixo): glibenclamida, glipizida, glicazida, etc. 27. Inibidores da anidrase carbônica – amida: acetazolamida, diclofenamida, metazolamida, etc. 28. Neurolépticos a) Butirofenonas: – peridol: haloperidol, trifluoperidol, bemperidol, droperidol, etc. b) Fenotiazínicos: – azina: clorpromazina, levomepromazina, tioridazina, propericiazina, etc. 29. Antibacterianos (sulfonamídicos) – sulf (prefixo): sulfametoxazol, sulfafurazol, sulfadiazina, etc. O produto farmacêutico intercambiável corresponde ao equivalente terapêutico de um medicamento de referência, quando comprovados, essencialmente, os mesmos efeitos de eficácia e de segurança. O medicamento similar deve conter o mesmo ou os mesmos princípios ativos, com idêntica concentração, mesma forma farmacêutica, via de administração, posologia e indicação terapêutica (preventiva ou diagnóstica) do medicamento de referência registrado no órgão federal responsável pela vigilância sanitária. Podem diferir somente em características relativas a tamanho e forma do produto, prazo de validade, embalagem, rotulagem, excipientes e veículos, devendo sempre ter identificado o seu nome comercial. A bioequivalência consiste na demonstração da equivalência farmacêutica entre produtos apresentados sob a mesma forma farmacêutica, contendo idêntica composição qualitativa e quantitativa do(s) princípio(s) ativo(s), e que tenham comparável biodisponibilidade quando estudados sob um mesmo protocolo experimental. 34 Lourival Larini A biodisponibilidade indica a velocidade e a extensão de absorção de um determinado componente ativo presente na formulação farmacêutica, a partir de sua curva de concentração versus tempo na circulação sistêmica ou sua excreção na urina. A biodisponibilidade é determinada comparando os níveis plasmáticos do fármaco após a sua administração por determinada via (oral, p. ex.) com os níveis deste mesmo fármaco atingidos no plasma após a administração endovenosa. Colocando em gráfico próprio as concentrações plasmáticas do fármaco versus tempo, é possível determinar a área sob a curva (ASC) para as duas vias de administração. Estas duas curvas refletem a extensão da absorção do fármaco. Por definição, é de 100% para o fármaco administrado pela via endovenosa. Mais informações sobre a biodisponibilidade dos fármacos são apresentadas no capítulo sobre farmacocinética. Na Tabela 1.12 estão listados alguns medicamentos genéricos e de referência, com as indicações de uso. PRESCRIÇÃO DE FÁRMACOS Todos os médicos têm a responsabilidade de controlar o uso abusivo ou irracional dos fármacos, especialmente aqueles que geram estado de dependência ou síndrome da abstinência. Para os pacientes que necessitam do uso prolongado de determinada medicação, a repetição da prescrição é um sistema que permite ao médico manter a supervisão adequada, melhorando, sempre que possível, a eficiência do tratamento e o acerto das doses posológicas. Em todas as situações o médico deve assegurar-se de que a prescrição a longo prazo é justificável, o que requer uma consul- Tabela 1.12 EXEMPLOS DE MEDICAMENTOS GENÉRICOS Genérico Referência Indicação de uso aciclovir ácido mefenâmico albendazol alopurinol aminofilina amoxicilina ampicilina atenolol bromazepam bromoprida captropil carbamazepina carbocisteína cefalexina cefazolina (sal sódico) cimetidina ambroxol (cloridrato) biperideno (cloridrato) betametasona dexametasona diazepam diltiazem (cloridrato) dipirona doxicilina (cloridrato) fluconazol enalapril fluoxetina furosemida glibenclamida metoclopramida (cloridrato) mebendazol nistatina norfloxacino omeprazol sódico paracetamol piroxicam ranitidina salbutamol ticlopidina trimetroprima zopiclona Zovirax® Ponstan® Zentel® Zyloric® Aminofilina® Amoxil® Amplacilina® Atenol® Lexotan® Digesan® Capoten® Tegretol® Mucolitic® Keflex® Kefazol® Tagamet® Mucosolvan® Akineton® Betnovate® Decadron® Valium® Cardizem® Novalgina® Vibramicina® Zoltec® Renitec® Prozac® Lasix® Daonil® Plasil® Pantelmin® Micostatin® Floxacin® Losec® Tylenol® Feldene® Antak® Aerolin® Ticlid® Bactrim® Imovane® Antivirótico Analgésico e antiinflamatório Anti-helmíntico Antigotoso Broncodilatador Antibiótico Penicilina de amplo espectro Anti-hipertensivo Ansiolítico benzodiazepínico Antiemético Anti-hipertensivo Anticonvulsivante Expectorante Antibiótico Antibiótico (cefalosporinas) Antiúlcera Expectorante Antiparkinsoniano Glicocorticóide Glicorticóide Ansiolítico Antianginoso e vasodilatador Analgésico Antibiótico Antimicótico Anti-hipertensivo Antidepressivo Diurético Antidiabético Antiemético e antinauseante Anti-helmíntico Antimicótico Antibiótico Inibidor da secreção gástrica Analgésico Antiinflamatório Antiúlcera Broncodilatador Antiagregante plaquetário Sulfa Hipnótico Fármacos e medicamentos ta com o paciente. O sistema deve ser monitorado com a ajuda de um computador, em um arquivo contendo todos os dados do paciente, os fármacos prescritos, doses, número de tomadas diárias, vias de administração, datas, efeitos colaterais e adversos observados durante o tratamento, as interações medicamentosas, a adesão do paciente e as datas para novas consultas. Algumas abreviaturas são utilizadas no receituário e, por isso, é conveniente que o profissional farmacêutico esteja familiarizado com as mais usuais, indicadas na Tabela 1.13. A prescrição médica pode ser impressa ou escrita em letra cursiva legível. Tabela 1.13 ABREVIATURAS COMUMENTE UTILIZADAS NAS PRESCRIÇÕES MÉDICAS Abreviatura b.d. ou b.i.d. i.m. ou I.M. i.v. ou I.V. o.d. o.m. o.n. p.o. P.R. P.V. q.s. q.s.p. s.c. f.s.a Significado em latim Significado em português bis in die Duas vezes ao dia Intramuscular Intravenosa Uma vez ao dia Uma vez pela manhã Uma vez à noite Pela via oral Pela via retal Pela via vaginal Quantidade suficiente Quantidade suficiente para Pela via subcutânea Faça segundo a arte omni die omni mane omni nocte per os per rectum per vaginam quantum satis 35 REFERÊNCIAS BRAWN, L. A.; CASTLEDEN, C. M. Adverse drug reactions: an overview of special considerations in the management of the elderly patient. Drug Safety, v. 5, n. 6, p. 421-435, 1990. GAIT, J. E.; SMITH, S.; BROWN, S.,L. Evaluation of safety data from controlled clinical principles explained. Drugs Information Journal, v. 34, p. 273-87, 2000. HAMMERLEIN, A.; DERENDORF, H.; LOWENTHAL, D.T. Pharmacokinetic and pharmacodinamic changes in the elderly. Clinical implications. Clinical Pharmacokinetics, v. 35, n. 1, p. 49-64, 1998. KOREN, G.; COHEN, M. S. 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