Carvalho e cols Obstrução da via de saída após plastia valvar mitral Arq Bras Relato deCardiol Caso 2002; 78: 122-5. Obstrução da Via de Saída do Ventrículo Esquerdo após Plastia Valvar Mitral com Implante do Anel de Gregori Roberto G. de Carvalho, Gustavo K. Pimentel, Luciano de Oliveira, Márcia M. da Silveira, Alexandre Alessi, Dalton B. Precoma Curitiba, PR A plastia da valva mitral é eficiente para correção da valvopatia mitral com poucas complicações. Mas, em alguns casos, pode ocorrer obstrução da via de saída do ventrículo esquerdo pelo movimento anterior sistólico da valva mitral. Descrevemos o caso de paciente apresentando esta complicação, com gradiente pressórico entre ventrículo esquerdo e aorta de 130mmHg, após plastia mitral com implante do anel de Gregori. A conduta foi clínica com a retirada das drogas vasoativas e introdução de betabloqueador. Após dois anos de pós-operatório o paciente está assintomático e com vida normal. A plastia valvar mitral é um procedimento reprodutível em que a melhora do grau funcional é significativa e eficaz no tratamento da insuficiência e dupla lesão mitral, devendo ser realizada sempre que possível 1. Como complicação, é descrita obstrução da via de saída do ventrículo esquerdo devido ao movimento anterior sistólico da valva mitral 2-7. Os primeiros a descreverem esta complicação foram Termini e cols. 2, em 1977. A incidência tem variado de 2,7% a 10% 3,5,7. A conduta terapêutica é controversa entre substituição valvar 3,6 e tratamento clínico 2,4,5. É relatado um caso de grave obstrução da via de saída do ventrículo esquerdo após plastia valvar mitral com implante do anel de Gregori, em que o tratamento clínico consistiu na retirada das drogas vasoativas e introdução de betabloqueador. É o primeiro caso relatado na literatura com o emprego do anel de Gregori. Relato do caso Homem, branco, 46 anos, apresentando dispnéia aos grandes esforços. Ao exame físico, obeso com índice da Serviço de Cirurgia Cardíaca do Hospital Nossa Senhora das Graças – Curitiba Correspondência: Roberto G. de Carvalho – Rua Padre Anchieta, 1923 – 17º conj. 1704 – 80730-000 – Curitiba, PR - E-mail: [email protected] Recebido para publicação em 11/8/00 Aceito em 22/11/00 massa corporal de 34,54kg/m2 e brevelíneo. A ausculta cardíaca revelava sopro sistólico de regurgitação de 3+/4, com irradiação para axila e ritmo regular. O estudo ecocardiográfico demonstrou aumento do átrio esquerdo e diminuição da função ventricular esquerda (tab. I). Havia prolapso importante da cúspide anterior devido à rotura das cordas tendíneas, permitindo refluxo acentuado. A cinecoronariografia revelou lesão obstrutiva de 60% no terço inicial do ramo interventricular anterior. Tendo em vista esses dados, foi indicado tratamento cirúrgico, que consistiu na revascularização do ramo interventricular anterior por meio da artéria torácica interna esquerda. Na valva mitral, havia dilatação do anel, prolapso da cúspide anterior e rotura de grupo de cordas tendíneas na sua parte medial. Observou-se que o aspecto da valva era compatível com degeneração mixomatosa com tecido redundante de ambas as cúspides. A correção do prolapso valvar consistiu na transposição de cordas tendíneas da cúspide posterior para a anterior e, para correção da dilatação do anel, foi implantado anel de valvuloplastia de Gregori, nº 36. O teste per-operatório não demonstrou refluxo através da valva mitral. Não houve dificuldades da desconexão da circulação extracorpórea e o paciente foi encaminhado à unidade de tratamento intensivo. Após 18h de evolução, foi necessário uso de drogas vasoativas, tendo em vista a piora do quadro hemodinâmico. Mesmo com aumento das drogas, não houve melhora das condições hemodinâmicas, principalmente, da freqüência cardíaca mantida sempre elevada. À ausculta cardíaca surgiu sopro sistólico em todo precórdio. Foi realizado estudo ecocardiográfico transesofágico que revelou obstrução importante da via de saída do ventrículo esquerdo, devido ao movimento anterior sistólico da valva mitral. Havia contato completo da cúspide anterior com o septo interventricular levando a um gradiente de pressão sistólico entre ventrículo esquerdo e aorta de 130mmHg (fig. 1). Apesar do elevado gradiente pressórico, a conduta foi tratamento clínico com a retirada das drogas vasoativas, bem como digital e diurético. Foi iniciado uso de betabloqueador intravenoso (30mg/dia) e aumento do volume circulante efetivo, por meio de infu- Arq Bras Cardiol, volume 78 (nº 1), 122-5, 2002 122 Arq Bras Cardiol 2002; 78: 122-5. Carvalho e cols Obstrução da via de saída após plastia valvar mitral Tabela I - Dados ecocardiográficos do período pré-operatório e após 1 e 7 dias e 2 anos da operação Dados ecocardiográficos DDVE AE Septo IV (mm) (mm) (mm) PRÉ PÓS-1d PÓS-7d PÓS-2a 51 59 53 59 49 38 10 11 11 Encurtamento Fração de Grad. (%) ejeção mmHg 39 23 38 0,70 0,45 0,76 0 130 5 0 AE- átrio esquerdo; DDVE- dimensão diastólica do ventrículo esquerdo; Grad. mmHg- gradiente de pressão em milímetros de mercúrio entre ventrículo esquerdo e aorta; IV- interventricular; PRÉ- período préoperatório; PÓS-1d- primeiro dia do período pós-operatório; PÓS-7dsétimo dia do período pós-operatório; PÓS-2a- período de 2 anos de pós-operatório; mm- milímetros. são de sangue e derivados. Após essas medidas, houve melhora gradativa do quadro hemodinâmico. Estudo ecocardiográfico realizado após seis dias não demonstrou mais obstrução da via de saída do ventrículo esquerdo (gradiente de pressão entre ventrículo esquerdo e aorta apenas de 5mmHg) e eficiência da plastia valvar mitral. A evolução da dosagem das drogas e dos parâmetros hemodinâmicos estão apresentadas na figura 2. A tabela I apresenta a evolução dos dados ecocardiográficos. O paciente recebeu alta hospitalar no 10° dia de pósoperatório e após dois anos da operação está assintomático e com vida normal. Discussão Após a primeira descrição do movimento anterior sistólico da valva mitral, levando à obstrução da via de saída do ventrículo esquerdo, publicada por Termini e cols. 2 em 1977, alguns estudos têm sido publicados 3-10. Alguns tra- Fig. 1 – Estudo ecocardiográfico demonstrando o movimento anterior sistólico da cúspide anterior da valva mitral, causando obstrução da via de saída do ventrículo esquerdo. AE- átrio do esquerdo; VE- ventrículo esquerdo; VSVE- via de saída do ventrículo esquerdo; SAM- movimento anterior sistólico da valva mitral. Obs.: exame realizado no momento em que o gradiente de pressão entre ventrículo esquerdo e aorta era de 130mmHg. Fig. 2 – Evolução dos parâmetros hemodinâmicos da freqüência cardíaca (bpm), pressão arterial média (mmHg) e pressão do átrio esquerdo (mmHg). balhos comentam os mecanismos de ação da obstrução da via de saída do ventrículo esquerdo e os fatores desencadeantes 3,5,8, outros a técnica cirúrgica para sua prevenção 9,10 e também a sua evolução tardia 5-7. O presente trabalho trata-se do primeiro caso, descrito na literatura nacional, de obstrução da via de saída do ventrículo esquerdo após o implante do anel de Gregori. Os aspectos anatômicos são peculiares neste tipo de complicação, como, por exemplo, o complexo mitral. No presente caso, existia redundância do tecido valvar de ambas as cúspides, uma vez que a etiologia mais freqüente é a degeneração mixomatosa. Na experiência de Lee e cols. 3, dos 1045 pacientes submetidos à plastia valvar mitral, os 22 pacientes que apresentaram obstrução da via de saída do ventrículo esquerdo tinham essa entidade patológica. Fato também observado por Schiavone e cols. 6 que, em 200 casos operados com degeneração mixomatosa, a obstrução da via de saída do ventrículo esquerdo ocorreu em 12 pacientes, observando que a moléstia reumática dificilmente pode ser causa dessa complicação, devido à rigidez das cúspides e das cordas tendíneas. O acometimento é mais freqüente na cúspide posterior que na anterior, conforme foi observado por Kupferschmid e cols. 4 e, em 50% (41 casos em 82 pacientes) na experiência de Jebara e cols. 10. No nosso paciente havia redundância da cúspide anterior, bem como rotura de suas cordas tendíneas. As alterações das dimensões ventriculares após a correção cirúrgica favorecem ao aparecimento da obstrução da via de saída do ventrículo esquerdo. Quando ela ocorreu, foi observada diminuição significativa do seu diâmetro após a plastia valvar 3,6,7. Na experiência de Lee e cols. 3, houve redução do diâmetro da via de saída do ventrículo esquerdo de 26,5mm no pré-operatório, para 17,4mm no pósoperatório. Schiavone e cols. 4 observaram uma redução de 31% deste diâmetro (de 32mm para 22mm). Galler e cols. 7 relataram diminuição do diâmetro de 28,1mm para 22,8mm do pré para o pós-operatório, respectivamente. Como conseqüência, esse estreitamento da via de saída faz aumentar a velocidade do fluxo sangüíneo (efeito Bernoulli) e, assim, a cúspide anterior se desloca na direção do septo interventri123 Carvalho e cols Obstrução da via de saída após plastia valvar mitral cular (efeito Venturi). Além disto, a redução do diâmetro d0iastólico final do ventrículo esquerdo após a plastia tem valor significativo, conforme observamos 1. A redução da cavidade ventricular esquerda associada ao estreitamento da via de saída do ventrículo esquerdo e excesso de tecido das cúspides da valva mitral favorecem o aparecimento do movimento anterior sistólico. O estreitamento da via de saída do ventrículo esquerdo leva à presença de gradiente pressão entre ventrículo esquerdo e aorta. No caso relatado, o gradiente de pressão medido no momento de maior descompensação hemodinâmica era de 130mmHg. Alguns trabalhos têm relatado esse gradiente 5-7. Grossi e cols. 5, na sua experiência de 28 casos, relataram apenas um caso com gradiente superior à 100m m Hg. Schiavone e cols. 6, em 12 casos com movimento anterior sistólico, cinco pacientes apresentaram gradiente entre 40 e 90mmHg, e Galler e cols. 7 mostraram que o gradiente já era menor, entre 10 e 64mmHg. Desta forma, observamos que o nosso paciente apresentou um dos maiores gradientes relatados na literatura. A medida do valor pressórico é útil para o controle evolutivo. Na experiência de Grossi e cols. 5, em 100% dos casos houve regressão completa no prazo de 32 meses, semelhante ao caso descrito em que, após 24 meses, já não havia gradiente. Em relação ao tipo de anel utilizado para a valvuloplastia, pensava-se que um dos fatores desencadeantes ao aparecimento do movimento anterior sistólico, seria a presença do anel rígido 5,7. Seu emprego deslocaria a parede posterior em direção ao septo interventricular, diminuindo o ângulo mitro-aórtico. Mas foi observado que a obstrução da via de saída do ventrículo esquerdo ocorria mesmo nos pacientes onde não fora empregado o anel, como no primeiro caso descrito na literatura 2, e também por Kupferschmid e cols. 4. O grupo da Cleveland Clinic 3 relatou 22 casos de obstrução da via de saída do ventrículo esquerdo, sendo que em 14 casos foi utilizada tira de pericárdio bovino para a anuloplastia posterior. O anel de Gregori é considerado semi-rígido pelo fato de somente a parte posterior ser rígida 1, mas este fato não impede o aparecimento da obstrução da via de saída do ventrículo esquerdo. Após a plastia mitral, onde existe excesso de tecido das cúspides, o seu ponto de coaptação ocorre mais anteriormente, ou seja, mais perto da via de saída do ventrículo esquerdo. Deste modo, independente da presença ou não do anel rígido ou flexível, pode ocorrer a obstrução da via de saída do ventrículo esquerdo. Em estudo experimental realizado por Dagum e cols. 8, foram avaliados dois tipos de anel, um flexível (Duran) e outro semi-flexível (PhysioRing), para explicar o mecanismo de obstrução da via de saída do ventrículo esquerdo após a anuloplastia mitral. No emprego do anel semi-flexível foi observado que, no período máximo da ejeção ventricular, toda a estrutura da valva mitral (cúspides, cordas tendíneas e músculo papilar), se move em direção ao septo interventricular. Assim, levando o anel semi-flexível à perturbação dinâmica do anel mitral, causando alterações na geometria dos músculos papilares, o que não aconteceu com o anel flexível. Basicamente, existem duas técnicas operatórias para 124 Arq Bras Cardiol 2002; 78: 122-5. prevenir o aparecimento do movimento anterior sistólico 9,10. A mais empregada é descrita por Jebara e cols. 9. Como existe excesso de tecido das cúspides, principalmente da posterior, essa técnica "sliding leaflet" tem a finalidade de diminuir a altura da cúspide posterior, evitando que o ponto de coaptação das cúspides se localize mais anteriormente, ou seja, na via de saída do ventrículo esquerdo. Antes dessa técnica, o índice de movimento anterior sistólico era de 14% e nulo após a realização do procedimento. Esta técnica deve ser empregada nos pacientes de risco, ou seja, cavidade ventricular esquerda normal ou pequena, excesso de tecido das cúspides da valva mitral, implante ou não do anel de valvuloplastia, ressecção quadrilateral ampla da cúspide posterior e etiologia como degeneração mixomatosa ou fibroelástica da valva mitral. Outra técnica, descrita por Grossi e cols. 10, consiste na ressecção triangular da cúspide anterior. Antes do seu emprego, a incidência do movimento anterior sistólico era de 9,1% e, após, de 3,4%. Quando a cúspide anterior é exuberante (síndrome de Barlow), após o implante do anel de valvuloplastia, o ponto de coaptação da cúspide anterior com a posterior será bem mais perto do septo, levando à obstrução da via de saída. A ressecção triangular tem a finalidade de aumentar a distância entre o ponto de coaptação das cúspides e o septo interventricular. A conduta na obstrução da via de saída do ventrículo esquerdo ainda é controversa entre a substituição valvar mitral ou refazer a plastia 3,6 e o tratamento clínico 2,4,5. Lee e cols. 3 optaram pela substituição valvar mitral após o aparecimento da obstrução da via de saída do ventrículo esquerdo. A mortalidade na reoperação foi de 27%. A circulação extra-corpórea e o pinçamento aórtico levam a distúrbios gerais, como a resposta inflamatória pós-circulação extracorpórea, com liberação de substâncias vasoativas e ativação do complemento e a isquemia miocárdica, ao edema celular. Em situações em que a reoperação é eletiva, a mortalidade é elevada, bem como a morbidade. Tendo em vista estes aspectos, a melhor conduta é a conservadora, com retirada das drogas vasoativas e introdução do betabloqueador. O estado hipercinético tende a aumentar o gradiente pelo efeito Bernoulli e Venturi. O betabloqueador leva à diminuição da freqüência cardíaca e menor consumo de oxigênio. A conduta é semelhante àquela adotada nos pacientes que apresentam hipertrofia septal assimétrica 5. Como observamos no presente caso, durante o emprego das drogas vasoativas em elevadas doses, o gradiente pressórico era de 130mmHg. Após a sua retirada e introdução do betabloqueador, o gradiente diminuiu para 5mmHg em 48h. Outro aspecto que deve ser comentado é o aumento do volume circulante efetivo. O estado de hipovolemia e hipercinesia podem levar ao aparecimento do movimento anterior sistólico 2 e, associado à diminuição da cavidade ventricular esquerda, este quadro tende a piorar. Caso o paciente apresente somente a obstrução sem insuficiência mitral, a opção do tratamento clínico é bem vista, mesmo que o gradiente pressórico seja elevado, como no caso relatado. A evolução tardia desses pacientes é favorável. Na casuística de Grossi e cols. 5, após um período médio de 44 Arq Bras Cardiol 2002; 78: 122-5. Carvalho e cols Obstrução da via de saída após plastia valvar mitral meses, o gradiente pressórico entre ventrículo esquerdo e aorta era nulo em todos os pacientes, e não foi necessária substituição valvar decorrente dessa complicação. Schiavone e cols. 6 observaram que mesmo o fenômeno da obstrução persistindo tardiamente, os pacientes melhoraram clinicamente e em nenhum caso foi necessária a troca valvar. Galler e cols. 7 realizaram estudo ecocardiográfico nos pacientes e observaram que houve diminuição significativa dos diâmetros do ventrículo esquerdo e aumento do diâmetro da via de saída do ventrículo esquerdo. Mas, ao realizar o teste com nitrito de amilo, surgiu o gradiente em todos os pacientes, demonstrando que esta situação é dinâmica. A evolução tardia desses pacientes depende dos resultados da plastia valvar em si. No nosso paciente, após dois anos da operação, não havia gradiente pressórico e sim, melhora da função ventricular esquerda. Em conclusão, os principais fatores que podem levar ao movimento anterior sistólico da valva mitral, ocasionando obstrução da via de saída do ventrículo esquerdo, são: cavidade ventricular esquerda normal ou pequena, excesso de tecido de ambas as cúspides, ressecção quadrilateral ampla da cúspide posterior e anuloplastia. Quando ocorrer esta complicação, a melhor conduta seria o tratamento clínico com a retirada das drogas vasoativas e introdução do betabloqueador. Referências 1. 2. 3. 4. 5. 6. Carvalho RG, Giublin PR, Lopes LR, Mulinari LA, Loures DR. Plástica da valva mitral com emprego do anel de Gregori-Braile: análise de 66 pacientes. Rev Bras Cir Cardiovasc 1998; 13: 295-316. Termini BA, Jackson PA, William CD. Systolic anterior motion of the mitral valve following annuloplasty. Vasc Surg 1977; 11: 55-60. 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