Jenner Cruz Silvana Kesrouani Sérgio Henrique Caetano Márcia Yoko Furuta Rui Alberto Gomes Altair Oliveira de Lima Helga Maria Mazzarolo Cruz Steve Woods CLÍNICA MÉDICA Papel da clara, da gema e do ovo na nutrição de pacientes com doença renal crônica em hemodiálise Fátima Costa Matias Pelarigo A doença renal crônica é uma moléstia progressiva, porém o tratamento atual tende a retardar e até interromper, em 15% dos casos, essa progressão.1 Ao paciente com insuficiência renal crônica, recomenda-se instituir restrição protéica, para reduzir ou prevenir os sintomas da uremia, decorrentes de acúmulo de produtos tóxicos oriundos do metabolismo protéico e também diminuir a queda da taxa de filtração glomerular.2 Essa restrição protéica deve-se acompanhar de ingestão adequada de calorias, 35 cal/kg de peso corpóreo, para evitar o catabolismo de proteínas endógenas.2 A restrição protéica recomendada é de 0,7 g/kg a 0,8 g/kg de peso corporal, por dia. Restrições superiores devem se acompanhar de ingestão de proteínas de alto valor biológico, como aminoácidos essenciais, e de multivitaminas, ácido fólico e vitaminas B6 e B12.2,3 A restrição protéica da dieta melhora os sintomas urêmicos e pode mudar o curso da insuficiência renal em muitos doentes.4 Porém, essa restrição protéica pode aumentar o risco de desnutrição e comprometer o prognóstico dos pacientes em hemodiálise, por isso o tratamento hemodialítico deveria iniciar-se antes, com clearance de creatinina acima de 20 ml/min, quando a desnutrição é menor.5 Os portadores de insuficiência renal crônica costumam reduzir espontaneamente a ingestão protéica, sendo habitualmente anoréxicos.6 Mas o estado nutricional dos pacientes com insuficiência renal crônica terminal, no início do tratamento por hemodiálise, é um prognosticador importante da sobrevida, que pode ser curta7 ou longa.8 Ao lado da hipoalbuminemia, a anemia normocítica e normocrômica é comum nas doenças crônicas, como a renal,9 sendo de ocorrência precoce na fase dialítica e acompanhada de intensa hemólise na cetoacidose diabética.9 No início da fase dialítica, a hipoalbuminemia está presente em 60% dos pacientes, com média de 3,2 g/dl e mediana de 3,3 g/dl, respectivamente10, e o risco relativo de morte está correlacionado inversamente com o nível de albumina do soro.11,12 Um nível de albumina sérica abaixo de 3 g/dl eleva a mortalidade em 40% em dois anos.3 Com a diálise, o apetite volta a melhorar e a quantidade de albumina Diagn Tratamento. 2007;12(4):152-5. recomendada aumenta para 1,2 g/kg/dia, mantendo-se a ingestão calórica em 35 cal/kg.3 Objetivo Comparar o uso da clara, da gema e do ovo, in natura, três vezes por semana, associado a 200 ml de leite desnatado, uma colher de sopa de óleo de girassol e uma colher de sopa de gelatina preparada, de qualquer sabor, durante 60 dias, em pacientes renais crônicos em hemodiálise. Pacientes e Métodos Todos os 19 pacientes renais crônicos do Instituto de Nefrologia de Mogi das Cruzes, em hemodiálise com albuminemia igual ou inferior a 3,5 g/dl, foram sorteados para formarem três grupos. Apenas 16 terminaram a experiência, sendo oito homens e oito mulheres, com idade média de 48 ± 3, variando de 26 a 73 anos. Três, que estavam em mau estado geral, faleceram antes de 60 dias. • Grupo 1: cinco pacientes terminaram o estudo recebendo a clara de um ovo; • Grupo 2: cinco pacientes terminaram o estudo recebendo a gema de um ovo; • Grupo 3: seis pacientes terminaram o estudo recebendo um ovo inteiro. Todos receberam também leite desnatado, óleo de girassol e gelatina nas condições já descritas e se submeteram à colheita de proteínas e colesterol séricos totais e frações antes e após os 60 dias. Todos pacientes foram orientados sobre a pesquisa e a sua participação foi voluntária. O estudo não foi duplo-cego (todos sabiam a quantidade de ovo que estavam ingerindo). Na análise estatística, empregou-se o teste t pareado para estabelecer as diferenças significativas entre os dados. Esses foram expressos como média ± SE (standard error, erro padrão da média). O nível de significância foi de p < 0,05. Resultados Proteínas As proteínas totais e as globulinas não variaram significativamente em nenhum dos três grupos. Entretanto, os resultados da albuminemia média, que estão expressos na Tabela 1, mostram que a albuminemia elevou-se significativamente no Grupo 3. Lípides Os triglicérides e as frações HDL (high-density lipoprotein), LDL (low-density lipoprotein) e VLDL (very Diagn Tratamento. 2007;12(4):152-5. low-density lipoprotein) do colesterol não variaram significativamente em nenhum dos três grupos, mas o colesterol total médio reduziu-se significativamente no Grupo 3. Os resultados médios do colesterol estão expressos na Tabela 2. Considerações Finais O ovo, principalmente a gema do ovo, é considerado um excelente alimento para pacientes desnutridos, porém os portadores de doença renal crônica podem apresentar, além da desnutrição, dislipidemia, tendência à aterosclerose precoce e alto risco cardiovascular, principalmente quanto à coronariopatias.2 A gema do ovo é muito rica em colesterol, com 1,281 g%,13 e por isso a redução de seu consumo tem sido largamente recomendada para baixar os níveis de colesterolemia e prevenir doença cardíaca. 14 Estudos epidemiológicos sobre o consumo do ovo e o risco de coronariopatia são raros.15 Porém, apesar de o ovo ser realmente rico em colesterol, a sua capacidade em elevar o nível sérico de colesterol é controversa, sendo considerada nula por vários autores.16 As dietas hipoprotéicas foram propostas para o tratamento de pacientes com insuficiência renal há mais de 50 anos,17 mas foi com a introdução da dieta conhecida como de Giordano e Giovannetti, 18,19 pobre em proteínas, mas com alimentos de alto valor biológico, contendo alta proporção de aminoácidos essenciais, como o ovo,20 que elas ficaram universalmente conhecidas. A dieta descrita por Giovannetti e Maggiore 19 não prosperou por ser monótona, desagradável, requerendo alto grau de motivação e de cooperação do médico e do paciente. Tabela 1. Albuminemia antes e após a suplementação dietética com ovo, clara de ovo e gema de ovo Grupos Albuminemia Albuminemia antes depois p Grupo 1 3,3 ± 0,10 mg/dl 3,9 ± 0,4 mg/dl 0,2066 Grupo 2 3,4 ± 0,04 mg/dl 3,8 ± 0,4 mg/dl 0,3820 Grupo 3 3,1 ± 0,20 mg/dl 4,4 ± 0,3 mg/dl 0,0023∗ * significativo (p < 0,05). Tabela 2. Colesterol total antes e após a suplementação dietética com ovo, clara de ovo e gema de ovo Grupos Colesterol total médio Colesterol total médio p antes depois Grupo 1 168 ± 21 mg/dl 172 ± 25 ng/dl 0,7596 Grupo 2 189 ± 29 mg/dl 174 ± 14 mg/dl 0,5811 Grupo 3 164 ± 14 mg/dl 157 ± 9 mg/dl 0,0370∗ * significativo (p < 0,05). 153 Uma ampla revisão da literatura médica, de Fouque e cols.,16 para The Cochrane Library, de janeiro de 1966 a agosto de 2002, concluiu que uma redução da ingestão protéica deve proteger um paciente com doença renal crônica moderada, mas que existem outros mecanismos importantes para retardarem a progressão de uma nefropatia crônica, como o uso de inibidores da enzima conversora da angiotensina, de hipotensores e de remédios capazes de manter ótima a glicemia em pacientes diabéticos. Nenhuma vez o uso do ovo é analisado. O uso do ovo como fonte de aminoácidos essenciais já foi citado por inúmeros autores,13-15,21,22 desde Giovannetti e Maggiore,19 e por diferentes formas, principalmente antes da divulgação dos riscos dos alimentos ricos em colesterol. Os pacientes desse estudo já estavam em hemodiálise e sua ingestão diária de proteína já fora aumentada, porém estavam desnutridos, com albuminemia inferior a 3,5 g/dl, por motivos que não foram determinados. Como o tamanho da amostra foi pequeno, embora fosse o máximo possível, e o estudo não foi duplo-cego, a conclusão desse trabalho pode ser questionada, mas procuramos demonstrar que o ovo integral, alimento muito barato, que pode ser administrado por diferentes formas e com diferentes acompanhamentos para manter o nível de ingestão calórica, pode melhorar o estado nutritivo de pacientes desnutridos em hemodiálise, sem modificar danosamente o perfil lipídico, mas favorecendo muito a melhoria da hipoalbuminemia, com leve e significativa redução paralela da colesterolemia total. A clara tem proteínas de menor valor biológico que a gema e nenhuma quantidade de colesterol,13 mas o ovo inteiro, reunindo a clara e a gema, mostrou ser o alimento ideal. Esperamos que essa pequena pesquisa estimule o surgimento de estudos futuros mais amplos e duplo- 154 cegos, mas a única dúvida que ainda pode persistir é a real ação do ovo sobre a taxa de colesterol e de suas frações, de difícil avaliação, pois depende de inúmeros fatores, entre os quais a causa da doença renal crônica, a carga genética para hipercolesterolemia que o paciente tinha antes do aparecimento da nefropatia e os alimentos ingeridos fora do Serviço de Diálise e nem sempre relatados. Fátima Costa Matias Pelarigo. Médica do Instituto de Nefrologia de Mogi das Cruzes. Jenner Cruz. Livre-docente e professor titular aposentado do Curso de Medicina da Universidade de Mogi das Cruzes. Silvana Kesrouani. Diretora do Instituto de Nefrologia de Mogi das Cruzes. Sérgio Henrique Caetano. Enfermeiro-chefe do Instituto de Nefrologia de Mogi das Cruzes. Márcia Yoko Furuta. Enfermeira do Instituto de Nefrologia de Mogi das Cruzes. Rui Alberto Gomes. Professor assistente da Disciplina de Clínica Médica do Curso de Medicina da Universidade de Mogi das Cruzes. Altair Oliveira de Lima. Diretora do Instituto de Nefrologia de Suzano. Helga Maria Mazzarolo Cruz. Livre-docente de Clínica Médica e professora associada aposentada da Disciplina de Nefrologia da Universidade de São Paulo. Informações Local onde foi produzido o manuscrito: Instituto de Nefrologia de Mogi das Cruzes. Endereço para correspondência: Fátima Costa Matias Pelarigo Rua Francisco Lamas, 55 – Torre 4 – Apto. 1104 Mogi das Cruzes (SP) – CEP 08780-790 Tel./Fax (11) 4794-5100 E-mail: [email protected]. Este trabalho já foi apresentado, sob a forma de pôster, nos seguintes congressos médicos: IX Encontro Paulista de Nefrologia, Ribeirão Preto, SP, 11 e 12 de setembro de 2003. XIII Congresso Latino-americano de Nefrologia e Hipertensão, Punta Del Este, Uruguai, 21 a 24 de abril de 2004. 12th International Congress on Nutrition and Metabolism in Renal Disease, Abano Terme, Itália, 18 a 22 de junho de 2004. XXII Congresso Brasileiro de Nefrologia, Salvador, BA, 18 a 22 de setembro de 2004. V Congresso Paulista de Clínica Médica, Santos, SP, 9 a 11 de outubro de 2004. Fontes de fomento: nenhuma. Conflitos de interesse: nenhum. Diagn Tratamento. 2007;12(4):152-5. Referências 1. Hunsicker LG, Adler S, Caggiula A, et al. Predictors of the progression of renal disease in the Modification of Diet in Renal Disease Study. Kidney Int. 1997;51(6):1908-19. 2. Luke RG. Chronic renal failure. In: Goldman L, Ausiello D, editors. Cecil textbook of medicine. 22a ed. Philadelphia: Saunders; 2004. p. 708-16. 3. Skorecki K, Green J, Brenner BM. Chronic renal failure. In: Kasper DL, Braunwald E, Fauci AS, Hauser SL, Longo DL, Jameson JL, editors. 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