LIMITES DA PRESUNÇÃO DE LEGITIMIDADE DO PROCESSO DISCIPLINAR José Armando da Costa Advogado e Conferencista Sumário: 1 Considerações introdutórias. 2 Hegemonia do interesse público. 3 Limitações impostas ao poder público. 4 Princípios informativos da administração pública. 5 Presuntiva legitimidade processual-disciplinar. 6 Considerações finais. 1 CONSIDERAÇÕES INTRODUTÓRIAS O ato punitivo da administração pública, inserindo-se no regime jurídico-administrativo, guarda uma relação lógica de interação e coerência com os referentes princípios de direito público. Diferentemente do ato jurídico privado — que consiste essencialmente numa manifestação de vontade lícita, moral e não abusiva exteriorizada pelo particular — o ato jurídico de natureza pública (comportando aspectos que exorbitam do direito privado) preordena-se à realização de interesse coletivo específico, indisponível e previsto em lei. As relações jurídicas de direito privado — escorando-se no pressuposto da igualdade das partes — se projetam de modo horizontalizado; ao passo que as de direito administrativo, tocadas e agitadas que são pela supremacia do interesse público, se exprimem de forma verticalizada. Já que a administração pública ostenta posição de superioridade em relação ao administrado. A figura proeminente e central do direito privado é a vontade das pessoas físicas que integram as respectivas relações jurídicas. Essa manifestação de vontade, desde que não seja contra jus, imoral ou abusiva, deverá ser acatada pelas normas de direito. Daí a consagração, na seara do direito civil, dos princípios e regras destinados a assegurar a integridade da vontade exteriorizada pelo agente que realiza o ato jurídico privado. Regramento esse que, sob pena de nulidade, busca impedir que tais manifestações volitivas sejam viciadas. Daí porque o negócio jurídico válido requer formato legal, capacidade do agente e objeto lícito.1 Por afetação da regular articulação da vontade de qualquer dos participantes, são anuláveis (de conformidade com o Código Civil) os negócios jurídicos privados praticados com a eiva do erro ou da ignorância (artigos 138 a 144), de modo enganoso, ou com a utilização de dolo (artigos 145 a 150). Bem como os que são levados a efeito por meio de coação (artigos 151 a 155), em estado de perigo (art. 156), de modo lesivo (art. 157), ou com a utilização de fraude contra credores (artigos 158 a 165). 2 Já nas cercanias do direito público, a administração, não sendo a titular dos interesses da coletividade, e sim mera administradora, limita-se a realizar o seu indeclinável poder-dever de acordo as regras e princípios jurídicos regentes. Razão por que não tem ponderabilidade jurídica a expressão volitiva do administrador, e sim o finalismo público a que se deverá dirigir o ato. A esse respeito, valem transcritas aqui as sempre atuais e proficientes palavras do saudoso jurista gaúcho Ruy Cirne Lima: O fim — e não a vontade — domina todas as formas de administração. Supõe, destarte, a atividade administrativa a preexistência de uma regra jurídica, reconhecendo-lhe uma finalidade 1 Art. 104 do atual Código Civil. 2 Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002. própria. Jaz, conseqüentemente, a administração pública debaixo da legislação, que deve enunciar e determinar a regra de direito.3 Em outras palavras, na área do direito privado, que tem por pressuposto o domínio das coisas disponíveis, predomina a vontade. Ao passo que, no regime jurídico do direito administrativo, prevalecem, dentre outros aspectos, a legalidade, o poder-dever do administrador, a indisponibilidade do interesse coletivo e a finalidade pública. No direito público, o detentor da voluntas é o Estado, o qual a exterioriza por meio do Poder Constituinte ou do Poder Legislativo, com a promulgação de lei constitucional ou infraconstitucional. Portanto, a administração pública, não sendo a titular dos interesses da comunidade como um todo, age de modo vinculado a essa vontade estatal. Nesse tocante, importa reproduzir as lapidares e oportunas observações de Celso Antonio Bandeira de Mello: Relembre-se que a Administração não titulariza interesses públicos. O titular deles é o Estado que, em certa esfera, os protege e exercita através da função administrativa, mediante o conjunto de órgãos (chamados administração, em sentido subjetivo ou orgânico), veículos da vontade estatal consagrada em lei. As pessoas exclusivamente administrativas, autarquias, precisamente em razão do fato de assim se qualificarem, são entidades servientes. Isto significa que, por serem pessoas, podem — ao contrário da Administração — titularizar interesses públicos, mas, apenas, na condição de servas de uma vontade anterior, 3 LIMA, Ruy Cirne. Princípios de direito administrativo brasileiro: parte geral e parte especial. Porto Alegre, Globo: 1939. p. 22. jungida ao cumprimento exato dos fins que aquela vontade, por lei, lhes assinalou.4 Em síntese, pode-se concluir que o ato administrativo — editado de acordo com a moralidade, as regras e princípios jurídicos atinentes — será tido, havido e considerado como válido, ainda que a vontade convergente do administrador público tenha-se exprimido de forma viciada. 2 HEGEMONIA DO INTERESSE PÚBLICO A verticalização da relação administrativa — estruturando-se na fundamental superioridade da administração sobre o administrado, e provindo das necessárias derrogações de natureza publicística — impõe-se como imprescindível instrumental para aparelhar a administração com os meios necessários e adequados à realização dos seus legítimos fins de interesse público. Referida supremacia, provendo a administração dos meios necessários para a consecução dos seus fins, induz vários corolários. Um deles é a exigibilidade dos atos emanados da administração. Estes, dotados que são de autoexecutoriedade, poderão ser levados às suas últimas conseqüências pelo próprio órgão administrativo (execução forçada sobre pessoas ou coisas), sem necessitar da interferência de outro órgão. Outra emanação da preeminência em exame é o atributo da autotutela, que desponta como importante e vital prerrogativa da administração pública. Essa prerrogativa consiste na possibilidade de revogação ou anulação dos atos administrativos por deliberação unilateral da própria administração, sem que seja necessária a anuência do administrado. 4 MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Elementos de direito administrativo. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1980. p. 11-12. Dessa mesma seara emana, ainda, em favor da administração, a presunção de veracidade e legitimidade dos atos administrativos. Privilégio este que, não sendo absoluto, admite prova em contrário. Em decorrência dessa hegemonia, registram-se, ainda, em benefício da administração pública, os privilégios da imunidade tributária, a prescrição qüinqüenal de suas dívidas, a execução fiscal dos seus créditos devidamente inscritos, a garantia do duplo grau de jurisdição, a impenhorabilidade dos seus bens e rendas, os prazos em quádruplo para contestar e em dobro para recorrer. As suas custas processuais somente serão pagas no final do processo. Não se sujeita a administração pública a concurso de credores nem à habilitação de crédito em falência, concordata ou inventário. E outras prerrogativas mais. São vantagens a se perderem de vista. Integra, ainda, o rol das vantagens oriundas da primazia pública em comento a potestade discricionária da administração, por meio da qual tem a autoridade hierárquica competente — em casos especificados e delimitados por lei —, chance para punir disciplinarmente servidores com esteio nos critérios da conveniência e oportunidade da medida, sem que tal liberalidade implique licença a arbitrariedades. Ainda por conta da supremacia do interesse público, constata-se no setor dos contratos administrativos5 a existência de várias cláusulas exorbitantes do direito comum que privilegiam a administração pública contratante. Dentre essas exorbitâncias que favorecem o poder público, destacamse as seguintes: 5 São ajustes que a administração pública, comportando-se como tal, realiza com particulares ou com outras entidades estatais, para a concretização de objetivos de interesse público, consoante as condições estabelecidas pelo ente público contratante, bem como de acordo com as cláusulas exorbitantes do direito privado, as quais, mesmo não previstas expressamente no instrumento contratual, deverão prevalecer. a) Alteração e rescisão unilateral: Tal potestade consiste na atribuição que tem a administração de poder unilateralmente alterar ou rescindir o contrato. Isso poderá ocorrer ainda que não exista cláusula escrita com esse fim. Decorre de diretriz de ordem pública, razão por que a administração pública, ainda que pretendesse, não poderia abdicar dessa prerrogativa. b) Exceção de contrato não cumprido: A não satisfação do objeto do contrato, constituindo justo motivo de sua rescisão em desfavor do contratante inadimplente, não poderá, todavia, ser oposta à administração faltosa. Esta poderá, todavia, argüir tal exceção em seu favor. c) Controle do contrato: É uma das atribuições conferida à administração, por meio da qual poderá, ou deverá, supervisionar, acompanhar e fiscalizar a execução do contrato. d) Aplicação de penalidades contratuais: Constatada a existência de alguma infração por parte do contratante, poderá a administração interessada, de modo autoexecutório, aplicar as penalidades cabíveis. Até aqui foram enfocadas somente as vantagens que, por conta da supremacia em destaque, são consignadas à administração pública. Deve, não obstante, ser ressaltado que esse tópico de superioridade, colimando simílimo fim de interesse coletivo, impõe, por outro lado, restrições às entidades de direito público. 3 LMITAÇÕES IMPOSTAS AO PODER PÚBLICO O ordenamento jurídico, buscando contrabalançar a pujança dessas prerrogativas, contrapõe sujeições ao poder público. Estas, opondo-se àquelas, destinam-se a estabelecer uma correlação de equilíbrio entre essas duas vertentes: a administração e o administrado. O princípio da legalidade, de assento constitucional, enfatizando que “ninguém poderá fazer ou deixar de fazer alguma coisa, senão em virtude de lei”,6 constitui um dos mais expressivos fatores de moderação da verticalidade da relação jurídica de direito público. Essa norma limita a interferência do poder público na esfera do indivíduo. Funciona, assim, como forte vetor de compensação do desequilíbrio provocado por tal supremacia. Em alusão a esse refreio da administração pública, assevera Hely Lopes Meirelles que “a legalidade, como princípio de administração, significa que o administrador público está, em toda a sua atividade funcional, sujeito aos mandamentos da lei, e às exigências do bem-comum, e deles não se pode afastar ou desviar, sob pena de praticar ato inválido e expor-se à responsabilidade disciplinar, civil e criminal, conforme o caso”.7 Acrescente-se, contudo, que não basta que não haja afronta à lei, e sim que a administração somente proceda de acordo com o que ela autoriza. Daí o magistério de Seabra Fagundes: A atividade administrativa deve não apenas ser exercida sem contraste com a lei, mas, inclusive, só pode ser exercida nos termos de autorização contida no sistema legal. A legalidade na administração não se resume à ausência de oposição à lei, mas pressupõe autorização, 6 Art. 5º, inciso II, da Constituição Federal de 1988. 7 MEIRELLES, Hely Lopes. Direito administrativo brasileiro. 5. ed. atual. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1977. p. 68. como condição de sua ação. Administrar é aplicar a lei, de ofício.8 Outro refluxo neutralizante do desequilíbrio em comento é o princípio da igualdade do administrado, o qual, forrando-se na nossa Carta Política, 9 impõe à administração pública o dever de tratar os administrados de modo isonômico e impessoal. Aglutina-se, ainda, para esse mesmo fim, o princípio da proporcionalidade.10 Este obriga a administração a empreender medidas não apenas legais, como também adequadas, necessárias e oportunas (relação custo-benefício). Assim, pode-se inferir que a medida da proporcionalidade, ou da razoabilidade, constitui largo fator de compensação desse desequilíbrio acarretado pelos consectários oriundos da hegemonia do interesse público. O cogente e indefectível princípio da finalidade pública pressiona a administração pública a satisfazer o interesse da coletividade. Tal princípio, ajuntado ao coercitivo e inseparável critério da especialidade, determina que tal desiderato se associe aos objetivos previstos na regra de competência da autoridade que irá editar a medida administrativa. A harmonização desses dois elementos (finalidade e especialidade) contrapesa ainda mais o predomínio do poder público sobre o administrado. Pressiona, assim, para restabelecer a interação harmônica entre a administração e o administrado. Não fosse a existência de tais refluxos, contrapondo-se e podando os eventuais exageros acarretados pela verticalidade da relação jurídica publicística, teriam os nossos constituintes e legisladores ressuscitado o mais cruento modo de convivência social. Onde o Estado, na visão retórica de 8 FAGUNDES, Miguel Seabra. O contrôle dos atos administrativos pelo poder judiciário. 3. ed. atual. Rio de Janeiro: Forense, 1957. p. 39. 9 “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade” (art. 5º da CF/1988). 10 Art. 2º da Lei nº 9.784, de 29 de janeiro de 1999. Hobbes, aparece sob a roupagem de um leviatã, para neutralizar a selvageria reinante no estado de natureza que antecede a sociedade política. Na visão pessimista desse filósofo, “o homem — nessa presumida quadra — se comporta como o lobo do próprio homem”. Daí a necessidade de um Estado tirano e absolutista, que não é o caso da sociedade moderna dos nossos dias. Sem tais sujeições, ou contrapesos, não haveria espaço para assegurar a gestação e projeção de uma relação lógico-sistêmica capaz de provocar a existência de um regime jurídico-administrativo democrático. Se assim não fosse, não se poderia conceber o Direito Administrativo. Já que este somente poderá existir como resultado da interação harmônica e coerente entre princípios e regras de justiça, paz, progresso, certeza e segurança. Em relação aos contratos de direito público, destaque-se que as exceções que extrapolam do direito comum não só assinalam prerrogativas em favor da administração, como também lhe impõem desvantagens. Referindo-se a tais extrapolações, assevera, com a proficiência que lhe foi sempre peculiar, o saudoso Hely Lopes Meirelles: Cláusulas exorbitantes são, pois, as que excedem do direito comum para consignar uma vantagem ou uma restrição à Administração ou ao contratante. A cláusula exorbitante não seria lícita num contrato privado porque desigualaria as partes na execução do avençado, mas é absolutamente válida no contrato administrativo, desde que decorrente da lei ou dos princípios que regem a atividade administrativa, porque visa a estabelecer uma prerrogativa em favor de uma das partes para o perfeito atendimento do interesse público, que se sobrepõe particulares.11 11 MEIRELLES. Direito administrativo brasileiro, p. 185. sempre aos interesses Examinadas no item anterior as que são favoráveis à administração, vejam-se, agora, as cláusulas exorbitantes. Estas, mesmo não previstas no contrato, favorecem o administrado. Destacam-se, entre outras, as seguintes: a) Equilíbrio financeiro: Consiste em assegurar, ao longo da execução do contrato, a relação de equivalência entre os encargos impostos ao contratado (administrado) e a retribuição financeira devida pelo contratante (administração), para fazer face ao justo pagamento do objeto avençado. b) Revisão de preços e tarifas: É a medida ajustada entre os contratantes com o intuito de impedir que, à vista das variações do mercado ou do aumento dos custos gerais do contrato, haja substancial desequilíbrio financeiro em detrimento do contratado (administrado). c) Teoria do fato de príncipe: Fato do príncipe, segundo Lopes Meirelles, “é toda determinação estatal, geral, imprevista e imprevisível, positiva ou negativa, que onera substancialmente a execução do contrato administrativo”. Essa oneração, prossegue esse mesmo autor, “constitui uma álea administrativa extraordinária e extracontratual que, desde que intolerável e impeditiva da execução do ajuste, obriga o Poder Contratante a compensar integralmente os prejuízos suportados pela outra parte, a fim de possibilitar o prosseguimento da execução, e, se esta for impossível, rende ensejo à rescisão do contrato, com as indenizações cabíveis”.12 d) Teoria da imprevisibilidade: Esta condição exorbitante consiste na possibilidade da revisão do contrato em razão da superveniência de fatos que, imprevistos e imprevisíveis pelos contratantes, não sejam a estes imputáveis. Tais ocorrências, onerando sobremodo a economia ou a 12 MEIRELLES. Direito administrativo brasileiro, p. 191-192. execução do objeto concertado, legitimam a revisão do contrato na mesma proporção das defasagens causadas. Acrescente-se, ainda, que a submissão a procedimento seletivo prévio constitui ponderável sujeição imposta ao poder público. Pois que este somente poderá contratar após a realização dessa medida de precaução do interesse público. A não ser nos casos de dispensa ou de inexigibilidade dessa providência pré-contratual, nos termos dos artigos 24 e 25 da Lei nº 8.666/93. Essa exigência (processo de licitação) desdobra-se nas modalidades “concorrência”, “tomada de preços”, “convite”, “concurso” e “leilão”. Tem por fundamento o princípio da igualdade do administrado e, por finalidade, a eleição da proposta que mais convenha ao interesse público. O procedimento licitatório, em qualquer de suas modalidades, será levado a efeito e julgado “em estrita conformidade com os princípios básicos da legalidade, da impessoalidade, da moralidade, da igualdade, da publicidade, da probidade administrativa, da vinculação ao instrumento convocatório, do julgamento objetivo e dos que lhes são correlatos”.13 Já as pessoas físicas ou jurídicas de direito privado não se subjugam a tais procedimentos seletivos nem ficam adstritas às motivações de ordem legal. E mais, não se vinculam a este ou àquele fim. Liberalidades essas que, em atenção aos interesses públicos, não são estendidas aos que realizam atos e contratos em nome da administração pública. 4 PRINCÍPIOS INFORMATIVOS DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA Toda ciência se espalda e se funda em princípios. Os princípios de um ramo do conhecimento são as mais gerais abstrações que se extraem do acervo de realidades que se circunscrevem nos limites do seu conteúdo científico. São premissas comuns que se aplicam indistintamente ao âmbito de toda uma ciência. O Direito Administrativo, como ramo autônomo da 13 Art. 3º da Lei nº 8.666, de 21 de junho de 1993. ciência jurídica, não poderia deixar de ter os seus princípios próprios. Estes lhe servem como elementos normativos, informativos e interpretativos. A função normativa do princípio é, sem dúvida, a mais importante de todas. Notadamente por ser o princípio, em relação à regra escrita, portador de maior fecundidade. Na função de informar e interpretar, os princípios colaboram, ainda, na descoberta do verdadeiro sentido e alcance das normas do Direito Administrativo. Sendo o regime disciplinar parte componente do Direito Administrativo, obviamente que tais princípios informarão e orientarão os seus mais variados institutos. De acordo com o alcance do seu raio de ação no contexto das ciências, os princípios classificam-se em onivalentes, plurivalentes e monovalentes. José Cretella Júnior acrescenta a estes uma quarta classe, a que ele denomina de setoriais. 14 Os onivalentes são os mais gerais, chegando a abranger todas as ciências indiscriminadamente. Servem mesmo de fundamentação para todo o pensamento humano. Os plurivalentes, por serem dotados de menor ressonância, apenas afetam um determinado grupo de ciências. Estas se vinculam entre si por certos denominadores comuns. Já os monovalentes ficam adstritos aos limites de uma só ciência. Por derradeiro, desfilam os princípios setoriais, os quais informam e orientam as várias ramificações em que se subdivide uma determinada ciência. 14 CRETELLA JÚNIOR, José. Princípios do direito administrativo. In: CRETELLA Júnior, José. Tratado de direito administrativo. Rio de Janeiro: Forense, 1966-1972. v. 10. p. 19. Consoante a adoção dessa classificação, que parece ser a mais correta e a mais aceita pelos autores, os princípios do Direito Administrativo estão inclusos nos setoriais. Já que se trata de um ramo da ciência do Direito. Entre outros, são estes os mais fundamentais princípios normativos e informativos do Direito Administrativo: a) Princípio da finalidade; b) Princípio da auto-executoriedade; c) Princípio da autotutela; d) Princípio da especialidade; e) Princípio da continuidade; f) Princípio da igualdade do administrado; g) Princípio da presunção de verdade e legitimidade do ato administrativo; h) Princípio da indisponibilidade do interesse público; i) Princípio do poder-dever do administrador; j) Princípio da discricionariedade; k) Princípio da vinculação do ato administrativo aos motivos declinados; l) Princípio da hierarquia. m) Princípio da proporcionalidade ou da razoabilidade Veja-se, a seguir, em que consiste cada um desses princípios. a) Princípio da finalidade: Traduz-se tal princípio no inafastável postulado de que toda ação da administração pública se dirige para a satisfação do interesse público. Pelo que informa esse princípio, todo ato da administração deve ter como parâmetro a concretização do bem comum da coletividade. A ausência do interesse público invalida o ato praticado pelo órgão da administração, ainda quando se cuide de atividade dotada de discrição. b) Princípio da auto-executoriedade: Consiste na possibilidade de ser o ato administrativo executado pelos próprios meios ao alcance da administração. Em regra, todo ato administrativo é auto-executório. Pode, assim, ser levado às suas últimas e legitimas conseqüências pela própria entidade interessada, sem que haja necessidade da interferência de outro órgão do Estado. Excepcionalmente, alguns são heteroexecutórios, carecendo da interferência de outro Poder para se tornarem exeqüíveis. Como é, por exemplo, o caso do ato desapropriatório levado a efeito pelo Poder Público, bem como a execução fiscal. Esses atos, para adquirirem executoriedade, necessitam do beneplácito do Poder Judiciário, por intermédio do processo de expropriação e do processo de execução, respectivamente. c) Princípio da autotutela: Consiste esse princípio na prerrogativa de que dispõe a administração de reaver, com os seus próprios meios, os bens do domínio público desviados, de forma ilegal, para o patrimônio dos particulares. Para efetuar os atos de defesa do patrimônio público a administração dispensa a existência de autorização legal para esse fim. Bem como prescinde da via judicial. Só de modo muito excepcional, a ordem jurídica privada defere tal poder aos particulares, como, verbi gratia, é o caso do desforço possessório, a retenção de benfeitorias, a punição paternal, etc. d) Princípio da especialidade: Por força desse princípio, os atos realizados pela pessoa jurídica de direito público se devem preordenar ao fim específico para o qual foi instituída. Destoando dessa finalidade específica, estará a administração pública se desviando de sua finalidade. E, como tal, praticando atividade de modo ilegal. O objetivo específico é, geralmente, definido na regra de competência. e) Princípio da continuidade: Dada a sua característica de essencialidade, o serviço público, sob pretexto algum, pode sofrer solução de continuidade. A proibição de greve no serviço público era, no regime constitucional anterior, uma conseqüência lógica do princípio da continuidade. Decorre ainda desse princípio a vedação de abandono de cargo ou função, cuja gravidade para a continuidade do serviço público é tamanha que foi erigido em ilícitos administrativo e penal. Os institutos da suplência, da delegação e da substituição, colimando preservar a não interrupção da funcionalidade dos órgãos, constituem corolários do princípio em exame. f) Princípio da igualdade do administrado: Desde que preencham os mesmos requisitos exigidos pelas leis e regulamentos, os administrados têm o mesmo direito subjetivo público perante o Estado. A igualdade nos concursos públicos, a igualdade de usuário de serviço e do bem público e a igualdade nos certames licitatórios são conseqüências desse princípio. g) Princípio da presunção de verdade e legitimidade do ato administrativo: Milita em favor dos atos administrativos a presunção juris tantum de veracidade e legitimidade. Até prova em contrário, são tidos como válidos, verdadeiros e legais. Quem quer que se disponha a contestá-los, haverá de arcar com o ônus da prova. h) Princípio da indisponibilidade do interesse público: Os agentes da administração não podem renunciar ao interesse público. Tal poder somente é atribuído ao próprio Estado, pois é ele o titular de tal interesse. São consectários de tal princípio a imprescritibilidade, a impenhorabilidade e a inalienabilidade dos bens públicos. i) Princípio do poder-dever do administrador: As atribuições que se conferem aos administradores públicos — além de serem instrumentais —, trazem em si a característica de dever. Bem como são de realização obrigatória, toda vez que estejam em jogo os interesses públicos. j) Princípio da discricionariedade: Embora não seja atributo exclusivo da administração Pública, no sentido formal, reconhece-se, porém, que é nesse setor onde mais atua a discrição. A discricionariedade consiste no fato de a lei deixar para o administrador certa margem de liberdade. Em meio a esta será feito, por ele, o juízo sobre a oportunidade e a conveniência de ser realizado, ou não, o ato administrativo. k) Princípio da vinculação do ato administrativo aos motivos declinados: Enuncia-se esse princípio na tese de que o ato administrativo motivado tem a sua validade sujeita à existência do motivo que foi revelado por ocasião da sua concretização. Isso ocorre mesmo que se trate de ato discricionário. Esse ponto de vista é bastante claro, pois se um ato foi praticado em razão de um determinado motivo e, ao depois, constata-se que ele nunca existiu, logicamente que, assim, restará comprometida a sua validade. Deve, com efeito, ser declarado nulo pela administração ou pelo judiciário. l) Princípio da hierarquia: Converte-se esse princípio na idéia de que quem pode o mais, pode o menos. Assim, os que estão em posição hierárquica inferior devem obediência, nos limites da lei, aos que estão em colocação imediatamente superior. Dimanam desse princípio três conseqüências fundamentais: a) revisão dos atos é sempre possível por intermédio do recurso hierárquico, em cujo ensejo pode o superior revogar ou anular o ato praticado pelo subordinado, de ofício ou a requerimento da parte interessada; b) dever de obediência, em que se obriga o subalterno a cumprir as ordens não manifestamente ilegais das autoridades superiores. E, por fim, c) imposição de reprimendas, podendo o superior hierárquico aplicar sanções aos subordinados transgressores, nos precisos limites de sua competência estabelecida em lei ou regulamento. m) Princípio da proporcionalidade ou razoabilidade: Tal princípio, embora já estivesse implícito no nosso direito positivo, somente adquiriu foros de induvidosa positividade como o advento da Lei nº 9.784, de 29 de janeiro de 1999. Esta, no seu art. 2º, dispõe que “a administração pública obedecerá, dentre outros, aos princípios da legalidade, finalidade, motivação, razoabilidade, proporcionalidade, moralidade, ampla defesa, contraditório, segurança jurídica, interesse público e eficiência”. De efeito, conclui-se que o ato da administração, a par de exigir o pré-requisito da legalidade, deverá ser adequado, necessário e conveniente (observância da equação custobenefício) aos seus fins. 5 PRESUNTIVA LEGITIMIDADE PROCESSUAL-DISCIPLINAR Fazendo alusão ao princípio da presunção de legitimidade e veracidade em favor dos atos da administração pública, assinala Jean-Louis Bergel: As presunções legais permitem deduzir uma verdade da existência de um outro fato, mais fácil de demonstrar. Algumas delas têm um caráter “antejudiciário” e se limitam a atribuir o ônus da prova a um dos litigantes. Assim, a presunção de boa-fé impõe a quem alega a má-fé prová-la (art. 2268 do Cód. Civil); a presunção de inocência, em direito penal, protege as pessoas contra a arbitrariedade; a presunção de legalidade da coisa decidida pela administração pública facilita o exercício da função pública. Tais presunções, fundamentadas na situação mais verossímil ou na idéia de que, se não fossem presumidos, certos fatos seriam impossíveis ou muito difíceis de estabelecer, constituem vantagens em geral decisivas que a lei concede a uma das partes em nome de considerações de política jurídica e de certos valores que ela tende a proteger.15 Entre as prerrogativas derrogatórias do direito comum (Direito Civil), concebidas para fortalecer a ação da administração pública, destaca-se, neste passo, o princípio da presunção de verdade e legitimidade do ato administrativo. Equivale a dizer que os atos do poder público, revestidos de relevância jurídica, deverão, em razão dessa força presuntiva de veracidade, ser tidos e havidos como verazes e legítimos, até que se prove o contrário. Milita, assim, em favor do ato jurídico público, em que se insere o ato disciplinar, essa presunção relativa (juris tantum) de veridicidade e legitimidade. Esse atributo de legitimidade guarda certa conotação com a garantia de continuidade do serviço público. Requisito este que não poderá, sob pretexto algum, sofrer qualquer oposição, embaraço ou embate em sua regular desenvoltura. Isso porque a solução de continuidade do serviço público é altamente prejudicial aos interesses públicos. Pudesse o administrado, em afronta à presunção de legitimidade, esquivar-se ao cumprimento de comando oriundo do poder público, sob a alegativa de que fosse o ato ilegal ou ilegítimo, estar-se-ia, dessa forma, promovendo o caos e inviabilizando a ação da administração. Esta passaria, assim, a sofrer sérios estorvos. Para evitar tais empecilhos, que seriam altamente prejudiciais à empreitada da administração na consecução dos interesses da comunidade, erige-se, como salvaguarda desse desiderato público, a presunção de verdade e legitimidade dos atos administrativos. De efeito, os atos administrativos (compreendendo obviamente os disciplinares) 15 BERGEL, Jean-Louis. Teoria geral do direito. Trad. Maria Ermantina Galvão. São Paulo: Martins Fontes, 2001. p. 395-396. são presuntivamente válidos, até que o administrado, ou o funcionário, prove o contrário. Impõe-se, pois, tal ônus probatório a quem pretenda contestar sua validez. Nada obstante, assinale-se que tal privilégio não é, com a mesma dimensão e proporção, extensível aos atos processuais disciplinares. Isso porque, em atenção ao devido processo legal, não se pode concluir que as provas ali produzidas devam ser acobertadas pela presunção juris tantum de veridicidade. O servidor público que se considere punido, injusta e ilegalmente, poderá questionar tal punição no judiciário, onde lhe é franqueado demonstrar as suas razões fáticas e jurídicas. Isso não em razão da presunção de legitimidade do ato administrativo, e sim por força do princípio processual de que o ônus da prova incumbe a quem alega (art. 333 do CPC). Em virtude do privilégio da presunção de validez do ato punitivo, deverá o servidor punido sofrer as conseqüências de tal reprimenda até que, um dia, advenha a censura judicial que proclame sua ilegalidade. Enquanto isso não ocorrer, o ato disciplinar, ainda que tenha sido editado com flagrantes e essenciais irregularidades, deverá ser acatado como válido e produzir todos os seus efeitos legais. Contudo, advirta-se que o ônus da prova não impõe que o servidor disciplinarmente punido deva provar necessariamente a sua inocência, bastando apenas demonstrar que as provas existentes nos autos não legitimam a punição que lhe fora imposta. Houvesse tal presunção nos procedimentos disciplinares, com a mesma dimensão conferida ao ato administrativo, tornar-se-ia impossível a empreitada de quem pretendesse livrar-se de tais atos eventualmente injustos. O encargo probatório de índole processual é diferente do que advém da prerrogativa de validez do ato administrativo. Uma vez que este, por força de tal presunção legal, somente poderá ser anulado em face da comprovação de sua ilegitimidade. Enquanto que aquele — de índole processual — requer apenas que se demonstre que os elementos de comprovação não levam à inferência punitiva questionada. Teoricamente, a pessoa punida, ainda que seja culpada, deverá ser absolvida quando as provas não autorizem à conclusão de sua culpabilidade. Já a invalidação do ato administrativo requer que a pessoa que se sinta prejudicada prove que o ato é ilegítimo. Caso contrário, o ato prosseguirá em pleno vigor, ainda que ele não seja intrinsecamente válido. No exame de legalidade das questões disciplinares, a autoridade judicante, embalada erroneamente pelo princípio da presunção de verdade e legitimidade do ato público, é, por vezes, levada a exigir mais do pleiteante. Chega-se, em regra, a considerar improcedente o pedido por não haver o impetrante provado sua inocência. Se a improcedência é porque o requerente não provou sua inocência, é possível que ele, teoricamente, o seja. Mas, como não provou, deverá ser considerado culpado. Bem diferente é a decisão judicial que lança mão da estratégia do ônus processual, como se pode conferir no seguinte excerto jurisprudencial: “Nula é a punição, quando haja desconformidade entre a sua motivação e a realidade que exsurge do processo administrativo”.16 Nessa segunda alternativa, que é absolutamente correta, o servidor poderá até ser teoricamente culpado, mas, à vista das provas dos autos, não há como sustentar tal punição. Assim, ainda que ele possa ser culpado, impõe-se a anulação do ato disciplinar. Isso porque a administração interessada não terá conseguido o mínimo necessário de prova para sustentar e legitimar a punição imposta. 16 STJ – Recurso Especial nº 6861/RJ, in DJ de 18.03.1991, p. 2794. Acrescente-se que, de acordo com o princípio constitucional do devido processo legal e as demais garantias democráticas estendidas aos servidores públicos pela nossa Carta Política, não é legítima a reprimenda disciplinar que não se escore em prova idônea existente nos autos. Conclui-se, portanto, que não é o servidor punido que deve provar a sua inocência. À administração pública é que compete provar a culpabilidade do servidor imputado, pelo menos em nível razoável. Estreme de dúvidas, essa é a senda em que deve enveredar os órgãos da judicatura nacional. A não ser que se pretenda prestigiar práticas inquisitoriais sepultas há bastante tempo, aqui e alhures. 6 CONSIDERAÇÕES FINAIS Por fim, pode-se concluir que a prerrogativa consistente na presunção de legitimidade e veridicidade do ato administrativo disciplinar — sobre ser relativa —, não tem essa mesma projeção no campo da processualística disciplinar, notadamente no que se refere à prova. Isso por força dos princípios constitucionais do devido processo legal, do contraditório e da ampla defesa. Não fosse assim, tais garantias tornar-se-iam meras peças de retórica, uma vez que, mesmo diante de um procedimento totalmente destituído de provas, deveria a punição predominar, caso o servidor punido não demonstrasse a sua inocência. Pois que isso nem sempre é possível. Já que a prova de inocência é bem diferente da tese da inexistência de comprovação de culpabilidade. Reconhecendo-se a procedência dessa tese, impõe-se a nulidade da punição infligida. O direito punitivo moderno, em qualquer de suas acepções, embora comporte gradação comprobatória (como ocorre em relação ao Direito Penal, que é o mais exigente no tocante à produção da prova), jamais poderá contentar-se com a simples existência de meras suspeitas ou vazias e inconsistentes conjeturas, ou cerebrinas suposições. E sim requesta uma dimensão probatória suficientemente segura e que seja estribada em razoáveis elementos de convicção. Fora disso, é o arbítrio, é a insegurança jurídica. É o predomínio da incerteza do direito. É o embuste, é o engodo, o ardil. É tudo o que não convém a uma democracia. Impor ao servidor público o dever de provar a sua inocência, sobre ser desumano e injusto, constitui descomedido desrespeito à garantia constitucional do devido processo legal. Assim, bastaria que a administração dispusesse de um vago calhamaço de papéis autuados sob a epígrafe de “processo disciplinar”, para que pudesse impor tais reprimendas disciplinares. Já que tais papeluchos (nessa estrábica visão), gozando da presunção de veridicidade, seriam o bastante para escorar a punição imposta. Dessa forma, muito ao contrário do que apregoa a nossa Carta Política, a administração pública seria contemplada com a descomedida chance de punir sem provas. E, ainda por cima, contaria com a desvantagem imposta por tal presunção ao servidor punido. A este competiria, num esforço titânico e desigual, provar a sua inocência, o que nem sempre é possível. Ademais, saliente-se que tal exigência, além de ser ilógica, inverte arbitrariamente o princípio constitucional da presunção de inocência. Vê-se, assim, que os princípios constitucionais referidos aqui, ajuntados ao argumento de que a punição disciplinar guarda a sua proeminente índole penal, não admitem tais desconchavos. Pois que o poder disciplinar, num Estado de direito democrático, não se funda em meras suposições. É certo que as punições disciplinares não exigem o mesmo rigor comprobatório das infrações penais. Isso não significa, porém, que elas possam ser legitimadas sem um mínimo razoável de prova. Em arremate final, se pode afirmar que o ato punitivo, mesmo gozando da presunção juris tantum de legitimidade, deverá ser invalidado quando, na ocasião do exame judicial, não se evidencie, com a devida razoabilidade, a existência de idôneos elementos de prova. Fortaleza - Ceará, 30 de julho de 2008. José Armando da Costa