QUANDO O EGO AUXILIAR SE ENCONTRA COM O

QUANDO O EGO AUXILIAR SE ENCONTRA COM O
ACOMPANHANTE TERAPÊUTICO NO PAÍS DA LOUCURA
Ana Paula Cordeiro Scagliarini
INTRODUÇÃO
Este é um escrito que versa sobre o Acompanhamento Terapêutico, o
Psicodrama e o tratamento das psicoses, tendo como fio condutor o conceito de egoauxiliar.
Buscando referência nas RAÍZES da teoria psicodramática , Moreno lidava com
as psicoses através do método denominado realização psicodramática que proporcionou
uma forma inovadora de utilizar o elemento ego auxiliar. Discorreu-se sobre os
protocolos de Marie e Karl ( Hitler) , que foram atendidos por ele através deste método.
Tanto o elemento ego auxiliar, quanto o método de realização psicodramática,
vão se TRANSFORMANDO ao serem colocados ao lado do Acompanhamento
Terapêutico, este também um dispositivo utilizado no campo da saúde mental.
Encontro fecundo, que abre PERSPECTIVAS para ambos os envolvidos e que
proporciona novos questionamentos, novas possibilidades teóricas, novas conexões...
O EGO AUXILIAR NA TEORIA PSICODRAMÁTICA
Moreno define ego auxiliar como um eu mais desenvolvido que ajuda um eu
menos desenvolvido e baseia-se no clássico modelo da relação mãe- bebê. Quando
nasce, a criança não tem capacidades físicas, neurológicas ou emocionais para lidar com
a variedade de estímulos que o mundo lhe oferece. Para sobreviver a esse ambiente que
se apresenta totalmente novo, depende da ajuda do outro, egos que “apresentam-se
como extensões do seu próprio corpo, enquanto ela é demasiadamente fraca e imatura
para produzir essas ações por seu próprio esforço”(4, p.109).
Mas ele também teve outras referências para criar seu conceito e falar sobre sua
utilização dentro da teoria da técnica do Psicodrama.
Sua primeira grande influência é a religião. Segundo a tradição judaico-hassídica
é o rabino (tzaddik) que auxilia seu “rebanho” no encontro com Deus. Com um modelo
diferente daquele tradicionalmente encontrado, do rabino que aguarda seus discípulos
no templo, o tzaddik vai onde seus pupilos estão, e com uma linguagem simples,
acessível, vai auxiliando no reconhecimento de que Deus está presente em toda a
natureza e em todos. Nas festas, nos cantos e danças, na celebração da vida. E coerente
com o que prega, participa desta celebração junto com eles.
Também Jesus, Buda, Sócrates- personalidades admiradas por Moreno- tinham
essa mesma postura do tzaddik: a de estar com, de estar junto a, de participar ativamente
do processo de religação do sujeito com Deus, com a sabedoria- conhecimento, enfim,
com o objeto procurado. Era o intermediador, o ponto de ligação, a ponte, o
instrumento, o meio.
Postura de ética de vida, de crença na humanidade, no respeito ao próximo, na
máxima do amar ao próximo como a ti mesmo.
Outra grande influência para Moreno foi o teatro, que na Grécia antiga cumpria
uma função institucional. Teve seu ponto culminante na tragédia grega, que surge no
momento em que era necessário intermediar os deuses e a instituição jurídica: razão. O
teatro era o espelho da sociedade, onde os cidadãos comuns viam seus dramas diários
serem encenados.
Do coro que dialogava com o protagonista, Téspis destaca um elemento para
antagonizar mais diretamente e dar um maior conteúdo dramático ao conflito encenado.
Ésquilo cria o segundo ator (deuteragonista) reforçando a idéia de que o conflito seria
trabalhado na ação dramática e não mais na narração (7, p.31).Ou seja, elementos que
auxiliam o protagonista no drama, na ação de evidenciar o conflito e solucioná-lo. Um
ego auxiliar.
A partir da descoberta das potencialidades terapêuticas do teatro, Moreno então
vai se utilizando desta linguagem para falar de sua terapêutica. Para acontecer um
Psicodrama, são necessários cinco instrumentos: o diretor, o protagonista, a platéia, o
palco e os egos auxiliares. São esses cinco instrumentos que possibilitam que o drama
venha a ser encenado e se chegue ao objetivo máximo: a verdade.(Moreno, 1973,p.17).
É no palco psicodramático que se desvela a trama enredada pelo protagonista
com o objetivo de restituir a autoria criativa e espontânea de sua existência, tendo para
isso, os egos auxiliares como coadjuvantes. Moreno fala: “As funções do ego auxiliar
são triplas: a função de ator, retratando papéis requeridos pelo mundo do paciente; a
função de agente terapêutico, guindo o sujeito; e a função de investigador social”. (4,
p.19)
Na função de ator o espaço de atuação do ego auxiliar em uma sessão
psicodramática é o palco. Os papéis representados podem ser de pessoas importantes
para a cena em questão que estão ausentes no momento da dramatização, papéis
imaginários, ou papéis simbólicos que exteriorizem uma parte do próprio protagonista
(4, p.317). Assim como o protagonista escolhe ou rejeita os egos, os egos também
podem colaborar ou não com o protagonista.
Se o ego aceita colaborar, deve se colocar a disposição do protagonista
corporalmente e emocionalmente: “O corpo do ator deve ser tão livre quanto possível,
deve responder sensitivamente a todo e qualquer motivo da mente e da imaginação.
Deve ter a capacidade de executar o maior número possível de movimentos, e de
executá-los fácil e rapidamente. Com efeito, estes movimentos devem ser espontâneos”.
(4, p.93).
Não é necessário reproduzir fielmente a fala, ou se parecer fisicamente com a
pessoa da vida real do protagonista, mas é fundamental que o ego capte telicamente o
clima da relação para ser capaz de ajudá-lo a entrar na“ atmosfera dinâmica da
situação”. (4, p.316).
Isso é possível se pensarmos a tele como um elemento fundamental na
terapêutica. O fenômeno tele é uma percepção clara e recíproca das pessoas envolvidas
em uma relação e componente das escolhas feitas.
Mas o ego pode decidir não colaborar. A resistência dos egos em desempenhar
determinados papéis pode acontecer por razões pessoais, por exemplo, quando o ego
também esta vivendo situações conflituosas semelhantes às que estão sendo colocadas
em cena e por isso pede para ser substituído por outro ego que vá desempenhar melhor
aquele papel; ou por razões terapêuticas, que é quando faz uso de uma técnica
denominada interpolação de resistências.
Fala Moreno: “No Psicodrama... os egos auxiliares que desempenham papéis
resistem com freqüência, às divagações do protagonista, replicam-lhe, contrariam-no, e
se necessário, modificam o curso do argumento. Poderíamos dizer que existe uma
contra- resistência movida contra o protagonista de todos os lados. Por razões
exploratórias e terapêuticas, os egos auxiliares podem “interpolar” resistências de
toda sorte, contrárias à intenção do protagonista.... Sem as contra forças que os egos
auxiliares e os membros do grupo injetam, as oportunidades do protagonista para
aprender seriam muito reduzidas”.(4, p.40).
O ego, aqui, não entra desempenhando o papel complementar (ou jogando o
contra papel) solicitado, desejado pelo protagonista, justamente porque foi avaliado que
isso no momento, não seria terapêutico.
Aqui o ego, que procura estar em máxima sintonia com o protagonista, também
tem que estar em sintonia com o diretor, para auxiliá-lo nas pistas, sinais, de qual papel
e como é mais interessante jogar no momento em que a cena se desenrola.
A função de ator se mescla com a função de agente terapêutico. Enquanto
empresta seu corpo, sua emoção, para complementar, vai construindo junto, uma
relação. Retira o indivíduo de sua solidão e o coloca em contato “com”, co-atuando, cocriando. E utiliza para isso a ação, componente fundamental de toda a terapêutica
psicodramática.
O ego, enquanto ator e agente terapêutico “atua” na realidade suplementar do
palco. Mesmo se estiver em cena, calado, mudo, estático, sua simples presença “atua”,
produz sentidos, co-cria.
Falemos então da terceira função que Moreno descreve do ego auxiliar: a de
investigador social.“ O ego auxiliar é analisado como um investigador social enquanto
está em operação – funcionando não como um observador mas como um agente
atuante”(4, p.315).
O ego auxiliar é um integrante da platéia- grupo, e que veio de uma comunidade,
com uma história sócio- cultural semelhante a do protagonista, e que por isso, possui
informações valiosas que muitas vezes o diretor só vai ter acesso através dele.
Portanto, aqui o ego vai mediar mais um campo: o do macro com o microcosmos
social que os grupos terapêuticos se fazem de amostra. É a ponte entre a fantasia do
espontâneo criativo que toma corpo no drama encenado e a realidade que se impõe fora
do palco, na platéia, no social.
Discorremos até agora sobre as funções do ego auxiliar na situação psicoterápica
.
Interessante falarmos também sobre a técnica do ego auxiliar. Ela é utilizada
quando se avalia que o sujeito (ego primário) não tem condições de resolver um conflito
que se instalou entre ele e os outros membros do grupo.“ Nesta forma de terapia o ego
auxiliar tem duas funções: (a) ser uma extensão do ego primário: identifica-se com ele
e representa- o perante os outros; ( b) ser um representante da outra pessoa, a ausente,
até que os dois egos primários estejam preparados para encontrar-se.”(4, p.289).O ego
auxiliar, portanto, vai prepará-las umas para as outras.
Para ilustrar essa técnica Moreno relata um caso de um triângulo matrimonial
onde ele foi o ego das três pessoas envolvidas na relação: marido, mulher e amante do
marido.
No início encontrava-se com o marido e a mulher separado e alternadamente
procurando em cada encontro aproximar-se ao máximo das vivências subjetivas de cada
um para depois levar" sempre a cada uma das partes um relato preciso e subjetivista do
que tinham a dizer a respeito um do outro"(4, p.292).
O tratamento chegou a ser interrompido quando o marido tentava a todo custo
transformar o ego em apenas seu e a mulher receosa acreditava que isso realmente
aconteceria.
Quando retornaram o tratamento Moreno torna-se ego também da amante do
marido e o impasse em que se encontravam espontaneamente pode ser solucionado
quando tiveram uma noção mais orgânica da situação.
Moreno, diante desse caso, teceu alguns comentários pertinentes sobre a técnica
do ego auxiliar.
Primeiro, coloca que por mais que o ego possa ser capaz de estar em sintonia
télica com o cliente, há limitações orgânicas e psicológicas. "A função do ego auxiliar é
conseguir a unidade com uma pessoa, absorver os desejos e necessidades do paciente, e
agir em seu benefício sem poder, entretanto, identificar-se com ele"(4, p.297).
Outra questão é que ela tem "que ser construída de modo diferente em cada
relação interpessoal"(4, p.294).As percepções entre os membros do triângulo são
variáveis e ao ego cabe estar atento a isto.
Há alguns casos, entretanto, que a cadeia de relações conflituosas se estende
para além do triângulo e é muito ampla, formando uma complexa rede. Podemos pensar
nas famílias, nos grupos grandes e até em uma comunidade inteira. Para Moreno, o líder
de um grupo age como um ego auxiliar na medida em que trabalha individualmente com
os membros objetivando com que eles se tornem os egos uns dos outros. Outra forma de
trabalhar seria identificar na rede um " indivíduo- chave - o portador de uma mensagem
emocional significativa"(4,p.298) e trabalhá-lo enquanto ego para aplicar assim um
efeito terapêutico multiplicador.
Nas relações coletivas que acontecem dentro das instituições Moreno vai
enfatizar a postura do terapeuta de ser um "ego à distância"(4,p.299). Aqui claramente
ele vai trabalhar com o conceito sociométrico de escolhas positivas e negativas
colocando que a terapia seria colocar em contato as escolhas positivas que geram uma
tele terapêutica e que a função do terapeuta seria " decidir quem poderia ser o melhor
agente terapêutico para quem, e ajudar na seleção desses agentes"(4, p.299).
O CASO MARIE
Marie é uma jovem perturbada com a presença alucinatória e delirante de um
homem: Johann. Essa é sua psicose, e vai ser trabalhada no que Moreno denominou
como método de realização psicodramática, que seria " a realização do sonho psicótico
até os limites de suas exigências mais profundas, com todos os meios de que
dispomos".(5, p.348).Para isso Moreno conta com a família da paciente, a qual solicita
que, ao invés de resistir ao delírio de Marie, mude sua atitude, o aceite e participe dele (
neste caso específico que participe da busca de Johann), e também, conta com sua
equipe terapêutica: egos auxiliares treinados e membros do grupo de pacientes.
Inicialmente faz várias entrevistas com a família, para conhecer a história
psicológica de Marie e preocupa-se particularmente com o primeiro contato com ela,
que para ele " deve ser preparado cuidadosamente, porque é determinante de todo o
desenrolar do tratamento" (5, p.346). Como forma de quebrar a resistência de Marie,
sua família lhe diz que souberam de um médico amigo de Johann, e assim Marie
prontamente chega até Moreno. A partir daí, cenas previamente preparadas por Moreno
e sua equipe vão se sucedendo, num processo que objetiva produzir uma "relação
terapêutica benéfica"(5, p.346). Nas primeiras sessões ela escolhe os atores terapêuticos
e as cenas se iniciam com as indicações que a paciente fornece. O papel representado
pelo ego procura dar o máximo de verossimilhança que o protagonista necessita para
vivenciar os episódios delirantes. "A tarefa do auxiliar terapêutico é de se identificar
tão profundamente quanto possível com Marie e Johann para saber o que ela deseja e o
que espera. Ele, então, está apto a agir como ela deseja , antes que exprima sequer um
desejo. Isso reforça sua crença na realidade de seus fantasmas e nossa honestidade"(5,
p.347 ).
Este é o período que Moreno chamou de período de realização. Os egos aqui vão
se introduzindo em seu mundo psíquico e fazendo com que ela o vivencie da forma
mais radical possível. É o período em que o paciente se torna muito dependente dos
egos auxiliares já que eles representam pessoas imaginárias do mundo que criou. Os
egos se tornam parte do próprio paciente. Para Moreno, esta é uma das mais importantes
funções do ego auxiliar: " libertar uma pessoa doente da forma mais extrema de
solidão, a alucinação."(5, p.362). O ego empresta o corpo, a voz, os gestos, as emoções
para essas personagens. Vivifica o processo e possibilita com que o louco, de uma
forma, dialogue com seu mundo. Essa relação estabelecida entre paciente e ego auxiliar
extrapola o contexto dramático. Marie, quando se encontrava com o ator que
representava Johann, não admitia que ele se comportasse fora do papel. "Mas acontece
uma lenta transformação. Durante a ação na cena psicodramática uma parte do papel
privado do ego, desliza e se une com uma parte do papel que ele está representando e
essa combinação é progressivamente aceita pela paciente. A máscara de Johann toma,
progressivamente, os traços de Willeim (o ego) "(5, p.362-363).
É essa lenta construção de mais um espaço no psiquismo do paciente para a
convivência desses dois modos de funcionamento diferentes: um papel no palco e um
papel no contexto social, um aspecto público e um aspecto privado que inicia o período
de substituição. O ego auxiliar tem uma função fundamental na transformação do
imaginário delirante, para o real. É a substituição no caso de Marie, do amante de sua
alucinação, para o amante terapêutico. É um momento de tensão durante o tratamento
pois evidencia um conflito e Moreno relata como Marie após a cena da "morte" de
Johann, "tem uma crise histérica, quer insistentemente pôr luto e fica inacessível
durante muitas semanas" (5, p.365). O que também a coloca "em conflito com
personagens reais" (5, p.365).
Chega-se então a última fase, que Moreno chama de período de análise, o grande
momento da revelação de toda a trama. Moreno faz isso, no caso Marie, junto com sua
equipe, encenando as cenas para que ela assista. Suas reações são diversas: em alguns
momentos reage com humor, em outros briga com os personagens em cena. É também
nesse período que para Marie, inicia-se uma outra substituição: agora do ego
auxiliar(amante terapêutico) por um rapaz da comunidade(amante real) que se interessa
por ela.
No resumo deste caso Moreno relata que o tratamento durou dez meses, e que
foram realizadas 51(cinqüenta e uma) sessões de 90 (noventa) minutos cada. A seguir
segue uma transcrição, entendendo sua importância para a discussão sobre
Acompanhamento Terapêutico: "Muitas (sessões) foram feitas fora do teatro, na vida
real, no quarto, na rua, no restaurante, em bailes e cinemas. Os egos auxiliares
tiveram que estar continuamente sobre o "qui vive" e utilizar qualquer acontecimento
inesperado em proveito da terapia ( por exemplo quando ela encontra um
desconhecido na rua e que a ela se dirige para pedir que a conduza em seu carro
até a casa de Johann)" (5, p.372).
O PSICODRAMA DE ADOLF HITLER
CENA 1: A secretária de Moreno lhe diz que um cliente que não estava agendado,
deseja insistentemente vê-lo. Moreno o recebe e ele se apresenta como
Adolf... Adolf Hitler.
CENA 2: Moreno conversa com Karl como se ele fosse realmente Hitler, que por sua
vez pede para fazer um pronunciamento. Moreno então introduz na sala um
enfermeiro e o apresenta a Hitler como sendo Goering (um dos assistentes mais
próximos de Hitler). Pede para que Goering o acompanhe ao teatro.
CENA 3: Hitler esbofeteia Goering , que prontamente o revida. A partir daí Hitler
admite ser chamado de Adolf por Goering.
CENA 4 : Hitler solicita um barbeiro para tirar seu bigode.
Este também é um psicodrama utilizando o método de realização psicodramática.
Mas por algumas peculiaridades e aproximações importantes com o acompanhamento
terapêutico e por ser aqui que Moreno vai tratar com maior clareza da função de ego
auxiliar no tratamento das psicoses que decidiu- se por discorrer sobre ele. Este
protocolo se encontra no livro Fundamentos do Psicodrama compondo a Quinta Palestra
intitulada O Psicodrama de Adolf Hitler.
O paciente Karl não foi internado em Beacon. Sua esposa empregou dois
enfermeiros que o supervisionava e que faziam respectivamente os papéis de Goering e
Goebbels, assistentes diretos de Hitler. Moreno então, contou com dois egos auxiliares
que sustentavam para Karl, em seu próprio ambiente, social, a plena realização e
concretização de seu delírio. Os egos auxiliares se tornaram os porta vozes de Karl
diante de Moreno, que se utilizava de todas as informações obtidas dos egos para as
encenações no teatro terapêutico em Beacon.
“A importância do ego auxiliar de deliberadamente representar bem o
papel do mundo interno do paciente é de fundamental importância para o
tratamento das psicoses. É só assim que as resistências do paciente vão ser
quebradas, porque o paciente se vê" estimulado a atuar dentro do papel
complementar "(3, p.212).
O ego auxiliar necessita de uma percepção muito apurada para ir incorporando em
seu papel, as necessidades complementares do paciente: um Goering submisso, um
Goering autoritário, um Goering que não demonstra medo de Hitler e revida seu tapa,
etc. Para isso precisa internamente ter esse arsenal emocional para lançar mão quando
necessário.
É nessa relação papel - contrapapel que o ego auxiliar estabelece com o paciente,
que vão também sendo introduzidas, terapeuticamente, elementos novos, que vão
possibilitar com que o paciente reaja, dê uma resposta comportamental diferente, e que,
aos poucos, possa ir abrindo mão dos papéis alucinatórios. Moreno vai dizer, que "o
progresso do paciente poderá depender da habilidade do ego auxiliar para obter dele
pistas essenciais e para rapidamente incorporá-las dentro da representação"... "O ego
auxiliar deve conter dentro de si... em seu repertório, uma ampla variedade de papéis, a
fim de que a encenação possa operar de forma corretiva"(3, p.212 ).
Moreno entende os papéis alucinatórios como uma criação objetivada em função
de uma falta, de uma ausência. E a concretização palpável dessa falta, o desempenho do
papel alucinatório, seria o caminho para torná-lo desnecessário.
No desempenho do papel, por mais próximo do real do paciente que o ego for
capaz de atuá-lo, coexiste um papel privado. E é no momento que o paciente pode
perceber isso, o papel privado por trás do papel representado, que inicia-se a
comunicação, a construção de uma ponte entre a fantasia e a realidade. Moreno
considera isto " a pedra angular do processo terapêutico"(3, p.215). No caso de KarlHitler, acontece a partir do momento que Bill- Goering revida o tapa.
Mas efetivamente o que faz com que, cedendo ao delírio de Hitler, e fornecendolhe um Goering, contribui para sua circulação entre real e imaginário?
Para Moreno esta resposta está no que chamou de transfiguração, uma idéia que se
opõe à de processo transferencial. Karl, em seu mundo delirante, criado para suprir uma
necessidade não satisfeita no mundo real, nunca aceitaria a presença, ou a companhia do
enfermeiro Bill. Mas aceita, quando este apareceu-lhe como Goering, um papel
compatível com seu delírio. Porque para Karl, Hitler não é um papel que está
representando. Hitler é real, obscenamente real. Na relação com Goering vai tendo
como exercer seu poder emocional e vai estabelecendo a nível psicodramático, uma
ponte entre si mesmo e o si mesmo de Goering, que é Bill.
Uma realidade suplementar, virtual, delirante e alucinógena, é que vai possibilitar
uma relação real entre Karl e Bill, uma relação télica e não transferencial (paciente
projeta no terapeuta uma imagem que não é real ).É a plena aceitação da loucura, sua
confirmação, o mergulho nela, que vai possibilitar a entrada na realidade. É o poder de
criação da loucura, transfigurado para uma realidade que agora apresenta também
formas de ser criativamente construída. É a possibilidade de recriar a realidade, com a
mesma potência utilizada para se criar a loucura.
Portanto, o desenvolvimento da tele, a liberação da espontaneidade - criatividade,
o circular e a diferenciação entre fantasia e realidade vai se dar através do princípio
básico do Psicodrama, que é a AÇÃO, o fazer junto, o co-atuar, próprio da função do
ego auxiliar, tangenciada na relação papel - contrapapel.
O ACOMPANHAMENTO TERAPÊUTICO
A matriz do nascimento do Acompanhamento Terapêutico é composta pelas
idéias que marcaram o século XX na década de sessenta. Fazendo eco com o desejo das
minorias em ter voz e reconhecimento, o humanismo, o existencialismo, a
antipsiquiatria ganham força em um mundo que passava por profundas mudanças, onde
a percepção de que a doença mental deveria ser trancafiada em um hospício começava a
perder espaço. A idéia é tratar o louco como uma pessoa que merece ter sua
subjetividade respeitada. Surgem as primeiras comunidades terapêuticas que
preconizam reproduzir a sociedade e como em um role-play treinar habilidades em um
ambiente saudável e compatível de se conviver com todos os conflitos inerentes às
relações humanas. Dentro dessas comunidades, profissionais aperfeiçoando a
terapêutica, acreditam na capacidade dos enfermos e na possibilidade de um maior
contato destes com o ambiente em que viviam antes da internação. Surgem os hospitais
- dia, onde o doente passa o dia em tratamento e volta para sua casa a noite. Alguns
pacientes, com uma dificuldade maior de estar em casa demandam alguém que os
acompanhe e prolongue assim os braços da instituição para o contexto social.
De
atendentes
terapêuticos,
amigos
qualificados,
para
acompanhantes
terapêuticos. De prolongamento da instituição para uma autonomia enquanto
modalidade terapêutica com a preocupação em não se instituir em conserva cultural,
assim como estimular a loucura a não mais se confinar a espaços reclusos.
O Acompanhamento Terapêutico surge, portanto, enquanto modalidade
terapêutica inserido na problemática das doenças mentais, mais especificamente, as
psicoses, contestando uma visão impregnada de despotismo, terror e preconceito frente
ao louco e a loucura.
Mas afinal, o que faz o acompanhante terapêutico (at)? Acompanha o cliente em
seus espaços cotidianos ajudando-o a restaurar, retomar sua autonomia, respeitando sua
singularidade e possibilitando novas formas de reinserção no social, este entendido
como sua casa, suas relações com a família, vizinhos, bairro, cidade... Para aqueles
indivíduos que estão vivendo em função de sua patologia, o at seria um elemento que
contribuiria na expansão de seu mundo resgatando sua autoria existencial. A perspectiva
é a de proporcionar a "conexão, circulação e ligação do indivíduo com o mundo"(1,
p.11).
A proposta do at com seu cliente é a "construção de uma cena"(1, p.29). O local
deixa de ser o contexto dramático do Psicodrama em sua virtualidade e se expande para
a rua, cidade, lanchonete, praça, escola, sorveteria. Os co-participantes não são o grupo
formal ou não estão treinados para assumirem determinados papéis. São as pessoas que
trabalham, os passantes que esbarram, os atendentes das lojas. O at e seu cliente vão se
lançar num universo aberto a todas as possibilidades, ao acaso, acontecimentos, onde
será necessário improvisar pois não há script pré determinado. É colocar o cliente diante
de um grande espelho que reflete o caos, a fragmentação, a sua falência interna.
O que fazer? Como dizer a ele para entrar em contato, se afetar por isso?
Quando o at é capaz de assumir um papel do mundo interno do cliente,
proporciona a abertura de um canal comunicacional, a perspectiva de um diálogo e a
conseqüente ruptura em sua solidão e procura estabelecer uma relação télica: "um tipo
de relação espontânea, não cristalizada, uma abertura ao outro que se desdobra numa
abertura do outro, em que ambos os sujeitos são capazes de viver a realidade presente,
mergulhando a fundo na relação que se dá; e que se impõe um mútuo conhecimento do
outro"(6, p.102) .É essa relação télica que proporcionará ao cliente estar nesse turbilhão
da cidade, exposto às intempéries e podendo utilizar seu potencial criativo e espontâneo
para estabelecer com ela também uma relação de troca e de reciprocidade.
Segundo Moreno, "quanto maior é o temor do paciente sobre a
psicodramatização de alguma função da sua psique, maior é a sua necessidade de um
ego auxiliar que o ajude a "arrancar''"(4, p.242 ). Os arranques são o aquecimento, que
vai colocar o cliente preparado física e emocionalmente para a ação espontânea.
Quantas programações e quantas saídas são necessárias para que uma cena efetivamente
espontânea aconteça? Cena que transforma, que produz um novo sentido, que
proporciona a abertura para um OUTRO olhar.
O acompanhante intervêm "nos momentos onde a concretização da montagem
dessa cena se interrompe e exige sua intervenção através de ações, que possibilitem
saídas libertadoras ao fluxo de sua construção"(1, p.29).Para que essas ações
interpretativas ocorram, o at vai se utilizar principalmente de seu corpo e do mundo
externo.
Mas assim como no Psicodrama acontece de haver no grupo dificuldades interrelacionais ou mesmo fantasias inconscientes que impedem o surgimento do clima
protagônico e sua passagem para a cena, no Acompanhamento Terapêutico também há
momentos tensos, difíceis , confusos. São caracterizados por uma inação e uma
passividade em que o acompanhar consiste apenas em estar com o paciente suportando
suas angústias, ansiedades, medos, prazeres. E é justamente na suportabilidade desses
momentos que é possível restabelecer a possibilidade da ação.
O AT se define através da ação que realiza: acompanhar. E assim como o
psicodramatista, deveria estar atento a uma ética: o AT "se dá conta de que em sua
prática não é mais um modelo, seja ele qual for, que ele se apóia efetivamente. Sua
referência passou a ser basicamente uma ética: aliar-se às forças da processualidade,
buscando meios para fazê-las passar, já que isto é condição para a vida fluir e
afirmar-se em sua potência criadora; aliar-se a essas forças e esperar- confiando na
possibilidade de que algo venha a agenciar-se e, a partir daí, um território venha a
ganhar consistência, de modo que uma saúde se faça possível"(2, p 92).
RELAÇOES ENTRE EGO AUXILIAR E
ACOMPANHANTE
TERAPÊUTICO
Moreno foi considerado um dos precursores da antipsiquiatria por ter
reconhecido o aspecto humano da loucura.
Importava-se com o ser humano em sofrimento dilacerante que se colocava
diante dele. Importava o como estar com essa pessoa singular podendo restituir-lhe a
dignidade de viver. Conferiu à loucura uma dimensão criativa e espontânea enquanto
solução para uma dor insuportável, mas que se cristalizou, encapsulou no tempo .E
olhou para ela não apenas em sua dimensão pessoal, intrapsíquica, mas como uma
interseção disto com o social, familiar, histórico e cultural...
Cria ,então, uma metodologia para as psicoses referenciada na teoria
psicodramática ,que é uma terapêutica cujo princípio básico é a AÇÃO .
Esta metodologia propõe a aceitação da realidade da psicose, permite e incentiva
a realização do delírio através da ajuda dos egos auxiliares, e pretende que o louco possa
se reintegrar a sociedade sendo respeitado em suas peculiaridades exercendo todo seu
potencial criativo.(5, p.373).
Para Moreno, o que vai possibilitar a saída transformadora da psicose é,
paradoxalmente, o mergulho que se possa fazer nela .E para isso o ego auxiliar adquire
um aspecto fundamental.
Enquanto ator é ele que assume um papel do mundo delirante do psicótico,
provocando a complementaridade e a possibilidade de uma abertura para a construção
de uma relação, confirmando, respeitando, aceitando a sua realidade. A composição
deste papel exige extensão, variedade ,flexibilidade corporal e psíquica. E quando sente
a estabilidade da relação, que “depende da força de coesão da tele” (3, p.21), vai
introduzindo
aos
poucos,
matizes
e
nuances
sutis,
propondo
uma
outra
complementaridade, solicitando do outro uma resposta diferente para as situações,
ampliando a variedade, extensão e flexibilidade do Outro. Nada menos do que atuando
enquanto agente terapêutico no processo da co-criação.
Mas é a função de investigador social que confere ao ego auxiliar, dentro do
Psicodrama, a dimensão de elo, ponte, entre o individual e o coletivo. Ambos
compartilham das interferências do mesmo tecido social, da História a da mesma
Cultura que em nome da Razão, exclui e deposita no louco, o ódio e o horror pela
Diferença.
O ego auxiliar sensível e com a percepção desenvolvida sabe que se deparar com
a loucura exige um mergulho na própria loucura reconhecendo também em si elementos
que possa lhe fazer próximo de quem vai se relacionar. E quando se propõe a cuidar do
louco através do método da realização psicodramática sabe que, como a loucura
extravasa, se dilata, ele também terá que transbordar.
Há vários relatos nos protocolos, onde o cliente e seus egos continuavam a
sessão iniciada no palco psicodramático, para outros espaços dentro da clínica e também
para os espaços sociais, na rua, no cinema, na casa do paciente.
E foi assim que o ego auxiliar, numa dessas saídas com seu cliente, na dobra de
uma esquina, encontra com o acompanhante terapêutico (at) e seu cliente.
A princípio percebem que ambos acreditam na mesma política e ética da
circulação da loucura pelos espaços públicos, com o mesmo desejo de restituir ao louco,
ao bizarro, ao estranho, seu lugar de direito na paisagem urbana.
O at ouviu atentamente o ego lhe contar sobre suas funções de ator, agente
terapêutico e investigador social.
O acompanhante terapêutico se dispõe a estar junto com o louco, compartilhar
dos mesmos sentimentos, conviver com a loucura e ajudá-lo a também fazer isso.
Companheiros, vão ao longo do caminho dimensionando o sofrimento , tentando tornálo mais lúdico, espaço de brincadeira, de jogo, de construção e desconstrução.
O que respalda o at e seu acompanhado é o delineamento de uma dupla, uma
relação. Contorno que vai estabelecendo quem é quem, enquanto se misturam e se
separam diversas vezes. Que contém confiança, reconhecimento, sustentação, tradução
de um mundo interno e externo caótico, o empréstimo do corpo e das emoções...Por
parte do at, poder ser o desejo, a memória, nutrir, proteger, explorar o mundo,
estabelecer limites, explicar, ensinar, aprender, sentir amor, sentir ódio... Por parte do
acompanhado, poder ter alguém que lhe tire de sua solidão.
Isso vai possibilitar a passagem para a ação concreta, que seja desde a menor
ação no cotidiano até as saídas pelos labirintos da cidade, onde se vislumbram cenas, se
deparam com o inesperado, o acaso, possibilidades de engate que produzam para eles
algum sentido. O at constrói as cenas com seu acompanhado. O ego participa das cenas
com o protagonista.
E conversam sobre como a tele, a espontaneidade e a criatividade são
fundamentais em seus trabalhos.
A percepção construída junto com o acompanhado, as escolhas que têm que
fazer juntos, na cidade que exige improviso e mediações o tempo todo, faz com que o at
perceba que se utiliza de todos esses elementos sem antes nomear-lhes assim. Como
essa dupla at e acompanhado precisam ser espontâneos e criativos, como precisam de
uma relação télica...
Saber que o espaço público é o local por excelência do trabalho do at, encanta o
ego, que se lembra da preocupação de Moreno com as coletividades. O at compartilha
com o ego o quanto se sente cigano, habitante das bordas, muitas vezes de lugar
nenhum, quando circula com o louco pela família, equipe terapêutica, rua, bairro,
cidade, cultura.
Ambos se reconhecem como elemento de mobilidade e trânsito, lugar de
passagens...
Conversam sobre a técnica do ego auxiliar, quando Moreno dizia que o ego
deveria ser uma extensão do sujeito, traduzindo aquilo que ele não estava sendo capaz
de expressar, e poder estar no lugar da pessoa ausente para mediar a relação. O at então,
relata que faz isto em sua prática. Pensa nas relações familiares onde esse não dito é tão
violento... pensa no social, com sua pseudo solidariedade. E pensa sobretudo na sua
função de denunciar ,de desvelar, de tornar visível. Telegrafista do inefável, tradutor da
incomunicabilidade.
Reconhece muito de sua prática também quando o ego lhe diz que o objetivo do
psicodrama é buscar na própria comunidade, nas pessoas mais próximas do psicótico,
alguém que possa exercer essa função do ego, provocando um efeito multiplicador da
convivência. O at então pode trocar com o ego, as inúmeras vezes que tomava atitudes
para com o seu acompanhado pensando que elas serviriam como um modelo para social
de como deixar se afetar pela "loucura" de uma forma transformadora.
Comentam também sobre o como suas atividades se parecem com o as de um
artesão. Cada relação tem que ser construída passo a passo, de forma diferente. Cada
pessoa demanda um aspecto do papel, cada delírio tem um conteúdo. Cada cliente que
chega remete a um sentimento , produz e desencadeia uma resposta do at/ego auxiliar.
Enquanto isso, a noite caía. E que bom que houve espaço para falarem de suas
angústias, medos e frustrações por estarem se dispondo a habitar terreno arenoso, país
de névoas e fumaças, mas que contém cintilâncias, mesmo que efêmeras.
Foram embora cansados, sabendo que o assunto não se esgotara.
O ego, ao encontrar-se com Moreno lhe conta do espelho que viu na cidade.
Moreno fica como que encantado pela figura do at, abrindo uma dimensão em sua
memória que o remete para as brincadeiras com as crianças nas praças de Viena, suas
andanças pela cidade fomentando a religião do encontro...e certo de que não estava
sozinho, pensa que o ego auxiliar é um acompanhante terapêutico na relação com a
loucura.
O AT, capturado pela idéia preconceituosa de que o ego auxiliar apenas
reproduzia as funções egóicas, não imaginava a sua riqueza Depois de ouvi-lo
reconheceu muito de sua prática no relato deste. E como um estrangeiro que depois de
um longo exílio ouve sua língua, sentiu-se acompanhado e reconheceu-se como um ego
auxiliar.
Feliz encontro que ambos sabiam, iria ressoar por muito tempo, transformando
definitivamente suas formas de olharem para si mesmos e para o que faziam no país da
Loucura.
Encontros assim que buscavam.... quando sentiam que a roda girava, o
caleidoscópio se mexia e podiam acompanhar a rotação da Terra...
ALICE E O AT
Alice é uma linda garota. Tem um corpo perfeito, seus cabelos são loiros e
longos e sua pele macia. Vaidosa, está sempre se cuidando, atenta a todos os
lançamentos de cosmética, e principalmente, adora se vestir bem. Acompanha a moda e
sua diversão predileta é ir ao shopping center fazer compras. Rica, compra todas as
novidades e gosta muito de mini saia e de blusa curta porque como ela mesma diz,
adora deixar sua barriguinha perfeita a mostra. Por onde passa, é admirada e provoca
olhares invejosos- das outras garotas, que gostariam de ser Alice, e dos homens, que a
desejam. Seu namorado a ama acima de tudo .
Muito bonito , tem um carro importado e uma moto maravilhosa que usa nos fins
de semana.
O único porém, é que ele mora em outra cidade e apesar de vir vê-la todo final
de semana, fica com muitas saudades.
Mas Alice tem uma vida social muito agitada, freqüenta as melhores festas,
sempre é convidada para coquetéis, bares, "boates", que vai com suas fiéis amigas.
Portanto, a falta que sente de seu namorado é recompensada e apesar do seu
ciúme ela sempre o faz entender que precisa disso para que a semana passe mais rápido
.
E no final , tudo termina com um grande beijo de amor.
Essa vida de contos de fada seria perfeita se não fosse fruto de um processo
criativo patológico nomeado pela psiquiatria de esquizofrenia e com o qual Alice
convive desde os 20 anos de idade.
Atualmente está com 40 anos, obesa, cabelos curtos e esbranquiçados, sua pele
ressente-se da falta de cuidado, vive isolada socialmente, não sai de casa, salvo em
raríssimas exceções, e não é preciso mencionar, absolutamente solitária.
Obviamente, não aceita nenhum tipo de tratamento (afinal, com esse mundo
perfeito ela precisa?) e qualquer confronto que a família faça com esse seu mundo, se
manifesta agressivamente, comportamento este, que fez com que ela fosse sendo
"deixada para lá".
A chamada da acompanhante terapêutica (at) é mais uma tentativa familiar de
tratamento .
O primeiro contato da at com Alice é em sua residência e se dá através da irmã
com a qual Alice é afetivamente mais próxima. Ao explicar a presença da at, a irmã
enfatiza que era alguém para fazer atividades com ela, tais como: pintar, passear, etc.
Prontamente Alice designa a at como sua professora de trabalhos manuais .E
esta aproveitou esse gancho para se introduzir no mundo de Alice.
Iniciou-se um percurso de atividades com Alice utilizando-se diversos materiais:
papel, giz de cera, argila, tinta, para se criar cachepôs, vasos, topiarias, aquarelas. O
material era levado até Alice e feito uma espécie de escolha sociométrica: os desenhos
livres não agradaram muito e então partimos para os vasos de argila.
A medida que ia se interessando pela atividade, Alice também foi aceitando ir
até a papelaria comprar o material. Eram saídas feitas perto de sua casa.
Delineava-se então uma relação de professora aluna.
Mas para Alice qualquer papel seria muito doloroso e difícil e esse foi um dos
pontos de inflexão do tratamento: o at inserindo-se em seu mundo e lhe convidando a
jogar papéis, lhe proporcionando outras formas de relação.
Alice era um aluna prepotente, que sabia tudo e portanto não tinha nada a
aprender com a at. Como professora, a at esperava, suportava essa prepotência, mas
também ia achando caminhos para mediatizar Alice e sua mãe, Alice e os funcionários
das lojas, Alice e o trabalho manual.
Em outros momentos a at precisava confrontá-la, brigar pelo pote de cerâmica ,
por exemplo, que diante da primeira dificuldade seria deixado de lado.
As primeiras frustrações de Alice foram muito dolorosas. Ao final do primeiro
mês de trabalho ela mandou a professora /at ir embora. A estratégia usada foi a de
reassegurar para Alice o papel daquela que sabia de tudo: a professora apenas
aperfeiçoaria o que ela já sabia.
Continuamos o processo, passando pelo sempre difícil caminho de iniciarmos a
atividade, concluí-la, e reiniciarmos uma outra.
Paralelo ao trabalho manual feito na casa de Alice, ela e at começaram a fazer
alguns passeios.
O predileto era o shopping center para lanchar.
Essas saídas perfaziam todo um ritual: combinávamos o horário. Quando a at
chegava Alice estava na cama se recusando a sair porque não tinha roupa nova.
Demorávamos um tempo no jogo das roupas. Até que ela lentamente se levantava, se
aprontava e quando estávamos finalmente de saída, Alice dizia que não ia, voltava para
seu quarto e deitava-se novamente. Com o firme propósito de ser seu desejo e sua força
contra o medo do mundo desconhecido, a at novamente se colocava ao lado dela e
reiniciava o processo de "convencimento" para a saída. Até que ela aceitava e íamos.
Para logo em seguida iniciarmos mais um momento tenso: a hora do lanche.
Com a boca suja, "catchup" escorrendo pela roupa, pedaços de sanduíche muito maiores
que sua boca poderia abarcar, conversando sozinha e passando a mão lambuzada de
maionese nos cabelos. Era essa cena escatológica que Alice produzia ao comer seu
sanduíche (único lanche que aceitava). Diante dos olhares incrédulos das mesas vizinhas
da lotada praça de alimentação do shopping, somada com a aflição interna da AT, a
única ação que esta conseguia tomar, era a de estender o guardanapo para Alice, que
recusava.
Passado a paralisação da primeira vez, a AT ia estendendo o guardanapo,
ajudando-a a limpar e argumentando para ajudá-la a comer de forma mais adequada.
Apesar da tensão, foram nessas saídas que Alice mostrava seu "universo
paralelo", de uma forma muito fragmentada, mas já possível de delinear. Foram nas
saídas que apareciam seu namorado, as paqueras, a loura linda e perfeita ...
Com o vínculo solidificado, a at começa a ampliar suas funções junto a Alice.
Vai alargando, encontrando e criando espaço para a cuidadora.
A at então, ganha autonomia e pode falar por exemplo que seu cabelo precisa de
um corte. Seguem-se várias cenas preparatórias para a ida ao salão de beleza. Alice já
espera a at mais bem vestida e de banho tomado. No trabalho manual o foco agora são
as miçangas e as inúmeras variações de colares e pulseiras. É a possibilidade de se
enfeitar e de se cuidar para ficar bonita.
A cuidadora leva ao clínico geral e posteriormente media a entrada do psiquiatra
para compor uma equipe terapêutica. Duro golpe em seu mundo cor de rosa, a mudança
de sua medicação foi um processo muito desgastante, mas fundamental no tratamento.
Atualmente já conseguiu colocar em sua rotina diária duas doses de medicação mas
ainda se recusa terminantemente a ir até o consultório do psiquiatra, tendo este que
fazer-lhe atendimento domiciliar.
E partiu-se para uma nova etapa da relação, quando Alice definitivamente não
queria mais a professora de trabalhos manuais e sim, uma amiga.
Momentos tensos, difíceis, principalmente para a at que não sabia muito o que
fazer com esse novo papel, nem ao menos se queria assumi-lo.Com certeza, não sabia se
podia. Ser amiga de sua cliente? Como essa relação iria de dar?
Mas a at se permitiu ir junto com Alice para ver o que seria essa história cujo
enredo estavam construindo. No começo meio desconfortável no papel, até ir
encontrando seu jeito próprio de atuar.
Assim, pode-se perceber como a relação ganhou em qualidade, como o vínculo
se solidificou ainda mais e como Alice também alargou seu universo.
Atualmente, Alice tem saído de casa com uma maior facilidade, tem se
permitido estar com pessoas que antes abominava - como velhos e portadores de
deficiência -, participado de um grupo terapêutico e feito saídas com outras
acompanhantes terapêuticas, que lhe exigem outras respostas, outras combinações .
Com tudo isso vai também ocupando um outro espaço em sua família e em seu
meio social e podendo ser ouvida, respeitada e aceita, mesmo que ainda por poucos
instantes...
BIBLIOGRAFIA
1.Equipe de Acompanhantes terapêuticos do Hospital-Dia A Casa (org.). A rua como
espaço clínico. São Paulo, Escuta,1991.
2.Equipe de Acompanhantes Terapêuticos do Instituto A Casa (org.). Crise e Cidade:
acompanhamento terapêutico. São Paulo, Educ, 1997.
3.Moreno, J. L. Fundamentos do Psicodrama. São Paulo, Summus, 1983.
4.Moreno, J. L. Psicodrama. São Paulo, Cultrix, 1993.
5.Moreno, J. L. Psicoterapia de grupo e Psicodrama. São Paulo, Editora Mestre Jou,
1974.
6 Naffah, Alfredo Neto. Psicodrama. Descolonizando o imaginário. São Paulo, Plexus
Editora, 1997.
7.Volpe, Altivir João. Édipo. Psicodrama do Destino. São Paulo, Ágora, 1990.