André Carlos Moreira Mendes As “muitasmorfoses” ambulantes no rock de Raul Seixas: critica cultural, social e estética durante a repressão da ditadura militar. (1968-1976) Monografia apresentada como Requisito de conclusão da Graduação no curso de História Setor de Ciências Humanas Letras e Artes, Universidade Federal do Paraná Prof. Dr. Marcos Napolitano Curitiba 2003 Esta monografia é dedicada à todos os alcoolizados que, nos bares da vida, sempre incomodam (incomodaram) um músico pedindo para que se toque “Raul”. Sem o incentivo destes, jamais encontraria estimulo para pesquisar este objeto. Agradecimentos Ao longo de toda a vida como estudante ou como músico, sempre encontrei dificuldades e ao mesmo tempo, encontrei pessoas dispostas a ajudar-me a superá-las. Talvez a memória falhe na tentativa de resgatar da lembrança o nome dessas pessoas, mas, de qualquer forma, aqueles que me ajudaram podem ter certeza que mesmo eu não lembrando, sou extremamente grato. Aos que puseram entraves na minha trajetória, creio que se frustraram. Aos meus pais por todo o apoio dispensado nesses vinte e poucos anos de existência, mas principalmente à minha mãe por ter sido paciente e estimuladora nos momentos mais críticos. Giane, apesar de todos os desafetos. Ao casal Angelo e Shirlei, sejam felizes e cuidem bem do meu sobrinho e, na medida do possível, providenciem mais um, pois eu vou demorar. Ao Thor pela sempre calorosa recepção. Ao Fred pelo carinho e fidelidade. À Kéu-kéu, pelos momentos divertidos. Aos amigos que fiz ao longo da vida. Rogério Borges, Márcio Amaral, Nilceu, Anderson “Tchãn”, Alisson, Hendre, Edson “Zurc” Cruz, Flávio, Laércio, Compadre Júlio, Nite (in memorian), Carlos e Dena, Cintia Martinez, Michelle Sotti e Eliandra Gomes. Alguns de vocês eu não veja há muito tempo, mas de alguma forma foi bom tê-los conhecido. Às pessoas que conheci na faculdade e acidentalmente se tornaram grandes amigos. Guga (o homem sem rosto) os três mosqueteiros, mas principalmente o Athos, Rafael Faraco, Juan Andres Viacava, Rodrigo Turim, Hilton Costa, Rodrigo “Odin”, Edna, Otávio, Diosmar, Ana Luíza, Luíza, Roderlei, Lígia, Vanessa, Renata, Leonardo “Santista”, Lourival, Miltinho, Adriano “Mosca”, Ana Emília, Joãozinho (figuraça), Lalas, César “japa”, Ribas “70 years”, Laís, Mauricião “GP”, Rodrigo “Bi” Bichara e Cassiano (in memorian). Aos amigos Waggy, Dr. Andreia Paula Costa, Fabiano Bizinelli, Daniel “Rato” Abud (já estou aprendendo a suportá-lo), Augusto “Guto Lifferson” Rafaelli, Alisson, Carlão, Juan José Viacava, Cynthia Custel (de alguma forma você me ajudou a terminar isso tudo) Maurício Taborda e irmãos Marco e Marcelo Caporasso pela grande oportunidade que estão me dando e aos meus colegas virtuais. Aos grandes mestres e professores que tive ao longo da vida. À Luciano Romanelli (aprender música contigo fez ela ganhar sentido) Marcos Napolitano, por ter aceitado o desafio de tentar tornar um músico um historiador e pela orientação deste trabalho. Carlos Lima por todas as conversas informais que sempre esclareceram muito. José Roberto “Peninha” Portella pelas conversas divertidísssimas e pelo incentivo em estudar o bom e velho rock´n´roll. À Professora Ana Maria Burmester, por mostrar o quanto a história é apaixonante. Para finalizar, gostaria de agradecer a Kika Seixas, pela ajuda que me deu desde o início, ao Sylvio Passos, que, apesar dos poucos contatos, também manifestou interesse em ajudar, para Rosana da Câmara, pelo apoio e para Juliana Abonizio, pela ajuda com sua dissertação. E é óbvio, para o grande Raul Seixas, por tudo que representa para a música brasileira. Índice Introdução.............................................................................................................................1 Primeiro ato – De Raulzito a Raul Seixas..........................................................................4 Cena 1: “Era uma vez um garoto que queria ser escritor...”..................................................5 Cena 2: “... se tornou músico...”.............................................................................................8 Cena 3: “ ...pensou que ia se tornar um astro de rock, mas não deu certo...”.......................11 Segundo Ato – Nada a ver com a linha evolutiva da música popular brasileira – O período da conscientização e vivência...............................................................................17 Cena 1: Metamorfoses sonoras............................................................................................20 Cena 2: A Segunda etapa da metamorfose..........................................................................24 Terceiro Ato – O ator maluco e sua metamorfose...........................................................32 Cena 1: Cuidado! Aí vem o inimigo....................................................................................34 Cena 2: Gita.........................................................................................................................39 Cena 3: Novo Aeon.............................................................................................................43 Cena 4: Há dez mil anos atrás.............................................................................................46 Quarto e último ato – Possibilidades de conclusão..........................................................49 Fontes Utilizadas.................................................................................................................51 Referências bibliográficas..................................................................................................52 1 Introdução Esta monografia que se segue procurou estudar a produção musical do cantor compositor baiano Raul Seixas. Ao longo de sua carreira, este músico adquiriu estabilidade na cena musical brasileira, consagrando-se como um ícone da música rock, fenômeno de vendas e como um dos principais representantes da contracultura no Brasil.. A pesquisa desenvolvida em torno deste objeto deu destaque a sua produção entre os anos de 1968 até 1976, ou seja, partiu do lançamento do seu primeiro disco, no inicio do período mais repressor da ditadura militar brasileira e se encerrou dentro do período de redemocratização da nossa sociedade. A escolha dessa periodização baseou-se no seguinte critério. A relevância histórica do período. Um momento conturbado e violento da recente história brasileira. Um espaço temporal em que se discutia formas para se redemocratizar a nação nas esferas políticas e culturais. Pode-se enumerar também o critério de que foi nesse período que o “Raulzito”, da CBS, passa a ser Raul Seixas, o “corpo estranho na MPB” com disse um autor. O que motivou-me a escolher esse objeto de pesquisa foi a ausência de trabalhos que se dispuseram a investigar este músico. Até recentemente, fui informado que haviam apenas os já conhecidos trabalhos jornalísticos e as biografias sobre o compositor. Ano passado fui informado da existência de dois trabalhos acadêmicos que se preocupavam com a produção de Raul Seixas. Um deles em específico foi me bastante útil. A dissertação de mestrado da historiadora Juliana Abonizio. Sem contar a lacuna que envolve a pesquisa em torno de Raul Seixas, outro motivo também foi o fato de que há muitos anos atrás, ao iniciar-me como músico, o primeiro compositor que chamou a atenção dos meus ouvidos foi Raul Seixas. Ao longo da minha trajetória pessoal como músico acabei por me afastar de seu trabalho. Ao surgir a oportunidade de pesquisá-lo, de contar uma parte de sua história, foi como redescobrir a minha própria trajetória pessoal como músico. Foi como redescobrir as minhas próprias origens novamente. A pesquisa teve em mente um problemas. Como a questão da musica nacional se apresentava na obra de Raul Seixas? Este compositor se caracterizou por produzir reflexões e críticas sobre a sociedade brasileira. Para isso, ele usou uma linguagem 2 extremamente popular. Ele foi um roqueiro, mas não somente na música, e sim no comportamento rebelde e na vontade de se voltar contra as verdades estabelecidas. Ele procurou uma alternativa às idéias hegemônicas presente no período estudado. Ele não cantou utopias socialistas, não cantou projetos nacionais de direita. Não cantou o conservadorismo. Ele cantou uma proposta de libertação individual, centrada na ação do homem, na busca individual de uma autonomia de consciência. Ao usar a linguagem musical brasileira, não era preocupação sua se associar a uma idéia de nacionalidade. Ele não tinha uma visão romântica da cultura brasileira. Não tinha uma visão modernista da cultura brasileira. Ele apenas usava o espírito transgressor do rock em coisas nossas, nos nossos ritmos. Além de usar a linguagem musical brasileira para passar a sua mensagem, ele se apoiou e muito nos princípios da contracultura, na negação, na fuga ao mágico, na busca pelo transcendental. Por isso mesmo, muitas vezes foi chamado de profeta do apocalipse, mas mesmo sendo atacado, conseguia responder a altura Se isso possuía algum sentido, jamais foi a busca por uma raiz da música, da cultura brasileira. Talvez por isso ele tenha sido chamado de corpo estranho na MPB. Mesmo a tentativa transgressora que a Tropicália apresentava ele buscava transgredir. Algumas dificuldades se apresentaram ao longo do trabalho, como por exemplo, articular a analise das fontes musicais ao contexto estudado. A linguagem metafórica e irônica de Raul Seixas as vezes dificultava a construção de uma interpretação que fosse ao mesmo tempo pertinente e que não fosse anacrônica. Metodologicamente, a analise se pautou em estudar em bloco os parâmetros musicais e líricos, comparando os significados que cada um desses elementos poderia ter em relação ao contexto estudado. Cada uma das fontes, fossem elas as entrevistas concedidas por Raul Seixas em periódicos catalogados em uma publicação recente, ou ainda as fontes fonográficas, tiveram a mesma importância, pois ambas mostravam muito claramente a visão de mundo deste artista. A principal conclusão tirada é que mesmo não se atendo a nenhum projeto político, ao se caracterizar como um ator, que muda de personagem sempre, uma autêntica metamorfose ambulante, Raul Seixas soube fazer uma leitura extremamente crítica sobre o 3 período em que produziu sua obra. E essa leitura foi vista como parte de um pensamento baseado na contracultura. 4 Primeiro Ato – De Raulzito a Raul Seixas “Eu já avisei só por avisar, Agora, vou cantar por cantar.” Cantar por cantar, tudo o que vier na cabeça. Esta frase está presente na música “Cantar”, de Raul Seixas, gravada no ano de 1987, exatos 20 anos após o registro de seu primeiro álbum. Nesta fase de sua carreira, Raul Seixas já estava fisicamente decadente. As drogas e o álcool já o haviam deixado muito debilitado. Toda sua trajetória artística caminhava para o fim com sua morte em 1989. A grande vantagem do historiador é aquilo que chamamos da possibilidade de “prever o passado”. Raul Seixas não sabia que viria a morrer dois anos após ter gravado “cantar”. Entretanto, é muito simples para nós, afastados no tempo e com o privilegio de saber o “fim” da história, observarmos que a música “cantar” anunciava um Raul Seixas mais tranqüilo. Um músico que já não tinha pretensão de continuar sendo a figura controversa que havia sido. Já não teria mais forças para isso, já havia perdido a rebeldia rockeira que o caracterizou. Ele nos parece muito diferente do compositor que se tornara um fenômeno da industria fonográfica, expondo suas idéias e visão de mundo embasadas principalmente nos propósitos da contracultura. Entretanto, quando ele dizia que, a partir de então, iria só “cantar, tudo o que vier na cabeça”, no fundo ele acaba por anunciar que continuaria fazendo as coisas da mesma forma que antes. Apesar do período em que ele sofreu fortemente a presença da censura, em 1973, ele sempre cantou o que lhe “vinha à cabeça”. Sua carreira, obviamente não foi homogênea desde o inicio. De 1967 até 1989, ele mudou o tom de suas palavras e a forma de suas músicas. E estas mudanças não se deram a toa. Raul Seixas, em contraposição aos artistas engajados vinculados com a MPB, não via problemas em se associar com a industria cultural. Nesse sentido, ele se aproxima do pensamento de músicos voltados com a proposta da tropicália que também não enxergavam problemas em se vincular com o mercado de discos. E justamente para se infiltrar dentro do cenário musical brasileiro e da jovem industria cultural brasileira que, desde o inicio de sua carreira, ele foi um músico bastante comercial. O caráter transgressor que marcou grande parte de sua carreira, que auxiliou na 5 sua projeção, pouco tem a ver com o seu primeiro disco, feito com outra concepção, para outro tipo de ouvinte, com vistas à outro mercado. Não se pode negar que Raul Seixas era um roqueiro e que fez rock. Entretanto, não se pode pensar o rock como algo homogêneo, pois, desde a década de 1950, desde seu nascimento, ele já sofria a interferência direta da produção cultural, se subdividindo em várias outras formas de rock1. Pensemos principalmente o caso americano, a origem do rock, mesmo por que, Raul Seixas foi contemporâneo ao surgimento dessa música, para entendermos o começo de sua carreira, é necessário estarmos atento aos primórdios do Rock. Cena 1 – “Era uma vez um garoto que queria ser escritor...” Muito já foi dito sobre a origem do rock. Desconheço quem negue que esse gênero musical seja oriundo de outra coisa que não seja a associação entre o blues e a música country americana. O blues era uma música marginal dentro da sociedade americana, basicamente por um motivo: era música negra2. O country era tido como música dos caipiras, dos habitantes do interior. Não era tão marginal quanto o blues, mas também era inferiorizada na hierarquia dos gostos3. Apesar dessa origem “plebéia”, o rock se tornou o grande produto cultural da juventude branca americana de classe média e eu poderia afirmar que foi sem sombra de duvida a grande música do século XX, a mais ouvida, a mais consumida e a mais executada. Hobsbawm aponta na “era dos extremos” que o rock e a cultura juvenil em torno dele, surgem como um fenômeno internacional e que gerou a formação de uma camada 1 O rock surge e rapidamente começa a ser segmentado em rock para brancos (Elvis Presley, Bill Halley, Jerry Lee Lewis) e para negros (Litlle Richard, Chuk Berry). 2 Pode-se acrescentar aqui que parte dessa marginalidade do blues se deve a sua típica sonoridade que normalmente provoca um desconforto no ouvinte: a execução da chamada blue note. A blue note consiste em um cromatismo que se obtém tocando sucessivamente os intervalos de terça menor, terça maior, quarta, quarta aumentada e quinta perfeita. Mais precisamente, a chamada blue note é a quarta aumentada, mas em geral, quando essa seqüência de intervalos é executada tendo como harmonia um acorde maior, a sonoridade é muito característica e é praticamente impossível não associa-la ao blues, dado a dissonância dos intervalos tocados com os intervalos que montam o acorde. 3 Uma boa sugestão de leitura é o texto de Roberto Muggiati denominado de “O Grito” do livro “Rock: o grito e o mito. O autor descreve como teria se originado o blues quando da chegada dos negros africanos no continente americano, sobretudo na América do norte. Traça uma linha da evolução do blues até este se tornar o rock, quando da sua fusão com o country. MUGGIATI, R. Rock: O Grito e o Mito – A música pop como forma de comunicação e contracultura : Rio de Janeiro, Vozes, 1983, 7-13. 6 social juvenil ou melhor ainda, uma “classe” consciente de si mesmo; um mercado consumidor de produtos culturais4. E se o rock, sua linguagem e seus signos, possui um caráter internacionalizante, que transcende a idéia de nação, de nacionalidade, é necessário verificarmos o aparecimento do gênero em terras brasileiras. Para isso, podemos utilizar as referências clássicas, mas o próprio Raul Seixas pode nos dar uma dica. “O que me pegou foi tudo, não só a música. Foi todo o comportamento rock. Eu era o próprio rock, o Teddy Boy da esquina, eu e minha turma. Por que antes a garotada não era garotada, seguia o padrão do adulto, aquela imitação do homenzinho, sem identidade. Mas quando Bill Halley chegou com Rock Around the Clock, o filme balanço das horas, eu me lembro, foi uma loucura para mim. A gente quebrou o cinema todo, era uma coisa mais livre, era minha porta de saída, era minha vez de falar, de subir num banquinho e dizer eu estou aqui. Eu senti que ia ser uma revolução incrível. Na época eu pensava que os jovens iam conquistar o mundo...”5 O relato de Raul Seixas, lembrando de sua juventude, serve de elo de ligação para pensarmos como se deu a introdução do rock no Brasil. Ele entra pelo cinema. Não veio diretamente em formato de disco para as lojas especializadas.6 Dado o caráter universalizante da cultura rock e a revolução que ocorreu no comércio de música popular, quando da descoberta de um mercado consumidor composto por jovens7, o comportamento dos primeiros ouvintes de rock no Brasil, não se diferia do que já estava acontecendo no na América do norte. Quebrar cinemas estava se tornando uma prática comum, assim como ouvir rock8. 4 No texto de Hobsbawm ainda são encontradas discussões sobre o surgimento de um novo ator social e a relação desse ator com o rock e com a revolução cultural ocorridas posteriormente. HOBSBAWM, Eric. Era dos extremos : São Paulo, SP, Cia das Letras, 1999, p. 317-336. 5 PASSOS, S. (org) Raul Seixas por ele mesmo : São Paulo, SP, Martin Claret, 1998, p. 14. 6 Em 1955 estréia no Brasil o filme “The Blackboard Jungle”, sendo aqui batizado como “Sementes da Violência”. O filme trazia a música “Rock Around Clock”, do conjunto Bill Haley and His Comets que Nora Ney, cantora de rádio, gravou uma versão chamada de “Ronda das Horas”. Informações retiradas de PAVÃO, Albert. O Rock Brasileiro : trajetória, personagens e discografia : São Paulo, SP, Edicon, 1989 p.13-14 e DAPIEVE, Arthur. BRRock: o rock brasileiro dos anos 80 : São Paulo, SP, Editora 34, 1995, p.11. 7 HOBSBAWM, E. Op. Cit., p. 321. 8 Márcio Wassani nos mostra que em Curitiba, quando da exibição do filme Rock Around the Clock, a imprensa local questionava se as mesmas depredações de cinemas que ocorriam em outras capitais brasileiras viriam a acontecer na capital paranaense. WASSANI, M. A mídia e o Rock’n’roll: um estudo sobre o 7 É contracenando nesse cenário de expansão internacional da cultura juvenil que Raul Seixas se inicia como ouvinte de Rock. Esse garoto que almejava ser escritor nasceu em 1945. As diversas informações disponíveis sobre ele, nos mostra que em sua infância, não se interessava por música. Sua vontade era ser um escritor e viver de literatura.9 O seu desvio da literatura ocorreu quando de sua adolescência. Em Salvador, morando próximo ao consulado americano e sendo amigo de filhos dos funcionários do consulado, Raul Seixas começa a se iniciar no rock, ouvindo os discos que seus amigos à ele emprestavam. No Brasil, já começava a serem gravadas músicas de rock, sobretudo com os irmãos Tony e Celly Campello (1958). O rock começa a chamar a atenção do adolescente brasileiro, sobretudo no eixo Rio-São Paulo, já com o surgimento de conjuntos e grupos vocais que interpretavam canções de rock´n´roll. Durante a década de 1960, o rock ganha um espaço considerável no mercado fonográfico. Apesar de toda a intolerância por parte da esquerda intelectualizada, que insistia em discriminar o rock caracterizando-o como alienado e imperialista, ele cresce e passa a ser veiculado pela grande mídia: a televisão. Em 1959 a TV Record passa a exibir o programa Crush em Hi-Fi, apresentado pelos irmãos Campello. O programa permanece até 1962.10 Com a divulgação desta emissora, novas iniciativas empresariais em construir artistas de rock no Brasil se acentuam.11 Fora do eixo Rio-São Paulo, a Bahia, mais precisamente Salvador, já começava a ter também espaços destinados ao rock. Waldir Serrão, amigo de Raul Seixas e junto com ele, rock’n’roll na ótica da imprensa local (1955-1960) : Curitiba, PR, monografia de conclusão de curso de história, UFPR, 2000, p. 14-13. 9 ABONIZIO, J. O protesto dos inconscientes: Raul Seixas e a micropolítica : Assis, SP, dissertação de mestrado em história, UNESP, 1999, (sem referência completa) PASSOS, Op. Cit., p. 12. 10 Albert Pavão destaca a importância da TV Record para a divulgação do Rock, devido ao fato de a emissora trazer atrações internacionais, cantores de rock para o Brasil. PAVÃO, A. Rock Brasileiro (1955-1965) Trajetória, personagens e discografia : São Paulo, SP, EDICON, 1989, p.19-21. 11 “.... em 1959 o disc jockey paulista Miguel Vaccaro neto, percebendo o sucesso de brasileiros cantando em inglês, junta-se com a Editora Musical Fermata (Enrique Lebendiger) e organiza a gravadora Young, com o objetivo de lançar novos valores do rock, numa ampliação do que outros vinham fazendo.” PAVÃO, Op. Cit., p. 20. Interessante destacar que este autor, em seu trabalho de coletar dados sobre os primeiros anos do rock no Brasil enfatiza o sucesso que os interpretes brasileiros de rock estavam obtendo. Artur Dapieve fala que os irmãos Campello não obtiveram sucesso cantando em inglês e passaram a cantar em português, passando assim ao estrelato. Não que algum desses autores tenha a responsabilidade em fazer um trabalho de pesquisa fidedigna, entretanto, a conclusão que Dapieve chega é de que o público consumidor de rock no Brasil preferia ouvir seus astros estrangeiros cantando em seu idioma de origem, o que teria feito com que artistas brasileiros que cantavam em inglês não pudessem chegar ao sucesso. Penso que Pavão traz informações que dão mais sustentação a sua afirmação, dado que os dados empíricos que ele mostra, caracterizam mais que o publico ouvia interpretes brasileiro do que os repudiava. 8 sócio do Elvis Rock Club, promovia shows, concertos e bailes de rock em Salvador12. A TV Itapoã passava a apresentar um grupo de rock, vestido com roupas engomadas e cabelos com gel e topete. Eram os Panteras13. Cena 2 – “... e se tornou músico...” O rock no Brasil começou a crescer consideravelmente nos anos 1960. A chamada música popular brasileira era sem sombra de dúvidas, o carro chefe da industria fonográfica brasileira14 e assim permaneceu até o final da década de 1970, quando passou a perder espaço para o chamado rock nacional.15 Já em 1965, com o programa “Jovem Guarda” apresentado pelo cantor capixaba Roberto Carlos, o rock passa a ser marginalizado, sendo alvo dos preconceitos do segmento engajado da Música Popular Brasileira, da canção de protesto.16 E embora o rock estivesse sendo alvo de critica por ser considerado alienado e alienígena, por não possuir o caráter contestador que a canção de protesto tinha e nem a nacionalidade brasileira, o gênero se desenvolvia e começava a disputar espaço com a música popular. Raul Seixas já começava a ser conhecido na Bahia, justamente por causa dos constantes aparecimentos na TV Itapoã, tocando com os Panteras. Na banda eram executadas inicialmente canções de Elvis Presley, Bill Halley entre outros nomes do rock´n´roll americano17. Durante todo o período referente a 1962-1967, os Panteras tocam fazendo os shows de abertura para nomes importantes da jovem Guarda, como Jerry Adriani, Wanderléia, Roberto Carlos, entre outros. 12 PASSOS, Op. Cit., p. 16. O primeiro nome dos Panteras era “Os relâmpagos do rock”. O grupo foi fundado em 1962 e no ano seguinte muda de nome. MUGNAINI, A. Eu quero cantar por cantar: Raul Seixas : São Paulo, SP, Nova Sampa Diretriz, 1993, p. 80 14 O desenvolvimento da industria fonográfica brasileira durante o período referente as décadas de 1970 e 1980 e analisado por Márcia Tosta Dias. A autora analisa as estratégias de marketing, de divulgação e de produção do produto musical durante essas duas décadas no capítulo intitulado “Trajetórias da industria fonográfica brasileira”. DIAS, Márcia T. Os donos da voz: Industria fonográfica brasileira e mundialização da cultura : SP, Bomtempo, 2000, p. 51-90. 15 Um estudo minucioso sobre o desenvolvimento do rock no Brasil a partir do inicio da década de 1980 está em GROPO, L. A. O rock e a formação do mercado de consumo cultural juvenil: A participação da música pop-rock na transformação da juventude em mercado consumidor de produtos culturais, destacando o caso do Brasil e os anos 1980. Sobretudo o segundo capítulo chamado “O rock dos anos 80 e a reciclagem cultural” p.78-119. 16 “... o cantor (Roberto Carlos) colocou em evidência o abismo que separava o iê-iê-iê de sua contemporânea canção de protesto, enaltecendo a manutenção de uma atitude alienada em relação aos problemas do país” ALMEIDA, C. A. Cultura e sociedade no Brasil: 1940-1968. : SP, Atual, 1998, p. 75 13 9 Além dos shows em Salvador, o grupo constantemente viajava por cidades do interior da Bahia, tocando em festas e em cinemas das localidades interioranas. Raul Seixas sempre foi um fã declarado de rock. E, apesar de ter tido o privilégio de ouvir a vertente mais negra do rock (consequentemente, mais rebelde também), ironicamente, seu primeiro registro em estúdio não traz a agressividade do rock que o influenciou. Em 1964 os Panteras gravam um disco compacto contendo as músicas “Nanny” e “Coração partido”18. Nanny era um rock mais lento, com uma letra romântica. Na letra, o personagem principal dizia a “Nanny” que possivelmente brigaria com ela pelo fato de que ele ficou a esperando para um encontro que ela não apareceu. A construção harmônica da música é bem simples. É montada em cima da progressão de acordes I – IV – V19, com algumas variações no encadeamento desses acordes. Até então nenhuma novidade. O rock no Brasil demorou para acompanhar as inovações que este gênero estava fazendo fora. Tanto inovações estéticas, ideológicas quanto inovações tecnológicas. Na segunda metade da década de 1960, o rock, no mundo, já estava dialogando com outras formas musicais. Bob Dylan já estava incluindo a música Folk, branca, que fazia antes, com a blue note negra.20 O rock nos Estados Unidos, começa a protestar também21. Podemos perceber que há um descompasso entre o rock que se faz no Brasil e o que se está fazendo mundo afora. E o próprio Raul Seixas nos dá pista disso. Em 1964 a movimentação política e social no Brasil nos mostra um quadro de um experiência democrática sem precedentes. São diversos setores da sociedade que se movimentam em busca de uma transformação na sociedade brasileira. As ligas estudantis 17 Em 1992, sai pela gravadora Polygram o LP “Baú do Raul”, que incluía gravações dessas aparições na TV. As biografias sobre Raul Seixas afirmam que este compacto não chegou a ser lançado, apesar de que veio a ter até cartaz de divulgação. O cartaz de divulgação pode ser visto em MUGNAINI, Op. Cit., p. 94. No disco “O baú do Raul, de 1992 está presente a gravação da música “Nanny”. Infelizmente, ainda não tive acesso a gravação da música “Coração Partido” 19 Tônica – subdominante – dominante. 20 MUGGIATI. Op. Cit. P. 10 21 Muggiati mostra que já em 1963, B. Dylan (que nessa época não pendia tanto para o rock) junto com Joan Baez participaram de uma marcha em Washington. A chamada marcha dos direitos civis. Muggiati apresenta que nessa década o rock nos Estados Unidos contem uma postura critica e revolucionária. Para o autor, “o universo unidimensional, em que o próprio Estado opressor programa segundo seus interesses, é denunciado pelos grupos de rock”. Ao longo do segundo capítulo do seu livro ele vai expor que o rock começa a criticar os valores sociais do establishment, a discriminação social e racial. MUGGIATI. Op. Cit., 14-30. 18 10 (UNE), com os centros de produção cultura (CPC) passam a auxiliar na promoção e divulgação da arte engaja. A canção de protesto nacionalista acompanha toda essa movimentação social e política, toda essa experiência democrática. E se o rock não fazia isso, Raul Seixas muito menos. Durante a década de 1960, as temáticas políticas e sociais ganharam espaço nas canções da música brasileira em virtude da ditadura que nascia. No entanto, tais composições não foram acompanhadas pelo rock. Juliana Abonizio afirma que apesar dessa diferenciação básica, “isso não quer dizer que os fãs de rock fossem todos alienados ou gostassem da jovem guarda. Pelo contrário, havia uma parcela de jovens críticos da sociedade unidos pelo rock influenciados pela contracultura norte-americana(...) fundando comunidades alternativas e tendo posturas agressivas a sociedade a despeito de um ideal pacifista”.22 Daí, se percebe o por quê da caracterização que os artistas e intelectuais envolvidos com a Música Popular Brasileira dão ao rock. Enquanto a intelectualidade engajada estava incentivando a mobilização nacional, o envolvimento político e social, a Jovem Guarda queria mais era tratar dos temas relativos ao universo juvenil, adolescente23. Como vimos acima, o rock norte americano já era mais atuante, no que se refere as questões sociais e políticas. Demorou bastante para o rock no Brasil tomar esse tipo de postura. Ainda há outra situação que caracteriza o descompasso do rock brasileiro com relação ao que ocorria fora do pais. Nos seus primórdios, o rock teve uma pequena diferenciação. Alguns músicos como Elvis Presley, Chuk Berry, Litlle Richard e Jerry Lee Lewis, faziam um rock mais agressivo e rebelde, onde era comum encontrarmos associações com a violência, ao ato sexual e também com a rebeldia sem causa24. Outros cantores como Paul Anka e Neil Sedaka optavam por uma tendência mais romântica. E é esta segunda opção que impera no formato de rock da Jovem Guarda e no que vai fazer Raul Seixas. 22 ABONIZIO, op. Cit.¸p. 112. Em geral, os temas apresentados no rock da Jovem Guarda eram relacionados a carros, a turma, a gangue, ao namoro, ao perfil dos garotos e garotas, entre outros que faziam parte do universo do adolescente. 24 Embora Elvis Presley, após ter voltado do serviço militar, tenha mudado o tom do seu rock, o tornando mais romântico também. 23 11 Enquanto Dylan já acrescentava blue notes ao folk na segunda metade da década de 1960, os Rolling Stones já faziam um rock com um formato mais próximo ao blues negro, enquanto inovações tecnológicas encorpavam e distorciam o som das guitarras neste período, enquanto novos conceitos musicais eram trazidos para o rock, aqui no Brasil ele continuava com a mesma estrutura que possuía no final da década de 1950. Ou seja, imperava a construção harmônica com base na progressão I – IV – V25 (no caso das baladas rock, a acentuação rítmica do compasso 6/8 e o encadeamento I – VI – IV - V) e a temática lírica ainda era o universo adolescente. Lá fora, o rock pretendia resgatar o grito do negro oprimido, enquanto no Brasil, a suavidade da interpretação vocal é que imperava. E foi esse o rock que Raul Seixas fez nesse momento de sua carreira. O sucesso comercial da Jovem Guarda impulsionou o compositor baiano a vir para o Rio de Janeiro em 1967 galgando degraus mais elevados para a sua carreira de músico. Um ano antes, Jerry Adriani utilizou-se dos Panteras como banda de apoio. Como gostou da música que a banda fazia, incentivou-os a irem para o Rio de Janeiro, pois era então, ao lado de São Paulo, o lugar onde se produzia e onde se mais consumia rock.26 Cena 3 –“ ...pensou que ia se tornar um astro de rock, mas não deu certo...” Durante a década de 1960, os Panteras se tornam o grande ícone do rock em Salvador. “1964 foi a melhor época dos Panteras, a fase áurea. Por que a gente tocava músicas dos Beatles. A gente tinha um monte de aparelhagem, tinha nome, era o conjunto mais caro da Bahia. Tocamos seis meses numa boate, o Dendê Clube, a gente era roubado, mas tinha prestigio. E excursionávamos pelo interior tocando música dos Beatles; éramos respeitados prá burro”.27 Raul Seixas acreditava que era necessário dar um novo passo na carreira como músico. Dada a possibilidade de ir para o Rio de Janeiro com Jerry Adriani tentar o 25 Salvo a exceção nos acordes de função dominante ou quando se fazia uma “preparação” para se tocar o acorde de função subdominante. 26 Os motivos são óbvios, eram as cidades cosmopolitas por excelência e eram também as cidades mais populosas do Brasil, como ainda são até hoje. 27 PASSOS. Op. Cit., p. 21. O ano de 1964 aqui aparece sem nenhuma referência ao golpe militar. 12 sucesso, ele deixa Salvador. Mesmo por que, “talvez,.... para Raul, a cidade estivesse ficando pequena demais”.28 Na coletânea organizada por Sylvio Passos, há uma citação ao fenômeno que foi a bossa nova entre os universitários de Salvador, fenômeno visto pelo próprio Raulzito. Raul Seixas demonstra um grande desprezo por essas pessoas. Ele conservava o visual de quem era um ouvinte de rock e não escondia que apreciava o estilo. Mesmo que se houvesse uma forma de ele esconder, os Panteras já eram grandes demais. Segundo a entrevista de Raul Seixas, ele era tachado de entreguista, de americanista. De que não era nacionalista. Coisa que não era novidade. Ele próprio dizia não ser um músico nacionalista. Eu nunca fui ligado a essa coisa de raiz da música popular, pesquisar, procurar saber. Por exemplo, eu nunca ouvi falar de Pixinguinha e outros como ele. Só aqui no Rio, há pouco tempo, é que eu ouvi falar que existia. Não sei o que é, eu simplesmente não era muito chegado, não sentia”.29 A busca pelo elemento nacional, pelo elemento popular não era objetivo de sua produção musical. O que não significa que esses elementos não tenham aparecido em sua música, mas essa é uma questão a ser estudada no segundo capítulo desta monografia. Em 1967 é gravado “Raulzito e os Panteras30. O resultado: a frustração do conjunto, principalmente de Raul Seixas. Poderíamos chamar o disco de anacrônico. Esta definição aplicada à esse disco não carrega um significado tão forte da palavra quanto o sentido que o historiador usa. Na verdade, significa que o disco estava defasado em no mínimo três anos. O rock apresentado pelo conjunto nesse disco era tipicamente Jovem Guarda. Prevalecendo a guitarra tocada de forma rítmica com pouca variação harmônica, onde as músicas se prendem a basicamente uma tonalidade. Quando algum instrumento ou arranjo melódico surge na música, quase sempre ele executa a mesma melodia da voz. A interpretação vocal não contém a agressividade do rock. A voz é mais “limpa”, se os efeitos de entonação, sem vibratos, sem mudanças bruscas de altura. Constantemente surgem harmonias vocais, sobressaindo e destacando a melodia vocal principal. 28 Idem, ibidem Idem, p. 13-14 (cabe aqui um comentário a essa coletânea. O livro traz inúmeras entrevistas que Raul Seixas deu durante sua carreira, mas, infelizmente, nem todas tem suas datas) 30 Raulzito e Os Panteras, ODEON, janeiro de 1968. 29 13 O próprio Raul Seixas posteriormente falou que o disco não era comercial. O romantismo de músicas como Vera, Verinha, Trem 103, Alice Maria, entre outras e o dilema existencial de Por que? Pra que?, não emplacou. Raul Seixas havia se tornado um fã dos Beatles, considerava que o grupo tinha trazido uma grande inovação ao rock quando passou a “cantar as próprias coisas deles”.31 Para Raul, essa mudança que os Beatles trouxeram abria a oportunidade de ele dizer o que pensava em suas músicas.32 Quando de sua chegada ao Rio de Janeiro, da gravação do primeiro disco com os Panteras, ele constata que o seu referencial de rock não está presente. “Por azar, chegamos no final da safra. Não entendíamos nada do que se passava. Agnaldo Timóteo num lado, Caetano, Gil e Mutantes do outro.... Tivemos que compor, complicamos demais. Não tínhamos idéia do que era ou não comercial em matéria de música em português. Algo está errado. Ninguém conhece Chuk Berry, Mick Jagger, Vanilla Fudge e Frank Zappa e outros caras desses por aqui”33 A Jovem Guarda já não tinha o mesmo espaço de antes. Seus artistas ainda estavam atuantes, mas o programa de TV já não existia mais. O cenário político no Brasil estava agitado. Em 1967 o governo militar instaura a ideologia da segurança nacional34. Eclodem guerrilhas em várias partes do país. Se em 1964 se acreditava na possibilidade de um acesso do partido comunista ao poder através da transição democrática, em 1967/68 a alternativa era a luta armada. E se o cenário político estava agitado, o cultural não ficava muito atrás. A propagação da televisão deu um impulso maior na divulgação da Música Popular Brasileira, através dos festivais. Estes festivais, além de promoverem e divulgar a música, eram palco das tensões envolvendo as discussões estéticas envolvendo a MPB. 31 PASSOS, Op. Cit., p.20 Idem, ibidem 33 Idem, p. 24 34 Se o país promovesse um processo de desenvolvimento, na visão dos militares, este auxiliaria a segurança interna e vice-versa. Talvez seja relacionado à esta perspectiva da segurança nacional que o milagre econômico ocorrido a partir do governo Medici (1969-1974) ganha um sentido ainda maior, pois, assim ele faria parte de um conjunto de práticas e idéias que auxiliariam na desmobilização e despolitização das massas populares, atingindo em cheio os interesses dos militares que ocupavam o espaço do poder e atenderiam as perspectivas das chamadas classes médias que enxergariam no desenvolvimento do capitalismo nacional um dos bons frutos do regime militar. É nesse período que a industria cultural nacional se consolida 32 14 Em 1967 Caetano Veloso, expoente do movimento tropicalista, se apresenta no III Festival de Música Popular da TV Record, em 1967, com uma banda de rock, unindo elementos do rock iê-iê-iê da Jovem Guarda com a música popular e a canção de protesto. A receptividade não foi positiva, pois, os elementos que estavam sendo introduzidos em gêneros musicais que representavam a brasilidade (samba, choro, marchinhas) eram signos da submissão ao modelo cultural americano, o qual era denunciado como imperialista. Unir o rock a música popular era considerado estar sendo alienado e não nacionalista. A tropicália, na música, tende a resgatar a concepção modernista de que a cultura brasileira é antropofágica.35 Outra grande novidade do tropicalismo na música é que ele não nega a industria cultural. Ele cede a ela, mas continua político. É dentro desse contexto que Raul Seixas lança o seu primeiro disco em conjunto com os Panteras. Percebe-se que Raul Seixas buscava ser comercial, não via problemas em se associar a industria cultural. Entretanto, o rock no Brasil já não era mais a mesma coisa. Os grandes nomes da Jovem Guarda passaram de músicos de rock para cantores de música romântica. Os Mutantes já estavam atentos para com as inovações que o rock tinha fora do país. O som do grupo já tinha uma raiz diferente da que a da Jovem Guarda, da que Raul Seixas estava fazendo com os Panteras. A tropicália, na música, já estava levando a risca a sua proposta oriunda do modernismo. Ou seja, estava “comendo” o rock e produzindo novidades. Ela também tocava rock, mas era um rock associado com elementos de música popular e com uma preocupação em definir que a sua inovação estética, era nacional, pois a cultura nacional era antropofágica, logo, o rock feito após ser “deglutido” pelo elemento nacional e reformulado a partir disso, poderia também ser considerado nacional. Essa perspectiva abre um maior espaço para o rock. Entretanto, quando da gravação de seu primeiro disco com os Panteras, dado o insucesso que o formato do rock que o grupo apresenta e seu respectivo insucesso, a banda passa a ser o conjunto de apoio de Jerry Adriani no Rio de Janeiro. Insatisfeito e frustrado, Raul Seixas volta para Salvador. Começa a estudar filosofia. 35 “A atividade dos tropicalistas foi associada à antropofagia Oswaldiana pela crítica e por eles próprios, enquanto proposta cultural e maneira de integrar procedimentos de vanguarda. A teoria e a prática da devoração, pressuposto simbólico da antropofagia, foram erigidas em estratégia básica do trabalho de revisão 15 Em 1970, a convite de Evandro Ribeiro, diretor da gravadora CBS, ele retorna ao Rio de Janeiro para trabalhar como produtor. De volta a “cidade maravilhosa” passa a produzir os disco de artista como Jerry Adriani, Trio Ternura, Renato e seus Blue Caps, Tony & Frankie, Diana e Sérgio Sampaio36. Esse contato com a produção musical lhe favoreceu na medida em que ele começava a desenvolver uma percepção de o que era vendável ou não. Temporariamente, Raul Seixas ficou afastado dos palcos, mas em contrapartida, começou a descobrir o funcionamento da máquina, da industria fonográfica. Raul Seixas havia dito em uma entrevista para o jornal O Pasquim, em novembro de 1973 que mantinha um contato, embora estreito, com Caetano Veloso e Gilberto Gil, desde 1960. Nessa mesma entrevista ele revela que ele e os dois compositores indicados acima freqüentavam espaços antagônicos. Que, apesar da divergência entre estilos musicais (Raul o rock e Caetano e Gil a bossa nova) parte da abertura que permitia que ele usasse Ie, Ie, Ie com “coco” é atribuída aos expoentes do tropicalismo musical.37 É importante ressaltar novamente que a tropicália na via problemas em se associar a industria cultural. E apesar de posteriormente Raul Seixas enfatizar a importância da tropicália, seu primeiro disco, que é contemporâneo ao surgimento do movimento tropicalista, é basicamente um rock nos moldes da Jovem Guarda. Ao optar por este padrão de rock, involuntariamente, Raul Seixas se envolve nos debates e nas questões levantadas pela tropicália. Apesar de estar “atrasado” e de não ter tido sucesso algum, este LP revela possibilidades a Raul Seixas, principalmente após ele ter começado a trabalhar como produtor da CBS. Em entrevista dada a Juliana Abonizio, Eládio, integrante dos Panteras comentava sobre Caetano e Gil: “quer dizer que agora pode usar guitarra elétrica? O que eles estão fazendo? Descobrindo agora os Beatles? Nós já fazemos isso há muito radical da produção cultural, empreendido pela intelectualidade dos anos 60 e parte significativa de artistas” FAVARETTO, C. Tropicália: alegoria, alegria : São Paulo, SP Ateliê Editorial, 1995, p. 47 36 PASSOS, Op. Cit., p. 63 37 PASSOS, Op. Cit., p. 83-103. A entrevista para o jornal O Pasquim está transcrita nesse livro. 16 tempo. Logo eles que achavam que não havia vida inteligente fora da Bossa Nova e do teatro Vila Velha”38 Percebe-se que, apesar de Raul Seixas atribuir à tropicália a importância de ter criado a abertura para o rock, para a união de elementos musicais que representavam identidades diferentes, os Panteras sentiam um certo repúdio. Raul Seixas como indicado anteriormente no texto, não era um músico nacionalista, que buscasse o nacional. Embora ele afirmasse que já na época dos Panteras ele misturava rock com baião (fórmula que o consagrou posteriormente), ele não se enxergava como um músico nacionalista. Dada a característica do pensamento da contracultura que, a grosso modo, era caracterizado pela negação dos valores, a negação da busca por uma musicalidade que seja nacional é recorrente na música de Raul Seixas. Mas essa questão está reservada para o segundo ato. 38 ABONIZIO, J. O protesto dos inconscientes: Raul Seixas e a micropolítica : Assis, SP, dissertação de mestrado em história, UNESP, 1999, p. 70. Nota da autora: Teriam sido mais ou menos essas as palavras dos Panteras sobre a tropicália, segundo afirmações de Eládio 17 Segundo Ato – Nada a ver com a linha evolutiva da música popular brasileira – O período da conscientização e vivência. “Acredite que eu não tenho nada a ver, Com a ‘linha evolutiva da música popular brasileira’, A única linha que eu conheço, é a linha de empinar uma bandeira” O primeiro ato desta peça contou a história de Raul Seixas no período referente a 1964-1969. Este segundo ato/capítulo se preocupa com o período em que ele esteve envolvido como executivo e produtor da gravadora CBS. Destaca-se o inicio das mudanças de concepção que ele vai desenvolver sobre música, sobre sua música e sobre o mercado fonográfico. O ano era 1972. Na TV Raul Seixas aparece com o visual estereotipado da “juventude transviada”. Com jaqueta de couro, bota, camisa branca, calça de couro e com topete no cabelo, no melhor estilo que imortalizou James Dean. Ele cantava no VII Festival internacional da canção duas músicas. A primeira se chamava “Let me sing, let me sing”39 e a outra entitulada “Eu sou eu, nicuri é o diabo”. Ambas as músicas foram classificadas para as finais do festival. É a primeira vez que Raul Seixas conseguiu uma divulgação que abrangeu todo o território nacional pela TV.40 Lembremos que, em 1965, o governo militar criou a EMBRATEL, assim como o Brasil foi vinculado ao INTELSAT (sistema internacional de satélites) e que, em 1968, foi construído um sistema de comunicação por microondas que viabilizou a aproximação das diferentes e distantes regiões do pais, bem 39 Deixe-me cantar, deixe-me cantar É neste período em que os meios de comunicação de massa passam a atingir quase que a totalidade do território brasileiro. Renato Ortiz mostra o avanço que se dá na industria cultural no Brasil a partir da década de 1960, possibilitando um crescimento no mercado de bens simbólicos. ORTIZ, Renato, A moderna tradição Brasileira : São Paulo, SP, Brasiliense, 1988, p. 113-148. Dentro da ideologia de segurança nacional, proposta pelo Estado militar, as redes de televisão se expandem para todo o Brasil, unindo e integrando o pais. Em recente artigo, Dennison de Oliveira analisa o interiorizarão do sinal televisivo, estudando o caso do Paraná durante a segunda metade da década de 1970, onde ele discute o papel do Estado na promoção do desenvolvimento da televisão no Brasil. OLIVEIRA, Dennison. Trazer a televisão: Estado e interiorização do sinal televisivo. (Paraná, 1975-1988), História: Questões & debates, Curitiba, v. 13, n. 24, p. 173-221, jul./dez. 1996 40 18 como, a integração nacional, necessária para o desenvolvimento da industria cultural no Brasil Durante o período da história brasileira conhecido como “milagre econômico”, ocorreu um intenso desenvolvimento da economia nacional, sustentado pelo Estado militar. A expansão e o crescimento do mercado interno brasileiro interessava profundamente à ideologia do desenvolvimento com segurança, vigente no período. Esse crescimento na economia possibilita que haja pela primeira vez um caráter integrador na indústria cultural brasileira, algo que já vinha ocorrendo desde o inicio da década de 1960. A idéia de integração nacional foi central para a realização da ideologia que impulsionou os militares a promover toda uma transformação na esfera das comunicações.41 A difusão da mercadoria música alcançou patamares maiores42. Pela primeira vez, em 1973, a população urbana no Brasil superou a rural. As cidades cresceram com os constantes movimentos migratórios. O grande momento de Raul Seixas em sua carreira até então tinha sido esse, ser um dos finalistas do VII FIC. Após o período em que ficou afastado do meio musical, quando retornou para a Bahia em 1969, ele volta ao Rio de Janeiro em 1970. Passou a trabalhar na gravadora CBS como produtor musical. Em meio ao conturbado cenário da música popular brasileira, Raul Seixas passou a fazer o trabalho de produção de artistas do gênero que posteriormente viria a ser chamado de “Brega”, caracterizado pelo romantismo de suas letras. A maioria dos artistas vinculados para com essa tendência musical, tinham a sua origem na Jovem Guarda.43 Portanto, o contato com Raul Seixas como produtor, que também tinha essa origem em comum, possibilitava um maior dialogo entre o artista, o 41 ORTIZ, p. 118 Márcia Tosta Dias ressalta os fatores que permitem compreender a expansão da industria fonográfica brasileira. “Primeiramente, consolida-se a produção musical popular brasileira e, consequentemente o seu mercado. A industria não prescindiu da grande fertilidade da produção musical dos anos 60, sobretudo a da Segunda metade da década, assim como a do início dos anos 70, e constitui casts estáveis, com nomes hoje clássicos da MPB.... Outro segmento altamente lucrativo que se consolida, na época, como grande vendedor de discos, é aquele nascido do movimento Jovem Guarda, uma das primeiras manifestações nacionais do rock.” DIAS, M. T. Os donos da voz: Industria fonográfica brasileira e mundialização da cultura : SP, Bomtempo, 2000, p. 55 43 Basta citar alguns nomes destes artistas que os “ouvidos atentos” já podem remeter à essa origem. Sérgio Reis, Reginaldo Rossi, Erasmo Carlos, Silvinha, Wanderléia, entre outros 42 19 produtor e toda a máquina da industria fonográfica44. Raul Seixas atestava que esse período foi importante para que ele pudesse ter a noção do que é ou não vendável em uma música. Passa a ter uma visão mais ampla, no intuito de aproveitar o mercado fonográfico. “Os Beatles aprenderam no estúdio e eu também. Aprendi os macetes todos, aprendi a fazer música fácil, que diz direitinho o que a gente quer dizer. Eu já sabia que gostava de palco. Mas foi no Rio, depois dos Panteras, que desisti mesmo de ser escritor. Vi que sulcos do disco levavam muito melhor o que eu queria dizer.45” Raul Seixas enfatizava freqüentemente que: Como os Beatles que aprenderam no estúdio, eu lá aprendi tudo, os macetes. Aprendi a fazer música comercial, fácil, intuitiva, bonitinha, que leva direitinho ao que a gente quer dizer. Aí eu desisti de vez do livro que eu ia fazer, o tratado de metafísica. Decidi chegar ao livro através dos discos, dos sulcos, das rádios. É mais positivo, é melhor.”46 Há três pontos importantes para serem observados a partir dessas afirmações. A admiração pelos Beatles, a aceitação da idéia de que se associar ao mercado fonográfico é positivo e a vontade de Raul Seixas em divulgar as suas idéias.47 E, em 1975, Raul Seixas olhava para o seu passado e reconstruía sua história apontando para uma ruptura. Para ele, houve um momento de sua carreira em que ele se dedicava à uma música que se concentrava no agnosticismo48, onde não tinha experiência, conhecimento sobre o que era ou não vendável, e também um segundo momento em que ele adquire os conhecimentos necessários para tornar a sua produção artística interessante aos olhos do consumidor, tornar o seu produto vendável, comercial. À essas distinções, ele mesmo chamava os períodos de “época de fome”, entre 1968/69, quando de seu insucesso no Rio de Janeiro. 1972 está marcado como o período da “conscientização e vivência”49. 44 Raul Seixas produziu artistas como Jerry Adriani, Trio Ternura, Renato e seus Blues Caps, Tony & Frankie, Diana e Sérgio Sampaio 45 PASSOS, S. (org.), Raul Seixas por ele mesmo : São Paulo, SP, Martin Claret, 1998;, p. 42-43 46 Idem, p. 25 47 Entretanto, antes de serem apresentados e discutidos, é necessário mostrar que essas duas frases de Raul Seixas são de um momento em sua carreira como músico em que ele já está consolidado como artista dentro do cenário da música brasileira. O livro que as traz não informa precisamente as datas de quando ele pronuncia essas afirmações, a exceção da segunda frase, que é de 1975 48 Como ele mesmo afirmava, Idem, p. 24 49 Idem, p. 25 20 A primeira coisa que chama a atenção nas frases de Raul Seixas é a referência a banda inglesa “The Beatles”. Por um lado, ele entendia que os Beatles tinham um estatuto de maior prestígio por que, seriam eles o primeiro grupo que através da música podiam levar, disseminar as próprias idéias. “foram os Beatles que me deram a porrada. Foi quando os Beatles chegaram e passaram a cantar as próprias coisas que deles que eu vi, poxa, esses caras estão cantando realmente a vida deles, estão dizendo o que há pelo mundo, o que pensam. Então eu posso fazer a mesma coisa, dizer exatamente o que penso em minhas músicas. Foi quando eu comecei a compor, juntando tudo no meu caderninho. E tinha outra coisa: do ponto de vista musical, foram os Beatles que me abriram a cabeça, muito mais que o rock. Eu me lembro de quando ouvi I want to hold your hand, eu disse, olhaí, olhaí, o baixo eletrônico na frente! Antes eu nunca nem tinha ouvido o baixo. Agora era facílimo, a gente ouvia os acordes”50 Raul Seixas afirmou que passou a conhecer os Beatles a partir da primeira metade da década de 60. Em 1964 ele considerava que foi a melhor fase dos Panteras, pois eles tocavam música dos Beatles e tinham seu próprio equipamento.51 Para Raul Seixas, os Beatles conseguiram fazer uma música que vendia e que ao mesmo tempo, levava uma mensagem dada pela própria banda. Para quem se propunha a ser escritor desde a infância, essa é a revelação que faltava para que ele mesmo pudesse divulgar suas próprias idéias. A partir disso, a forma como Raul Seixas apresentaria suas idéias, com base no pensamento da contracultura, seriam os sulcos dos discos de vinil. Todo o tempo que passou trabalhando como produtor fez com que ele descobrisse maneiras de se adaptar ao mercado fonográfico, de vender discos.. Cena 1 – Metamorfoses sonoras É a partir do período da “conscientização e vivência”, quando Raul Seixas esteve trabalhando como produtor da CBS, que a sua produção musical se voltou para uma forma 50 Idem, p. 20 Idem, p. 21 – é interessante ressaltar que a influencia dos Beatles sobre os Panteras se nota quando observamos na capa do primeiro disco do conjunto, uma grande tendência por parte dos integrantes da banda em copiar o aspecto visual dos primeiros anos de carreira dos Beatles. 51 21 totalmente diferente da que havia caracterizado o inicio de sua carreira. Foi apresentado durante o primeiro capítulo que Raul Seixas, quando da gravação de seu primeiro compacto (Nanny /Coração partido) e também ao gravar seu primeiro disco (Raulzito e os Panteras), optava basicamente por fazer rock, partindo da releitura que a Jovem Guarda fez do rock. Citando a auto-imagem que Raul Seixas tinha, ele fez de sua música uma verdadeira “metamorfose” de ondas sonoras; uma metamorfose ambulante tinha. Após 1971, a música por ele criada, iria empregar outros elementos que vão além do rock. Ele não abandona o rock, mas, no final da década de 1960, com a abertura que a tropicália apresenta, ao associar o rock com música popular, ele também passa a demonstrar uma tendência antropofágica em sua obra, um dialogo com os lideres do tropicalismo na música. “... essa liberdade que você tem de usar um rock, de usar um iê-iê-iê, de usar coco, isso ai é abertura deles?(Caetano Veloso, Gilberto Gil) Raul Seixas – É claro, por que eu sofri muito a influencia de Caetano e Gil. Isso é óbvio. Porque eu cheguei fazendo aquela coisa meio hermética, e foi Caetano que abriu, e Gil fazendo aquela coisa.52 O “Raulzito” da CBS conseguiu “aliar suas idéias loucas à música POP em escala industrial”53. O primeiro passo para realizar as suas “idéias loucas” foi dado em 1971, com “A sociedade da grã-ordem Kavernista apresenta: sessão das 10”, disco esse que lhe rendeu a demissão da CBS. Como produtor, o contato que obteve com artistas dos mais diversos estilos, trouxeram-lhe experiência musical, para que a partir de então ele voltasse a se lançar como cantor, como artista.54. Ao ser indagado sobre a sua saída da CBS Raul Seixas sempre lembrava: “Fui expulso em função desse LP. E também por que eu fui no Festival Internacional da Canção, cantar Let me sing...” ...Eles disseram: ‘ou você é produtor ou você é cantor.’ Eu tinha que optar”55 52 PASSOS, op. Cit., p. 102 – entrevista concedida ao jornal “o Pasquim, em novembro de 1973 Idem, p. 133 54 Vale lembrar que além de ter sido produtor, muitas músicas de Raul Seixas foram gravadas por outros interpretes. Ele compunha material musical para artistas dos mais variados estilos, entretanto, destaca-se o Brega. 55 PASSOS, op. Cit., p. 98 53 22 E, após ter aprendido o “jogo dos ratos”56, Raul Seixas opta pela carreira artística. A partir de então, se acentua a grande característica de Raul Seixas: a metamorfose. Sendo assim, qual seria a grande mudança na música de Raul Seixas? A rigor, pode ser observado que a grande novidade que se apresenta na música de Raul Seixas após 1971 é o elemento nacional. Tenho plena consciência de que a escolha dessa data pode ser arbitrária para designar, demonstrar essa novidade, esse novo elemento em sua música. Ao ouvir o disco “O baú do Raul”57, o ouvinte se depara com gravações feitas de modo extremamente amador, de clássicos do rock dos anos 195058. Essas gravações foram feitas pela própria família de Raul Seixas, que teve o cuidado de registrar o áudio das aparições que ele fazia na TV Itapoã, em Salvador, na época dos Panteras, no período referente a 1963/64. Pois, já em 1963, os Panteras acrescentavam ao rock que tocavam, músicas populares, tradicionais no nordeste. É o caso de “mulher rendeira”, que aparece em um pout-pourry em uma dessas gravações. Neste momento, já ocorre a metamorfose. O rock vira baião, o baião vira rock. Esse contato entre duas culturas musicais que representam identidades distintas (o baião, essencialmente brasileiro e nordestino e o rock, o elemento externo) é possível pois, estruturalmente, os dois estilos são semelhantes. A exceção da parte rítmica, pois, o baião tem um andamento binário, com a acentuação no contratempo, gerando uma sincope, e o rock, com um compasso quaternário, com acentuações no segundo e no quarto tempos do compasso, no restante, eles se assemelham em várias características. Na parte harmônica, tanto o rock quanto o baião se estruturam com base na progressão de acordes I – IV – VI.59. No caso destes dois gêneros musicais distintos, é acrescentado nestes acordes o intervalo de sétima menor, que acaba 56 Pode-se subentender, a partir de entrevista dada ao Jornal “o Pasquim”, de novembro de 1973 que o chamado jogo dos ratos, seria toda a estratégia de produção e divulgação que envolviam a produção musical. PASSOS, op. Cit., 96-97 57 O Baú do Raul, POLYGRAM, 1992 (a referência completa às obras fonográficas estarão no final do trabalho, na lista de fontes utilizadas 58 Canções de Bill Halley e Elvis Presley, entre outros 23 fazendo com que cada acorde da progressão se torne um acorde dominante, aumentando a sensação de tensão, de instabilidade. Esse acréscimo não é dado no acorde, e sim na melodia, no tema, na frase musical. Em 1989 em uma música que podemos considerar como auto biográfica, Raul Seixas dizia que: “... pois há muito percebi que Genival Lacerda tem a ver com Elvis e com Jerry Lee Lee”60 Para Raul Seixas a relação entre a música de Genival Lacerda e os dois roqueiros americanos era a própria relação entre o rock e o Baião. Ele enxergava mais semelhanças entre os estilos do que propriamente diferenças. Quando em 1963 os Panteras tocavam na TV a canção “mulher rendeira”, eles a faziam de forma a aproximar ainda mais os elementos que tornam possível o dialogo entre o baião e o Rock. O Baião é uma música tonal, o encadeamento dos acordes respeita os princípios das regras de tonalidade. Todavia, a forma como o tema musical é tocado/cantado (tanto pela sanfona como por quem canta) é modal. No baião se percebe com freqüência a utilização do modo mixolídio61. O Rock, oriundo do Blues, utiliza a chamada escala pentatônica62 e variações cromáticas que vão aproximar-se do mixolídio. Quando tocaram “mulher rendeira” com o andamento quaternário e o acento rítmico do rock, com a técnica de walking bass (típica do jazz e do blues) e com a melodia da canção sendo executado por um saxofone (instrumento que é quase indissociável do rock, 59 respectivamente, acordes com função harmônica de tônica, subdominante e dominante. Este tipo de encadeamento harmônico causa no ouvinte a sensação de movimento na música, dado que essa estrutura obedece a forma tonal, a relação dialética tensão-repouso existente na música ocidental. 60 A música se chama Rock´n´roll, do disco A Panela do Diabo, em parceria com Marcelo Nova, lançado pela gravadora WEA. Jerry Lee Lee é o nome utilizado como “licença poética” por Raul Seixas para se referir ao pianista e cantor de Rock Jerry Lee Lewis 61 A organização dos intervalos nesse sistema modal é TONICA – SEGUNDA MAIOR – TERÇA MAIOR – QUARTA PERFEITA – QUINTA PERFEITA – SEXTA MAIOR – SÉTIMA MENOR. (T – 2 – 3 – P4 – P5 6 – B7 ) Esse modo proporciona um efeito sonoro muito característico (tensão) quando se é tocada a escala maior, que organiza a tonalidade, tendo como harmonia o acorde de 5º grau (dominante). Observar também a nota 2 do primeiro capítulo. 62 (T – b3 – P4 – P5 – b7). É interessante observar também que, uma característica comum ao blues e ao rock é tocar a seguinte seqüência de intervalos, partindo-se da tônica do acorde que serve como harmonia: T – 2 – b3 – 3 – 4 - #4 – 5 – 6 – b7. Se excluirmos os intervalos de b3 (Terça menor) e #4 (Quarta aumentada) temos o modo mixolídio, comum ao baião. 24 do blues e do Jazz), Raul Seixas com os Panteras já começa a fazer as mudanças e acréscimos nos dois estilos, produzindo algo novo. É a “metamorfose”.63 Essa metamorfose marcou sua carreira até o fim, mas podemos considerar o grande marco inicial dela em 1971, quando do lançamento de “a sociedade da grã-ordem Kavernista apresenta: sessão das dez”. Cena 2 – A Segunda etapa da metamorfose Todo o período em que passou atuando como produtor musical fez com que Raul Seixas passasse a atribuir para tal atividade profissional um caráter quase cientifico. O produtor musical deve estar atento as grandes tendências do mercado fonográfico e produzir uma mercadoria que tenha saída comercial. Como o próprio Raul Seixas dizia sobre o seu tempo de produtor “...Aprendi a fazer música fácil, intuitiva, bonitinha, que leva direitinho ao que a gente quer dizer”64. E como um “cientista-produtor musical”, Raul Seixas se deu ao luxo de começar a fazer novas experiências. A linha de produção da CBS era o chamado iê-iê-iê romântico. Era para artistas e interpretes deste estilo que Raul Seixas compunha e era com esses artistas que ele trabalhava, produzia.65 Ele estava dentro da máquina, dentro da industria. Já sabia como fazer um disco que vendia, já tinha conhecimento e visão de como funcionava o mercado fonográfico. Faltava aproveitar-se disso e lançar-se como artista. Marcha, valsa, samba, bolero, choro, baião, partido alto e um pouco de rock. Em 1971, Raul Seixas faz a opção de iniciar a carreira como cantor, lançando a sociedade da grã-ordem Kavernista. Ao seu lado aparecem Edy Star, Sérgio Sampaio e Mirian Batucada, com a produção de Mauro Mota. 63 Prefiro utilizar-me dessa expressão para não incorrer no erro de pensar que Raul Seixas, em 1964, estaria se apropriando da noção de que a cultura brasileira é antropofágica, noção essa presente no modernismo e posteriormente na tropicália. 64 PASSOS, op. Cit., 25 65 “ De fato, a industria cultural passava por um processo de redefinição iniciado na década anterior. O mercado fonográfico estava ampliado, mais profissionalizado e segmentado. Raulzito produzia os cantores contratados pela CBS e compunha canções do chamado iê-iê-iê romântico, que era a linha da gravadora. Segundo o Diretor Evandro Ribeiro, tratava-se de uma ‘fábrica de ilusões’. Os artistas eram classificados pelas gravadoras da qual eram contratados em conceitos A e B de acordo com a tendência” - ABONIZIO, J. O protesto dos inconscientes : Raul Seixas e a micropolítica : Assis, SP, dissertação de mestrado em história, UNESP, 1999, p. 71 25 Este disco tem uma história bem peculiar. Foi feito as escondidas. Aproveitando-se de uma viagem que o presidente da gravadora estava fazendo, Raul Seixas planejou e gravou o disco sem sequer ter autorização e o lança no mercado fonográfico, tomando uma postura rebelde, que sempre caracterizou o roqueiro, mesmo quando ele não cantava rock, o que é o caso deste LP. A sociedade, na verdade, nunca existiu. Juliana Abonizio refere-se ao título do álbum como apenas “um título”. Não chega a identificar algo mais pretensioso ou conceitual na escolha deste nome.66 Mas o que salta aos olhos é que mesmo este título caracterizado como despretensioso pela autora, revela algumas das principais características do pensamento de seu autor. Raul Seixas dialogou com inúmeros movimentos artísticos e tradições musicais. Ele dizia não se prender a nenhum tipo de pensamento, nenhuma filosofia, porém, manteve um dialogo bastante intenso com a contracultura, que a rigor, negava as verdades estabelecidas e defendia uma libertação e uma expansão das consciências. O nome da sociedade (grãordem Kavernista) é uma referência explicita a uma outra ordem, não fixada dentro dos parâmetros da ordem estabelecida, uma ordem diferente, que remete ao novo. Uma sociedade que estava se caracterizando em pensar sobre o “caos da época”.67 Algumas canções desse long play se destacam por fazer menções a momentos contemporâneos ao disco. É o caso do pequeno trecho tocado em compasso 3 por 4, com a acentuação rítmica de uma valsa, antes do bolero “sessão das dez”. Este trecho não chega a ter um nome específico, ele apenas diz: “Eu comprei uma televisão a prestação, a prestação Eu comprei uma televisão, que distração, que distração Que distração”68 É percebido nessa canção o descaso que a “sociedade da grã-ordem Kavernista” tem para com a televisão, enquanto objeto, sonho de consumo. A canção é executada com um 66 “ A idéia era fazer uma ópera rock, um equivalente ao Sgt. Peppers dos Beatles, apenas com cantores desconhecidos. Quanto ao título, era apenas um título. Não havia sociedade nenhuma”. ABONIZIO, op. Cit., p. 72 67 “Esse disco foi quando eu botei as manguinhas de fora, foi quando eu comecei a fazer o trabalho. Era um disco que mostrava o panorama atual, o que tava acontecendo, o caos todo daquela época. O caosinho bonitinho que estava acontecendo naquela época. Eu gravei jazz com The Fevers, gravei marchinhas. Guilherme Araújo acha que o disco é um precursor dos novos baianos. É um disco bem brasileiro, sabe?” PASSOS, op. Cit., p. 97 26 cruzamento de vozes que passa ao ouvinte a impressão de que não há uma preocupação em se cantar em uma mesma tonalidade. É um coro de vozes indefinido, caótico, onde os cantores cantam em tonalidades diferentes. Ao final do pequeno trecho, essa característica se acentua mais ainda, quando é enfatizado que comprar a TV foi um gesto de distração, ou, nas entrelinhas, desnecessário. Ao reparar-se na característica da sonoridade da música em conjunto com a parte lírica, se percebe sua forma irônica. Em 1971, no contexto do ufanista milagre econômico brasileiro, que possibilitava “comprar uma televisão a prestação”, o grupo ironiza e satiriza através da linguagem sonora um dos sonhos de consumo do período. “Eta vida”, a primeira música do álbum se inicia com uma apresentação tipicamente circense. É uma marchinha na qual se percebe instrumentos que representam identidades diferentes.69 Nessa música, Raul Seixas canta enfatizando as qualidades da cidade de São Sebastião, falando das belezas do Rio de janeiro. “Moro aqui nesta cidade, que é de São Sebastião, Tem maracanã Domingo, pagamento a prestação Sol e mar em Ipanema, sei que você vai gostar Mas não era o que eu queria, o que eu queria mesmo era me mandar Mas Eta vida danada, eu não entendo mais nada É que esta vida pirada eu quero ver São Sebastião do rio, tudo aqui é genial Na televisão à noite, tem cultura e carnaval Tem garota propagando num biquíni que é demais Mas não era o que eu queria, o que eu queria mesmo era estar em paz Mas Eta vida danada, eu não entendo mais nada É que esta vida pirada eu quero ver”70 68 A Sociedade da grã-ordem Kavernista apresenta: sessão das 10, CBS, 1971 Guitarras, contrabaixo elétrico e bateria (relacionados ao rock), dando a harmonia e o ritmo em conjunto com instrumentos de sopro (relacionados às marchinhas) 70 A Sociedade da grã-ordem Kavernista apresenta: sessão das 10, CBS, 1971 69 27 Uma das principais características de Raul Seixas ao longo de sua carreira foi a ironia. Esse ponto em peculiar que o acompanhou em toda sua trajetória artística não era comum ao período referente aos Panteras, mas, a partir de 1971, isso passa a ganhar destaque. A ironia presente nessa música mostra o descontentamento com que o seu autor observa todas as características positivas da cidade, da cultura, do pagamento a prestação, do lazer de uma classe média contente. Se verifica também a relação com a introdução da música seguinte, analisada acima. A canção “aos trancos e barrancos” também nos mostra uma certa ironia para com um personagem que “subiu na vida”: “Eu sou um cara que subiu na vida, morava no morro, agora moro no Leblon. Eu vou pendurado na janela, vou mais pensando nela que esse sujo pelo chão Eu vou descansando a minha vida, sujando a avenida com meu sangue de limão Rio de Janeiro, você não me dá tempo de pensar Com tantas cores, sob este sol Pra que pensar, se eu tenho o que quero, Tenho a nega e o meu bolero a TV e o futebol. Eu não vou levando o nosso leite, troquei por um bilhete da roleta federal. Eu vou pela pista do aterro e nem vejo o meu enterro que vai passando no jornal.”71 A ironia se apresenta na forma como Raul Seixas vê que o personagem da letra é despreocupado em “pensar”. É criticado aqui a postura conformista do personagem que se vê realizado com suas conquistas e que continua longe da libertação e da expansão da consciência, características valorizadas no pensamento da contracultura. 71 A Sociedade da grã-ordem Kavernista apresenta: sessão das 10, CBS, 1971 28 Adiante perceberemos que essa postura acompanhou boa parte da produção musical de Raul Seixas. “Aos trancos e barrancos” é um samba. Isso reforça a idéia de que Raul Seixas já tinha em mente de falar sobre as coisas que pensa, utilizando linguagens musicas diversas para atingir o sucesso dentro do mercado fonográfico. Para o ouvinte apreciador de samba, é mais fácil que ele se identifique com a música do que se Raul Seixas cantasse a mesma coisa em um formato rock. A escolha por uma linguagem, uma sonoridade nacional neste disco de Raul Seixas também é significativa. Seria extremamente precipitado pensar que este disco teria uma relação, uma preocupação em pertencer a uma tradição musical nacional, como faz Dolabela, ao caracterizar este álbum como uma releitura humorística da Tropicália.72 Raul Seixas lembra que: “ foi a primeira vez que eu fiz algo para ser consumido e do qual paranoicamente me senti orgulhoso e feliz. ... O disco termina com um público vaiando ( que é comum desde o grande advento dos festivais) e uma descarga de privada para terminar.”73 E se Raul Seixas havia feito o disco para ser vendido, para ser consumido, nada mais perspicaz que utilizar elementos musicais brasileiros para atingir seu objetivo. Pois estamos falando de um momento da história da música brasileira onde ela é o grande produto da industria fonográfica. Nesse período, a tropicália já havia sido incorporada como um segmento dentro da MPB. Podemos perceber então que o que fala Dolabela não é de todo errado, entretanto, o sentido para o uso da elemento nacional, para Raul Seixas, é outro. O elemento nacional possui um sentido mais mercadológico do que propriamente uma preocupação com uma estética nacional. Não está relacionada a nenhuma busca de identidade nacional. Ele não está preso a concepção modernista e tropicalista de que a cultura brasileira é antropofágica. Em 1972 isso passa a ser mais evidente ainda. Com A participação no VII FIC, Raul Seixas passa a ser uma figura conhecida em todo o território nacional. Sua música Let me sing é escolhida entre as finalistas do festival. 72 73 DOLABELA, Marcelo. ABZ do rock brasileiro : São Paulo, Estrela do Sul Ed., 1987. P. 147 PASSOS, op. Cit., p. 78 29 “A wa bop a loom map lop bang boom Let me sing, let me sing, let me sing my rock and roll Let me sing, let me swing, let me sing my Blues and go Não vim aqui tratar dos seus problemas, o seu messias ainda não chegou Eu vim rever a moça de Ipanema e vim dizer que o sonho, o sonho terminou So, let me sing, let me sing... Tenho 48 quilos certo, 48 quilos de baião Não vou cantar como a cigarra canta, mas desse meu canto eu não abro mão So, let me sing, let me sing... Não quero ser o dono da verdade, pois a verdade não tem dono não Se o V de verde é o verde da verdade, 2 e 2 são 5, não é mais 4 não So, let me sing, let me sing... Num vim aqui querendo provar nada, num tenho nada prá dizer também Só vim curtir meu rockzinho antigo que não tem perigo de assustar ninguém So, let me sing, let me sing... A wa bop a loom map lop bang boom”74 Primeiramente, é necessário perceber algumas características dessa música. Todo o trecho cantado em inglês é um rock, com três acordes básicos e a participação de um coro de vozes. A parte cantada em português é um baião, sendo que cada estrofe é repetida. Nessa repetição a estrofe é cantada com um coro uníssono75 de vozes. É interessante observar também a forma como Raul Seixas interpreta a música. Na parte cantada em inglês ele procura destacar o sotaque nordestino e na parte cantada em português ele tenta deixar a voz mais próxima ao estilo que consagrou Elvis Presley, ou seja, a voz grave e com os vibratos típicos dos cantos dos negros. Esses ornamentos vocálicos colocados de forma invertida (o sotaque nordestino cantando inglês e o ornamento do rock cantando em português) podem perfeitamente referirem-se ao tropicalismo, ao “ritual antropofágico”, entretanto, atenhamo-nos a letra: “num vim aqui querendo provar nada, não tenho nada prá dizer também 74 Obtive acesso a essa música através do LP “O Baú do Raul”, de 1992, entretanto, ele foi lançado em 1972 em um compacto, pela PHILIPS e novamente reeditado em 1985, lançado pela RRC (Raul Rock Clube) 75 Esse canto uníssono de vozes é comum ao baião e a cantigas de roda de capoeira. 30 Só vim curtir meu rockzinho antigo que não tem perigo de assustar ninguém” Observa-se novamente o total descompromisso de Raul Seixas para com uma tradição estética modernista. Além de negar essa continuidade, o compositor mantém uma postura descomprometida também com a noção de revolução, partindo de uma instância de poder, ou de uma figura de liderança, enfatizando que esse ideal, esse sonho terminou. “Não vim aqui tratar dos seus problemas, o seu messias ainda não chegou Eu vim rever a moça de Ipanema e vim dizer que o sonho, o sonho terminou” Raul Seixas “cantou uma proposta de libertação centrada no indivíduo”76. Não pensava que a idéia de revolução partiria de uma iniciativa comandada por um messias, por um agente transformador. Não acreditava na revolução nos mesmo moldes que os intelectuais e artistas engajados da música popular brasileira acreditavam; em uma revolução. Também era descrente sobre o projeto nacional-popular que envolvia os intelectuais da música popular brasileira, associados aos CPCs, o que lhe rendeu durante os primeiros anos de carreira na Bahia, diversos artistas vinculados a bossa nova (entre eles, Caetano Veloso, um dos lideres do tropicalismo).77 A censura atuou sobre Raul Seixas, principalmente entre 1970-1973, obrigando-o a se exilar durante 1973-1974. Foi chamado e caracterizado como comunista, o que no fundo ele nunca havia sido. Se Raul Seixas estava preso à algum tipo de pensamento, de tradição filosófica, o que mais poderia se aproximar dele seria o anarquismo, mas no fundo, o que sempre o caracterizou é o pensamento da contracultura. Justamente por não se prender a nenhuma forma de pensamento político, de tentar constantemente transgredir a ordem estabelecida, ele foi caracterizado como subversivo. 76 ABONIZIO, op. Cit., p. 10 “Segundo Edy Star, os jovens roqueiros, apesar de serem, enquanto amantes do rock, considerados alienados, eram simpatizantes dos CPCs na Bahia, que tinham uma orientação comunista. Edy Star ainda relatou que muitos roqueiros eram mais conscientes do que outros grupos, declarando que toda sua turma era simpatizante do comunismo, apesar de seus integrantes não terem militado a seu favor e não fazerem parte do projeto nacional-popular. Ainda sobre esse assunto, o cantor declarou que eram os roqueiros que estavam mais próximos do povo e não os continuadores da Bossa Nova, que no entanto, buscavam essa comunhão. “O povo fazia rock. Bossa Nova sempre foi elitista.” ABONIZIO, op. Cit., p. 84 77 31 Parte do sucesso de Raul Seixas é atribuído ao seu jeito inconseqüente e rebelde. Ao seu comportamento. Pois a atuação da repressão militar sobre sua produção também é fruto dessa sua característica, e não por conta de um pensamento político de esquerda. O período posterior a 1973 é exatamente quando começa a abertura política. Quando a ideologia de segurança nacional é posta a prova. É neste período que Raul Seixas passa a ser um grande sucesso nacional, continuando sua produção e vendendo cada vez mais. É nesse período seguinte que ele vai, mais do que nunca, fazer como os Beatles, cantar sua vida, deixar a sua mensagem. Raul dos Santos Seixas passou de Raulzito e seus Panteras para o Raulzito da CBS. Daí para Raul Seixas e posteriormente para, Raul Seixas, o pai do rock nacional. Todo o mito construído em torno de Raul Seixas, começa em 1973, quando com “ouro de tolo” ele passa a ser chamado de o profeta da música popular brasileira, algo que está destinado para o terceiro ato desta peça. 32 Terceiro Ato – O ator maluco e sua metamorfose “Não sou cantor nem compositor. Uso a música para dizer o que penso” Nos dois primeiros atos, este estudo procurava enfatizar os períodos referentes a “época de fome” (1964-1969) e o período da “conscientização e vivência” (1970-1972), conforme as palavras do próprio Raul Seixas. Neste terceiro ato, a história do nosso personagem é referente ao período de seu maior sucesso (entre 1973-1976), ou melhor dizendo, quando ele se consolida dentro do nosso cenário: a indústria fonográfica. Em 1972, após ter lançado “A sociedade da Grã ordem-kavernista”, Raul Seixas é demitido da gravadora CBS. Foi destacado no segundo capítulo que essa demissão deveuse ao fato de ele ter gravado e lançado este disco sem a autorização da gravadora, bem como ao fato de ele ter se inscrito no VII IFC. A opção de Raul Seixas foi a de cantar. Após ser demitido da CBS, ele foi convidado para fazer parte do cast da gravadora Philips/Phonogram, lançando em setembro de 1972 um compacto simples, com as músicas Let me sing (a mesma que foi finalista do FIC) e a canção Teddy Boy, rock e brilhantina. A canção Let me sing foi analisado no capítulo anterior. Destaquemos então o “Teddy Boy”: “Eu quero avacalhar com toda a turma da esquina, com meu cabelo cheio de brilhantina, dançando rock ao som de Elvis´n Roll Eu vivo num clima bravo cheio de violência e você faz sinal de paz e clemência e ainda me diz que o bicho é muito Underground Eu vivo de olho vivo na vitrine da moda, vendo robots padronizados é soda com coca cola e bugigangas que é pop Hey bicho, onde é que vai com essa flor no cabelo? Com esse sorriso de paz e desespero? Olhe para o lado e você vai entender. Mas agora todo imbecil passa por gênio poeta, em cada esquina um pseudo profeta com um guarda chuva e um pirulito na mão. Let´s rock, man! 33 Não quero mudar o mundo com esse papo furado, só acredito em quem pulou o cercado com quatro bulldogs vigiando o portão! Quatro bulldogs vigiando o meu portão.” A música é um rock, na sua forma mais clássica, próxima ao rock americano mais rebelde. Apenas três acordes, acrescentando-se alguns arranjos com instrumentos de sopro e um andamento acelerado. Destaca-se a interpretação de Raul Seixas. A música é cantada com intensidade e agressividade, com os ornamentos vocais mais típicos do rock, ou seja, a voz levemente rouca e saturada, com vibratos. O tom agressivo da voz dá uma ênfase maior à mensagem que a música apresenta. Dá um tom de denuncia. Se nos primeiros anos do rock no Brasil, quando a música era veiculada através dos cinemas e dos quebra-quebras, Raul Seixas acreditava ser possível que a juventude conquistasse o mundo, que os “Teddy Boys da esquina” fizessem a revolução cultural efetiva, já em 1972 ele não acreditava mais nisso.78 A música denuncia a padronização do comportamento da contracultura. Enquanto o Teddy boy “avacalhava com toda a turma da esquina”, num comportamento sem uma causa definida, descomprometida, rebelde, ele observa o crescimento da padronização do comportamento Ele está “de olho vivo na vitrine da moda, vendo robots padronizados”. Esse protagonista da canção percebe que há uma padronização de comportamento em escala, que a juventude adepta da contracultura segue um padrão de comportamento produzido, que a mensagem por ela veiculada foi incorporada ao sistema capitalista, à industria cultural. Ou seja, os próprios ideais dessa juventude rebelde foram incorporados ao mercado, a “vitrine da moda”. Raul Seixas não acreditava que “esse papo furado” mudaria o mundo. Ele cria que somente infiltrado dentro da máquina capitalista, e não no espaço “Underground” seria possível a veiculação de uma mensagem nova, alternativa. Isso vem de encontro com aquilo que foi estudado no segundo capítulo, quando foi demonstrado que Raul Seixas via como positivo se associar ao mercado de discos para a divulgação de suas idéias. A partir de então, acreditando no que dizia Aleister Crowley79, de que não há Deus, 78 Verificar nota 5 do primeiro capítulo Edward Alexander Crowley, mais conhecido como Aleister Crowley nasceu na Inglaterra em 12 de Outubro de 1875 e morto em 1947. Se auto intitulava a besta do apocalipse. Se dizia mago e suas idéias foram amplamente incorporadas no pensamento da contracultura nas décadas de 1960-1970. 79 34 senão o homem, onde há uma super valorização do sucesso pessoal, Raul Seixas busca a realização de sua utopia. Como Raul Seixas estava imerso em um período rico no que tange a produção artística/musical, em um período rico em alternativas políticas (não de fato, mas de idéias) poderia crescer, evoluir, ter sucesso na carreira artística e assim propagar suas idéias, sua visão de mundo? Ainda devemos considerar que no campo da música popular brasileira já haviam nomes fortes, que concentravam a atenção do mercado fonográfico. Raul Seixas também teria que disputar espaço com artistas como Elis Regina, Chico Buarque, Caetano Veloso, entre outros nomes da MPB. Pode-se chegar em algumas conclusões. Raul Seixas foi extremamente beneficiado pelo contexto da censura do repressor Estado militar e pelo crescimento econômico referente ao período entre 1969-1973. Entra em cena a partir de 1968 o AI-580. É a consolidação da ideologia de segurança nacional. Um dos braços mais fortes deste ato institucional era o que regia a censura. Muitos dos artistas que haviam sido destaques e vencedores em festivais anteriores foram “convidados” a se retirarem do país, o que acabou abrindo espaço para um renovação no cenário musical. Raul Seixas aproveita-se desse novo espaço. Em 1972 ele é destaque do VII FIC; no mesmo ano ele sai da CBS e vai para a Philips, lançou o compacto e no ano seguinte ele pôs no mercado seu primeiro long play: Krig-há, Bandolo! Cena 1 – Cuidado, aí vem o inimigo A expressão Krig-há, Bandolo! Significa Cuidado, aí vem o inimigo. O termo foi tirado de um dicionário da língua do Tarzan, dos quadrinhos. “Quando Raulzito passa a ser Raul Seixas sintetiza as visões dos decepcionados com a política e dos beneficiados com o milagre econômico. Em 1972, lança-se cantando 80 “A partir de 13 de dezembro de 1968, o Brasil entrava numa era de “terror de Estado”, tornado legal pela nova lei. Além da cassação generalizada de parlamentares e cidadãos, o AI-5 suspendia o habeas-corpus de presos políticos, reforçava a centralização do poder Executivo federal (diminuindo a força política dos governadores), permitia a decretação de estado de sítio, sem prévia autorização do Congresso. Em 1969, o governo regulamentou a censura prévia sobre os meios de comunicação e sobre os produtos culturais como um todo.” NAPOLITANO, M. O regime militar Brasileiro: 1964 – 1985 : SP, Atual, 1998, p. 33. 35 rock, ainda que não somente, e assume a identidade rocker que perseguia desde a adolescência.”81 Essa síntese entre a decepção da esquerda e a posição ufanista dos entusiastas do milagre econômico é percebida em diversos momentos do disco. Observemos “ouro de tolo”: “Eu devia estar contente porque eu tenho um emprego, sou o dito cidadão respeitável e ganho quatro mil cruzeiros por mês. Eu devia agradecer ao Senhor por ter tido sucesso na vida como artista, eu devia estar feliz por que consegui comprar um corcel 73 Eu devia estar alegre e satisfeito por morar em Ipanema depois de Ter passado fome por dois anos aqui na cidade maravilhosa Eu devia estar sorrindo e orgulhoso por ter finalmente vencido na vida mas eu acho isso uma grande piada e um tanto quanto perigosa Eu devia estar contente por ter conseguido tudo o que eu quis mas confesso abestalhado que eu estou decepcionado Por que foi tão fácil conseguir e agora eu me pergunto: e daí? Eu tenho uma porção de coisas grandes prá conquistar, eu não posso ficar aí parado. Eu devia estar feliz pelo senhor ter me concedido o Domingo prá ir com a família no jardim zoológico dar pipoca aos macacos. Ah, mas que sujeito mais chato sou eu que não acha nada engraçado, macaco, praia, carro, jornal, tobogã, eu acho tudo isso um saco. É você olhar no espelho se sentir um grandessíssimo idiota, saber que é humano ridículo e limitado e que só usa 10% de sua cabeça animal E você ainda acredita que é doutor, padre ou policial e que está contribuindo com sua parte para o nosso belo quadro social Eu é que não me sento num trono de apartamento com a boca escancarada cheia de dentes esperando a morte chegar Por que longe das cercas embandeiradas que separam quintais, no cume calmo do meu olho que vê assenta a sombra sonora de um disco voador.” 81 ABONIZIO, op. Cit. P. 110 36 Podemos observar nessa música todo o desconforto que Raul Seixas sente com a postura estática de um segmento da sociedade: a classe média. Ele sente que “deveria estar contente” com todos os benefícios trazidos pelo sucesso profissional, pela realização pessoal com a família, o emprego e o carro do ano. Entretanto, ele preferia outro horizonte a manter a “velha opinião formada sobre tudo” “Eu prefiro ser essa metamorfose ambulante do que ter aquela velha opinião formada sobre tudo” A posição cômoda alcançada pela estabilidade adquirida não coaduna com quem prefere viver em constante metamorfose. Como adepto do pensamento de Crowley, de obter sucesso, bem como profundamente envolvido com as idéias de libertação individual e expansão das consciências, presentes na contracultura, Raul Seixas sempre busca o novo. Para isso ele se utiliza da crítica social, da crítica às utopias, aos valores de uma classe média satisfeita com seus ideais de consumo. Se por esse lado Raul Seixas demonstra seu envolvimento e sua crítica com relação ao momento histórico referente ao milagre econômico, ele também enxerga a decepção da esquerda. “Todo jornal que eu leio me diz que a gente já era, que já não é mais primavera. OH baby, a gente ainda nem começou. Baby, o que ouve na França vai mudar nossa dança, sempre a mesma batalha, por um cigarro de palha, navio de cruzar deserto.” A música “cachorro urubu” revela nesse trecho a desilusão de uma geração que “já era” e que mesmo tendo passado, nem tinha começado a luta por seus ideais, referindo-se explicitamente ao movimento de maio de 1968, " que houve na França". “Em 1968, pode-se ler pichada, em algum muro francês, a frase ‘Sejamos realistas, exijamos o impossível’. E na canção citada, Raul Seixas aposta na batalha, também impossível, por um navio de cruzar deserto”82. Ao mesmo tempo em que observa a derrota de um pensamento de esquerda, Raul Seixas segue protestando também contra a ditadura militar na música “Dentadura Postiça” (conforme a sugestão de Juliana Abonizio, leia-se ditadura postiça)83. 82 83 ABONIZIO, op. Cit. p. 119 Idem, ibidem 37 Vai cair a estrela no céu Vai cair a noite no mar... Vai cair juizo final... Vai cair o preço do caos... Vai sair o sol outra vez Vai sair um filho para luz Vai sair da cara o terror... Vai subir o nível o elevador... Vai subir o nível mental”84 Essa música começa com um coro de “vai cair, vai cair”, incitando uma atitude de protesto. Percebe-se uma trajetória cronológica. Primeiramente, a ordem estabelecida “vai cair”, depois “vai sair” e em seguida “vai subir”. Essa trajetória também é percebida na música quando ele progressivamente vai aumentando a sua tonalidade. Ele anuncia quais valores e perspectivas cairão, apresenta as alternativas que irão sair e isso proporcionará uma subida para um outro estágio. Um estágio de “nível metal” elevado, ou seja, outra alusão a libertação individual e a expansão da consciência. Notemos também a música Al Capone: “Hei Al Capone, vê se te emenda, já sabem do teu furo, nego, no imposto de renda Hei Al Capone, vê se te orienta, assim dessa maneira nego, Chicago não agüenta Hei Júlio César vê se não vai ao senado, já sabem do teu plano para controlar o Estado. Hei Lampião, dá no pé desapareça, pois eles vão à feira exibir tua cabeça Hei Jimi Hendrix, abandona o palco agora, faça como fez Sinatra, compra um carro e vai embora Hei Jesus Cristo, o melhor que você faz é deixar o pai de lado, foge prá morrer em paz 84 Não foi citada aqui a música na integra. 38 Eu sou astrólogo, Eu sou astrólogo, vocês precisam acreditar em mim, eu sou astrólogo. Eu sou astrólogo e conheço a história do princípio ao fim” A música parece ser uma grande brincadeira com famosos personagens da história, mas na verdade, podemos observar aqui uma tendência de pensamento que anunciam uma trajetória histórica, uma visão da história. Essa visão da história não está embasada em nenhuma filosofia política, em nenhuma perspectiva revolucionária. Raul Seixas possuía uma visão de história (que também podemos observar na música “eu nasci a 10 mil anos atrás” – a ser vista mais adiante) que não projetava para ela uma finalidade. Se ao falar sobre a “ditadura postiça” se pode observar uma certa dose de otimismo, em “Al Capone” percebe-se que ele não faz uma projeção da história, pois a única forma de se conhecer a história é através da astrologia. Não pensemos a astrologia como uma ciência que estuda os astros. Na música de Raul Seixas ela ganhou outro sentido. Ela sintetiza uma perspectiva apoiada no misticismo de se ver a história. É no místico e no desconhecido que está o novo, a novidade, a possibilidade de uma metamorfose. Para enfatizar, basta lembrarmos que em “ouro de tolo” a alternativa a todos os comportamentos criticados é a fuga em um “disco voador”. Dentro dessa perspectiva mística, presente na contracultura, Raul Seixas vai romper com tendências musicais enraizadas dentro da música brasileira. Ao ter feito críticas sociais e projeções ele os fez sem estar apoiado em bases conservadoras ou revolucionárias, presentes nos grandes segmentos da música brasileira. E ao ter adotado uma posição mais independente em relação a outras tendências, muito foi dito ao seu respeito. Chamaram-no de “profeta do apocalipse”, numa alusão ao vazio que sua obra estaria apresentando. Do ponto de vista musical, destaca-se a música “mosca na sopa” na qual Raul Seixas anuncia ser um abusado, alguém que veio para perturbar, para criticar e denunciar. O que salta aos olhos do ouvinte é a aproximação do “ponto de umbanda”, da capoeira, do repente que ele vai incorporar ao rock. Esse disco é bem equilibrado. Não chega a ser totalmente rock, ele passeia pelo Brega (em ouro de tolo, a hora do trem passar, metamorfose ambulante e how could I know), pelo country, pelo folk (respectivamente em dentadura postiça e cachorro-urubu) e pelo rock ( em As minas do rei Salomão, Al 39 Capone, rockixe e mosca na sopa, destacando que essa última apresenta alguns elementos mais brasileiros). Por último, destaca-se a capa do disco, onde Raul Seixas se apresenta sem camisa, magérrimo, com as mãos levantadas, numa alusão a Cristo crucificado. A capa acentua uma perspectiva mística, onde também se destaca o símbolo de Amon-Rá, deus egípcio, revelando em que pressupostos filosóficos se baseia o pensamento de Raul Seixas. Por qual razão Raul Seixas ostenta essa forma mística? Penso que dado a derrota da esquerda em 1968 cria uma vazio em termos de perspectivas para o Brasil. Associado ao milagre econômico, Raul Seixas vê nesse momento um possibilidade de divulgar uma mensagem alternativa, sem um propósito político. Deve-se levar em conta que a geração dos anos 1960, que fazia parte desse cenário político-cultural é em sua grande maioria expulsa do país. E mesmo os ouvintes mudam. O rock, ritmo urbano por excelência, é melhor assimilado nos anos 1970, muito devido ao fato do crescimento econômico do país, bem como do surgimento das grandes metrópoles. Como já foi indicado, em 1973, a população urbana supera a rural para nunca mais ter sido alcançada novamente Cena 2 – Gita Apesar de Krig-há, Bandolo! ter sido considerado o grande álbum de Raul Seixas, Gita é sem dúvidas o disco responsável pelo seu sucesso, pois em 1974 ele chegou a ter um peso tão importante que obrigou a Raul Seixas e Paulo Coelho a voltarem do exílio. Em 1973 Raul Seixas e Paulo Coelho, envolvidos com seitas místicas, passaram a promover a “sociedade alternativa”. Para tal empreitada desenvolveram um gibi chamado de “ A fundação de Krig-há”. Esse material foi apreendido pela polícia federal e posteriormente queimado.85 Esse gibi foi considerado como “coisa de comunista” e rendeu à Raul Seixas e seu parceiro o exílio nos Estados Unidos. O disco já estava pronto. Foi posto a venda. O sucesso foi tão grande que o disco rendeu à Raul Seixas o “disco de ouro”. Fez tanto sucesso que a dupla foi convidada para voltar ao país. 85 Recentemente fiquei sabendo da existência de dois exemplares desse material, o qual ainda pretendo adquirir uma cópia para futuras outras atividades. 40 Esse álbum tem características semelhantes ao anterior. Começa pela capa que mantém o mesmo ar místico e profético do disco anterior. Raul Seixas está com uma mão apontando para o alto, como se estivesse indicando um caminho. No canto inferior direito do capa se observa o símbolo de Amon-Rá novamente, agora dentro de um círculo onde se observa escrito em letras góticas as palavras Imprimatur – sociedade alternativa. O próprio nome do álbum se relaciona com princípios hindus. Musicalmente, esse disco apresenta também características semelhantes. Não predomina um estilo em específico, mas sim as grandes tendências que se apresentaram durante toda a carreira de Raul Seixas. As músicas super heróis, sociedade alternativa e loteria da babilônia são basicamente rock. As canções medo da chuva, Gita, trem das 7 e S..O. S. são músicas que se associam ao estilo Brega, embora trem das 7 tenha também um formato que a aproxima de música sertaneja/caipira. Moleque maravilhoso é um jazz.. A música Sessão das 10 é o mesmo bolero apresentado em “sociedade da grã-ordem Kavernista”, com novos arranjos e dessa vez com a interpretação de Raul Seixas. As aventuras de Raul Seixas na cidade de Thor é um baião, associado com o repente, com a harmonização das vozes em terças paralelas. Água viva é uma balada e por último, Prelúdio é uma balada tocada ao piano. Não há nesse disco momentos como “mosca da sopa”, onde estilos diferentes se vêem presentes na mesma música. Entretanto, Raul Seixas continua circulando entre estilos diversos. Esse disco contém ainda os mesmos traços de pensamento que o anterior. Acrescenta-se nesse disco uma novidade em relação a produção precedente de Raul Seixas. Observemos “prelúdio”: “Sonho que se sonha só, é só um sonho que se sonha só, mas sonho que se sonha junto é realidade” Raul Seixas sempre se caracterizou por tomar uma postura individualista. A imensa maioria de suas músicas é cantada em primeira pessoa. Ele é muitas vezes, o objeto de suas músicas, contando a sua própria trajetória pessoal. Quando observamos essa característica e o formato das críticas sociais que ele apresenta, sobretudo em Krig-há, Bandolo!, observamos que ele incentiva a uma libertação individual, a uma revolução individual. Nessa música, pela primeira vez, ele canta uma proposta de libertação coletiva, baseada na união de sonhos. 41 Em “loteria da Babilônia” ele volta a cantar uma libertação de consciências partindo da ação do indivíduo, traço marcante da contracultura: “Vá, e grita ao mundo que você está certo. Você aprendeu tudo enquanto estava mudo, agora é necessário cantar rock e demonstrar os teoremas da vida e os macetes do xadrez.” Nota-se que a música é considerada o caminho, o veículo pelo qual se deve “demonstrar os teoremas da vida”. O rock, enquanto a música da juventude, é considerado o caminho para incentivar à uma revolução individual. Acreditando que a música é o caminho para a propagação de idéias, Raul Seixas incentiva ao ouvinte a se manifestar e agir, impor-se, libertar-se, dizendo que “você só tem verdades prá dizer, à declarar”. Raul Seixas continua sendo irônico. Na música super heróis ele satiriza com artistas e desportistas brasileiros. Os super heróis brasileiros são vistos como personalidades que desviam a atenção para questões superficiais como fórmula 1, futebol, televisão. Ele se posiciona como um dos artistas que dispersam a atenção também, ironizando a própria profissão, ou ainda, desqualificando-a como já havia feito em “ouro de tolo”. Os grandes hits deste disco são medo da chuva, Gita, sociedade alternativa e trem das 7. Medo da chuva traz a tona uma reflexão em torno da instituição do casamento. É a fala entristecida de um homem que se frustra percebendo as falhas nos valores do casamento. Gita é a continuação do caráter místico da música de Raul Seixas, onde se destacam características, traços marcantes do hinduísmo, da onipresença do espírito. “... Por que você me pergunta? Perguntas não vão lhe mostrar, que eu sou feito da terra, do fogo, da água e do ar. Você me tem todo dia, mas não sabe se é bom ou ruim. Mas saiba que estou em você, mas você não está em mim.” Sociedade alternativa contém também traços marcantes de uma aproximação com o misticismo. Ela incentiva uma liberdade total, onde o homem é colocado como centro do pensamento. A escolha do nome de sociedade alternativa para a tal sociedade não é arbitrária. Ela é alternativa frente as opções presentes no contexto da guerra fria. Ela não é a antítese a democracia capitalista, não é a antítese ao socialismo. Ela não se associa com um projeto de nação brasileira, ela simplesmente incentiva a uma libertação total, partindo da ação individual de cada homem (Todo homem e toda mulher é uma estrela). Essa 42 sociedade, com características anarquistas, seria possível na entrada do novo Aeon, uma nova era mística. A máxima dessa sociedade seria “faz o que tu queres, há de ser tudo da lei”. Em trem das 7 Raul Seixas une a forma da música sertaneja, com harmonização vocal, cantando a união do bem e do mal, o fim dos tempos, consagrando tudo com um amém no final da música. Para retomarmos a visão que Raul Seixas tem do meio musical, ganha destaque a música as aventuras de Raul Seixas na cidade de Thor. (1)“Tá rebocado meu compadre, como os donos do mundo piraram, eles já são carrascos e vítimas do próprio mecanismo que criaram. (2)O monstro SIST é arretado e tá doido prá transar comigo, e sempre que você dorme de toca eu me faturo em cima do inimigo (3)A arapuca está armada e não adianta de fora protestar, quando se quer entrar num buraco de rato, de rato você tem que transar. (4)Buliram muito com o planeta, o planeta como um cachorro eu vejo, se ele não agüenta mais as pulgas se livra delas num sacolejo. (5)Hoje a gente já nem sabe de que lado estão certos cabeludos tipo estereotipado. Se é da direita ou da traseira não se sabe lá mais de que lado. (6)Eu que só vivo prá cachorro, do que eu to longe eu to perto. Se eu não estiver com deus, meu filho, eu to sempre aqui com o olho aberto. (7)A civilização se tornou tão complicada que ficou tão frágil como um computador, que se uma criança descobrir o calcanhar de Aquiles, com um só palito pára o motor. (8)Tem gente que passa a vida inteira travando a inútil luta com os galhos, sem saber que é lá no tronco que está o coringa do baralho. (9)Quando eu compus, fiz ouro de tolo, uns imbecis me chamaram de profeta do apocalipse, mas eles só vão entender o que eu falei no esperado dia do eclipse. (10)Acredite que eu não tenho nada a ver com a linha evolutiva da música popular brasileira, a única linha que eu conheço é a linha de empinar uma bandeira. 43 (11)Eu já passei por todas as religiões, filosofias, políticas e luta. Aos 11 anos de idade eu já desconfiava da verdade absoluta. (12)Raul Seixas e Raulzito sempre foram o mesmo homem, mas prá aprender o jogo dos Ratos transou com deus e com o lobisomem. A longuíssima letra da música é cantada em formato de baião e repente. Destaca-se ainda a sua desconfiança com relação aos movimentos de esquerda, com relação aos revolucionários (verso 5). É enfatizado também a associação que Raul Seixas faz com o mercado fonográfico, para buscar o sucesso pessoal (versos 6 e 12). Nessa canção ele ainda responde as críticas feitas à ele quando de seu grande sucesso com ouro de tolo (verso 9). É importante destacarmos também como ele se colocava dentro da trajetória da música popular brasileira (verso 10). Vimos no segundo capítulo que Raul Seixas considerava importante a abertura trazida pela Tropicália, entretanto, devido ao fato de esse movimento ser engajado na busca de uma estética musical nacional, em uma noção de cultura brasileira, ele se percebe como fora da idéia de linha evolutiva. Raul Seixas se colocava a parte dessa questão. Apesar de fazer música brasileira também, ele se enxerga como um roqueiro, como representante de um pensamento que ultrapassa a idéia de nação, de música nacional, o pensamento da contracultura. Cena 3 – Novo Aeon O formato da capa desse álbum de 1975 remete ao misticismo dos anteriores. Ainda está presente o símbolo da sociedade alternativa. Além de Paulo Coelho, o místico Marcelo Motta entra na parceria com Raul Seixas. Esse disco não obteve a mesma repercussão dos anteriores. É um disco mais místico, em raros momentos possui reflexões sobre a sociedade brasileira do período com a mesma intensidade de antes. Juliana Abonizio diz que “os anos 1974 e 1975 parecem ter sido os mais conturbados da vida de Raul Seixas. Neste período, o cantor utilizava todos os tipos de drogas e se envolveu profundamente com magia através dos esotéricos Paulo Coelho e Marcelo Motta... Seus amigos disseram que o cantor passou a usar drogas mais pesadas por influência dos parceiros.”86 Ele acaba por romper com os parceiros após as gravações deste disco. 86 ABONIZIO, op. Cit. p. 142. É interessante observarmos a letra da música “paranóia”, onde Raul dedica a música Para nóia. Nóia é uma gíria para a cocaína. Essa música mostra-nos a relação conturbada que ele têm com as drogas. 44 Músicas como rock do diabo, eu sou egoísta e Novo Aeon são as mais “rock”. A maçã é a balada romântica do álbum. A canção tu és o MDC de minha vida é um rock iê-iêiê no melhor estilo da jovem guarda, com direito a declaração de amor. A música é também uma sátira com relação aos festivais da canção, onde se é colocado efeitos para parecer que foi gravada ao vivo. Neste álbum Raul Seixas ainda incentiva a mobilização individual com a música Tente outra vez, que se tornaria o grande hit do disco. “Veja, não diga que a canção está perdida, tenha fé em deus, tenha fé na vida, tente outra vez. ...Tente, levante sua mão sedenta e recomece a andar, não pense que a cabeça agüenta se você para, há uma voz que canta, uma voz que dança, uma voz que gira, bailando no ar Queira, basta ser sincero e desejar profundo, você será capaz de sacudir o mundo, vai, tente outra vez.” Mais uma vez ele acredita na força da canção (não diga que a canção está perdida) como instrumento de mobilização, de abertura de pensamento para uma revolução individual. O incentivo que ele dá e no sentido de fazer com que o indivíduo se mobilize em busca de sua própria verdade. Embora ele cresse na força da música como elemento transformador, o rock provocou um novo problema quando de sua incorporação ao sistema de produção cultural. “Embora delegue-se aos jovens o papel de transformador da sociedade, a transformação que se espera não vai além da evolução do capitalismo... Mesmo os jovens que criam poder transformar o mundo, e essa crença era forte, não o mudaram, pelo menos não tanto quanto julgavam capazes. O rock, que carregava o símbolo da inovação e da contravenção, perdeu a cara de bandido, com já havia sido previsto por Raul Seixas...”87 Na música a verdade sobre a nostalgia Raul Seixas se diz nostálgico por que sente falta da rebeldia do rock, pois ela foi incorporada pelo sistema capitalista de venda de arte. “... Por isso a nostalgia eu tô curtindo sem querer, por que está faltando alguma coisa acontecer. Mamãe já ouve beatles, papai já deslumbrou, com meu cabelo grande eu fiquei contra o que eu já sou” 87 ABONIZIO. Op. Cit. p. 146 45 A música revela o descontentamento que ele tem com o rock, com os rumos que a música tomou a partir do momento em que ela é incorporada a industria cultural. Raul Seixas questionava o seu papel ao fazer rock. “por que eu vivo? Ser artista? Não fico feliz. Ser Caetano no final? Esse é o auge a que eu posso chegar? Não faço planos astronômicos. Investir muito para poder muito; cada vez que eu subo no palco, saber que está caindo uma estrutura, um edifício na Vieira Souto, um general está morrendo”88 Fim de mês é o momento onde se destaca a fórmula mais conhecida de Raul Seixas, ou seja, baião com repente e a atitude rock. A atitude crítica e de denuncia. nessa música Raul Seixas confessa-se confuso em suas buscas de se associar ao consumo, aos seus valores religiosos, ao caos da vida urbana, aos desejos do cidadão comum, ao pagamento das contas no fim de mês. Na música ele demonstra uma insatisfação em ser “pantera, hippie beatnick”. Ao invés de buscar uma fuga, associada ao misticismo, o que era comum a sua obra, essa música termina numa caótica discussão envolvendo preços de mercadorias em uma feira89. Essa música não resolve a tensão vivida pelo seu protagonista. Outra canção que merece destaque nesse disco é Eu sou egoísta. A canção termina com a seguinte frase: “ se você acha o que eu digo fascista, mista, simplista ou anti-socialista, eu admito, você tá na pista, eu sou ego, eu sou ísta, sou ego, sou ista, eu sou egoísta. Por que não? Por que não? Por que não? As palavras “por que não?” se referem a música “alegria, alegria”, de Caetano Veloso. É como se fosse uma nota de rodapé. Percebe-se o individualismo de Raul Seixas e a sua busca por verdades individuais, por incitar uma libertação individual. Reparemos também que o emprego do termo anti-socialista não se relaciona com uma perspectiva capitalista de caçar um socialista. Na verdade, é uma negação do pensamento socialista como alternativa para as transformações sociais. A vontade individual é a valorizada; a revolução individual. Nessa música ele incentiva ao indivíduo a ter uma postura egoísta e superar os medos individuais, “avançando no nada infinito, flamejando o rock e o grito”. 88 SEIXAS, Raul, O Baú do Raul. ORG. Tarik de Souza e Kika Seixas. São Paulo : Globo, 1992, p. 186 ouvindo-se a música, percebe-se diálogos onde há pessoas discutindo o preço de batatas, de legumes, outros cobrando dívidas, etc. 89 46 Cena 4 – há dez mil anos atrás Em 1976 saí pela Philips o disco “Há dez mil anos atrás”. Raul Seixas aparece na capa do disco com longos cabelos e com longas barbas. A idéia da capa é passar a mensagem do nome, ou seja, que o “profeta” do rock realmente havia nascido “há 10 mil anos atrás”. O long play ainda mantém intacta uma das principais características da produção artística de Raul Seixas, ou seja, a facilidade que o compositor tem em “passear” por diversos estilos de música popular. Ao contrário de seu disco anterior, este é um sucesso de vendas. O álbum começa com canto para minha morte, onde um Raul Seixas introspectivo canta um tango refletindo sobre as possíveis formas de sua morte. Meu amigo Pedro é um rock em um estilo mais próximo ao country americano; relata as impressões que o amigo de Pedro tem dele. Pedro é apresentado com um cidadão comum, trabalhador, que vive os dilemas de uma vida direcionada exclusivamente para os valores do trabalho. “Vai para o seu trabalho todo dia, sem saber se é bom ou se é ruim, Pedro, as coisas não são bem assim” É feito uma comparação sobre o comportamento de Pedro, um homem incorporado a sociedade, ao mundo do trabalho, e a seu amigo, apresentado como um maluco, vagabundo. “Hoje eu te chamo de careta, e você me chama vagabundo” Novamente Raul Seixas afirma seu descompromisso com relação aos valores da classe média. Ele fará isso novamente na música quando você crescer. “o que é que você quer ser quando você crescer? Alguma coisa importante? Um cara muito brilhante. Quando você crescer. Não adianta, perguntas não valem nada, é sempre a mesma jogada, um emprego e uma namorada, quando você crescer. ... ...Alguns amigos da mesma repartição, durante o fim de semana, se vai mais tarde prá cama, quando você crescer. ...o velho casal que paga as contas direito, bem comportado no leito, mesmo que doa no peito. 47 Todos os valores de alguém que está almejando uma estabilidade são cantados com um tom irônico e ao mesmo tempo. A música termina com ele declamando “tudo igual, vai ser exatamente o mesmo”. Raul Seixas, mesmo mais velho e mais experiente ainda se concentrava em incentivar uma postura não conformista. O grande destaque do disco é a canção eu também vou reclamar. Um rock muito próximo ao country também “Mas é que se agora, prá fazer sucesso, prá vender disco de sucesso, todo mundo tem que reclamar. Eu vou tirar o meu pé da estrada e vou entrar também nessa jogada e vamos ver quem é que vai agüentar. Por que eu fui o primeiro e já passou tanto janeiro, mas se todos gostam eu vou voltar. Tô trancado aqui no quarto de pijama por que tem visita estranha na sala, aí eu pego e passo a vista no jornal. Um piloto rouba um MIG, gelo em marte diz a viking, mas no entanto não há galinha em meu quintal. Compro móveis estofados me aposento com saúde pela assistência social Dois problemas se misturam, a verdade do universo e a prestação que vai vencer. Entro com a garrafa de bebida enrustida por que minha mulher não pode ver. Ligo o rádio e ouço um chato que me grita nos ouvidos pare o mundo que eu quero descer. Olho os livros na estante que nada dizem de importante servem só para quem não sabe ler. E a empregada me bate a porta me explicando que tá toda torta e que não sabe o que vai dar prá mim comer. Falam em nuvens passageiras mandam ver qualquer besteira e eu não tenho nada prá escolher. Apesar dessa voz chata e renitente eu não tô aqui para me queixar e nem sou apenas um cantor. Eu já passei por Elvis Presley, já imitei Mr. Bo Diddley, eu já cansei de ver o sol se por. Agora eu sou apenas um latino americano que não tem cheiro nem sabor 48 E as perguntas continuam, sempre as mesmas, quem eu sou, de onde venho e onde vou dar. E todo mundo explica tudo, como a luz acende como o avião pode voar. Ao meu lado o dicionário cheio de palavras que eu sei que nunca vou usar. Mas agora eu também resolvi dar uma queixadinha por que eu sou um rapaz latino americano que também sabe se lamentar. E sendo nuvem passageira, não me leva a beira disso tudo que eu quero chegar. E fim de papo. Percebe-se o debate musical que ele trava com Belchior, que em 1976 gravou a canção Palo-seco: “Eu sei que assim falando, pensas que esse desespero é moda em 76, mas ando mesmo descontente, desesperadamente. Eu vivo em português, tenho 25 anos de sonho e de sangue e da América do sul” Juliana Abonizio resgata uma entrevista que Raul Seixas deu em 1976, entrevista presente no livro de Sylvio Passos.90 Raul Seixas, quando comparado a Belchior disse: “Essa pergunta é uma sacanagem, mas eu respondo (gargalhadas): A diferença básica é que nos meus discos eu não me queixo de nada. Eu não me queixo de nada por que eu não estou aí para enganar estudantes” Eu também vou reclamar é uma música em que Raul Seixas ironiza e satiriza a função do artista de música de protesto, pois, ele é descrente na possibilidade de organizar uma ação coletiva partindo da música, uma ação revolucionária. O disco ainda tem momentos onde se destacam o Baião, como na música os números. Há também momentos em que Raul Seixas demonstra toda a sua religiosidade, como na música Ave Maria da rua. Na música que dá nome ao álbum, Raul Seixas faz uma leitura da história da humanidade, comentando que teria visto toda ela. Ao finalizar a música ele pergunta se haveria alguém que duvidasse das afirmações que ele trazia, pondo em dúvida toda a história. Vamos agora para o final de nossa peça. 90 ABONIZIO, op. Cit. p. 149 49 Quarto e último ato – Possibilidades de conclusão “eu prefiro ser essa metamorfose ambulante, do que ter aquela velha opinião formada sobre tudo” Para não ir contra a visão de Raul Seixas, contra a sua idéia de metamorfose, sua mudança constante, optei por chamar esta parte do texto de possibilidades de conclusão ao invés de conclusões propriamente ditas. Mesmo por que, a subjetividade inerente a profissão de historiador possibilita que sempre ao olharmos para um objeto, para uma fonte, inúmeras sejam as formas de se interpretar. Raul Seixas esteve muito ligado com o cenário musical brasileiro e com todas as ideologias que nele estavam presente. Esteve em contato com a música popular, com o rock, com a tropicália. Ao optar por tocar rock, ele opta também em enfrentar os problemas ideológicos que estavam associado a essa música. Ou seja, ele remava contra uma maré nacionalista. Com o surgimento da tropicália, propondo um dialogo das formas musicais nacionais com o que vinha de fora, Raul Seixas vislumbrou a possibilidade de incorporar o rock com ritmos nacionais, coisa que ele já vinha fazendo desde a década de 1960. Entretanto, a rebeldia transgressora que ele tinha, a sua proximidade com a contracultura, com a negação dos valores tradicionais da sociedade capitalista, fez com que ele unisse elementos musicais com identidades distintas, sem a busca por uma musicalidade nacional. Não era nem nunca foi horizonte de sua produção artística construir uma música híbrida, que promovesse um dialogo entre rock e baião, por exemplo (essa seria a grande síntese que marcou toda a carreira do cantor) no intuito de promover a idéia de que o que é nacional é antropofágico, de que o que é nacional é a incorporação do externo com o interno visando a criação de uma nova arte, uma nova música. Sendo assim, o elemento nacional presente no rock de Raul Seixas teria outro sentido. Ao se associar com a industria fonográfica, Raul Seixas passa a utilizar-se de uma linguagem musical nacional para fazer de sua música um produto apreciado pelo mercado, que pudesse se vendido. A busca pelo sucesso, apoiada no pensamento de Crowley, permitia que ele se associasse ao mercado fonográfico sem enxergar os mesmo problemas que a esquerda, vinculada com a música popular observava. 50 Apoiado na contracultura, Raul Seixas cantou sua proposta de libertação individual de consciências, cantou o espírito transgressor do Rock. Ele utilizava-se da canção para propagar esse seu ideal de libertação, ou seja, se afastava de um ideário político de esquerda. O grande exemplo desse seu pensamento é a canção “Tente outra vez”. A primeira vista, parece ser uma música otimista, mas ela remete diretamente a duas coisas, ao principio de libertação individual, que sempre esteve presente na obra do Raul Seixas, sem contar que pode também estar relacionada aos movimentos engajados da música, derrotados após 1968 (não diga que a canção está perdida) Apesar de ele ver na canção um caráter libertário, ele não aponta para o socialismo, como a intelectualidade engajada, mas sim para uma fuga mística (tenha fé em deus). Ele ainda acreditava no poder da canção como meio de divulgação de idéias. Ele jogou para o espaço do mágico, do divino, do místico toda a projeção de futuro, mas ao mesmo tempo, ele era um crítico incontestável da racionalidade capitalista moderna, da modernização conservadora promovida pelo Estado militar brasileiro. Tentando concluir, ele se relacionou com as tradições musicas brasileiras na medida que utilizava a canção para promover uma filosofia, um pensamento; se distanciava dessa tradição na medida em que ele não cantava o conservadorismo de direita muito menos ainda as utopias de esquerda. Ele se aproximava de tradições presentes na música brasileira na medida em que usava elementos nacionais e populares, mas ao mesmo tempo, se afastava destas tradições pois não procurava fazer parte de nenhum movimento musical nacionalista. Fazia suas críticas sociais, políticas e estéticas sem estar se baseando em uma tradição de esquerda e sim pautado no pensamento da contracultura. 51 Fontes utilizadas Discográficas: Raulzito e seus Panteras, EMI-ODEON BRASIL, Rio de Janeiro, 1967; A Sociedade da Grã-ordem Kavernista apresenta: Sessão das 10. CBS, Rio de Janeiro, 1972; Raul Seixas: Krig-há, Bandolo!. PHILIPS-POLYGRAM, Rio de Janeiro, 1973; Raul Seixas: Gita. PHILIPS-POLYGRAM, Rio de Janeiro, 1974; Raul Seixas: Novo Aeon. PHILIPS-POLYGRAM, Rio de Janeiro, 1975; Raul Seixas: Eu nasci há 10 mil anos atrás, PHILIPS-POLYGRAM, Rio de Janeiro, 1976 Fontes de apoio: PASSOS, S. (org.), Raul Seixas por ele mesmo : São Paulo, SP, Martin Claret, 1998. 52 Referências bibliográficas: ABONIZIO, J. O protesto dos inconscientes: Raul Seixas e a micropolítica : Assis, SP, dissertação de mestrado em história, UNESP, 1999; ADORNO, T. W. e HORKHEIMER, M. Dialética do esclarecimento : SP : Zahar, 1985; ALMEIDA, C. A. Cultura e sociedade no Brasil: 1940-1968. : SP, Atual, 1998; BAHIANA, A. M. Nada será como antes: MPB nos anos 70 : Rio de Janeiro. Civ. Brasileira, 1980; BRANDÃO, A. & DUARTE, M. Movimentos culturais de juventude : SP, Moderna, 1997; BUARQUE, M. Culto rock a Raul Seixas: Sociedade alternativa entre rebeldia e negociação : Rio de janeiro, RJ, dissertação de mestrado em antropologia, UFF, 1997. BUDA, T. & PASSOS, S. Raul Seixas: Uma Antologia : São Paulo, SP, Martin Claret, 1998 CONTIER, Arnaldo. “Música no Brasil: história e interdisciplinaridade. Algumas interpretações (1926-1980)" IN: História em Debate. Atas do XVI Simpósio Nacional de História, ANPUH, Rio de Janeiro, 1991, ANPUH/CNPQ, p.151-189; CORREIA, T. G. Rock nos passos da moda: Mídia, consumo X mercado cultural : Campinas, SP, Papirus, 1989; DAPIEVE, A. BRRock: o rock brasileiro dos anos 80 : São Paulo, SP, Editora 34, 1995; DIAS, Márcia T. Os donos da voz: Industria fonográfica brasileira e mundialização da cultura : SP, Bomtempo, 2000; FAVARETTO, C. Tropicália: alegoria, alegria : São Paulo, SP Ateliê Editorial, 1995; GROPO, L. A. O rock e a formação do mercado de consumo cultural juvenil: A participação da música pop-rock na transformação da juventude em mercado consumidor de produtos culturais, destacando o caso do Brasil e os anos 1980; HOBSBAWM, E. Era dos Extremos: O breve Século XX (1914-1991) : Cia. Das Letras, São Paulo, 1999; MUGGIATI, R. Rock: O Grito e o Mito – A música pop como forma de comunicação e contracultura : Rio de Janeiro, Vozes, 1983; MUGGIATI, R. Rock: Do sonho ao pesadelo : Porto Alegre, RS, L&PM, 1984; MUGNAINI, A. Eu quero cantar por cantar: Raul Seixas : São Paulo, SP, Nova Sampa Diretriz, 1993; 53 NAPOLITANO, M. Texto, pretexto e contexto na análise da canção : IN: SILVA, F. C. T. (org). História e Imagem, Pós-Graduação, IFCS/UFRJ, 1998; NAPOLITANO, M. O regime militar Brasileiro: 1964 – 1985 : SP, Atual, 1998; ORTIZ, R. A moderna tradição brasileira: Cultura brasileira e industria cultural. SP : Brasiliense, 1999; ORTIZ, R. Mundialização e cultura : São Paulo, SP, Brasiliense, 1994; PAVÃO, A. Rock Brasileiro (1955-1965) - Trajetória, personagens e discografia : São Paulo, SP, EDICON, 1989; PASSOS, S. (org.), Raul Seixas por ele mesmo : São Paulo, SP, Martin Claret, 1998; SEIXAS, K & SOUZA, T. O baú do Raul : Rio de Janeiro, RJ, Globo, 1998; WASSANI, M. A mídia e o Rock’n’roll: um estudo sobre o rock’n’roll na ótica da imprensa local (1955-1960) : Curitiba, PR, monografia de conclusão de curso de história, UFPR, 2000