ESCOLA SUPERIOR ABERTA DO BRASIL – ESAB

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ESCOLA SUPERIOR ABERTA DO BRASIL – ESAB
CURSO DE LATO SENSU EM PSICOPEDAGOGIA
CLÍNICO-INSTITUCIONAL
MARIA ELISA DE MATTOS PIRES FERREIRA
A APRENDIZAGEM DA CIDADANIA NA EDUCAÇÃO INFANTIL
Um estudo a partir da ótica psicopedagógica
VILA VELHA - ES
2009
MARIA ELISA DE MATTOS PIRES FERREIRA
A APRENDIZAGEM DA CIDADANIA NA EDUCAÇÃO INFANTIL
Um estudo a partir da ótica psicopedagógica
Monografia apresentada à ESAB – Escola
Superior Aberta do Brasil, sob orientação dos
Professores Jaime Roy Doxsey e Beatriz
Christo Gobbi.
VILA VELHA - ES
2009
MARIA ELISA DE MATTOS PIRES FERREIRA
A APRENDIZAGEM DA CIDADANIA NA EDUCAÇÃO INFANTIL
Um estudo a partir da ótica psicopedagógica
Aprovada em .... de ......... de 200..
VILA VELHA - ES
2009
.
Dedico este trabalho às minhas cinco
netas: Ana Carolina, Letícia, Camila
Fernanda, Luana e Beatriz, no desejo e na
esperança de que possam viver num
mundo melhor do que o atual.
AGRADECIMENTOS
A Deus, por mais esta oportunidade de
crescimento pessoal e profissional.
―O exercício do pensamento não é um vir
a ser e sim uma contingência em cada
instante da vida: uma criança não é um
projeto de um futuro adulto, ela é desde
sempre uma pessoa.‖
(DEHEINZELIN)
RESUMO
O tema da presente monografia é A aprendizagem da cidadania na educação
infantil, e insere-se na linha de pesquisa Educação e Psicopedagogia – Área de
investigação: Educação Infantil. O estudo teve como objetivo desvelar como a
educação infantil pode contribuir para a aprendizagem da cidadania.Com essa
finalidade, foi realizada uma pesquisa exploratória aplicando-se como técnica a
pesquisa bibliográfica. Na realização do estudo procurou-se definir cidadania,
apresentar e discutir as finalidades e os objetivos da educação infantil segundo a
legislação vigente, levantar o histórico da educação infantil no mundo e
particularmente no Brasil, investigar as principais características do processo ensinoaprendizagem na educação infantil, identificar os modos como o processo de ensinoaprendizagem próprios da educação infantil pode contribuir para a constituição da
cidadania e, finalmente, identificar ações psicopedagógicas favorecedoras da
constituição da cidadania no período da educação infantil. A coleta de dados se deu
por meio de pesquisa realizada em documentos legais; livros publicados; artigos de
periódicos especializados em educação infantil e textos constantes na Internet.
LISTA DE SIGLAS
ECA: Estatuto da criança e do adolescente, Lei n° 8.069/ 1990.
LDBEN: Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, Lei nº 9394/ 1996.
MEC: Ministério da Educação.
ONU: Organização das Nações Unidas.
PNE: Plano Nacional de Educação.
RCNEI: Referencial curricular nacional para a educação infantil
SEC: Secretaria da Educação Básica do MEC.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO...........................................................................................................
10
CAPÍTULO 1 – INFÂNCIA: O QUE É ISSO?.................................................
13
1.1 A PALAVRA INFÂNCIA.............................................................................
14
1.2. A ESCOLA COMO LEGITIMADORA DA INFÂNCIA................................ 16
1.3. CONCLUINDO........................................................................................
19
CAPÍTULO 2 - A EDUCAÇÃO INFANTIL SEGUNDO A LEGISLAÇÃO
VIGENTE.........................................................................................................
20
2.1. A EDUCAÇÃO INFANTIL NAS CONSTITUIÇÕES BRASILEIRAS.........
20
2.2. A EDUCAÇÃO INFANTIL NO ESTATUTO DA CRIANÇA E DO
ADOLESCENTE..............................................................................................
24
2.3. A EDUCAÇÃO INFANTIL NA LEI DE DIRETRIZES E BASES DA
EDUCAÇÃO NACIONAL.................................................................................
2.4.
A
EDUCAÇÃO
INFANTIL
NO
REFERENCIAL
25
CURRICULAR
NACIONAL PARA A EDUCAÇÃO INFANTIL (RCNEI)...................................
27
2.5.CONCLUSÃO............................................................................................
28
CAPITULO 3 – A EDUCAÇÃO INFANTIL: SUA HISTÓRIA NO MUNDO E
NO BRASIL ....................................................................................................
29
3.1. A EDUCAÇÃO DA INFÂNCIA NA IDADE MÉDIA....................................
29
3.2.
A
EDUCAÇÃO
DA
INFÂNCIA
NA
IDADE
MODERNA......................................................................................................
31
3.3. A EDUCAÇÃO DA INFÂNCIA NA IDADE CONTEMPORÂNEA..............
33
3.4. A EDUCAÇÃO DA INFÂNCIA NO BRASIL .............................................
34
3.4.1
A
educação
da
infância
no
período
colonial
e
no
Império............................................................................................................
34
3. 4. 2 A educação infantil no período republicano (1889 a 1964)............
36
3.4.3 Os rumos da educação infantil na ditadura militar...........................
37
3.4.4 A educação infantil na vigência da Constituição Cidadão...............
39
3.5 CONCLUSÃO............................................................................................
42
CAPÍTULO 4 - AS PRINCIPAIS CARACTERÍSTICAS DO PROCESSO
ENSINO-APRENDIZAGEM NA EDUCAÇÃO INFANTIL...............................
43
4. 1. VENCENDO DICOTOMIAS: ENTRE O CUIDAR E O EDUCAR............
43
4.2. A SOCIALIZAÇÃO DA CRIANÇA............................................................. 46
4.3. CONCLUSÃO.........................................................................................
48
CAPÍTULO 5 - A EDUCAÇÃO INFANTIL COMO TRIBUTÁRIA DA
CIDADANIA..................................................................................................... 49
5.1. O SIGNIFICADO DE CIDADANIA E O MUNDO ATUAL.......................... 49
5.2. A EDUCAÇÃO INFANTIL E A CONSTITUIÇÃO DE UMA CIDADANIA
ATIVA..............................................................................................................
53
5.3. CONCLUSÃO...........................................................................................
56
CAPÍTULO
6
-
PSICOPEDAGOGIA,
EDUCAÇÃO
INFANTIL
E
CIDADANIA..................................................................................................... 57
6. 1. A PSICOPEDAGOGIA: SIGNIFICADO E POSSIBILIDADES.................
6.2.
O
PSICOPEDAGOGO:
UM
PROFISSIONAL
VOLTADO
57
À
CIDADANIA.....................................................................................................
58
6.3. O PSICOPEDAGOGO E A CONSTRUÇÃO DA CIDADANIA ATIVA NA
EDUCAÇÃO INFANTIL...................................................................................
59
6. 4. CONCLUSÃO..........................................................................................
62
CONSIDERAÇÕES FINAIS............................................................................
63
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS...............................................................
66
10
INTRODUÇÃO
Palavras-chave: Educação Infantil, Cidadania Ativa, Psicopedagogia Institucional.
O tema da presente monografia é A aprendizagem da cidadania na educação
infantil, e insere-se na linha de pesquisa Educação e Psicopedagogia – Área de
investigação: Educação Infantil. Interessei-me por esse objeto de estudo visto ser
professora da área de Educação, trabalhando com a formação de professores para
o Ensino Básico, em cursos de Licenciatura, de modo particular em Pedagogia
voltada à Educação Infantil e Séries iniciais do Ensino Fundamental. Entendo que
me aprofundar nesse tema será um ganho para mim, tanto como professora quanto
como cidadã, e para meus alunos, pois poderei colaborar melhor com sua formação
profissional.
Segundo a legislação vigente, a educação básica tem como uma de suas finalidades
a construção da cidadania (LDBEN, lei 9394/96, art. 22). Trata-se de uma tarefa de
enorme responsabilidade, visto às dificuldades sócio-econômicas por que passa
uma parcela significativa da população nacional. Além dessas questões, há que se
considerar que o tempo presente é marcado por insegurança, desrespeito às leis,
solidão, falta de apoio psicológico (GIDDENS, 1991). Em vista de quadro tão
desalentador, a educação da infância torna-se, mais do que em épocas passadas,
de suma gravidade, porque para se vencer os desafios e problemas hoje existentes
é preciso se formar cidadãos cônscios de seus direitos e deveres, tarefa que deve
ser iniciada na mais tenra idade. Frente a esse panorama, o problema da pesquisa
realizada pode ser sintetizado na indagação: Como a educação infantil pode
contribuir para a aprendizagem da cidadania?
Partindo-se dessa pergunta norteadora, e com apoio na Declaração dos Direitos da
Criança, adotada pela Assembléia das Nações Unidas em 20/11/1959, pela qual a
humanidade deve às crianças o melhor dos seus esforços, o objetivo geral do
trabalho consistiu em Desvelar como a educação infantil pode contribuir para a
aprendizagem da cidadania, mas a busca se deu a partir da ótica psicopedagógica.
11
Além de se desejar saber os modos possíveis da educação infantil colaborar com a
formação de cidadãos ativos, esperava-se também identificar as possibilidades do
psicopedagogo institucional interferir preventivamente junto às escolas de educação
infantil a fim de se obter a tão almejada cidadania ativa.
Visando a operacionalização do objetivo geral acima expresso, foram levantados
seis objetivos específicos que, por sua vez, transformaram-se nos seis capítulos da
monografia. Foram eles: 1. Definir infância. 2. Apresentar e discutir as finalidades e
os objetivos da educação infantil segundo a legislação vigente. 3. Levantar o
histórico da educação infantil no mundo e particularmente no Brasil. 4. Investigar as
principais características do processo ensino-aprendizagem na educação infantil. 5.
Verificar os modos como o processo de ensino-aprendizagem próprios da educação
infantil pode contribuir para a constituição da cidadania. 6. Identificar ações
psicopedagógicas favorecedoras da constituição da cidadania no período da
educação infantil.
Ao se analisar problema a ser equacionado, constatou-se que o tipo de pesquisa
que melhor se ajustaria a ele seria a bibliográfica. Nessa direção, foram arrolados
artigos de periódicos e de revistas acerca do tema e textos de autores de
reconhecida autoridade na área. A internet foi um veículo para a localização de parte
do material necessário. Foram usados documentos legais e livros sobre a educação
infantil e sobre psicopedagogia, visto o último objetivo específico pontuado. A
pesquisa bibliográfica iniciou-se pela busca de resposta às seguintes questões:
quem já escreveu e o que já foi publicado sobre o assunto, que aspectos do tema já
foram abordados, quais as lacunas existentes na literatura. Esse levantamento foi
fundamental, porque forneceu elementos para se definir toda a caminhada.
O referencial teórico fundamental foi a legislação brasileira e documentos publicados
pela ONU, dentre os quais destacaram-se a Convenção das Nações Unidas sobre
os Direitos da Criança, de 1989, Declaração dos Direitos da Criança, de 1959, e a
Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948.
12
A partir do estudo feito, concluiu-se que existem possibilidades de ações
psicopedagógicas favorecedoras da constituição da cidadania ativa no período da
educação infantil, pois o psicopedagogo, pela sua própria história, é um profissional
voltado para a cidadania: suas ações visam a inclusão social. Também se verificou
que, dentre as muitas formas de o psicopedagogo contribuir para com a construção
da cidadania, uma delas consiste em desenvolver um trabalho junto aos educadores
e junto aos pais dos alunos, criando condições para que a escola se torne um
espaço democrático que permita ao aluno manifestar seus conhecimentos e
experiências de vida.
Num segundo momento, foi possível se verificar que a educação infantil poderá
colaborar com a construção da cidadania ativa à medida que cumprir suas funções
de cuidar e de educar, pois não há como se educar crianças pequenas sem que se
cuide delas. Constatou-se ainda que os jogos, brinquedos e brincadeiras são os
meios mais adequados à socialização e ao desenvolvimento integral da criança na
primeira infância; são eles que possibilitarão a construção dos alicerces da
cidadania.
Sabe-se que o trabalho aqui apresentado é apenas uma pequenina contribuição à
educação nacional e ao exercício da psicopedagogia; em nenhum momento houve a
pretensão de que ele consistisse em uma obra acabada, mas espera-se que ele
possa deflagrar discussões e reflexões a respeito da educação da infância, a fim de
que se amplie em valores éticos e morais dirigidos para uma sociedade democrática
e para uma cidadania plena.
13
CAPÍTULO 1
INFÂNCIA: O QUE É ISSO?
Como sabemos, as relações entre os seres humanos são históricas, mudam com o
tempo e, conseqüentemente, também são históricas as percepções que os homens
possuem das coisas que os rodeiam. Por essa razão, a maneira da sociedade
ocidental entender a infância sofreu alterações conforme foram se alterando os
modos de organização social (GHIRALDELLI JR., 2000).
Neste capítulo, no qual nos propomos desvelar o conceito de infância, além de
admitirmos a historicidade dos conceitos, tomaremos por fundamento a Sociologia
da Infância (SARMENTO, 2005). Por essa razão, não nos referiremos à criança
como se ela fôra um ser passivo que facilmente se entrega a uma socialização
conduzida por instituições. Ao assumirmos esta posição teórica, estamos assumindo
o propósito de superar as abordagens científicas reducionistas, como as que se
fecham na perspectiva da maturação ou da aprendizagem,
ou as que
supervalorizam os aspectos psicológicos, desprezando tanto o contexto social no
qual a criança existe quanto as representações e imagens historicamente
construídas sobre e para ela. Ao acolher a criança como um objeto de investigação
sociológica, intencionamos expandir nosso conhecimento sobre a infância bem como
sobre a sociedade em geral, uma vez que realidades da estrutura social, nem
sempre percebidas, poderão se iluminar.1
Partindo dessas premissas e em vista dos objetivos deste trabalho, o presente
capítulo dará uma particular atenção ao significado de infância. Julgamos importante
sublinhar mais uma vez que toda a reflexão que faremos terá como ponto de partida
a convicção de que as crianças são atores sociais porque não são passivas, são
1
Como veremos neste texto, infância é um período da existência de uma pessoa, difícil de se limitar porque é
dependente da cultura e do tempo histórico; grosso modo fica compreendido entre o nascimento e o décimo
segundo ano de vida. Criança é o ser humano em desenvolvimento que está no período da infância. Embora não
sejam sinônimos, neste trabalho nos reportaremos aos dois termos como equivalentes. (Nota da autora).
14
sujeitos, participam das trocas e das interações sociais, colaborando na manutenção
e na transformação da sociedade (SIROTA, 2001).
1. 1. A PALAVRA INFÂNCIA
A palavra infância é difícil de ser explicitada por se referir a um conceito polissêmico.
Etimologicamente, origina-se do verbo latino fari (falar, dizer), cujo particípio
presente é fans. Nesse sentido, infans (criança) é quem não fala e portanto não
pensa (GAGNEBIN, 1997). Embora façamos hoje distinção entre os termos criança e
infância, uma vez que ―criança‖ designa o ―ser humano de pouca idade [...]‖
(FERREIRA, 1995, p. 187) e ―infância‖ é o ―período de crescimento, no ser humano,
que vai do nascimento até a puberdade [...]‖ (FERREIRA, 1995, p. 360), não será
possível descolarmos esses termos um do outro, pois historicamente se constituíram
de modo dependente entre si.
De acordo com Postman (1984), não há cultura que não possua o seu conceito de
―criança‖, porém esse conceito está ordinariamente preso ao aspecto biológico,
referindo-se a um ser diferenciado, frágil e dependente. Porém, segundo o RCNEI
(1998, p. 21), 2
A concepção de criança é uma noção historicamente construída e,
conseqüentemente, vem mudando ao longo dos tempos, não se
apresentando de forma homogênea nem mesmo no interior de uma mesma
sociedade e época. Assim é possível que, por exemplo, em uma mesma
cidade existam diferentes maneiras de se considerar as crianças pequenas
dependendo da classe social a qual pertencem, do grupo étnico do qual
fazem parte.
De modo geral, nossa sociedade costuma empregar a palavra ―criança‖ para
designar o ser humano de pouca idade, em desenvolvimento, ainda incapaz de se
auto-sustentar, evocando uma parte da população caracterizada pela faixa etária a
que pertence, isto é, por enquadrar-se no momento existencial que denominamos
infância. Será na acepção relativa à faixa etária na qual o ser humano se insere, e
2
RCNEI: forma abreviada de se referir ao Referencial curricular nacional para a educação infantil.
Documento publicado pelo Ministério da Educação e do Desporto. Secretaria de Educação Fundamental.
Brasília: MEC/SEF, 1998.
15
de acordo com o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), que a ―infância‖ será
abordada no presente trabalho.3
Como já afirmamos, o conceito de infância não é simples e saber qual é sua
extensão também não o é pois ―[...] a luta pelo estabelecimento dos limites da
infância é, em si mesma, uma das componentes do processo de construção social
da infância‖ (PINTO; SARMENTO, 1997, p. 17). Na Idade Média, por ocasião do IV
Concílio de Latrão (1215),4 a Igreja estabeleceu que infância seria o período de vida
desde o nascimento até os sete anos, quando teria início a razão (DELGADO;
MULLER, 2006). A escola moderna adotou a mesma concepção, estipulando essa
idade para o início da escolarização e da alfabetização (PINTO, 1997).
Em tempo recente, a Convenção dos Direitos da Criança (CDC), adotada em
Assembléia Geral das Nações Unidas em 20 de novembro de 1989, postulou que
para efeitos daquela convenção ―considera-se como criança todo ser humano com
menos de dezoito anos de idade, a não ser que, em conformidade com a lei
aplicável à criança, a maioridade seja alcançada antes‖ (art.1º). No Brasil, pelo ECA,
de 1990, considera-se criança a pessoa até doze anos de idade incompletos, e
adolescente dos doze aos dezoito anos de idade (art.2º).
Há
estudiosos
do
tema,
como
Buckingham
(2002),
que
entendem
que
independentemente do que consta nos documentos legais, o que de fato legitima,
hoje, o significado social de infância são a escola e o mundo do trabalho. Para ele, a
escola ―é uma instituição social que constitui e define de forma eficaz o que significa
ser criança e criança de uma determinada idade‖ (BUCKINGHAM, 2002, p. 19).
Porém,
3
essa afirmação apenas se aplica para as sociedades inseridas na
De acordo com o Estatuto da Criança e do Adolescente, Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990, Art. 2º,
considera-se criança a pessoa até doze anos de idade incompletos, e adolescente aquela entre doze e dezoito anos
de idade. Disponível em: http://www.eca.org.br/eca.htm. Acesso em 20.dez.2008.
4
Segundo Bolton (1985), o IV Concílio de Latrão foi o maior dos concílios ecumênicos medievais. Foi
convocado pelo papa Inocêncio III através da Bula Vineam Domini Sabaoth de 10 de abril de 1213. Foram
convidados a participar desta assembléia não somente os líderes eclesiásticos regulares e seculares, como
também autoridades laicas.
16
modernidade, porque na Idade Média, por exemplo, a escola não se destinava a
educar a infância e sua organização era multietária (PINTO, 1997).
Como, então, delimitar a infância?
Na busca de uma resposta, Suzanne Mollo-
Bouvier (apud DELGADO; MULLER, 2006) constatou que a Psicologia do
Desenvolvimento contribuiu para disseminar a idéia, quer entre educadores ou
leigos, de que o desenvolvimento humano se faz através de estágios, dentre as
quais a infância. Contudo, diz-nos, os diversos teóricos que tratam da questão não
chegaram a um consenso quanto a sua limitação. O que ela pôde concluir é que as
categorias ―crianças‖ e ―jovens‖ realmente existem nas várias sociedades, mas
mesmo no interior de cada grupo social os seus significados variam muito.
Outra contribuição dessa pesquisadora (apud DELGADO; MULLER, 2006) está a de
ter pontuado que historicamente a infância nunca pôde escapar de algum tipo de
institucionalização. Assim, encontramos na nossa sociedade diversas instituições,
além da família, que se dedicam ao cuidado das crianças; embora com finalidades
variadas, ao se organizarem, sempre levam em conta as faixas etárias. Também a
posição sócio-econômica da família é um fator sempre influente na limitação da
infância e no tipo de instituição que a acolherá; em conformidade com essa
afirmação, no Brasil, por exemplo, ―as pré-escolas designam escolas de crianças
pequenas e de uma classe social com mais possibilidades econômicas, e as creches
são os equipamentos destinados às crianças pobres e às classes populares‖
(ABRAMOWICZ et al., s.d., p. 2)
1.2. A ESCOLA COMO LEGITIMADORA DA INFÂNCIA
Se acatarmos o ponto de vista de Buckingham (2002), precisaremos admitir a tese
de que o significado social de infância (e adolescência) nas sociedades inseridas na
modernidade é validado pela escola, enquanto que a vida adulta é validada pelo
mundo do trabalho. Nesse caso, o argumento de defesa está no fato de a escola ser
uma organização indispensável aos tempos modernos pela qual toda criança deverá
17
passar; nela, os indivíduos adquirem conhecimentos básicos para a vida em
sociedade, enriquecem suas experiências pessoais e exercitam dinâmicas de
socialização.
Não há dúvidas de que a escola interfere profundamente na formação das pessoas,
principalmente na infância. A relação entre essa instituição e quem a freqüenta, além
de possuir legitimação social, apresenta características próprias, como classificar as
crianças e adolescentes segundo sua idade cronológica e os perceber não como
―pessoas‖ , mas como ―alunos‖ ou ―alunas‖. Trata-se de um espaço artificial, com
regras, rotinas e procedimentos explícitos e impostos àqueles que a cursam. Dentre
as instituições sociais, é a que realiza o ato educativo do modo mais formal (DIAS,
1996).
Entretanto, nem sempre o espaço escolar foi dessa forma. Etimologicamente, o
termo ―escola‖ é de origem grega e designa ―lugar do ócio‖. De acordo com Alves e
Pretto (1999), a palavra foi incorporada à cultura ocidental na Idade Média, quando
surgiu um ambiente até então inexistente, voltado para uma classe social abastada
que procurava ocupar seu tempo dignamente — destinava-se ao lazer e ao prazer.
Aos poucos, esse espaço foi se transformando em local específico para a aquisição
de
informações.
Como,
via
de
regra,
estas
eram
passadas
de
forma
descontextualizada, de prazerosa a escola foi se configurando como enfadonha,
característica que, de acordo com depoimentos de alunos, hoje, ela continua
mantendo (ALVES; PRETTO, 1999).
No caso da escola brasileira, desde sua origem traz a característica da
hierarquização, fortemente marcada pelas relações de poder. Foi, e ainda é, um tipo
de instituição que reproduz a estrutura da sociedade de classes, guardando muito da
educação jesuítica: dogmática e autoritária. É um modelo que dificulta o
desenvolvimento da autonomia intelectual e moral dos educandos, contribuindo para
que sejam mantidas, quiçá ampliadas, as injustiças sociais (FERREIRA, 1999, s.p.).
Embora os castigos físicos tenham sido legalmente abolidos das nossas instituições
de ensino, é enorme a "repressão simbólica" que nelas ainda existe. A repressão
simbólica está associada à reprodução das relações sociais existentes na
18
sociedade; isto ocorre quando a escola impõe e inculca valores e costumes culturais
estranhos ao grupo a que se dirige e reprime os que lhes são próprios. Essa
inculcação ideológica não se efetua sem resistência por parte das crianças
(GONÇALVES, 2002).
Para muitos, esse fato passa despercebido (às vezes até mesmo dos educadores
que estão na escola). A repressão simbólica é tão forte em nossos estabelecimentos
de ensino que boa parte da aprendizagem ali adquirida só faz sentido para a própria
escola, isto é, conteúdos consagrados pela tradição, mas desprovidos de
significação para o grupo de alunos que a freqüenta; muitas vezes, este fato acaba
por delinear as diferenças entre a aprendizagem escolar, sistemática, e a
aprendizagem ―da vida‖, assistemática, construída no cotidiano dos atores sociais
(ALVES; PRETTO, 1999).
Felizmente, a escola aos poucos vem se transformando na direção de instituições
mais abertas, com práticas educativas não-autoritárias, capazes de trabalhar os
seus próprios conflitos, tornando-os fatores de mudança e de progresso (DIAS, p.
1996).
No que diz respeito à escolarização das crianças, a LDBEN, lei 9394/96, em seu
texto original, as inclui no Ensino Básico, o qual se compõe da Educação Infantil, do
Ensino Fundamental e do Ensino Médio (art. 21). Nessa organização, a Educação
Infantil designa o período de escolarização de crianças com idade entre zero e seis
anos (art. 29), ao passo que o Ensino Fundamental, com duração mínima de oito
anos, se volta às crianças com idade de seis anos em diante (art. 32), atingindo,
segundo caracterização feita pelo ECA 5, os adolescentes de doze a catorze anos.
Esse segundo nível de ensino é obrigatório e gratuito, devendo ser garantido pelo
Estado brasileiro. O Ensino Médio se volta à formação de adolescentes acima de
catorze anos, situando-se como educação pós-obrigatória.
5
ECA: Estatuto da Criança e do Adolescente, Lei n° 8.069, de 13 de julho de 1990. Disponível em:
http://www.eca.org.br/eca.htm. Acesso em 20.dez.2008.
19
A caracterização do ensino brasileiro acima explicitada refere-se ao texto original da
Lei 9394/96, porém, por causa da política de ampliação do ensino fundamental para
nove anos, parte dessa lei foi alterada pela Lei nº 11. 114, de 2005. Assim, as
crianças de seis anos de idade passaram a ser incluídas na educação obrigatória.
Segundo a Secretaria da Educação Básica do MEC, a alteração do Ensino
Fundamental de no mínimo oito anos para nove anos obrigatórios já era prevista
desde a aprovação da Lei 9394/96, LDBEN, e era uma das metas do Plano Nacional
de Educação (PNE), Lei nº 10.172/ 2001, sendo discutida com as secretarias
municipais e estaduais de educação desde 2003.
Quanto à escola como legitimadora da infância, o que se pode afirmar é que a
infância e escola relacionam-se intimamente, embora o tratamento dado ao aluno
dependa dos níveis de ensino. Enquanto no Ensino Fundamental a artificialidade
das situações de ensino-aprendizagem está bastante presente, na Educação Infantil
as necessidades infantis são mais bem atendidas, pois as crianças costumam ser
estimuladas por meio de atividades voltadas especificamente à fase de vida que lhes
é própria: existe em maior freqüência a proposição de atividades recreativas, lúdicas,
jogos, brincadeiras, buscando pedagogicamente possibilitar o desenvolvimento de
suas capacidades físicas, cognitivas e afetivas.
1.3. CONCLUINDO
O que verificamos pelos trabalhos citados é que o significado de infância resulta de
uma construção sócio-histórica, e decorre da construção do significado de escola,
instituição que, potencialmente, se volta à socialização de todas as crianças. Há
estreita relação entre as alterações havidas na categorização de infância e as
mudanças de concepção de escola. Por outro lado, as pesquisas voltadas à escola,
aos saberes que nela são veiculados, aos processos de ensino-aprendizagem
também têm uma parcela de interferência na percepção e definição do que seja a
infância.
20
CAPÍTULO 2
A EDUCAÇÃO INFANTIL SEGUNDO A LEGISLAÇÃO VIGENTE
Neste capítulo discutiremos as finalidades e os objetivos da educação infantil
segundo a legislação vigente. Nosso objetivo é o de resgatar alguns aspectos da
evolução histórica do atendimento educacional aos menores de zero a seis anos no
Brasil, clareando o percurso que fizemos para ultrapassarmos, com a Constituição
Federal de 1988, visões assistencialistas e chegarmos à noção de que a educação
infantil é um direito das crianças e uma obrigação do Estado. Analisaremos a
legislação nacional e alguns documentos da esfera federal relativos ao tema,
apontando que, embora garantida em lei, ainda há muito que se fazer para que a
educação infantil de fato seja satisfatória e acessível a todas as crianças brasileiras
com menos de seis anos de idade.
2.1. A EDUCAÇÃO INFANTIL NAS CONSTITUIÇÕES BRASILEIRAS
Visando atingir o objetivo a que nos propusemos, faremos uma incursão às
Constituições brasileiras, principiando pela "Carta Imperial", de 1824, e finalizando
com a Constituição de 1988, popularmente alcunhada de "Constituição Cidadã".
A primeira Constituição brasileira data de 25 de março de 1824; denominada
"Constituição Política do Império do Brazil", popularizou-se como "Carta Imperial". A
segunda Constituição nacional foi promulgada em 24 de fevereiro de 1891; nascida
com a Proclamação da República, ela teve a finalidade de regulamentar a recéminstalada ordem política. Sua denominação oficial é "Constituição de República dos
Estados Unidos do Brazil", porém costuma-se designá-la por "Carta Republicana de
1891". Embora se refiram a regimes políticos diversos, nenhuma delas tratou da
educação. Foi somente na "Constituição da República dos Estados Unidos do
21
Brasil" de 1934 que pela primeira vez esse tema apareceu. A partir dessa Carta
Magna, nenhuma outra deixou de mencioná-lo.
A Constituição Brasileira de 1934 visou a organização de um regime democrático.
Foi de todas as Constituições que tivemos a que menos durou: apenas três anos,
mas vigorou oficialmente um ano porque foi suspensa pela Lei de Segurança
Nacional6 (ARRUDA; CALDEIRA, 1986). Nela, a educação foi abordada apenas em
um artigo (art. 149).
A Constituição Brasileira de 1937 foi a primeira, no período republicano, a possuir
caráter autoritário. Outorgada pelo presidente Getúlio Vargas em 10 de novembro de
1937, marcou o início do período ditatorial designado por Estado Novo (ARRUDA;
CALDEIRA, 1986). Pelo teor dos artigos voltados à educação, vê-se claramente que
o Estado não se sentia responsável pela educação do povo, sua missão seria
supletiva. Constata-se, também, que a educação pública foi tratada na forma
assistencialista (art. 129 e 130). A maior preocupação da Constituição de 1937 foi
com o ensino técnico, profissional e industrial, colocando-o em primeiro plano e
estabelecendo que formar profissionais seria o objetivo da educação brasileira (Art
129). No Estado Novo, as discussões relativas à educação, próprias do período
anterior, entraram em ―hibernação", pois não havia clima para se tentar resgatar as
conquistas obtidas com a Constituição de 1934 (ROMANELLI, 1999). Houve um
sério retrocesso quando o trabalho intelectual foi separado do trabalho manual,
cabendo o primeiro às classes economicamente mais favorecidas e o segundo, na
forma de ensino profissional, às classes trabalhadoras. Quanto à educação infantil,
sequer houve menção.
Quando o Brasil entrou na II Guerra, ao lado dos aliados, sérias conseqüências
advieram para o governo de Getúlio Vargas, colocando em questão a conservação
do regime ditatorial sob o qual vivia o país. Com o fim da guerra, em 1945, também
findou o Estado Novo. A partir de então, iniciou-se um período de redemocratização,
que culminou com a promulgação da Constituição de 1946. Desta vez, a Carta
6
A Lei nº 38, de 4 de abril de 1935, reforçada pela Lei nº 136 de 14 de dezembro do mesmo ano, pelo Decretolei nº 431, de 18 de maio de 1938 e pelo decreto-lei nº 4.766 de 1 de outubro de 1942 que definia crimes
militares e contra a segurança do Estado. (Nota da autora).
22
Magna foi bastante avançada para a época: constituiu-se notadamente em um
ganho democrático, uma vitória da cidadania. Entretanto, tratou a educação de
forma genérica (Capítulo II), sem fazer nenhuma alusão ao atendimento de crianças
menores de seis anos. Entretanto, na vigência da Constituição de 1946, em 20 de
dezembro de 1961, foi aprovada a lei 4024, que fixou as Diretrizes e Bases da
Educação Nacional, e nela encontramos uma das primeiras menções feitas a
educação infantil:
Art. 23. A educação pré-primária destina-se aos menores até sete anos, e
será ministrada em escolas maternais ou jardins-de-infância.
Art. 24. As emprêsas que tenham a seu serviço mães de menores de sete
anos serão estimuladas a organizar e manter, por iniciativa própria ou em
cooperação com os poderes públicos, instituições de educação préprimária.
A Constituição de 1967, a sexta do Brasil e a quinta da República, teve como
finalidade legitimar o regime militar, iniciado em 1964 com caráter transitório. Tal
como a de 1937, centralizou o poder no Executivo. Quanto à educação, tratou-a nos
artigos 167 a 172, juntamente com a família e a cultura, sem fazer referência à
educação da primeira infância.
Em 1969, a Constituição de 1967 foi alterada substancialmente pela Emenda Nº 1,
baixada pela Junta Militar que assumiu o governo por causa do afastamento do
Presidente Costa e Silva, que adoeceu e acabou por falecer. A emenda aprofundou
a concentração de poder nas mãos do Executivo, então dominado pelo Exército. Por
causa da gravidade e profundidade das mudanças feitas, uma parte considerável
dos estudiosos do tema entende que, na verdade, ela foi uma nova Constituição. Os
que assim pensam justificam-se alegando que o novo texto alterou de tal modo o
texto anterior que principiou pela troca de nome que fizeram: Constituição da
República Federativa do Brasil, enquanto a de 1967 se chamava apenas
Constituição do Brasil.7
7
A Constituição de 1969, foi efetivamente “promulgada” pela junta militar, no uso de suas atribuições
conferidas pelo art. 3º do Ato Institucional nº 16, de 14 de outubro de 1969, combinado com o § 1º do art. 2º do
Ato Institucional nº 5, de 13 de dezembro de 1968. Um dado interessante a registrar, sobre a promulgação, é que
o art. 1º da Emenda determina as alterações na Constituição de 1967, iniciadas pela expressão “O Congresso
Nacional, invocando a proteção de Deus, decreta e promulga a seguinte Constituição da república Federativa do
Brasil”. (Nota da autora).
23
No que diz respeito à educação, a Emenda nº 1 (Constituição de 1969) não alterou o
já disposto na Constituição de 1967.
A atual "Constituição da República Federativa do Brasil", de 5 de outubro de 1988, a
"Constituição Cidadã", em seus artigos 205 a 214, diferentemente das anteriores,
declara a educação como fundamento da República8 , e a emenda de 2000 a coloca
dentre os direitos sociais:
o
Art. 6 São direitos sociais a educação, a saúde, o trabalho, a moradia, o
lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à
infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição.
(Redação dada pela Emenda Constitucional nº 26, de 2000)
Analisando a evolução do tratamento dado à educação pelas constituições que o
Brasil já possuiu, podemos afirmar que, a ―Constituição Cidadã‖ revela quanto a
sociedade brasileira progrediu em termos de visão educacional.
Não podemos
caracterizar como de pequena importância a educação ser tratada como direito
fundamental, objetivo fundamental e direito social da República Federativa do Brasil.
Para regulamentar o que constava no disposto constitucional sobre a Educação, foi
aprovada, em 1996, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Lei n.
9394/96). Esta lei integrou a Educação Infantil à Educação Básica, provocando
profundas transformações na forma do poder público tratar a primeira infância. Foi a
partir de então que a Educação Infantil no Brasil deixou de se vincular à política de
assistência social e passou a integrar a política nacional de educação (BARROS,
2008).
Não podemos negar, todavia, que apesar dos avanços realizados, a concretização
dos dispositivos constitucionais ainda está muito aquém do que se depreende do
espírito da lei. Uma possível explicação para isso seria a implicação de
investimentos, os quais estão sujeitos a decisões políticas.
8
Cf. o artigo 1°, inciso III, que dispõe sobre a "dignidade da pessoa humana" e,o artigo 3°, inciso III, que dispõe
sobre o objetivo fundamental a ser alcançado pela República Federativa do Brasil: "erradicar a pobreza e a
marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais". A "Constituição Cidadã" foi mais além ao
dispor no artigo 6° que: "São direitos sociais a educação, a saúde, o trabalho, o lazer, a segurança, a
previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma da lei".
(Nota da autora).
24
Como nos coloca Cury (1998), os direitos sociais são dispendiosos, exigem
previsões orçamentárias que dependem da eleição das prioridades nacionais.
Sem discordar da visão de Barros, entendemos que ao menos no plano jurídico a
sociedade brasileira tem avançado quanto à concepção que possui de infância,
especialmente quando coloca a criança como um ser de direitos. A Lei nº 8.069, de
13 de julho de 1990, que dispõe sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente
(ECA), é uma exemplificação do que acabamos de afirmar. A fim de esclarecer
melhor essa questão, dedicaremos o próximo item à referida lei.
2.2. A EDUCAÇÃO INFANTIL NO ESTATUTO DA CRIANÇA E DO
ADOLESCENTE
Quando em 1990 o ECA foi elaborado, o povo brasileiro estava vivendo um período
de euforia, pois fizera duas importantes conquistas: primeiramente a abertura política
após vinte anos de ditadura militar, e em segundo lugar a elaboração de uma nova
Constituição, que devido ao seu alto espírito democrático ficou conhecida como a
Constituição Cidadã. Paralelamente a tais fatos, a ONU promoveu a Convenção das
Nações Unidas sobre os Direitos da Criança (1990) 9 . Podemos dizer que esse
conjunto de fatores foi decisivo para que o ECA se caracterizasse, no campo legal,
como um dos documentos mais avançados do mundo no que diz respeito à proteção
aos direitos da infância e da adolescência.
Ao analisarmos o ECA, fica-nos claro o quanto a Convenção da ONU o influenciou:
os legisladores, até por causa da adesão do Brasil à Convenção, incorporaram
muitas das idéias presentes em seus artigos, como por exemplo a obrigação do
Estado respeitar os direitos da criança sem fazer nenhum tipo de distinção seja por
causa de raça, cor, sexo, idioma, crença, posição econômica, deficiências físicas, ou
qualquer outra condição da criança, e de tomar todas as providências necessárias
para assegurar a proteção da criança contra qualquer forma de discriminação (art.
2º).
9
Convenção sobre os Direitos da Criança (CDC): http://www.mj.gov.br/sedh/dca/convdir.htm.
25
Quanto à educação infantil, o ECA constitui-se num verdadeiro marco histórico,
mesmo que no campo real boa parte da população desconheça o que ele de fato
aponta e que seus conceitos ainda não sejam adequadamente operacionalizados.
De qualquer forma, a vitória para os pequenos é que em seu texto está estabelecido
ser dever do poder público assegurar o direito das crianças e adolescentes à
educação (art.4º), incluindo nesse direito o atendimento em creches e pré-escolas
(art. 54).
Sintetizando os progressos legais trazidos pelo ECA, podemos citar que nele a
criança é tratada como cidadã e, por isso, suas peculiaridades tem que ser
respeitadas; ela precisa ser admitida como um ser humano em desenvolvimento,
que apresenta características e necessidades específicas. Nessas condições, é
possuidora de um conjunto de direitos, dentre os quais se destacam o de afeto, o de
brincar, o de conhecer e o de sonhar. Em suma, ela tem o direito de ser plenamente
criança.
2.3. A EDUCAÇÃO INFANTIL NA LEI DE DIRETRIZES E BASES DA
EDUCAÇÃO NACIONAL
Como vimos, foi graças à Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDBEN),
Lei 9.394/96, que pela primeira vez a educação infantil foi reconhecida como parte
integrante da educação básica (art. 21), cujas finalidades consistem no
desenvolvimento do educando, assegurando-lhe a formação comum indispensável
para o exercício da cidadania e em fornecer-lhe meios para progredir no trabalho e
em estudos posteriores (art.22).
Essa mesma lei, especifica a finalidade na educação infantil: promover o
desenvolvimento integral da criança de zero a seis anos de idade, em seus aspectos
físico, psicológico, intelectual e social, complementando a ação da família e da
comunidade (art. 29). Nesse ponto, estabelece que essa modalidade de educação
será oferecida em duas etapas: a) para crianças até três anos de idade em creches
26
ou entidades equivalentes; b) para crianças de quatro a seis anos de idade em préescolas (art. 30).
Quando os legisladores colocaram a educação infantil como primeira etapa da
educação básica (LDBEN, art. 22), mostraram estar cientes de que a educação se
inicia nos primeiros anos de vida. A educação infantil foi realçada na LDBEN como
nunca fora nas legislações anteriores.
A LDBEN também estabeleceu que na organização de seus sistemas de ensino a
União, os Estados e os Municípios deverão cooperar entre si. Ao enunciar a
distribuição de competências, delegou aos municípios a responsabilidade prioritária
de ofertar a educação infantil, mas com apoio financeiro e técnico dos governos
estaduais e federal (Capítulo VI).
Ao tratar dos profissionais para a educação infantil, a LDBEN colocou que deverão
ser formados em cursos de licenciatura (graduação plena), mas que poderão ser
admitidas como formação mínima as oferecidas em nível médio, na modalidade
Normal.(art. 62).
Uma outra preocupação que a LDBEN demonstrou ao tratar da educação infantil foi
a de determinar prazos para que as creches e as pré-escolas se integrassem aos
sistemas de ensinos: ―as creches e pré – escolas existentes ou que venham a ser
criadas, no prazo de três anos, a contar da publicação desta lei, integrar–se–ão ao
respectivo sistema de ensino‖ (art. 89).
Após a aprovação da LDBEN, foram elaborados diversos documentos nacionais
destinados a orientar as ações relativas à Educação Infantil. Embora haja vários
documentos importantes para a organização e para o devido direcionamento da
Educação Infantil pelos órgãos responsáveis, abordaremos nesta monografia
apenas o Referencial Curricular Nacional para a Educação Infantil (RCNEI) por julgálo representativo dos demais.
27
2.4. A EDUCAÇÃO INFANTIL NO REFERENCIAL CURRICULAR
NACIONAL PARA A EDUCAÇÃO INFANTIL (RCNEI)
Com o escopo de dar vida às determinações legais, a Secretaria de Educação
Fundamental, órgão integrante do Ministério da Educação e do Desporto (MEC)10
publicou o documento ―Referencial Curricular Nacional para a Educação Infantil‖
(RCNEI), que integra o conjunto dos Parâmetros Curriculares Nacionais. Lançado
em 1998, dois anos após a aprovação da nova LDBEN (1996), o material objetivou
auxiliar os trabalhadores da educação que lidam com as crianças de zero a seis
anos a realizarem de modo adequado a sua tarefa educativa. Essa iniciativa
mostrou-se necessária porque o atendimento institucional a essa faixa etária estava
ocorrendo das formas mais variadas e muitas vezes divergentes. Uma das razões
para esse fato estava nas diversas compreensões de sua finalidade social.
Encontramos nesse documento o que a legislação atual entende como adequado
para esse nível de ensino:
Considerando a fase transitória pela qual passam creches e pré-escolas na
busca por uma ação integrada que incorpore às atividades educativas os
cuidados essenciais das crianças e suas brincadeiras, o Referencial
pretende apontar metas de qualidade que contribuam para que as crianças
tenham um desenvolvimento integral de suas identidades, capazes de
crescerem como cidadãos cujos direitos à infância são reconhecidos. Visa,
também, contribuir para que possa realizar, nas instituições, o objetivo
socializador dessa etapa educacional, em ambientes que propiciem o
acesso e a ampliação, pelas crianças, dos conhecimentos da realidade
social e cultural. (RCNEI, 1998, Carta do Ministro Paulo Renato Souza).
[grifo do próprio texto].
De acordo com o que apresenta o RCNEI (1998), cabe à educação infantil o
CUIDAR da primeira infância em espaço institucionalizado, atendendo-a no que se
refere à nutrição, à higiene e ao brincar. Paralelamente, também cabe a ela o
EDUCAR, isto é, atentar para as necessidades dos pequenos, oferecendo-lhes
atividades voltadas ao seu desenvolvimento integral.
Do ponto de vista dos técnicos que elaboraram o RCNEI (1998), alfabetizar a criança
não é função da educação infantil, pois nessa fase do desenvolvimento as crianças
10
Apesar de o nome oficial do ministério em apreço ser Ministério da Educação e do Desporto, ele continua
sendo designado pela sigla MEC, historicamente consagrada. (Nota da autora).
28
ainda não possuem a maturidade neural necessária. Se houver exceções, quando
ocorrerem alfabetizações espontâneas, não cabe à escola dificultar o processo, mas
contribuir naquilo que for possível.
Para o RCNEI (1998), o objetivo da educação em escolas de educação infantil
consiste em dar suporte às crianças para que elas possam ampliar algumas de suas
capacidades, entre elas a de se relacionar socialmente com adultos e com outras
crianças, a de brincar, a de se expressar de diferentes modos, utilizando diferentes
linguagens. Também é importante ajudá-la a conhecer seu próprio corpo e o mundo
que a rodeia.
Além do ―cuidar‖ e do ―educar‖, o RCNEI (1998) nos coloca que a educação infantil
também deve estimular as várias áreas de desenvolvimento da criança, instigando
sua curiosidade, o que só ocorrerá se ela se sentir feliz e acolhida no espaço
escolar.
2. 5. CONCLUSÃO
Ao término deste capítulo, constatamos que a atenção para com a primeira infância
cresceu gradativamente e só aos poucos surgiram nos documentos legais
referências às crianças menores de sete anos. Entendemos que o momento atual se
mostra bastante oportuno para o debate e para ações em políticas públicas dirigidas
à primeira infância. Identificamos uma tendência nacional em tratar de assuntos
relacionados à criança, percebendo-a como um sujeito de direitos. Todos esses
avanços são frutos da Constituição de 1988, cujo mérito se encontra em admitir que
educação infantil é direito público subjetivo. No próximo capítulo, veremos a história
da educação infantil, no mundo e no Brasil.
29
CAPÍTULO 3
A EDUCAÇÃO INFANTIL: SUA HISTÓRIA NO MUNDO E NO BRASIL
Após havermos apresentado e discutido, as finalidades e os objetivos da Educação
Infantil no Brasil segundo a legislação vigente, propomo-nos agora resgatar
sucintamente alguns marcos da história do atendimento educacional aos menores
de seis anos no mundo e de forma particular em nosso país. Por se tratar de um
tema extremamente vasto e complexo, abordaremos apenas os tópicos que nos
parecem fundamentais para que possamos compreender a aprendizagem da
cidadania na educação infantil a partir da ótica psicopedagógica.
3.1. A EDUCAÇÃO DA INFÂNCIA NA IDADE MÉDIA
A maioria dos historiadores classifica como Idade Média o período da história
européia que abrange o tempo compreendido entre a queda do Império Romano do
Ocidente (476 d. C.) e a tomada de Constantinopla pelos turcos (1453 d. C.), quando
o capitalismo se afirmou sobre o modo de produção feudal. Nessa época, o homem
regia seu mundo pela religião, era supersticioso e influenciado pela astrologia,
lendas e mitos. Devido a essas características, os medievais dividiram a vida
humana em sete fases, correspondentes aos sete planetas até então conhecidos
(ARIÈS, 1981). As duas primeiras, a ―infância‖ (que ia do nascimento aos sete anos)
e a ―pueritia‖ (dos sete aos catorze anos) se aproximavam da classificação de
infância que hoje encontramos no ECA11.
A primeira fase recebia pouca atenção por parte dos adultos. A alta taxa de
mortalidade infantil era uma das razões para que tivessem esse comportamento. De
tão comum, a morte nos primeiros anos de vida era vista como ―fenômeno natural‖,
fazendo crer que a existência até os seis ou sete anos era sem valor.
11
De acordo com o Estatuto da Criança e do Adolescente, Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990, Art. 2º,
considera-se criança a pessoa até doze anos de idade incompletos, e adolescente aquela entre doze e dezoito anos
de idade. Disponível em: http://www.eca.org.br/eca.htm. Acesso em 20.dez.2008.
30
Era para evitar o sofrimento da perda que procuravam não se ligar emocionalmente
aos pequenos. Entretanto, as mortes não eram desígnio dos astros, quase sempre
se originavam da escassa noção de higiene que possuíam. Era a ausência de
asseio o que freqüentemente levava as pessoas a adoecerem, muitas vezes
gravemente. As crianças eram as maiores vítimas (ARIÈS, 1981).
Levando-se em conta a pouca atenção que davam às crianças, não é de se
estranhar que não conseguissem percebê-las como seres com características
psicossociais específicas, mas como ―pequenos adultos‖. Nessa condição, desde
muito cedo os pequeninos partilhavam com os mais velhos tanto as tarefas quanto
as distrações e demais atividades (ARIÈS, 1981).
Durante a toda a Idade Média não houve uma preocupação maior com a formação
das crianças de zero a seis anos, menos ainda com escolas ou locais destinados à
educação infantil. Toda a atenção com essa faixa etária era dada pela família, fosse
pelas próprias mães, fosse por mulheres contratadas para esse fim. Não é que não
existissem instituições educativas na Idade Média. Como em tempos anteriores, as
crianças com idade superior a 7 anos iam à escola, geralmente próxima à igreja ou a
um mosteiro. Segundo Régine Pernoud (1944), desde 1179, com o III Concílio de
Latrão, educar as crianças era uma tarefa obrigatória para os católicos romanos. Por
isso, além das escolas mantidas pela Igreja, existiam as patrocinadas por senhores
feudais, como a do vilarejo de Rosny, às margens do rio Sena, financiada pelo
senhor Guy V. Mauvoisin (início do século XIII). Uma terceira possibilidade era as
escolas particulares, sustentadas pelos moradores de uma dada propriedade.
Os meninos estudavam em espaços separados das meninas, cujas escolas eram
em menor número, mas sem dever em qualidade para as masculinas. Praticamente
não havia diferenças na educação das crianças, fossem elas ricas ou pobres,
meninos ou meninas (PERNOUD, 1944). Entretanto, de acordo com o III Concílio de
Latrão, apenas as crianças com mais de sete anos podiam freqüentar as escolas,
idade admitida como a ―idade da razão‖. Nessas condições, não havia atendimento
formalizado para as crianças de zero a seis anos, sendo sua educação realizada em
31
casa, pelas mães, parentas próximas ou amas, situação que sofreu profundas
transformações na Idade Moderna.
3.2. A EDUCAÇÃO DA INFÂNCIA NA IDADE MODERNA
Embora a passagem de um período histórico para outro não se dê de forma abrupta,
os historiadores adotaram a data de 1453 d.C. como o marco da Idade Moderna.
Nesse ano, os turcos otomanos tomaram Constantinopla (hoje, Istambul, capital da
Turquia), levando ao fim o império bizantino. Por causa das profundas
transformações socioeconômicas que esse fato provocou no continente europeu, os
estudiosos resolveram tomá-lo como princípio de uma nova época, cujo fim se deu
com a Revolução Francesa (1789 d.C.), quando o mundo ocidental sofreu intensas
modificações em seus fundamentos.
Enquanto na Idade Média a maioria das pessoas vivia em zona rural, na Idade
Moderna as cidades cresceram e surgiram as fábricas, provocando a migração do
homem do campo para as cidades (LUCAS, 2005). Nesse mundo que despontava,
as
mulheres
foram
admitidas
como
operárias
nas
indústrias
nascentes.
Diferentemente do tempo em que eram camponesas, suas lidas diárias ocorriam
longe do lar e não tinham como cuidar de seus filhos. Esse fato levou ao surgimento
das creches, locais destinados a prestar assistência às crianças pequenas enquanto
suas mães trabalhavam. Didonet (2001) atribui o advento dessa instituição social ao
trinômio: mulher-trabalho-criança. Foi por causa da entrada das mulheres das
camadas sociais mais baixas no mercado de trabalho capitalista que as crianças de
zero a seis anos se tornaram alvo de um tipo de atenção que não existia no período
histórico anterior (Áries, 1981).
A partir do século XVII e particularmente no século XVIII, aumentou o interesse da
burguesia e dos nobres pela figura infantil. Se na Idade Média as crianças passavam
despercebidas, na Idade Moderna tornaram-se modelos preferidos de muitos artistas
ilustres (ARIÈS, 1973, p. 38). As mudanças na forma de se conceber a infância
podem ser visualizadas por meio das vestimentas. O hábito de se vestir as crianças
com roupas semelhantes às dos adultos permaneceu até o século XVII. A partir de
32
então, os pequenos passaram a usar vestidos, similares a camisolinhas, quer
fossem meninos ou meninas. Em geral, era a cor das fitas que prendiam as vestes à
cintura que diferenciava os sexos. Esse costume permaneceu até o final do século
XIX (LUCAS, 2005).
Entretanto, como bem coloca Lucas (2005), é importante nos lembrar de que as
alterações acima descritas não foram universais: parte delas tiveram lugar em
tempos, espaços geográficos e grupos sociais diferentes. Algumas só ocorreram no
âmbito da burguesia. Contudo, embora não haja pinturas das crianças das camadas
sociais mais baixas, é possível obtermos informações bastante válidas a respeito de
suas existência se recorrermos aos documentos da época, como os relatórios de
inspetores de fábricas e de comissões de saúde (KUHLMANN Jr., 2001).
Nos inícios da Idade Moderna, as crianças do povo levavam vida parecida com as
dos tempos medievais: assim que adquiriam alguma condição para trabalhar, eram
absorvidas pelas manufaturas, que empregou as mulheres e as crianças para
executarem as tarefas consideradas mais fáceis (OLIVEIRA, 1989). Entretanto, com
a complexificação da indústria, a criança ficou inapta para as atividades que
surgiram; ela só seria útil quando adulta, mas para isso precisaria ser preparada a
fim de se tornar um bom operário, ou seja, ―precisava ser educada e freqüentar uma
escola‖ (LUCAS, 2005, p. 82).
As novas exigências sociais suscitaram investigações a respeito dos processos de
ensino-aprendizagem e da psicologia infantil. Foi assim que no século XVII, o Pastor
protestante João Amós Comênio (1592-1670) produziu a obra ―Didacta Magna‖,
historicamente considerada a pioneira sobre Didática (FURTADO; BORGES, 2008).
Após Comênio, outros importantes pensadores voltaram-se à criança, dentre eles
Jean Jacques Rousseau (1712-1778), que se destacou por propor uma nova
concepção de ensino, dirigido às necessidades e aos interesses infantis.
Infelizmente, Rousseau não conseguiu pôr em prática suas convicções, foi Henrique
Pestalozzi (1746-1827), pedagogo suíço que dedicou sua existência às crianças
pobres, quem deu vida ao ideário rousseauniano. Pestalozzi foi um defensor da
educação pública, dizendo ser direito absoluto de toda criança poder desenvolver
33
plenamente o potencial que recebera de Deus. Graças ao seu empenho e
entusiasmo, conseguiu despertar o interesse de governantes pelos menores
socialmente desfavorecidos (FURTADO; BORGES, 2008, p. 24).
3.3. A EDUCAÇÃO DA INFÂNCIA NA IDADE CONTEMPORÂNEA
Após a Revolução Francesa (1789 d.C.), o mundo ocidental adquiriu novas
características sócio-econômico-culturais, por isso os estudiosos tomaram esse
evento como início de um novo período: a Idade Contemporânea. Trata-se de um
tempo histórico em aberto, que engloba inclusive os dias atuais.
A partir do final do século XVIII, o capitalismo se desenvolveu, a Ciência ganhou
espaço na sociedade a ponto de levá-la a crer na existência de um ―progresso
ininterrupto‖. Quem deu sustentação teórica para essa crença foi o Iluminismo —
corrente filosófica que exaltava a razão. Graças ao Iluminismo, a Europa foi invadida
por um sentimento de que a Ciência poderia ser a resposta para todas as questões
com as quais o homem se deparasse. Nesse contexto, os pensamentos de
Comênio, Rousseau e Pestalozzi encontraram espaço e serviram de base para o
trabalho de vários pedagogos da Idade Contemporânea, dentre eles o alemão
Johann Friedrich Herbart (1766-1841). Suas teses, além de conquistar um grande
número de adeptos à época em que viveu, continuam influenciando muitos mestres
até hoje, inclusive no Brasil, apesar de se apresentarem ultrapassadas.
Além de Herbart, um outro alemão se destacou no cenário educacional da
contemporaneidade: Fedrich Froebel (1782 – 1852). Após trabalhar com Pestalozzi,
em 1837, criou o primeiro jardim de infância (pré-escola) da história. As idéias de
atividade e liberdade constituíram o cerne de sua pedagogia (FURTADO; BORGES,
2008). Muito do que se faz hoje na Pré-escola devemos a ele. Entre as convicções
que possuía, está a de que as brincadeiras são o primeiro recurso para a
aprendizagem, que se constituem num modo de a criança representar o mundo e
compreender os papéis sociais. Froebel foi um dos primeiros pedagogos a falar em
auto-educação. No século XX, graças ao movimento da Escola Nova, outros
34
educadores se destacaram como contribuidores da educação infantil, como Maria
Montessori (1870-1952) e Célestin Freinet (1896-1966).
3.4 A EDUCAÇÃO DA INFÂNCIA NO BRASIL
A fim de compreendermos a questão do atendimento à infância em nosso país,
efetuaremos um rápido resgate da educação brasileira, trazendo à consideração os
tópicos mais importantes de sua história.
3.4.1 A educação da infância no período colonial e no Império
Resgatemos, inicialmente, alguns aspectos do trabalho realizado pelos jesuítas,
durante o período colonial (séculos XVI ao XVIII), visto que a importância que a
Companhia de Jesus teve na constituição do povo brasileiro é imensurável. Segundo
João Mendes de Almeida 12 , o Brasil deve aos jesuítas muito mais do que aos
donatários e ao governo de Portugal (ALMEIDA, 1886).
Liderados pelo padre Manuel da Nóbrega, os inacianos chegaram ao Brasil em
1549, com o primeiro governador-geral, Tomé de Souza. Logo construíram em
Salvador uma escola elementar, o Colégio dos Meninos de Jesus, que se
transformou no núcleo mais ativo da catequese e da educação das crianças
brasileiras (BITTAR; FERREIRA Jr., 2000). No ano seguinte, 1550, fundaram em
São Vicente, no litoral paulista, uma escola primária. Após quatro anos, em 25 de
janeiro de 1554, inauguraram o colégio da Vila de Piratininga, considerado o marco
da fundação da cidade de São Paulo (PEIXOTO, 1944).
Segundo Bittar e Ferreira Jr. (2000), a atuação dos jesuítas junto às crianças
brasileiras do século XVI ainda é um tema pouco explorado. Entretanto, sabe-se que
lhes impuseram o modelo cultural europeu, dentro dos princípios católicos.
12
João Mendes de Almeida (1831-1898), importante jurista, político, jornalista e abolicionista brasileiro, líder
do Partido Conservador de 1859 a 1878, foi o principal redator da Lei do Ventre Livre, a qual defendeu através
da imprensa. (Nota da autora).
35
Centralizaram suas ações na catequese e na instrução dos curumins,
13
buscando,
por meio deles, aproximar os adultos do cristianismo. Porém, a atenção educacional
dos jesuítas não se restringiu às crianças de mais de sete anos: também atenderam
as de zero a seis anos, prestando auxílio aos órfãos ou aos que haviam sido
abandonados. Em l739, inauguraram a Casa dos Expostos, na cidade do Rio de
Janeiro, para recolher as crianças rejeitadas logo ao nascer (DREWINSKI, 2001).
Em 1759, foram expulsos pelo Marquês de Pombal, criando na colônia um enorme
vazio educacional.
Sebastião José de Carvalho e Melo (1699 – 1782), o Marquês de Pombal, foi o real
dirigente de Portugal durante o reinado de D. José I, que durou de 1750 a 1777.
Homem de grandes ambições, encontrou nos jesuítas um forte obstáculo aos seus
planos, particularmente à implantação nas escolas da nova filosofia iluminista. Em
1759,
baniu-os
de
Portugal e
de
suas
colônias,
tornando
a
educação
responsabilidade do Estado. Como desde a primeira metade do século XVI o ensino
no Brasil se encontrava aos cuidados da Companhia de Jesus, sua expulsão
resultou em verdadeiro abandono educacional, que não foi preenchido durante
décadas (MACIEL; SHIGUNOV NETO, 2006).
Para o Brasil, foi somente em 1808, com a chegada da Família Real, que a
preocupação com a educação reapareceu, mas o foco foi o ensino superior. O
Príncipe Regente estava preocupado com a formação profissional, visando suprir as
necessidades imediatas da corte. Dessa forma, o ensino primário e o atendimento às
crianças entre zero e seis permaneceram no abandono. Após o retorno da Corte a
Portugal, em 1821, e a proclamação da Independência, em 1822, os Constituintes
voltaram-se, mesmo que timidamente, para a educação das crianças, mas quanto ao
atendimento aos menores de seis anos nada havia a não ser obras assistencialistas
que, a partir de 1870, passaram a aliar filantropia com pediatria; as ações se
voltaram mais para a saúde dos pequenos do que para a educação em si
(ROMANELLI, 1999). Nessa época, eram grandes as preocupações médicas por
causa das altas taxas de mortalidade infantil (LUZ, 2006).
13
“Curumim” é uma palavra de origem tupi, e designa, de modo geral, as crianças indígenas. (Nota da autora).
36
3. 4. 2 A educação infantil no período republicano (1889 a 1964)
Os modelos de instituições destinadas à criança tiveram origem na Europa do final
do século XIX e se espalharam pelo mundo. No caso brasileiro, durante a Primeira
República (1898 – 1930) foi o modelo filantrópico, herdado do Império, o que
prevaleceu. Somente após o final da Primeira Guerra Mundial (1914 – 1918) é que o
Brasil começou a se repensar nos vários setores sociais, dentre os quais o
educacional (MACIEL; SHIGUNOV NETO, 2006).
A partir da década de 30, continuaram presentes as medidas compensatórias e
assistencialistas, com intensificação das contribuições da área da saúde (DIDONET,
2001). Nessa época, uma geração de educadores se engajou a favor da educação
pública e, sustentada pelos ideais da Escola Nova, divulgou o Manifesto dos
Pioneiros em 1932, documento que sintetizou os principais pontos de um movimento
que se tornou histórico (MACIEL; SHIGUNOV NETO, 2006).
A Constituição promulgada em 1934 registrou progressos significativos no campo da
educação, porém, em 1937, instaurou-se o Estado Novo que outorgou ao país uma
Constituição autoritária e reacionária. Em 1940, surgiram as primeiras políticas de
Estado para a infância e vários documentos legais foram publicados14. Quando, em
1945, caiu o Estado Novo, os antigos ideais foram retomados, surgindo o Projeto de
Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, que foi remetido ao Congresso
Nacional em 1948, mas que somente foi aprovado em 1961: a Lei nº 4.024. Durante
os treze anos de debates que precederam a aprovação dessa lei, aconteceram
muitos movimentos em prol da escola pública, universal e gratuita, mas novamente
fatos históricos interromperam esses movimentos: o Golpe Militar de 1964.
14
Cria-se o Departamento Nacional da Criança (Decreto-lei nº 2.024/1940), o Serviço de Assistência ao Menor
(SAM – Decreto-Lei nº 3.799/1941) e a Legião Brasileira de Assistência (LBA, 1942).
37
3.4.3 Os rumos da educação infantil na ditadura militar
Durante o período da Ditadura Militar (1964 – 1985), ocorreram vários fatos
relevantes para a educação nacional, dentre eles a aprovação das leis 5.540/68 e
5.692/71. A primeira, reorganizou o ensino superior, e a segunda, o ensino básico
(na época denominado ensino de 1º e 2º graus). Nesse período, agências de outros
países colaboraram com projetos e programas do governo brasileiro no campo
social, particularmente na área da educação (DREWINSKI, 2001). Organizações
nacionais e internacionais investiram no atendimento e proteção à infância, dentre
elas destacaram-se a Legião Brasileira de Assistência (LBA) 15 e o Fundo das
Nações Unidas para a Infância (UNICEF)16.
A LBA instituiu o Projeto Casulo (1977) para atender a população de baixa renda;
seu foco foi a oferta de vagas em creches. Esse projeto surgiu para acalmar
manifestações que ocorriam nas cidades industrializadas devido à falta de atenção
governamental aos menores de seis anos. Paralelamente ao serviço prestado à
infância, o Projeto Casulo executou um programa de orientação aos pais, uma vez
que a migração dos trabalhadores rurais para os centros urbanos estava causando
desorganização e desintegração nas famílias. As ações da LBA resultaram em
significativa ampliação do atendimento às crianças de zero a três anos em todo o
país17 (KUHLMANN, 2000). Quanto ao UNICEF, foi a pobreza existente no território
nacional que o levou a investir na infância brasileira (DREWINSKI, 2001).
Outro fato importante para a educação infantil foi a criação da Coordenação de
Educação Pré-Escolar (COEPRE) pelo Ministério da Educação, em 1975. Pela
primeira vez na história, esse nível de escolarização foi lembrado nos Planos
15
A Legião Brasileira de Assistência (LBA) foi um órgão brasileiro fundado em 1942 pela então primeira-dama
Darcy Vargas, com o objetivo de ajudar as famílias dos soldados enviados à Segunda Guerra Mundial. (Nota da
autora).
16
O Fundo das Nações Unidas para a Infância (em inglês United Nations Children's Fund - UNICEF) é uma
agência das Nações Unidas que tem como objetivo promover a defesa dos direitos das crianças, ajudar a dar
resposta às suas necessidades básicas e contribuir para o seu pleno desenvolvimento. (Nota da autora).
17
Quando a LBA foi extinta, em 1995, a Secretaria de Assistência Social, hoje Ministério do Desenvolvimento
Social e Combate à Fome, assumiu o apoio às creches (Nota da autora).
38
Setoriais de Educação e Cultura, períodos 1975-79 e 1980-85. O governo adotou
essas medidas acreditando que o acolhimento dos pré-escolares em instituições
educativas poderia contribuir para a diminuição das taxas de reprovação e evasão
no ensino de primeiro grau (KUHLMANN, 2001).
Não podemos deixar de pontuar o equívoco que os técnicos dessa época
cometeram quanto ao objetivo e ao caráter da educação infantil. Não a trataram
como algo necessário em si, nem a perceberam como um direito das crianças.
Tomaram-na como um espaço-tempo para preparar os pequenos com vistas ao
êxito no primeiro grau. Na perspectiva desses especialistas, o fracasso escolar
durante o primeiro grau seria causado pela falta de preparo das crianças,
especialmente as das classes populares, porque possuíam uma ―cultura pobre‖
(DREWINSKI, 2001).
Apesar dos enganos cometidos, o aspecto positivo pode ser encontrado na
expansão do atendimento da primeira infância em instituições governamentais, dos
três níveis do poder. O governo federal investiu em creches, os estaduais no ensino
pré-escolar, e os municipais em creches e pré-escolas, mas conveniando-se com
entidades filantrópicas. As creches, tanto no nível estadual quanto no municipal,
acolheram as crianças mais pobres na forma assistencialista, e as pré-escolas as
crianças de classe média, mas com caráter de escolarização. Porém, a despeito
desses progressos numéricos, a política educacional dos anos 1970/1980 manteve
as características dos tempos anteriores: falta de delineamento claro de metas;
ações fragmentadas e superpostas, por vezes em parceria com o setor privado, mas
sem a devida formalização legal (CASTRO, 1994).
Como conseqüência da somatória de fatos ocorridos na primeira metade da década
de 80, a Ditadura Militar se encerrou (1985) e, após duas décadas, o Brasil teve
novamente um presidente civil. Essa conquista se deu numa eleição indireta, em que
José Sarney de Araújo Costa concorreu à Vice-presidência na chapa de Tancredo
Neves. Contudo, acometido de mal súbito, Tancredo morreu às vésperas da posse
e, por razões de interesse nacional, Sarney foi confirmado no cargo de Presidente
da República.
39
Sarney ficou famoso por conduzir o processo de redemocratização do país. Em
1986, houve eleições para a Assembléia Nacional Constituinte, que elaborou uma
nova Constituição — a ―Constituição Cidadã‖, cuja promulgação se deu em 05 de
outubro de 1988. O reconhecimento do direito da criança de zero a seis anos à
educação encontra-se entre as várias conquistas do povo brasileiras por meio dessa
Constituição, que também atribuiu ao Estado o dever de garantir esse direito por
meio da oferta de creches e pré-escolas (art. 208).
3.4.4 A educação infantil na vigência da Constituição Cidadã
Como pudemos constatar, a década de 1980 foi bastante rica em transformações
sociais e trouxe muitos avanços significativos no campo educacional. Ampliaram-se
os debates sobre os direitos da criança e uma política para a infância começou a ser
esboçada (CRAIDY, 1994). Embora substancialmente o atendimento aos pequenos
não tenha sofrido grandes alterações, as discussões que ocorreram em diferentes
espaços da sociedade civil possibilitaram que se reconhecesse o tempo da infância
como possuindo valor em si e que a criança fosse admitida como um sujeito de
direitos. Essa nova percepção se afirmou no ordenamento jurídico (LUZ, 2006).
Tivemos oportunidade de verificar no capítulo II desta monografia que as alterações
ocasionadas pela Constituição de 1988 foram ratificadas pelos documentos legais
que a seguiram, tais como o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) – Lei nº
8.069/1990; a Lei Orgânica da Assistência Social (LOAS) – Lei Federal nº
8.742/1993; a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDBEN) – Lei nº
9.394/1996.
Também há que se destacar a mudança de visão quanto à formação dos
profissionais destinados a trabalhar na educação infantil. Desde a aprovação da
LDBEN, a preparação mínima exigida é a de nível médio, na modalidade Normal (Lei
9394/96, art. 62).
40
Entre problemas, desafios e avanços, fato relevante foi o Instituto Brasileiro de
Geografia e Estatística (IBGE) haver incluído, a partir de 1995, a creche e a préescola na Pesquisa Nacional por Amostras de Domicílio – PNAD. Os dados obtidos
com essa investigação vêm contribuindo com informações mais precisas sobre o
atendimento à educação infantil em todo o país e, conseqüentemente, favorecendo
encaminhamentos mais adequados às necessidades existentes (BARRETO, 1998).
De um certo modo, e empregando uma expressão popular, podemos dizer que o
atendimento à primeira infância tem evoluído ―aos trancos e barrancos‖. O que
empiricamente se observa é que os investimentos técnicos e financeiros geralmente
são insuficientes; essa situação tem sido mais grave no que diz respeito às creches.
Apesar do que reza a lei, muitas creches permanecem no nível do cuidado, sem
levar em conta a dimensão pedagógica; as crianças ficam entregues a educadores
leigos, com baixa escolarização e remuneração. Quanto às pré-escolas, em boa
parte os equipamentos continuam inadequados aos fins que se prestam, faltam
recursos materiais e pedagógicos.
Para concluir este item, abordaremos a decisão do Conselho Nacional de Educação
(CNE) de incluir no Ensino Fundamental as crianças de seis anos (RESOLUÇÃO nº
03, de 3 de agosto de 2005). Com essa iniciativa, as crianças dessa faixa etária
passaram a integrar o ensino obrigatório, que foi expandido para nove anos. A
remodelação da educação infantil pode ser resumida no seguinte: a creche continua
a receber os pequenos de zero a três anos, mas a pré-escola reduziu o atendimento
para crianças de quatro e cinco anos.
Outro ponto que merece destaque é o da expansão de vagas nas escolas de
educação infantil a partir dos anos 80. Mesmo tendo sido uma ampliação não
uniforme, atingiu as crianças de baixa renda. A desigualdade na distribuição das
vagas favoreceu a região Sudeste e, percentualmente, acolheu mais as crianças de
classe média (MACHADO, 1994). Uma questão preocupante é que muitos dos
atendimentos à população mais pobre se deram em instituições particulares, não
registradas junto ao poder público e caracterizadas pela carência de recursos físicos
adequados, bem como de profissionais devidamente habilitados (Idem, ibidem).
41
Entre problemas, desafios e avanços, fato relevante foi o Instituto Brasileiro de
Geografia e Estatística (IBGE) haver incluído, a partir de 1995, a creche e a préescola na Pesquisa Nacional por Amostras de Domicílio – PNAD. Os dados obtidos
com essa investigação vêm contribuindo com informações mais precisas sobre o
atendimento à educação infantil em todo o país e, conseqüentemente, favorecendo
encaminhamentos mais adequados às necessidades existentes (BARRETO, 1998).
De um certo modo, e empregando uma expressão popular, podemos dizer que o
atendimento à primeira infância tem evoluído ―aos trancos e barrancos‖. O que
empiricamente se observa é que os investimentos técnicos e financeiros geralmente
são insuficientes; essa situação tem sido mais grave no que diz respeito às creches.
Apesar do que reza a lei, muitas creches permanecem no nível do cuidado, sem
levar em conta a dimensão pedagógica; as crianças ficam entregues a educadores
leigos, com baixa escolarização e remuneração. Quanto às pré-escolas, em boa
parte os equipamentos continuam inadequados aos fins que se prestam, faltam
recursos materiais e pedagógicos.
Para concluir este item, abordaremos a decisão do Conselho Nacional de Educação
(CNE) de incluir no Ensino Fundamental as crianças de seis anos (RESOLUÇÃO nº
03, de 3 de agosto de 2005). Com essa iniciativa, as crianças dessa faixa etária
passaram a integrar o ensino obrigatório, que foi expandido para nove anos. A
remodelação da educação infantil pode ser resumida no seguinte: a creche continua
a receber os pequenos de zero a três anos, mas a pré-escola reduziu o atendimento
para crianças de quatro e cinco anos.
Em 6 de fevereiro de 2006, a Lei nº 11.274 alterou a LDBEN (LEI 9394/96) em seus
artigos 29, 30, 32 e 87, ratificando a resolução do CNE. Atualmente, a matrícula de
crianças de seis anos no ensino fundamental é obrigatória e o prazo que os
Municípios, os Estados e o Distrito Federal têm para implementarem as mudanças
em questão se esgotará em 2010.
42
3.5 CONCLUSÃO
Quando iniciamos este capítulo, propusemo-nos a resgatar alguns marcos da
história do atendimento educacional à primeira infância no mundo e de forma
particular em nosso país. Após uma visão panorâmica, concluímos que embora
legalmente reconhecida como direito da criança desde 1988, o atendimento aos
menores de zero a seis anos ainda está por se fazer em inúmeros pontos, para
muitos alunos da educação
infantil, o atendimento
permanece
no nível
assistencialista (caso específico das creches) e a educação que recebem está longe
de se constituir numa ―educação de qualidade‖. Dando continuidade ao raciocínio
que vimos desenvolvendo, abordaremos no próximo capítulo as principais
características do processo ensino-aprendizagem na educação infantil.
43
CAPÍTULO 4
AS PRINCIPAIS CARACTERÍSTICAS DO PROCESSO ENSINOAPRENDIZAGEM NA EDUCAÇÃO INFANTIL
O desenvolvimento da psicologia infantil ocorrido no século passado fez com que os
educadores se conscientizassem da importância que os primeiros anos de vida têm
para a formação do ser humano. Com base nessa realidade, discutiremos neste
capítulo duas das principais características do processo ensino-aprendizagem na
educação infantil brasileira após a Constituição de 1988: o cuidar como integrante do
educar e a socialização numa visão sócio-interacionista.
4. 1. VENCENDO DICOTOMIAS: ENTRE O CUIDAR E O EDUCAR
O progresso científico do século XX nos forçou a trocar a lógica aristotélica, baseada
no princípio do terceiro excluído, 18 pela lógica da transdisciplinaridade. 19 Nessa
troca, vencemos a dicotomia que caracterizava o cuidar e o educar. Anteriormente
percebidos como ações incompatíveis, entende-se, hoje, que o cuidar é elemento
integrante do educar. Tanto a Constituição de 1988 quanto a LDBEN de 1996
explicitam de diferentes modos que o cuidado e a educação caracterizam o processo
ensino-aprendizagem da primeira infância. Não há educação sem cuidado, afirma
Didonet (2003). Não há como se educar crianças pequenas sem que se cuide delas,
cuidado esse que se estende a todas as dimensões de seu ser.
18
Dá-se o nome de Lógica aristotélica ao sistema lógico desenvolvido por Aristóteles a quem se deve o primeiro
estudo formal do raciocínio. Dois dos princípios centrais da lógica aristotélica são a lei da não-contradição e a lei
do terceiro excluído. A lei da não-contradição diz que nenhuma afirmação pode ser verdadeira e falsa ao mesmo
tempo e a lei do terceiro excluído diz que qualquer afirmação da forma *P ou não-P* é verdadeira. (Nota da
autora).
19
São três os pilares da transdisciplinaridade: os níveis de Realidade, a lógica do terceiro incluído e a
complexidade. Cf. NICOLESCU, 1999.
44
O termo cuidar, como outros abordados neste trabalho, admite diferentes
compreensões. Para o RCNEI (1998), cuidar diz respeito ao vínculo que o
professor/cuidador estabelece com quem é cuidado.
Contemplar o cuidado na esfera da instituição da educação infantil significa
compreendê-lo como parte integrante da educação, embora possa exigir
conhecimentos, habilidades e instrumentos que extrapolam a dimensão
pedagógica. Ou seja, cuidar de uma criança em um contexto educativo
demanda a integração de vários campos de conhecimentos e a cooperação
de profissionais de diferentes áreas. (RCNEI, 1998, v. 1, p.24).
Um dos pesquisadores da psicologia que mais colaborou para o progresso do
atendimento à primeira infância foi Jean Piaget (1896-1980). Suas descobertas
sobre o desenvolvimento cognitivo humano possibilitaram-nos compreender as
características mais marcantes do processo ensino-aprendizagem na educação
infantil. Dentro da visão piagetiana, o ser humano não é um ser passivo, que recebe
informações sem questioná-las e está disposto a simplesmente reproduzi-las. Pelo
contrário. Somos seres ativos que construímos conhecimento a partir de nossas
ações sobre os objetos e sobre as coisas que compõem o mundo (PIAGET, 1998).
Nessa perspectiva, o processo educativo é entendido como uma forma de mobilizar
e de dinamizar as informações, com o objetivo principal de transformá-las
criativamente.
Em suas pesquisas, Piaget (1998) constatou que as crianças não raciocinam do
mesmo modo que os adultos. Essa descoberta trouxe como conseqüência a adoção
de abordagens educacionais que levam em conta as características infantis. A partir
dos trabalhos piagetianos, tornaram-se obsoletas as teorias pedagógicas fundadas
na premissa de que nascemos com a mente vazia, à espera de ser preenchida por
informações; são as próprias crianças as construtoras ativas do seu conhecimento
(PIAGET, 1998). O lúdico é o meio pelo qual aprendem. Grande parte do que sabem
é construída através de jogos e brincadeiras, que lhes permitem formar as noções
de regras, se socializar, trabalhar com o simbólico, além de exercitar suas
capacidades físicas e mentais. A escola é o local privilegiado para que esse
processo aconteça — mas, para tanto, precisa oferecer aos educandos condições
materiais, cognitivas e emocionais satisfatórias.
A brincadeira é uma linguagem infantil que mantém um vínculo essencial
com aquilo que é o ―não-brincar‖. Se a brincadeira é uma ação que ocorre
45
no plano da imaginação isto implica que aquele que brinca tenha o
domínio da linguagem simbólica. Isto quer dizer que é preciso haver
consciência da diferença existente entre a brincadeira e a realidade
imediata que lhe forneceu conteúdo para realizar-se. Nesse sentido, para
brincar é preciso apropriar-se de elementos da realidade imediata de tal
forma a atribuir-lhes novos significados. Essa peculiaridade da brincadeira
ocorre por meio da articulação entre a imaginação e a imitação da
realidade. Toda brincadeira é uma imitação transformada, no plano das
emoções e das idéias, de uma realidade anteriormente vivenciada.
(RCNEI, 1998, v.1, p. 27).
Recorrendo ao léxico, encontramos no dicionário "Aurélio‖ (FERREIRA, 1995, p.
234)
que
a
palavra
educar
significa
―promover
a
educação‖,
―transmitir
conhecimentos‖, ―instruir‖, ―cultivar o espírito‖, ―instruir-se‖, ―cultivar-se‖. Sintetizando,
podemos dizer que educar consiste em criar e oferecer às crianças as condições
ideais para que ela aprenda, se instrua, cultive seu espírito, se cultive. Fica-nos
claro, então, que não é possível educar uma criança sem que concomitantemente
não preservemos sua saúde, sua integridade física e emocional, assim como
cognitiva — ou seja, sem dela cuidarmos; é dessa forma que o cuidar faz parte do
educar e abrange todas as dimensões da criança (biológicas, afetivas e intelectuais).
Educar significa, portanto, propiciar situações de cuidados, brincadeiras e
aprendizagens orientadas de forma integrada e que possam contribuir para
o desenvolvimento das capacidades infantis de relação interpessoal, de ser
e estar com os outros em uma atitude básica de aceitação, respeito e
confiança, e o acesso, pelas crianças, aos conhecimentos mais amplos da
realidade social e cultural. Neste processo, a educação poderá auxiliar o
desenvolvimento das capacidades de apropriação e conhecimento das
potencialidades corporais, afetivas, emocionais, estéticas e éticas, na
perspectiva de contribuir para a formação de crianças felizes e saudáveis.
(RCNEI, 1998, v.1, p. 23).
Pelo exposto, o educar na escola de educação infantil envolve a criação de um
ambiente onde o cuidar propriamente dito esteja sempre presente, e isto significa
que:
A base do cuidado humano é compreender como ajudar o outro a se
desenvolver como ser humano. Cuidar significa valorizar e ajudar a
desenvolver capacidades. O cuidado é um ato em relação ao outro e a si
próprio que possui uma dimensão expressiva e implica em procedimentos
específicos. (RCNEI, 1998, v.1, p.24)
Nessa perspectiva, é necessário que o educador propicie brinquedos, brincadeiras e
jogos aos pequenos, mas essas atividades não devem ocorrer unicamente de modo
livre, é preciso que elas existam também em situações orientadas, numa proposta
que as integre e contribua para a ampliação das capacidades de relacionar-se com
46
outras crianças e com os adultos e adquiram maiores conhecimentos sobre o mundo
natural e social. Se assim o fizer, o brincar se imbrica com o educar:
Nas brincadeiras, as crianças transformam os conhecimentos que já
possuíam anteriormente em conceitos gerais com os quais brinca. Por
exemplo, para assumir um determinado papel numa brincadeira, a criança
deve conhecer alguma de suas características. Seus conhecimentos
provêm da imitação de alguém ou de algo conhecido, de uma experiência
vivida na família ou em outros ambientes, do relato de um colega ou de um
adulto, de cenas assistidas na televisão, no cinema ou narradas em livros
etc. A fonte de seus conhecimentos é múltipla, mas estes encontram-se,
ainda, fragmentados. É no ato de brincar que a criança estabelece os
diferentes vínculos entre as características do papel assumido, suas
competências e as relações que possuem com outros papéis, tomando
consciência disto e generalizando para outras situações. (RCNEI, 1998, v.1,
p. 27 – 28).
Para que tal proposta dê os resultados esperados, os pequenos precisam se sentir
confiantes/seguros e aceitos pelas pessoas que os rodeiam, ou seja, precisam ser
respeitados em suas características. Além disso, eles têm o direito de ter acesso aos
conhecimentos socialmente construídos, o que lhes permitirá constituírem-se como
sujeitos de direitos, isto é, perceberem-se como cidadãos.
Além da dimensão afetiva e relacional do cuidado, é preciso que o professor
possa ajudar a criança a identificar suas necessidades e priorizá-las, assim
como atendê-las de forma adequada. Assim, cuidar da criança é sobretudo
dar atenção a ela como pessoa que está num contínuo crescimento e
desenvolvimento, compreendendo sua singularidade, identificando e
respondendo às suas necessidades. Isto inclui interessar-se sobre o que a
criança sente, pensa, o que ela sabe sobre si e sobre o mundo, visando à
ampliação deste conhecimento e de suas habilidades, que aos poucos a
tornarão mais independente e mais autônoma. (RCNEI, 1998, v. 1, p. 25).
Diante de tudo o que foi colocado, concluímos que cuidar é educar e educar implica
no cuidar.
4.2. A SOCIALIZAÇÃO DA CRIANÇA
A escola é instituição privilegiada para a socialização da criança. Esse aspecto
constitui uma das suas principais características (RCNEI, 1998). Socializar é
primeiramente função da família, seguida da educação infantil: nelas, os pequenos
encontram oportunidades para se desenvolver e construir suas identidades. A
socialização na escola deve complementar à propiciada pela família, pois cada qual,
frente ao desenvolvimento integral da criança, tem papel exclusivo. Entretanto, a
47
família está em crise; diante dos problemas com que se defronta, freqüentemente
apresenta-se impossibilitada de exercer suas funções específicas e delega à escola
o que seria de sua competência. Esta situação sobrecarrega a instituição
educacional com solicitações e demandas que não lhe seriam próprias. De qualquer
forma, embora inúmeras famílias consigam manter-se suficientemente equilibradas e
cumpram de modo satisfatório seu papel social, a escola de educação infantil acaba
por assumir alguns deveres que em outros tempos não o faria. É nesse momento
que o cuidado ganha espaço, sem, contudo, descolá-lo do educar.
Ao falarmos em socialização, um nome que nos vem à mente é o de Lev S.
Vygotsky (1896 – 1934). Foi o primeiro psicólogo moderno a propor uma teoria
tratando do modo como o ser humano incorpora a cultura e o primeiro a colocar que
as funções psicológicas resultam de atividade cerebral. Segundo ele, o ser humano é
interativo e constrói conhecimentos a partir de relações interpessoais e de permuta com
o meio, empregando um processo que nomeou de mediação. (RABELLO; PASSOS,
s.d.). As idéias de Vygotsky constituíram-se como um novo ponto de vista de se ver
as crianças, embora alguns de seus conceitos se aproximem muito de outros,
elaborados por Jean Piaget; ambos consideraram a criança como um ser próprio,
distanciando-se da concepção até então vigente de que ela seria um adulto em
miniatura.
Os estudos vygotskyanos sempre consideraram o ser humano inserido na sociedade
e na interação com o outro no espaço social (VYGOTSKY, 1996). Seus trabalhos
clarificam-nos o processo de socialização da criança e nos mostram a função que os
jogos, brinquedos e brincadeiras têm em seu desenvolvimento. Uma das
brincadeiras que mais contribuem para a compreensão do mundo adulto e permitem
a socialização dos envolvidos é a do ―faz-de-conta‖, tais como o brincar de
escolinha, de casinha, de lojinha, de médico, entre muitos outros. Quando pautamos
a educação infantil no Educar e Cuidar, temos que reconhecer a interdependência
que existe entre a socialização e o desenvolvimento físico, motor e cognitivo da
criança; igualmente, não é possível separar tais processos da construção de seus
conhecimentos. Todos esses aspectos dizem respeito à constituição integral do ser.
48
Em todos os momentos de cuidado/educação, os adultos têm papel inquestionável.
Cabe a eles criar ambientes estimuladores ao desenvolvimento da curiosidade e da
aprendizagem. A fim de facilitar a compreensão das relações humanas, eles
precisam trazer para dentro do espaço escolar situações próprias do cotidiano
social, essa é uma forma possível de desenvolver a responsabilidade, a noção de
direitos e de deveres (BONDIOLI, 1998).
4.3. CONCLUSÃO
Discutimos neste capítulo duas das principais características do processo ensinoaprendizagem na educação infantil brasileira após 1988: o cuidar como integrante do
educar e a socialização numa visão sócio-interacionista. Pelo que nos foi possível
constatar, não há como se educar crianças pequenas sem que cuidemos delas, e o
cuidado que lhes devemos dispensar tem que se estender a todas as dimensões de
seu ser. Após a Constituição Cidadã, conseguimos vencer a dicotomia até então
existente entre essas funções da educação infantil: o cuidar como algo independente
do educar, que deveria ocorrer nas creches, enquanto o educar seria realizado por
educadores no espaço da pré-escola. Quanto ao socializar numa visão sóciointeracionista, constatamos também ser uma característica da educação infantil pós
1988, e que os jogos, brinquedos e brincadeiras são os meios mais adequados à
socialização e ao desenvolvimento integral da criança na primeira infância. No
próximo capítulo focalizaremos como a educação infantil pode contribuir para a
constituição da cidadania.
49
CAPÍTULO 5
A EDUCAÇÃO INFANTIL COMO TRIBUTÁRIA DA CIDADANIA
Neste capítulo investigaremos as possíveis colaborações que a educação infantil
pode dar para a constituição da cidadania, iniciando pela busca do significado deste
termo.
5.1. O SIGNIFICADO DE CIDADANIA E O MUNDO ATUAL
Teoricamente, a categoria cidadania surgiu entre os gregos. Trata-se de uma noção
dinâmica, que tem evoluído com o passar do tempo, mas cujo cerne está nas
expectativas dos indivíduos em relação aos seus direitos, possibilidades de escolhas
e garantias enquanto membro de uma dada comunidade ou Estado-nação, como
veremos a seguir. A idéia de cidadania se vincula, desde sua origem, às de direitos e
de obrigações. Etimologicamente, o termo origina-se da palavra latina civitas, que
significa "cidade". Indica o pertencimento de um indivíduo a uma sociedade
politicamente organizada que lhe confere um conjunto de direitos e deveres
(MANZINI-COVRE, 1991).
Na antiga Grécia, os conceitos de cidadania e nacionalidade se confundiam e se
referiam aos laços culturais comuns a um grupo de indivíduos. No Império Romano,
cidadania passou a ser percebida como o vínculo a um Estado, e nacionalidade
designava os laços culturais entre as pessoas (CIEJD, s.d.). Na Idade Média, por
causa da importância que tinha a terra para o regime feudal, a idéia de cidadania
associou-se ao local de nascimento. Depois da Revolução Francesa, quando o
conceito de Estado vinculou-se ao de comunidade cultural, cidadania e
nacionalidade passaram a se equivaler. Atualmente, haja vista a União Européia, a
noção de cidadania adquire caráter supranacional, sem mais se vincular a de
Estado-nação. Segundo o CIEJD (s.d.), cidadania expressa uma situação ideal
50
fundamentada na percepção do indivíduo e da sociedade quanto aos direitos e
obrigações de cada um.
Presentemente, admite-se que a cidadania comporte, de forma genérica, três
dimensões: a civil, a política e a social.
civil: direitos inerentes à liberdade individual, liberdade de
expressão e de pensamento; direito de propriedade e de conclusão
de contratos; direito à justiça;
política: direito de participação no exercício do poder político, como
eleito ou eleitor, no conjunto das instituições de autoridade pública;
social: conjunto de direitos relativos ao bem-estar económico e
social, desde a segurança até ao direito de partilhar do nível de vida
segundo os padrões prevalecentes na sociedade.
(CIEJD, s.d., s.p.)
Foi com os intelectuais que deram suporte teórico às revoluções burguesas,
especialmente à francesa, que ganhou força a noção de que todos somos sujeitos
de direitos e de deveres. Porém, foi com as práticas revolucionárias dos habitantes
das cidades que essa idéia foi melhor se delineando. Dois dos pensadores que
colaboraram para se chegar a tais revoluções foram John Locke (1632 - 1704),
filósofo inglês e ideólogo do liberalismo, e Jean-Jacques Rousseau (1712 - 1778)
inspirador das lutas pela liberdade durante a Idade Moderna. Para eles, a cidadania
seria a igualdade entre os homens, embora se referissem a aspectos diversos dessa
igualdade (MANZINI-COVRE, 2004).
De acordo com a Declaração Universal dos Direitos Humanos (ONU, 1948), ser
cidadão significa ter direitos e deveres. Num esforço de síntese, atentando para o
espírito desse documento e o que moveu seus signatários quando o elaboraram,
poderíamos dizer que a essência da cidadania consiste em se admitir a igualdade,
perante a lei, entre todos os homens, sem distinção de raça, credo, cor, gênero,
idade ou qualquer outro atributo particular.
Faz-se necessário, entretanto, não nos esquecermos de que a cidadania não se que
reduz à igualdade diante das leis e ao pagamento de impostos em troca de
benefícios sociais. Tal concepção é válida apenas em certa medida, visto que não se
pode negar que a ela estão associadas idéias relativas a direitos e deveres. Mas,
51
nem é ela exclusivamente isso nem a educação pode trabalhar apenas com esse
seu aspecto. À medida em que nos aprofundamos nessa questão, verificamos que a
educação que poderá levar à constituição de uma cidadania plena é a que investe
na crítica da própria sociedade, prioriza o desenvolvimento da criatividade, da
argumentação, da capacidade de construir novos conhecimentos, e não se deixa
transformar em instrumento de adaptação da pessoa ao mundo capitalista,
preparando-a para o setor produtivo. A esse tipo de educação se dá o nome de
―educação instrumental‖.
A educação instrumental, graças ao modo como se desenvolve e ao objetivo que
possui, prepara cidadãos submissos, incapazes de direcionarem suas próprias vidas
e, por decorrência, de influenciar conscientemente nos rumos nacionais e
planetários. Por meio da educação instrumental, o que se obterá será a construção
de uma cidadania passiva (MORETTI; ARRUDA, 2002).
Nosso entendimento em relação à educação é de que ela se constitui em um
processo integral de formação humana, cabendo-lhe oferecer a cada representante
da nossa espécie os elementos culturais fundamentais para o seu existir no mundo.
Nesse processo, também está presente a formação para a cidadania, mas no
sentido de uma cidadania ativa, ou seja, a que leva em conta as dimensões
individual, social e coletiva da vida humana e que se pauta na ética da solidariedade
e na criatividade. Ao concebermos a cidadania como ativa, somos levados a
entender a escola como uma instituição social de importância inquestionável
enquanto lócus de aprendizagem, embora não o único. Nesse ponto, cresce nossa
preocupação para que o trabalho educacional ali realizado se volte para a libertação
dos homens, para a formação de cidadãos ativos não submissos ao status quo.
Se
nosso
objetivo
consiste
em
formar
cidadãos
ativos,
é
necessário
conscientizarmo-nos de que vivemos um período histórico no qual se perderam as
referências que tradicionalmente davam suporte à vida na sociedade ocidental.
Essas referências com as quais não mais contamos se firmaram ao longo das
gerações e estavam presentes principalmente nas pequenas comunidades.
Em tempos passados, as pessoas sentiam-se seguras apoiando-se nos valores
52
tradicionais; mas o mundo mudou muito nos últimos anos e as antigas maneiras de
existência
deram
espaço
aos
grandes
aglomerados
humanos,
onde
a
impessoalidade, o individualismo e a solidão preponderam. Nessas condições, os
indivíduos se sentem ameaçados, inseguros e solitários, porque se vêem
desprovidos do apoio psicológico e da proteção que os antigos encontravam nos
grupos sociais com os quais conviviam (GIDDENS, 1991).
Olhando os fatos nessa ótica, compreendemos porque, no Brasil, está tão presente a
sensação de desamparo, que se espalha por toda parte, dificultando-nos o exercício
de uma cidadania ativa (MANZINI-COVRE, 1993). Movidos pela iluminação desses
aspectos da realidade, voltamo-nos para a formação das crianças de zero a seis
anos e perguntamo-nos se as escolas que as acolhem estão sabendo ajudá-las a se
situarem como sujeitos de sua história. A educação que estão recebendo estaria
voltada para o desenvolvimento humano e a constituição de cidadãos ativos ou as
prendem a uma cidadania passiva, que colabora com a manutenção de uma
sociedade injusta e excludente?
Pelo que podemos observar, a atuação pedagógica brasileira está exigindo uma
verdadeira revolução, no sentido kuhniano da palavra, 20 isto é, uma mudança
essencial de visão de mundo e de educação. Embora muito preocupados com os
fatos atuais, nos sentimos menos intranqüilos quando percebemos que mesmo
timidamente essa revolução já se iniciou. Consideramos indicadores dessa ainda
principiante revolução o fato de não mais acreditarmos que o espaço de educação
se restringe ao escolar e de não mais acharmos que a função docente deva se
esgotar na transmissão de conteúdos, mesmo que necessários e relevantes. Logo,
aos poucos a visão de educação em sentido amplo está ganhando espaço na
sociedade brasileira e com isso está rompendo alguns limites nos quais se fechava
até recentemente.
20
Embora a teoria de Kuhn se aplique à ciência, ela exemplifica como ocorrem as revoluções em geral. São
mudanças radicais, em que as bases do pensamento são trocadas. Para maior esclarecimento, ver KUHN,
Thomas S. A estrutura das revoluções científicas. 7.ª ed. São Paulo: Perspectiva, 2003.
53
Temos consciência de que parte dos avanços permanece no nível do discurso e das
intenções, mas não podemos negar que isto já seja um pequeno início. Para que a
tão esperada revolução educacional ocorra, os sistemas escolares precisam investir
em projetos político-pedagógicos que propiciem a viabilização das transformações
necessárias ao desenvolvimento de todos e à melhoria das condições de vida na
Terra, e aí se encaixa a cidadania ativa.
Diante de tais colocações, não nos é difícil perceber que a cidadania ativa somente
poderá florescer num espaço onde haja condições para o exercício pleno dos
direitos civis, políticos e sociais, sendo que liberdade, igualdade, democracia e
educação têm necessariamente que fazer parte dele. Discutiremos, a seguir, como a
educação infantil pode contribuir para a constituição de uma cidadania ativa.
5.2. A EDUCAÇÃO INFANTIL E A CONSTITUIÇÃO DE UMA
CIDADANIA ATIVA
Após a discussão do significado de cidadania, concluímos que somente a ativa nos
interessa; resta-nos agora explorar algumas possibilidades de a educação infantil
poder colaborar para que esta seja construída. Primeiramente, consideramos que
entre as funções da escola encontra-se a de instrumentalizar a criança para a vida
adulta. Então, se o que objetivamos é uma sociedade democrática, será preciso que
desde cedo ofereçamos à criança situações reais de participação ativa numa
organização social democrática. Sendo tarefa essencial de qualquer escola trabalhar
com conteúdos pedagógicos, estes não podem ser abstratos, mas concretos, vivos,
intimamente relacionados com a realidade social e com a realidade da criança.
Assim compreendida, a escola proporcionará uma educação mediadora dos valores
democráticos fazendo com que o aluno, por meio das intervenções pedagógicas
realizadas pelo professor, transforme ativamente suas experiências iniciais,
fragmentadas e confusas, em um conhecimento organizado e unificado.
Em segundo lugar, se o cerne da cidadania está na noção de que toda pessoa está
54
sujeita a direitos e deveres, o trabalho pedagógico deverá se nortear por
documentos relacionados a essa questão, sendo, no caso da educação infantil, dois
dos principais: a Declaração dos Direitos da Criança (ONU, 1959) e a Convenção
dos Direitos da Criança (ONU, 1989)21.
Entendemos que um dos pontos cruciais para se chegar à cidadania ativa é a
metodologia empregada pelos educadores. Como vimos, a cidadania ativa não se
faz na passividade, na obediência cega às leis, pelo contrário, é a que investe na
crítica da própria sociedade, prioriza o desenvolvimento da criatividade, da
argumentação, da capacidade de construir novos conhecimentos, logo, a
metodologia de ensino-aprendizagem terá que ser em si meio para a criança se
expressar, formar sua opinião sobre as coisas e fatos com os quais lida. Uma escola
assim organizada ouvirá a criança em todas as circunstâncias em que a mesma
estiver envolvida, seja nas situações gerais de aprendizagem seja, inclusive, em
casos de transgressões às regras estabelecidas. Respeitado o nível de
desenvolvimento da criança, contra-argumentará com ela, orienta-la-á, dessa forma,
estará realizando um trabalho pedagógico em consonância com o artigo 12 da CDC,
o qual declara que toda criança tem o direito de manifestar livremente a sua opinião
sobre assuntos que lhe digam respeito e de ver essa opinião levada em
consideração.
Não há como se chegar à cidadania ativa se o caminho for outro que não o do
diálogo. O diálogo precisa ser acompanhado da compreensão e da ação, numa
relação direta com o aluno. Essa atitude da escola contribuirá para que a criança
desenvolva a reflexão, veja várias perspectivas de uma mesma questão, tire
conclusões por si mesma. Estas são características que deverão estar presentes em
um cidadão ativo. Nessa linha de pensamento, o processo ensino-aprendizagem
priorizará a pesquisa, pois:
A criança terá direito à liberdade de expressão. Esse direito incluirá a
liberdade de procurar, receber e divulgar informações e idéias de todo tipo,
independentemente de fronteiras, de forma oral, escrita ou impressa, por
meio das artes ou por qualquer outro meio escolhido pela criança. (CDC,
Artigo 13, item 1, ONU, 1989).
21
De ora em diante designados por DDC e CDC, respectivamente.
55
Para que os pequenos possam se autoconhecer, construir sua autoimagem, ver
crescer sua autoestima e edificar um autoconceito positivo, precisarão explorar e
descobrir as possibilidades do seu corpo, dos objetos que os cercam, das relações
que poderão estabelecer com tudo que os rodeia. Nesse processo, simultaneamente
estarão formando a própria opinião sobre o mundo.
O autoconceito é a avaliação que o individuo faz de si mesmo, segundo
atitudes que ele formou através de suas experiências, e de sua unicidade.
Todas as atitudes são importantes na determinação do comportamento,
mas a que a pessoa formou com relação a si mesma é a mais poderosa.
(PINEL, 2003)
É quando os educadores investem nas capacidades que as crianças possuem de
observar, descobrir, pensar, manifestar seus pontos de vista e favorecem atividades
em grupos ou equipes, que a cidadania ativa estará se construindo. Nesse caso, o
trabalho educativo estará atendendo o previsto no item 1 do Artigo 15 da CDC,
segundo o qual as crianças têm o direito de se reunir e de aderir ou formar
associações ou grupos.
Quando se trata de aluno portador de necessidades especiais, a educação infantil
tem que lhe proporcionar cuidados específicos, além de educação e formação
adequadas que lhe permitam ter vida plena e digna, possibilitando-lhe atingir o maior
grau de autonomia e integração social possível (CDC, Artigo 23, ONU, 1989).
Considerar a diversidade dos alunos terá que ser parte integrante da proposta
pedagógica da Educação Infantil. Não há como se desenvolver atitudes de respeito
e aceitação das diferenças entre as pessoas se essas mesmas atitudes não se
fizerem presentes no cotidiano escolar. É desde pequenas que as crianças precisam
viver situações reais de respeito ao próximo, somente assim haverá uma
aprendizagem verdadeira e significativa.
Os adultos são os modelos das crianças; logo, todos os que trabalham na escola
precisam vivenciar aquilo que ali ensinam. As regras de cidadania não podem se
restringir às crianças; para isso, não se pode ter discriminação de gênero, de etnia,
de credo religioso, de habilidades, de conhecimentos ou de constituição física. A
escola que está preocupada com a construção da cidadania ativa deve considerar
em sua proposta pedagógica que:
56
A liberdade de professar a própria religião ou as próprias crenças estará
sujeita, unicamente, às limitações prescritas pela lei e necessárias para
proteger a segurança, a ordem, a moral, a saúde pública ou os direitos e
liberdades fundamentais dos demais. (CDC, artigo 14, item 3, ONU, 1989).
Frente ao que até aqui apontamos, entendemos que ao definir os objetivos das
atividades didático-pedagógicas será mais adequado fazê-lo em termos de
capacidades, por se tratar de uma opção mais produtiva para a construção da
cidadania ativa do que se o fizermos em termos de comportamentos esperados. A
razão para essa escolha se justifica, primeiramente, porque o desenvolvimento das
capacidades dos pequenos alunos costuma se expressar por meio de diferentes
comportamentos e, em segundo lugar, porque distintas aprendizagens, de naturezas
diversas, concorrerão para que a capacidade focada se desenvolva. Ao estabelecer
objetivos nesses termos, o professor ampliará as possibilidades de atendimento à
diversidade apresentada pelas crianças; terá maiores oportunidades para levar em
conta
as diferentes habilidades,
interesses
e
maneiras de
aprender
no
desenvolvimento de cada sujeito.
5.3. CONCLUSÃO
Iniciamos este capítulo propondo investigar possíveis colaborações que a educação
infantil pode dar para a constituição da cidadania. Com esse objetivo, constatamos
que o termo cidadania pode expressar diferentes visões e concepções, pois é um
conceito dinâmico, que se alterou ao longo da história e depende do grau de
consciência
sobre
a
realidade
de
quem
o
emprega.
Numa
sociedade
verdadeiramente democrática, o sentido que satisfaz é o de cidadania ativa, ou seja,
a que leva em conta as dimensões individual, social e coletiva da vida humana e que
se pauta na ética da solidariedade e na criatividade. A partir dessa definição, foi-nos
possível apontar algumas características da escola de educação infantil que se
propõe dar condições aos alunos para que eles se constituam cidadãos ativos.
57
CAPÍTULO 6
PSICOPEDAGOGIA, EDUCAÇÃO INFANTIL E CIDADANIA
Neste capítulo discutiremos e apontaremos algumas ações psicopedagógicas que
poderão favorecer a constituição da cidadania ativa no período da educação infantil.
Iniciaremos situando o leitor sobre o significado da psicopedagogia, passando
brevemente por sua história e suas atuais possibilidades.
6. 1. A PSICOPEDAGOGIA: SIGNIFICADO E POSSIBILIDADES
Há diferentes modos de se compreender e de se conceituar a Psicopedagogia.
Sinteticamente, podemos dizer que ela é um campo de conhecimento e atuação em
Saúde e Educação cujo foco é a aprendizagem humana. Historicamente, surgiu de
uma demanda: a dificuldade escolar. Sua evolução se deu a partir da prática,
seguida de busca de fundamentação teórica e de recursos para encaminhar os
desafios encontrados (BOSSA, 2000).
Os primeiros conhecimentos psicopedagógicos surgiram no século XIX, na Europa,
quando médicos se interessaram pelas crianças que fracassavam na escola. Em
1946, foi criado em Paris o primeiro centro psicopedagógico de que temos notícia.
Nesse centro, quando o problema a ser tratado envolvia aprendizagens ou
comportamento de escolares, os pedagogos trabalhavam em parceria com os
médicos. Denominavam o que faziam de ―atendimento médico pedagógico‖.
Entretanto, essa designação não se mostrou satisfatória, pois muitos pais resistiam
em tratar seus filhos com receio deles serem vistos pela sociedade como ―doentes
mentais‖. Surgiu, então, o termo ―Psicopedagogia‖ para nomear as intervenções ali
desenvolvidas (BOSSA, 2000).
Com o passar do tempo, novas questões se apresentaram aos psicopedagogos, que
buscaram recursos em outras áreas do saber. Essa dinâmica levou a mudanças na
percepção, conceituação e definição da Psicopedagogia. No Brasil, em 1958, com o
58
objetivo de melhorar a relação professor-aluno, foi criado na Escola Guatemala,
órgão experimental do INEP/MEC no Rio de Janeiro, o Serviço de Orientação
Psicopedagógica — o pioneiro no ramo (BOSSA, 2000).
Atualmente, a Psicopedagogia procura clarear seu campo de atuação e sua
identidade, bem como estruturar um corpo teórico próprio. Nesse processo, integra
saberes provenientes de diversas áreas do conhecimento, dentre elas: a psicologia,
a pedagogia, a fonoaudiologia, a neuropsicologia e a psicolingüística (KIGUEL,
1983). Seu campo de atuação vem se expandindo, além da clínica e da escola
encontra espaço em empresas, hospitais, organizações não governamentais, isto é,
onde haja pessoas em situações de aprendizagem.
Normalmente, o aspecto clínico da Psicopedagogia se dá na forma curativa e
individual em Centros de Atendimento ou em Clínicas Psicopedagógicas. Volta-se
para problemas de aprendizagem já instalados, procurando que as pessoas
percebam suas potencialidades, elevem sua autoestima, desenvolvam processos
internos de apreensão da realidade. O aspecto institucional ocorre em escolas e
organizações em geral; lida basicamente com a prevenção de problemas relacionais
e de aprendizagem, mas poderá se voltar para a prática terapêutica, se necessário.
Acontece na forma individual ou grupal, sendo esta a preferencial. No caso da
psicopedagogia escolar, sua contribuição vem crescendo por causa da inclusão de
alunos com necessidades educativas especiais (NEE) em salas comuns (BOSSA,
2000).
Com o passar do tempo, a preocupação dos psicopedagogos com a aprendizagem
humana se estendeu ao mundo do trabalho.
6.2. O PSICOPEDAGOGO:
CIDADANIA
UM
PROFISSIONAL
VOLTADO
À
Pela sua própria história, o psicopedagogo é um profissional voltado para a
cidadania, pois suas ações visam a inclusão social. Embora sejam muitas as
59
contribuições do psicopedagogo para a sociedade, a que mais tem se destacado é a
que se faz por meio dos processos educacionais, que ocorrem tanto em espaços de
educação formal, como em clínicas e instituições. Ao colaborar para a construção e
reconstrução de conhecimentos dos educandos com dificuldades de aprendizagem,
o psicopedagogo contribui para a melhoria da qualidade de vida dos envolvidos,
bem como para a construção da cidadania ativa. Em se tratando de fracasso
escolar, são graves as conseqüências que esse fenômeno traz quer para o aprendiz
quer para a sociedade: o primeiro crê-se uma pessoa incapaz e cria uma falsa
imagem de si, adquirindo baixa autoestima e autoconceito negativo, a segunda tem
que arcar com sério desperdício de dinheiro público (DOTTI, 1994). O mais
preocupante dessa situação é que as estatísticas indicam que são os estudantes
pobres os que em maior número encontram barreiras na aprendizagem escolar —
justamente os mais vulneráveis (SPOZATI, 2000). Também são estes os que se
evadem da escola e menos gozam dos direitos sociais.
Mais recentemente, os psicopedagogos têm atuado junto aos trabalhadores com
dificuldades de se integrar ao mercado de trabalho devido a problemas de
aprendizagem profissional. O psicopedagogo possui um relevante papel na melhoria
da qualidade de vida dessas pessoas e no favorecimento do pleno exercício da
cidadania.
6.3. O PSICOPEDAGOGO E A CONSTRUÇÃO DA CIDADANIA ATIVA
NA EDUCAÇÃO INFANTIL
Resta-nos, agora, identificar como o psicopedagogo poderá atuar junto à educação
infantil no sentido de contribuir para que esse espaço educativo se torne também um
espaço de constituição da cidadania ativa. Primeiramente, entendemos que o
psicopedagogo poderá atuar junto às professoras22. Elas, em sua grande maioria,
foram formadas em cursos cujos currículos não as capacitaram a enfrentar as
22
Colocamos a palavra no feminino porque, embora existam professores do sexo masculino atuando na educação
infantil, o número deles é ínfimo quando confrontado com o do sexo feminino. (Nota da autora).
60
questões da atualidade. Apesar de existir literatura especializada, devido à formação
que tiveram, não percebem que alimentar uma criança, atender suas necessidades
básicas são atos de educar; para a maioria delas, essas são tarefas para auxiliares
de classe. 23 Entretanto, numa visão atual, cuidar dessa criança é dar a ela
dimensões de cidadania (ROSEMBERG, 1997). Como nos coloca Cerisara:
o histórico dessas instituições (creche e pré-escola) e as relações que estas
têm estabelecido tanto com as famílias, quanto com as escolas permite
perceber que quando se defendeu, e ainda hoje se defende, uma função
pedagógica para as mesmas foi na direção da valorização das atividades ao
ensino de alguma coisa, à transmissão de conhecimentos, muitas vezes
reproduzindo ou antecipando as práticas condenadas pelas próprias
escolas de ensino fundamental em que são valorizadas as atividades
dirigidas, consideradas como pedagógicas. Essa interpretação reducionista
do pedagógico, acabou por trazer para as creches e pré-escolas uma
desvalorização das atividades ligadas ao cuidado das crianças pequenas.
Essa dicotomização entre as atividades com um perfil mais escolar e as
atividades de cuidado revela que ainda não está clara uma concepção de
criança como sujeito de direitos, que necessita ser educada e cuidada, uma
vez que ela depende dos adultos para sobreviver e também pelo fato de
permanecer muitas vezes de 10 a 12 horas diárias na instituição de
educação infantil. (CERISARA, 1999, p. 12-13)
Assim, uma das contribuições do psicopedagogo para a educação infantil será a de
trabalhar com as professoras mostrando-lhes que para esse nível de ensino as
ações de cuidar são indissociáveis das de educar, complementando a ação
educativa da família. Dessa forma, o psicopedagogo auxiliará as docentes a
aprenderem seu novo papel profissional e, por esse meio, construírem sua nova
identidade enquanto educadoras.
Levando-se em conta que o trabalho psicopedagógico institucional deve ser
sobretudo preventivo, o psicopedagogo contribuirá investindo na prevenção de
problemas de aprendizagem, particularmente os que poderão se instalar por
descuidos da educação infantil e se revelarem apenas mais tarde, no ensino
fundamental.
Essa prevenção poderá ocorrer à medida que o psicopedagogo
contribuir ao disponibilizar esclarecimentos sobre as características de cada faixa
etária e sobre o processo de organização psíquica das crianças, para que as
atividades propostas respeitem o momento de desenvolvimento físico, psíquico e
motor dos pequenos com quem trabalham.
23
Dependendo do sistema de ensino, é o nome que se dá para a função de cuidar das crianças de creches e de
pré-escolas, podem ser chamadas de monitoras, pajens, ou similares. (Nota da autora).
61
Cabe ao psicopedagogo, juntamente com a equipe escolar, discutir os tipos de
jogos, brinquedos e brincadeiras adequados
para cada faixa etária e qual a
contribuição psicológica, física, motora, psíquica e cognitiva que elas darão às
crianças, pois são atividades privilegiadas da infância: auxiliam a constituição
psíquica e também o processo de desenvolvimento, de aprendizagem e de
socialização dos pequenos alunos. O psicopedagogo também discutirá com as
professoras em como privilegiar essas atividades na proposta de tarefas para
desenvolver nas crianças a consciência das regras, da necessidade de respeitá-las,
a possibilidade de modifica-las, desde que debatidas coletivamente e sancionadas
pela maioria: desse modo, estarão se inserindo nas regras democráticas.
Mas, não é só o corpo docente da educação infantil que o psicopedagogo poderá
auxiliar. Para que a escola se torne um local de construção da cidadania ativa, sua
colaboração também deverá atingir os pais das crianças, buscando aproximá-los da
escola. A participação da família na vida escolar dos pequenos é indispensável para
que ocorra uma formação que propicie o sucesso escolar e a construção de uma
escola voltada para as necessidades infantis.
Estabelecido um diálogo com as famílias dos pequenos, será possível harmonizar as
regras da escola com as da família; os pais poderão se tornar parceiros dos
educadores e suas intervenções junto aos filhos complementarão o trabalho escolar.
Havendo trocas de informações entre a escola e a família, será possível se
estabelecer uma sintonia com relação aos direitos e aos deveres pontuados para as
crianças. A escola mostrará aos progenitores o quanto é importante dar atenção aos
pequenos, ouvi-los em suas colocações e reivindicações. Os pais, sabendo dos
progressos de seus filhos, se orgulharão deles e esse sentimento favorecerá a
autoconfiança das crianças, sua autoestima e as aproximará de uma autoimagem
próxima da real.
Na parceria, a escola receberá apoio voluntário de diversos pais. Se os pais
puderem participar da tomada de decisões educacionais de seus filhos, teremos
uma verdadeira democracia escolar, o ponto mais alto no tipo de envolvimento
parental. E isto reverterá na constituição da cidadania ativa das crianças. Mas, se a
62
escola não tomar a iniciativa de sensibilizar os progenitores para os tipos de
envolvimento mais básicos ou elementares, dificilmente aderirão a envolvimentos
mais complexos. O psicopedagogo será, nesse processo, o catalisador dos esforços
dos educadores, das famílias e da comunidade em geral para a partilha
experiências, e utilizando os recursos existentes, se quiserem realmente transformar
a escola num lócus de cidadania ativa.
6. 4. CONCLUSÃO
Neste capítulo, apresentamos algumas possibilidades de ações psicopedagógicas
que podem favorecer a constituição da cidadania ativa no período da educação
infantil. Começamos por situar o leitor a respeito do significado e do histórico da
psicopedagogia e verificamos que o psicopedagogo, pela sua própria história, é um
profissional voltado para a cidadania, pois suas ações visam a inclusão social.
Também verificamos que, dentre muitas possibilidades do psicopedagogo contribuir
para que a escola de educação infantil seja um local destinado à construção da
cidadania, ele poderá trabalhar junto aos educadores e junto aos pais dos alunos,
favorecendo a formação de futuros cidadãos ativos.
63
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O finalizar esta monografia, constato quanto um trabalho desse porte nos faz
crescer. Ficou-me claro que o significado das palavras se transforma ao longo da
história e que seu sentido varia de grupo para grupo dentro de uma mesma
sociedade. Assim se dá com o termo infância, que além de resultar de uma
elaboração sócio-histórica, decorre da construção do significado de escola. Tive a
oportunidade de verificar a estreita relação entre as mudanças de concepção de
infância e as de escola, bem como o fato de investigações relativas à escola e à
infância se tornarem fator de interferência na percepção e definição desses termos.
No decorrer do processo de pesquisa, ficou-me claro que a atenção para com a
primeira infância progrediu pouco a pouco, e só recentemente os documentos legais
passaram a fazer referências às crianças menores de sete anos. Entretanto,
relativamente a esse tema, estamos vivendo um período especial, pois há um
interesse crescente da sociedade civil e política pela infância e pelo seu
atendimento. Isto ocorre não somente em nosso país, mas em nível mundial. Não é
raro presenciarmos debates e ações em políticas públicas dirigidas à primeira
infância, e um ganho imensurável nesses casos é não mais se pensar na criança de
modo assistencialista, mas como um sujeito de direitos. Embora esse fenômeno não
esteja acontecendo unicamente no Brasil, em nosso país ele pode ser creditado, ao
menos em parte, à Constituição de 1988, que admitiu ser a educação infantil direito
público subjetivo.
O que me entristece é verificar que embora a educação infantil desde 1988 seja
legalmente reconhecida como direito da criança, no cotidiano o atendimento aos
menores de zero a seis anos ainda está por se fazer em inúmeros pontos, e que
para muitos pequenos dessa faixa etária ele
inexiste ou permanece no nível
assistencialista (caso específico das creches) e a educação que recebem fica longe
de se constituir numa ―educação de qualidade‖. Apesar das dificuldades encontradas
e de diversos pontos fracos no atendimento à primeira infância, pude verificar que
64
houve um avanço, ao menos nas orientações legais, no que diz respeito à forma de
as escolas de educação infantil tratarem a questão didático-pedagógica que lhe é
inerente: perceber o cuidar como integrante do educar. Parece-me que, ao menos
nos documentos, já é ponto pacífico que não há como se educar crianças pequenas
sem que cuidemos delas, e o cuidado que lhes devemos dispensar tem que se
estender a todas as dimensões de seu ser. Para mim, enquanto educadora, entendo
como uma vitória a ultrapassagem da dicotomia antes existente entre o cuidar e o
educar, o primeiro ocorrendo nas creches e o segundo no espaço pré-escolar.
Ponto também que destaco é o de hoje se perceber a socialização das crianças
pequenas na ótica sócio-interacionista, para a qual os jogos, os brinquedos e as
brincadeiras são os meios mais adequados à sua socialização e ao seu
desenvolvimento integral.
Quando tratamos da possível colaboração da educação para a constituição da cidadania,
desvelou-se-nos que cidadania é um termo que expressa diferentes visões e
concepções, é um conceito dinâmico que alterou de significados ao longo da
história. Sua compreensão depende do grau de consciência que o sujeito que o
emprega possui da realidade. Uma descoberta significativa foi a de que
conhecemos, hoje, dois tipos de cidadania: a passiva, em que o sujeito se aceita
como um ser de direitos e de deveres, mas que não possui autonomia de
pensamento e nada faz para mudar o status quo; e há uma cidadania ativa, que
ocorre quando o sujeito é autor de seu pensamento, é crítico e age em prol da
mudança social buscando melhores condições de vida para si e para toda a
sociedade. Ao fazer mos essa distinção, foi-nos possível encontrar algumas
características da escola de educação infantil que se propõe dar condições aos
alunos para que eles se constituam cidadãos ativos.
Para finalizar o trabalho, buscamos conhecer um pouco da psicopedagogia,
buscamos seu significado e sua história e chegamos à conclusão de que o
pedagogo é em si um profissional voltado para a cidadania, pois suas ações visam a
inclusão social. Dentre as muitas possibilidades do psicopedagogo contribuir para
que a escola de educação infantil se torne em espaço de construção da cidadania
65
encontram-se a de trabalhar junto aos educadores e junto aos pais dos alunos,
favorecendo a formação de futuros cidadãos ativos.
Reforçando o que foi colocado na introdução desta monografia, reiteramos a
consciência que temos de que o trabalho aqui relatado não passa de uma ínfima
contribuição à educação nacional e ao exercício da psicopedagogia; não houve em
nenhum momento a pretensão de que ele consistisse em uma obra acabada muito
menos resposta aos gravíssimos problemas da educação nacional, mas gostaríamos
que ele pudesse suscitar debates e reflexões a sobre a primeira infância e sua
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