Quarta-feira, 23 agosto de 2006 edições anteriores VIDA& ÍNDICE GERAL | ÍNDICE DA EDITORIA | ANTERIOR | PRÓXIMA O gene da libido feminina Fernando Reinach* O título acima é um desserviço à genética e à complexidade da sexualidade feminina, mas não agüentei a tentação. O fato é que existe um gene que - quando inativado -, faz desaparecer o comportamento sexual das fêmeas de camundongo. A libido é um fenômeno complexo que envolve não somente a ação de hormônios sobre áreas específicas do cérebro como elementos sensoriais e psicológicos. É muito pouco provável que exista "o gene da libido" assim como é pouco provável que exista o "gene da homossexualidade" ou outros genes do gênero. Mas o fato de um comportamento ou uma característica ser muito complexa não significa que não exista um único gene capaz de fazer desaparecer essa característica. Um bom exemplo é o andar. Ele envolve as pernas, com seus ossos e músculos, o controle da perna pelo sistema nervoso e os sistemas superiores do cérebro que decidem iniciar o processo de andar. Toda essa complexidade claramente envolve dezenas, senão centenas, de genes e é difícil de imaginar que exista o "gene do andar". Acontece que existem genes que são essenciais para a formação das pernas e braços e uma mutação em um desses genes produz indivíduos incapazes de andar pelo simples fato de não terem pernas. Como o andar é um processo complexo, mas bastante conhecido de todos nós, se um jornalista descrevesse este gene como "gene do andar" a falácia seria rapidamente descoberta. Mas como a libido feminina é um grande mistério que fascina pelo menos metade da humanidade, o título acima ainda induz a leitura e não o desprezo. Vamos ao que foi descoberto. O estrógeno é provavelmente o mais importante hormônio feminino, sendo necessário para a manutenção dos caracteres sexuais secundários nas fêmeas e capaz de induzir esses mesmos caracteres nos machos, se injetado em grandes doses. Um dos locais de ação desse hormônio é o cérebro, onde ele se liga a dois receptores, alfa e beta. Há algum tempo foram construídos camundongos transgênicos nos quais esses genes foram abolidos. A ausência do receptor beta não altera o comportamento sexual das fêmeas, mas a remoção do gene alfa causa grandes alterações comportamentais. As fêmeas não deixam os machos se aproximar por trás, deixam de apresentar a lordose típica de fêmeas receptivas, não ficam imóveis para permitir o coito e se tornam agressivas, atacando os machos. Deixo ao leitor imaginar os truques usados pelos pesquisadores para conseguir manter e reproduzir essa linhagem mutante. Como nesses camundongos transgênicos o receptor não existia durante todo o desenvolvimento do animal, ficou a dúvida se o efeito era causado pela ausência do gene ou devido a malformação do cérebro, resultante da ausência do gene durante o desenvolvimento. Agora, com uma nova metodologia que permite "desligar" o gene no camundongo em uma região específica do cérebro adulto, ficou confirmado que o bloqueio desse único gene é capaz de completamente bloquear a "libido". Entretanto, o que fica demonstrado é que esse gene é um dos envolvidos no complexo comportamento sexual dos camundongos e não o qualifica ao título de "gene da libido feminina". Mais informações: RNAi-mediated silencing of estrogen receptor alfa in the ventromedial nucleus of hypothalamus abolishes female sexual behaviors. PNAS vol. 103 pag. 10456 2006. *[email protected] Biólogo