(Artigo inédito. Escrito em fevereiro de 2005) ÉMILE DURKHEIM E AS ELEIÇÕES NA UERN Aécio Cândido Os estudantes de Ciências Sociais podem aproveitar as eleições na UERN para aprenderem um pouco mais sobre a teoria social de Émile Durkheim. Este eminente sociólogo francês criou dois conceitos fundamentais para a compreensão das sociedades: o conceito de solidariedade mecânica e o de solidariedade orgânica. O que movia Durkheim, e o que continua a mover os sociólogos contemporâneos, era compreender, por um lado, que elementos servem para cimentar as relações humanas, isto é, para plainar semelhanças sociais, conformar grupos e, no limite, sociedades inteiras, e, por outro lado, que elementos impedem os homens de se digladiarem entre si. Em outros termos, o que explica o gregarismo dos seres humanos e a construção do coletivo? Para esta questão Durkheim encontrou a seguinte resposta: nas sociedades primitivas (ou tradicionais, ou arcaicas, conforme o termo que se queira usar), aquelas em que a divisão social do trabalho é muito tênue e em que a economia repousa quase que exclusivamente na agricultura, o que aproxima um indivíduo de outro, e cimenta grupos, comunidades e sociedades, é a comunhão da mesma matriz de pensamento, isto é, a partilha das mesmas crenças, dos mesmos costumes, em suma, daquilo que hoje chamamos de representações sociais (a crença nos mesmos deuses, a mesma noção de bom, de belo, de certo e errado, etc.). Não é difícil compreender por que as sociedades tradicionais estavam tão sujeitas às brigas de facções. A razão é que a mesma crença que, por um lado, aproxima um grupo, por outro o diferencia em relação aos outros grupos e o afasta. O pensamento do grupo, nesses casos, é mais forte que o pensamento dos indivíduos. Essa crença afirma, em relação aos iguais, uma semelhança, e em relação aos não pertencentes ao grupo, uma diferença. Uma diferença que pode resultar em cisões profundas, em clivagens enormes e em intolerâncias de toda sorte. As representações sobre a sexualidade, sobre a filiação religiosa, sobre a política são numa sociedade tradicional as matrizes das ações dos indivíduos. Nas sociedades modernas, economicamente complexas, a coesão social tem seu foco deslocado para outras bases. É a divisão social do trabalho quem a explica. A dependência de um indivíduo em relação ao trabalho de outro torna a todos mais tolerantes ao pensamento de cada um e pauta as escolhas e ações dos indivíduos. A sociedade moderna não eliminou os grupos nem as representações sociais, mas esses elementos se enfraqueceram no que diz respeito ao preenchimento das funções sociais. Na sociedade moderna ganha relevância o indivíduo. É o seu talento para uma dada função quem lhe reservará um lugar econômico e social na estrutura da sociedade. Aqui vale o que o indivíduo sabe fazer, e bem menos o que ele pensa sobre coisas alheias ao que ele faz. É esta a sociedade do mérito. Nela o grupo se enfraquece e perde privilégios. O pertencimento a uma dada família, a um partido político, etc. não garante mais a seus membros o privilégio de ocupar, digamos, um dado posto na burocracia do Estado. Numa sociedade de economia pouco complexa, tradicional, muitos privilégios podem ser mantidos, sem prejudicar em demasia o funcionamento da sociedade como um todo, uma vez que os lugares econômicos são pouco diversos e praticamente todo mundo sabe fazer tudo. Um exemplo recente pode esclarecer esta tese: enquanto o Estado brasileiro tinha forte presença na economia e não sofria a pressão da concorrência externa, nossa classe dominante podia manter o privilégio de colocar seus filhos no comando das estatais e de abocanhar os melhores cargos e de estender aos seus apadrinhados todos os outros postos menores. A complexidade da economia, sua abertura internacional, etc., já não permitem isto, e, em conseqüência, a cultura do mérito ganha terreno. Daí os concursos públicos para o preenchimento dos cargos. A prática do concurso significa a perda de força do grupo (família, partido político, grupo religioso, sexual, etc.) e a valorização do indivíduo: precisa-se de um certo tipo de talento e aquele talento não é buscado no grupo, mas no indivíduo. Na verdade, o que ocorre numa sociedade de fortes características tradicionais é a abstração do talento, sua desconsideração, o que se expressa pela ineficiência das instituições, pela produtividade irrisória, pelo desperdício, etc. A complexidade da divisão social do trabalho aprofunda a democracia, permitindo, em tese, mas cada vez mais de modo real, a ascensão à elite de amplos setores sociais. Se quisermos usar um conceito mais da sociologia do que da ciência política, podemos dizer que a cultura do mérito favorece a mobilidade social. O que ocorre nos últimos tempos com o judiciário brasileiro é uma boa ilustração de nossa tese: um significativo contingente de jovens oriundos de classes populares, por força do mérito, tem passado a compor uma elite, política, econômica e social. Um juiz faz parte de uma elite com todos esses matizes. Uma conseqüência deste e de outros fatos semelhantes é que tudo isso torna o conceito de luta de classes menos óbvio e bem mais complexo. Significa, pelo menos, que, com seu conteúdo tradicional, ele já não dá mais conta da novidade de certos fatos. E aqui entra a UERN. Um expressivo grupo da intelligentsia uerniana pensa a universidade como uma arena da luta de classes. Com este conceito como matriz do pensamento, enxerga a universidade dividida entre uma razão burguesa e uma razão proletária. Daí a cristalização de posições políticas expressas em correntes fechadas. Há professores que são de oposição desde que eu entrei na universidade, há dezoito anos. E assim se comportam por que não vêem nenhuma diferença, política ou institucional, entre a universidade e o município, entre a reitoria e a prefeitura, daí porque em ambos devem se manifestar posições políticas consolidadas em partidos políticos. Essa gente acha que isso é bom, que é política e academicamente saudável que correntes ideológicas se manifestem e marquem posição nas eleições universitárias. Se na sociedade política a firmeza de posições e as decisões em bloco podem ser benéficas à democracia, porque afirmam os partidos políticos e explicitam diferenças sociais que precisam ser equacionadas pela sociedade com a intermediação do Estado, no interior da universidade esse mesmo comportamento é danoso e contrário ao espírito de radical liberdade individual que rege o avanço da ciência. Ora, a universidade é, por princípio, o lugar do mérito, logo, o lugar do indivíduo e a negação do grupo. Porque ela é o lugar da ciência e a ciência é a expressão do talento, do gênio. Se a universidade é o berço de teorias e de paradigmas explicativos, ela é também o coveiro destes, a partir do momento em que alguém consegue enxergar fatos que não cabem mais num dado paradigma. A liberdade que a ciência requer para seu avanço exige que os indivíduos se movam nas suas certezas e se reposicionem a cada surgimento de um novo fato. Para boa parte de meus colegas uernianos, em 18 anos de história da UERN, e do RN, e do Brasil, nenhum fato novo aconteceu. A visão de universidade que valoriza o mérito considera a análise do perfil de reitor e de vice-reitor como um elemento fundamental na escolha do candidato. O que aí se coloca em questão é saber se o candidato, dada sua experiência individual, tem condições efetivas de concretizar suas propostas. Ou seja: se o candidato tem talento para levar a cabo o que se propõe. Reconhecer a pertinência de um perfil é reconhecer a prevalência do mérito individual sobre o pertencimento a grupos, com suas idiossincrasias ideológicas. No entanto, a dualidade de nossa sociedade (a existência de um Brasil moderno e de um Brasil arcaico) se reflete também no interior da academia, o que explica que, para alguns professores, seja mais importante o grupo a que se pertence (ADUERN, DS, PSTU, POR, etc.) do que a contribuição efetiva que o indivíduo pode dar à universidade para que ela cumpra melhor sua missão. Como ocorre na porção arcaica do país, abstrai-se o que o indivíduo efetivamente é capaz de fazer e realça-se seu pertencimento ao grupo, logo, suas crenças em detrimento do seu fazer.