ENRIQUECIMENTO ILÍCITO DE SERVIDOR E A LEI DE IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA RAFAEL RAMALHO DUBEUX Bacharel em Direito pela UFPE Advogado da União - Assessoria Jurídica da CGU 1. Este artigo aborda alguns aspectos polêmicos envolvendo o enriquecimento ilícito de servidores públicos, situação que caracteriza ato de improbidade previsto na Lei nº 8.429, de 2 de junho de 1992 – Lei de Improbidade Administrativa. Esse diploma regulamentou o art. 37, § 4º, da Constituição da República, disciplinando quais os atos que seriam classificados como ímprobos, quais as sanções aplicáveis e qual o procedimento para aplicá-las. 2. A questão central aqui analisada é a possibilidade de sancionar o enriquecimento ilícito na própria esfera administrativa. Controvérsias se instalaram em torno do emprego dessa norma em combinação com a Lei nº 8.112, de 11 de dezembro de 1990 – Estatuto dos Servidores Públicos Federais. 3. Para abordar o tema, selecionei três aspectos sobre os quais pairam dúvidas. O primeiro diz respeito à correta interpretação do art. 9º, inciso VII, da Lei de Improbidade, que prevê a caracterização da improbidade pela evolução desproporcional do patrimônio do servidor. O segundo concerne à confusão não raro verificada entre o citado art. 9º, inciso VII, e o art. 13, ambos da Lei nº 8.429, de 1992. Por fim, será discutida a aplicação da Lei de Improbidade aos servidores públicos no âmbito administrativo, sem se socorrer das vias judiciais, o que exigirá comentar a inusitada decisão do Supremo Tribunal Federal a respeito da suposta necessidade de intervenção do Poder Judiciário e do Ministério Público para cominar as penalidades da Lei de Improbidade Administrativa. 4. O cerne da primeira divergência são os requisitos necessários para a caracterização de enriquecimento ilícito de servidores públicos e a conseqüente aplicação do art. 132, inciso IV, da Lei nº 8.112, de 11 de dezembro de 1990 – Estatuto dos Servidores Públicos Federais, que assim dispõe: Art. 132. A demissão será aplicada nos seguintes casos: IV - improbidade administrativa; 5. Para enquadrar a conduta de um servidor como ato de improbidade administrativa, a Administração deve valer-se da Lei nº 8.429, de 1992 – Lei de Improbidade Administrativa. Nessa norma, estão previstos três tipos de condutas que poderiam configurar ato de improbidade administrativa: atos que importam enriquecimento ilícito (art. 9º), atos que causam lesão ao erário (art. 10) e atos que atentam contra os princípios da Administração Pública (art. 11). Ressalte-se que nada impede que uma mesma conduta se amolde a mais de um tipo simultaneamente. É necessário sublinhar, também, a possibilidade de haver enriquecimento ilícito sem que haja prejuízo ao erário, assim como o inverso. 6. Para analisar a questão, será necessário analisar sobretudo os atos que importam enriquecimento ilícito (art. 9º). 7. De início, porém, esclareça-se certa mixórdia jurídica quando alguns órgãos da Administração cuidam do assunto. Freqüentemente, são versadas simultaneamente duas questões distintas, ainda que conexas. Refiro-me ao art. 9º, inciso VII, e ao art. 13, § 3º, ambos da Lei de Improbidade. Trata-se de duas hipóteses legais diferentes. Embora seja possível praticar tais condutas conjuntamente, os fatos – e as conseqüências – são diversos. Observe-se a redação dos dispositivos: Art. 9° Constitui ato de improbidade administrativa importando enriquecimento ilícito auferir qualquer tipo de vantagem patrimonial indevida em razão do exercício de cargo, mandato, função, emprego ou atividade nas entidades mencionadas no art. 1° desta lei, e notadamente: VII - adquirir, para si ou para outrem, no exercício de mandato, cargo, emprego ou função pública, bens de qualquer natureza cujo valor seja desproporcional à evolução do patrimônio ou à renda do agente público; [...] Art. 13. A posse e o exercício de agente público ficam condicionados à apresentação de declaração dos bens e valores que compõem o seu patrimônio privado, a fim de ser arquivada no serviço de pessoal competente. § 3º Será punido com a pena de demissão, a bem do serviço público, sem prejuízo de outras sanções cabíveis, o agente público que se recusar a prestar declaração dos bens, dentro do prazo determinado, ou que a prestar falsa. 6. O primeiro dispositivo (art. 9º, inciso VII) constitui tipificação de ato de improbidade administrativa, consistente na aquisição, durante o exercício do cargo, de bens desproporcionais à renda. O segundo preceito (art. 13, § 3 º), por seu turno, representa um descumprimento de dever funcional, consistente na recusa da apresentação de declaração de bens ou na sua apresentação falsa. Embora a demissão seja uma penalidade aplicável a ambos os casos, as demais sanções são distintas. 7. Na primeira situação, estará configurado um ato de improbidade administrativa, sujeito, no âmbito de incidência da Lei nº 8.429, de 1992, às sanções de perda da função pública, suspensão dos direitos políticos, pagamento de multa civil, proibição de contratar com o Poder Público, etc. (art. 12, inciso I), todas elas aplicáveis pelo Poder Judiciário. À Administração caberá aplicar, com fundamento no Estatuto dos Servidores Públicos Civis da União, a penalidade de demissão (art. 132, inciso IV). 8. No segundo caso, haverá essencialmente um grave descumprimento de dever funcional, o que tornará o agente público passível tão-somente de demissão, salvo se constatado outro ilícito. 9. Vê-se, portanto, que se está diante de hipóteses legais diferentes. Devem ser tratadas também separadamente. 10. Cuidemos, pois, em primeiro, do ato de improbidade previsto no art. 9º, inciso VII, da Lei nº 8.429, de 1992. 11. Para se alcançar a adequada interpretação desse dispositivo, é preciso contextualizar a questão do combate à criminalidade organizada e à corrupção, vez que o Direito não está desvinculado da realidade histórica de seu tempo. Nesse sentido, cumpre atentar para o desenvolvimento e a proliferação de técnicas dia a dia mais sofisticadas de fraudes de difícil elucidação, que acarretam prejuízos vultosos ao erário e à sociedade. 12. O combate a essa criminalidade organizada tem ocorrido por meio de medidas preventivas e também repressivas. Novos instrumentos de investigação e de combate foram idealizados e positivados para garantir eficácia na aplicação da lei. 13. Posto esse cenário, convém retomar o texto legal da Lei de Improbidade Administrativa. O inciso VII do art. 9º prevê o “tipo” de adquirir bens, no exercício do cargo, em valor desproporcional à renda do agente. Trata-se de evidente sintoma de ilegalidade, caracterizado por sinais exteriores de riqueza incompatíveis com a renda do servidor. 14. Na busca do real alcance dessa norma, surgiram, em síntese, na doutrina e na práxis jurídica, três correntes interpretativas. 15. Há autores que, representando uma primeira corrente, defendem existir uma presunção absoluta no controvertido inciso VII do art. 9º da Lei de Improbidade Administrativa (1a corrente). Como exemplo pode ser citado José Armando da Costa que defende ser “de índole absoluta (jure et de jure) a presunção de enriquecimento do tipo político-disciplinar em comento” (COSTA, José Armando da. Contorno Jurídico da Improbidade Administrativa. Brasília: Brasília Jurídica, 2002). Esse entendimento tem sido seguido, por exemplo, no âmbito do Poder Executivo Federal, pela Corregedoria-Geral da Receita Federal. 16. O entendimento radicalmente oposto, que constitui uma segunda corrente, dá por indispensável a comprovação do fato antecedente ocasionador do enriquecimento, e conduz, conforme se procura demonstrar, à completa ineficácia da norma. Afinal, a se exigir a comprovação do fato antecedente, desnecessário e inútil será o inciso VII do art. 9º, porquanto o ilícito anterior já configurará, por si só, um ilícito penal ou outro ato de improbidade administrativa. 17. A interpretação ora defendida, na linha de uma terceira corrente, é a de que existe uma presunção legal relativa (juris tantum), o que confere carga normativa ao inciso VII, mas admite a explicação e a comprovação da legitimidade do acréscimo patrimonial. Esse entendimento é o que melhor se coaduna com o dever da Administração de obedecer aos princ ípios da razoabilidade e da proporcionalidade. Constitui a mais adequada das interpretações, apontada, aliás, na obra de Hely Lopes Meirelles, nos seguintes termos: Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. 29a ed. São Paulo: Malheiros, 2004). “quando desproporcional, o enriquecimento é presumido como ilícito, cabendo ao agente público a prova de que ele foi lícito, apontando a origem dos recursos necessários à aquisição” (MEIRELLES, Hely 18. Com efeito, o patrimônio desproporcional não pode ser considerado sinal de locupletamento ilícito insuscetível de prova em contrário, embora permita uma presunção legal. Infere-se que os bens desproporcionais à renda ou à normal evolução patrimonial do agente público, adquiridos no exercício do cargo, representam auferimento de vantagem indevida em razão desse exercício (caput do art. 9º) e, portanto, configuram ato de improbidade. Claro que ao servidor sempre será possível comprovar a legitimidade do acréscimo patrimonial, como uma herança, ou um prêmio, ou uma atividade lícita fora dos horários de expediente. 19. Por certo, a lei previu esse caso porque é da experiência comum, da observação do que normalmente acontece, que quem exerce uma função pública e enriquece de forma desproporcional aos seus ganhos (sobretudo se em tempo integral e com dedicação exclusiva), muito provavelmente o faz por meios ilícitos. Além disso, sabe-se que de ordinário é difícil, senão impossível, detectar o “fato antecedente”, gerador do enriquecimento ilícito. 20. Figure-se a hipótese (de resto, não-rara) de servidor cuja remuneração seja da ordem de R$ 5.000,00 (cinco mil reais), mas cujo patrimônio seja composto por embarcações, imóveis suntuosos, veículos de luxo, etc. Seu patrimônio certamente será reputado desproporcional à renda – fazendo presumir o legislador originar-se tal patrimônio da prática de atos de improbidade – não obstante lhe seja facultado comprovar a origem legítima desses bens. 21. Ressalte -se que nenhum sentido faria a presença, na Lei de Improbidade, do inciso VII do art. 9º, caso fosse necessário apresentar provas do “fato antecedente”. Afinal, essas outras condutas já estão tipificadas como crimes e/ou atos de improbidade – além dos atos de improbidade propriamente ditos, os delitos de corrupção passiva, peculato, concussão, advocacia administrativa, entre outros. O propósito desse preceito é justamente permitir a punição do servidor ímprobo contra o qual não se consiga apontar o ato ilegal original. A exigir-se a prova do ilícito antecedente, será convertida em letra morta essa disposição da lei. 22. A dispensa da prova do fato antecedente não acarretará ensejos para a prática de arbitrariedades no serviço público. Sob pena de nulidade, sempre serão concedidas oportunidades ao servidor para esclarecer a origem de seu patrimônio, consoante os procedimentos do Decreto nº 5.483, de 30 de junho de 2005, seguido, se for o caso, do processo administrativo disciplinar. Apenas depois disso é que se poderá aplicar a penalidade ao servidor ímprobo. 23. É preciso ressaltar que esse tipo de ação vem sendo adotada não apenas no Brasil, mas em todo o mundo. Merece menção a Convenção Interamericana contra a Corrupção, firmada em 1996 e promulgada pelo Decreto nº 4.410, de 7 de outubro de 2002. No mesmo sentido, caminhou a Convenção das Nações Unidas contra a Corrupção, firmada em Mérida, México, em 2003, já aprovada pelo Brasil por meio do Decreto Legislativo nº 348, de 18 de maio de 2005, e do Decreto nº 5.687, de 31 de janeiro de 2006. 24. Nesses acordos internacionais, recomendou-se que os países signatários adotassem medidas que permitam penalizar os diferentes tipos de atos relacionados à corrupção, dentre os quais o enriquecimento ilícito. Veja-se o exato teor dessas convenções: Convenção Interamericana contra a Corrupção: Artigo IX Enriquecimento ilícito Sem prejuízo de sua Constituição e dos princípios fundamentais de seu ordenamento jurídico, os Estados Partes que ainda não o tenham feito adotarão as medidas necessárias para tipificar como delito em sua legislação o aumento do patrimônio de um funcionário público que exceda de modo significativo sua renda legítima durante o exercício de suas funções e que não possa justificar razoavelmente. Convenção das Nações Unidas contra a Corrupção: Artigo 20 Enriquecimento ilícito Com sujeição a sua constituição e aos princípios fundamentais de seu ordenamento jurídico, cada Estado Parte considerará a possibilidade de adotar as medidas legislativas e de outras índoles que sejam necessárias para qualificar como delito, quando cometido intencionalmente, o enriquecimento ilícito, ou seja, o incremento significativo do patrimônio de um funcionário público relativos aos seus ingressos legítimos que não podem ser razoavelmente justificados por ele. 25. No Direito Comparado, também não é estranha a tipificação do enriquecimento ilícito. Na Argentina, por exemplo, o art. 268 do Código Penal prevê a possibilidade de incriminação do funcionário público, ou ex-funcionário, que não justifique o aumento apreciável de seu patrimônio, ou de pessoa interposta, verificado durante o exercício de sua função. Dispositivo semelhante se encontra no art. 412 do Código Penal da Colômbia, assim como no art. 224 do Código Penal mexicano. 26. Para atender a essas convenções internacionais e pondo em prática a Estratégia Nacional de Combate à Lavagem de Dinheiro – ENCLA, o Presidente da República enviou ao Congresso Nacional, em junho de 2005, o projeto de lei que tipifica o enriquecimento ilícito como crime contra a Administração Pública. Foi proposta a seguinte redação: Enriquecimento ilícito Art. 317-A. Possuir, manter ou adquirir, para si ou para outrem, o funcionário público, injustificadamente, bens ou valores de qualquer natureza, incompatíveis com sua renda ou com a evolução de seu patrimônio: Pena – reclusão, de três a oito anos, e multa. Parágrafo único. Incorre nas mesmas penas o funcionário público que, embora não figurando como proprietário ou possuidor dos bens ou valores nos registros próprios, deles faça uso, injustificadamente, de modo tal que permita atribuir-lhe sua efetiva posse ou propriedade. 27. Caso seja adotada essa medida, esse tipo de sanção não ficará limitado ao âmbito civil (como ocorre hoje por meio da Lei de Improbidade Administrativa), mas será também estendido para a seara penal. 28. De notar-se que é essa também a lógica que preside a tipificação dos crimes de lavagem de dinheiro (Lei nº 9.613, de 3 de março de 1998), fixando-a como infração autônoma em relação aos delitos antecedentes. 29. Não se pode ignorar, portanto, que a interpretação adequada ao art. 9º, inciso VII, da Lei de Improbidade é a de conferir-lhe uma presunção relativa de enriquecimento ilícito, dispensando-se a prova do fato antecedente. 30. Dessa maneira, caberá à Administração – ou ao Ministério Público no âmbito judicial – provar apenas a aquisição pelo agente, durante o exercício do cargo, de bens dotados de valor desproporcional à renda. É esse o fato-base, o fato-tipo previsto na Lei de Improbidade Administrativa. E esse é o ônus da prova para a “acusação”. 31. Por sua vez, ao agente será facultado afastar a presunção relativa de que o acréscimo desproporcional do patrimônio não tipifica enriquecimento ilícito, porque não representaria a percepção de vantagem indevida em decorrência do exercício do cargo. Para tanto, poderá demonstrar a origem lícita da variação de seu acervo patrimonial. 32. A propósito, essa justificativa da variação patrimonial poderá ser feita anteriormente a qualquer questionamento administrativo ou judicial. Com efeito, essa previsão está expressa no art. 2º, § 5º, da Lei nº 8.730, de 10 de novembro 1993, que torna obrigatória a declaração de bens para o exercício de cargos públicos nos seguintes termos: Art. 2 º [...] [...] § 5º Relacionados os bens, direitos e obrigações, o declarante apurará a variação patrimonial ocorrida no período, indicando a origem dos recursos que hajam propiciado o eventual acréscimo. 33. Aliás, essa mesma lei prevê que o Tribunal de Contas da União poderá exigir, a qualquer tempo, a comprovação da legitimidade da procedência dos bens acrescidos ao patrimônio do servidor (art. 2º, § 7º, alínea ´b`). A contrario sensu, se não for comprovada a legitimidade da procedência, o servidor terá agido irregularmente. 34. Não se trata aqui, por conseguinte, de qualquer forma de inversão do ônus da prova. O fato em que se funda a ação é a aquisição de bens desproporcionais à renda, e isso terá que ser provado pela Administração ou, conforme o caso, pelo Ministério Público. O que ocorre aí é uma hipótese de presunção legal, pela qual se dispensa o órgão fiscalizador da prova do fato aceito pela lei. Bastará que prove o fato-base, autorizador da presunção legal. Como tal presunção é relativa, faculta-se ao acusado fazer prova capaz de afastar a ilicitude de seu incremento de renda, que decorreria de um fato já demonstrado – o aumento desproporcional do patrimônio. 35. Não se sustenta o argumento, assim, o argumento apontado por alguns de que o Congresso Nacional teria alterado o texto original do projeto de lei e retirou a previsão original que previa a inversão do ônus da prova. Em verdade, o Poder Legislativo tãosomente agiu com coerência e rigor técnico-jurídico, uma vez não se trata de inversão do ônus da prova, mas sim de presunção legal que dispensa a prova do fato antecedente. São institutos jurídicos distintos. Agiu com acerto o legislador. 36. Convém transcrever aqui a lição de Moacyr Amaral Santos a respeito das presunções judiciais e legais: “A presunção forma-se, portanto, por via do raciocínio do juiz. Será ela a conseqüência que o juiz tira do fato conhecido, guiando-se por aquilo que ordinariamente acontece (quod plerumque fit). “Ocorre, todavia, que o legislador, sem desconhecer o caráter lógico das presunções, compreendeu que, em dados casos, deixar ao juiz o soberano poder de estabelecê-las, ou não, traria não poucas perturbações à ordem jurídica. Ou, mais precisamente, porque razões de ordem pública exigem maiores garantias a determinadas relações jurídicas, o próprio legislador, nesses casos, substituindo-se ao juiz, faz o raciocínio e, à conclusão do mesmo extraída, dá caráter impositivo quanto à sua eficácia probatória. O raciocínio lógico, noutros casos conferido ao juiz, nesses é antecipadamente feito pelo legislador, consagrando-o num preceito legal que o juiz deverá obedecer.” (SANTOS, Moacyr Amaral. Primeiras linhas de direito processual civil. São Paulo: Saraiva, 2002.) 37. Ademais, não há empecilho em conciliar a interpretação do inciso VII com a cabeça do artigo 9º. Enquanto o caput faz um enunciado genérico, na forma de tipo aberto, atribuindo valoração jurídica a uma gama indeterminada de condutas, o inciso VII afirma que a aquisição de bens em valor desproporcional à renda no exercício do cargo é uma dessas condutas. Não se pode acrescentar às palavras da lei o que ela não diz, a título de interpretá-la. 38. Frise-se que o caput do dispositivo se encerra com a expressão “e notadamente”, assinalando que se trata de condutas relacionadas ao enriquecimento ilícito, embora sejam fatos distintos uns dos outros. Foi empregada a conjunção aditiva “e”, representando soma de condutas caracterizadoras da improbidade. Seria diferente se o dispositivo previsse um tipo geral no caput e apenas especificasse as condutas que estariam subsumidas, utilizando, por exemplo, a seguinte expressão: “por meio das seguintes condutas”. Aí sim seriam enriquecimento ilícito apenas as que se enquadrassem, a um só tempo, na cabeça do dispositivo e em seus incisos. Não é essa, porém, a hipótese normativa em exame. 39. Em caso verificar-se a existência de patrimônio incompatível, o servidor será chamado a se explicar, ocasião em que poderá esclarecer a legitimidade de seu patrimônio. Se suas explanações não forem satisfatórias, terá ele incidido no citado art. 9º, inciso VII, da Lei de Improbidade, cabendo impingir-lhe a sanção de demissão prevista no citado art. 132, inciso IV, da Lei nº 8.112, de 1990 (“Art. 132. A demissão será aplicada nos seguintes casos: IV - improbidade administrativa;”). 40. Convém elucidar que a exata relação da Lei nº 8.429, de 1992, com a Lei nº 8.112, de 1990. A Lei de Improbidade Administrativa foi editada para auxiliar o combate à corrupção no serviço público, e não para embaraçá-lo. Os tipos ali previstos devem ser utilizados como parâmetro para a aplicação, no âmbito administrativo, da penalidade de demissão prevista no art. 132, inciso IV, do Estatuto dos Servidores Públicos Federais. Noutras palavras: a Lei de Improbidade não revogou a previsão de demissão administrativa por improbidade; ao contrário, tornou claras as condutas que ensejam a aplicação da demissão por improbidade administrativa, reduzindo a discricionariedade do administrador na classificação de atos de improbidade. 41. Quer-se com isso esclarecer que não há necessidade de intervenção do Ministério Público e do Poder Judiciário para aplicar a penalidade administrativa de demissão, o que fica claro à luz do disposto no art. 12, caput, da Lei nº 8.429, de 1992, que reitera a afirmação do princípio da separação entre as esferas administrativa e judicial, nos termos seguintes: Art. 12. Independentemente das sanções penais, civis e administrativas, previstas na legislação específica, está o responsável pelo ato de improbidade sujeito às seguintes cominações. 42. A intervenção do Ministério Público e do Poder Judiciário é necessária tão-só para aplicar as sanções próprias da Lei nº 8.429, de 1992: perda de bens ou valores, suspensão dos direitos políticos, multa, etc. Mas a previsão dessas penalidades na Lei de Improbidade não impede que, pelos mesmos fatos, a Administração possa punir o servidor ímprobo com a demissão. O poder público não pode omitir-se diante de ilícitos e tão-somente aguardar o sancionamento judicial. Cada esfera aplica as medidas de sua competência. Do contrário, a Lei de Improbidade se terá convertido em auxiliar da impunidade, e não do combate à corrupção. Interpretação contrária conduziria ao absurdo: o poder disciplinar da Administração só permitiria a punição dos servidores por faltas leves, mas as faltas graves, tais como os atos de improbidade, permaneceriam impunes na esfera administrativa. 43. Assim, embora, à primeira vista, o entendimento expresso pelo ministro Eros Grau, do Supremo Tribunal Federal, como relator do RMS 24699/DF (publicação no Diário da Justiça, 1º jul. 2005), pareça contrariar toda a jurisprudência consolidada sobre o tema, em verdade não pode tal voto ser tomado no sentido que se lhe tem emprestado. 44. No citado julgamento, o relator expôs que “verificada a prática de atos de improbidade no âmbito administrativo, caberia representação ao Ministério Público para ajuizamento da competente ação e não a aplicação de demissão”. Aduza-se, de logo, que esse argumento não foi o mesmo pelo qual os demais ministros da Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal acompanharam o relator (vide votos dos ministros Carlos Ayres Britto e Cezar Peluso). Como, no entanto, eles concordaram com a conclusão do relator, ante a flagrante ilegalidade da demissão no caso então examinado, a ementa foi elaborada de maneira dúbia e mal articulada, com cabe exclusivamente no voto do relator, conquanto os demais ministros não hajam manifestado seu acordo com essa observação do ministro Eros Grau. Tal observação, registre-se, não encontra ressonância em outros julgados daquela Corte, nem em outros tribunais do país. 45. Um entendimento nessa linha não pode, evidentemente, prosperar, tendo em conta os princípios e o sistema do direito brasileiro. É tranqüila no Direito brasileiro a independência das instâncias civil, penal e administrativa. Cada penalidade é aplicada na sua órbita própria. A Administração não pode aplicar as sanções previstas na Lei nº 8.429, de 1992, mas certamente poderá utilizá-la como subsídio para demonstrar o ato de improbidade lá previsto e puni-lo com base no art. 132, inciso IV, da Lei nº 8.112, de 1990. Insista-se que a Lei de Improbidade não veio dificultar as punições por corrupção, mas sim facilitá-las. Ela não revogou a previsão do Estatuto dos Servidores Públicos de demitir servidores que incorressem em improbidade. Ao contrário, o art. 12 da Lei nº 8.429, de 1992, que prevê as penas para os atos de improbidade, é expresso ao permitir a concomitante punição na esfera administrativa, conforme já apontado acima. 46. Portanto, há que afastar a tese de que somente o Poder Judiciário poderia demitir o servidor por improbidade. A própria Constituição da República prevê no art. 41, § 1º, inciso II, a possibilidade de demitir o servidor mediante processo administrativo disciplinar. Por certo, essa demissão não pode ocorrer apenas nos casos de infrações leves, mas sobretudo em casos de maior gravidade. Deve ser afastada, pois, a interpretação mencionada no citado voto do ministro do STF, já que esse entendimento não encontra ressonância em outros julgados da corte, nem em outros tribunais do país. 47. Seguindo essa interpretação, não se busca aplicar punições aos servidores que cometerem erros formais no preenchimento de sua declaração de bens. A esses não poderá ser impingida qualquer penalidade, uma vez que bastará o esclarecimento da origem dos bens para afastar a incidência da Lei de Improbidade. 48. Aduza-se que não há qualquer incompatibilidade entre o dispositivo da Lei nº 8.429, de 1992, e a presunção de inocência prevista na Constituição. Uma perspectiva tal é, no mínimo, simplista e reducionista, pois resta evidente que o inciso LVII do art. 5º da Constituição da República (“LVII - ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado da sentença penal condenatória;”), que institui importante garantia no processo penal, não fica ferido pela Lei de Improbidade Administrativa, porque será exigido, de qualquer modo, que a Administração demonstre a desproporção do patrimônio do servidor com sua renda. 49. Não se pretende considerar ninguém culpado antes do devido processo administrativo disciplinar. Não fere a norma constitucional a existência de uma presunção legal de que, ao se constatar a desproporção entre patrimônio e renda, conduza ao reconhecimento da improbidade. Mesmo não se aplicando ao processo administrativo as regras do Direito Processo Penal, compará-las é válido, uma vez que no processo penal as garantias individuais são maximizadas em razão da gravidade da condenação. Apesar dessa maximização das garantias fundamentais, as presunções legais não são desconhecidas no processo penal; ao revés, são freqüentemente empregadas, especialmente quando previstas em lei. De notar-se que o Código de Processo Penal prevê que incumbe a cada parte provar suas alegações (art. 156). Não é certo que à acusação cabe provar todos os elementos do crime. Em verdade, cabe-lhe comprovar a materialidade do fato e sua autoria, não se lhe impondo o ônus de demonstrar, por exemplo, a inexistência de excludente de ilicitude ou de culpabilidade. O ônus da prova dessas excludentes recai sobre a defesa, porquanto se presumem a antijuridicidade e a culpabilidade, ambas elementos do crime. 50. Em suma, a interpretação ora defe ndida exige que a Administração comprove a desproporção do patrimônio do agente público com sua renda, presumindo-se a prática de infração anterior. Ao servidor incumbirá o ônus de comprovar a legitimidade de seu patrimônio. 51. Cabe lembrar, também, que o Presidente da República enviou ao Congresso Nacional, em junho de 2005, um projeto de lei que tipifica o enriquecimento ilícito como crime contra a Administração Pública. Essa nova conduta típica harmoniza-se perfeitamente com o raciocínio ora desenvolvido, ou até mesmo o aprofunda, pois torna crime o que é hoje é apenas ilícito civil-administrativo. 52. Esse caso é distinto do art. 13 da Lei de Improbidade, mencionado no início deste documento. Trata-se de hipótese diversa, embora muitas vezes abordadas conjunta e equivocadamente por órgãos da Administração. O art. 13, caput, estabelece um dever funcional aos agentes públicos consistente na apresentação anual da declaração de bens. Esse dever pode ser descumprido pela recusa da apresentação do documento ou pela entrega de informações falsas. 53. Por meio dessas exigências, pretende-se garantir o cumprimento dos deveres estatutários de honestidade e de lealdade para com a instituição, conforme exigência do art. 116 da Lei nº 8.112, de 1990: Art. 116. São deveres do servidor: [...] II - ser leal às instituições a que servir; [...] IX - manter conduta compatível com a moralidade administrativa; 54. O § 3º do mesmo art. 116 prevê que a sanção para o descumprimento do dever funcional será a demissão. Cuida-se de infração administrativa distinta daquela mencionada no art. 9º, inciso VII. Nesse caso, o fundamento da decisão é o próprio § 3o do art. 13 da Lei nº 8.429, de 1992, e não a “improbidade administrativa” tratada no art. 132, inciso IV, da Lei nº 8.112, de 1990. 55. Esclareça-se que a lei presume a ilegalidade funcional do servidor que, no exercício do cargo, enriquece desproporcional e injustificadamente. Nesse caso, a relação com o cargo fica evidenciada. Entretanto, caso o servidor comprove a legitimidade de seu patrimônio (demonstrando que seu incremento não se deveu a ilegalidade praticada no cargo), não haverá ato de improbidade. Até mesmo se o enriquecimento decorrer de ilegalidade praticada no campo privado (sem conexão com o cargo), o servidor responderá pelo eventual crime praticado, mas não por ato de improbidade. Certo é que a lei presume, pelo que ordinariamente acontece, que o enriquecimento desproporcional e injustificado se deveu ao uso indevido do cargo público, permitindo-se ao agente a prova em contrário. 56. Não custa realçar que todas essas normas de combate à corrupção e à improbidade administrativa possuem fundamento constitucional. No capítulo que trata da Administração Pública, a Constituição da República prevê a aplicação de severas penalidades àqueles que praticam atos em detrimento de seus deveres funcionais e éticos: Art. 37. [...] [...] § 4º Os atos de improbidade administrativa importarão a suspensão dos direitos políticos, a perda da função pública, a indisponibilidade dos bens e o ressarcimento ao erário, na forma e gradação previstas em lei, sem prejuízo da ação penal cabível. 57. Em defesa da interpretação ora defendido para o inciso VII do art. 9º da Lei de Improbidade, cabe transcrever as palavras do professor Jorge Hage Sobrinho, proferidas no seminário “Improbidade Administrativa e Enriquecimento Ilícito”, ocorrido em outubro de 2005 em Brasília. Na ocasião, o palestrante lembrava que os problemas enfrentados pelo país nessa área residiam sobretudo na impunidade e na tibieza das ações de combate aos ilícitos, e não no autoritarismo exacerbado ou no desprezo ao direito de defesa dos acusados. E concluiu da seguinte maneira: “Aos que, de boa-fé, entendem de modo diverso, cumpre lembrar que já é hora de deixar de pensar as regras de Direito Administrativo e do Direito Processual Penal com aquele viés garantista exacerbado, que desempenhou papel fundamental, e até heróico, nos tempos da ditadura, em décadas passadas, mas que não tem lugar hoje, em tempos de democracia plena, no pleno funcionamento do Estado Democrático de Direito, onde o verdadeiro eixo do problema da persecução criminal ou administrativa se deslocou já para outras questões, dentre as quais se destaca a notória fragilidade do Estado e de seu aparato jurídico-administrativo para enfrentar o crime, a corrupção e a improbidade; e é isso – e não um Estado forte – o que hoje ameaça a própria credibilidade, continuidade e solidez da democracia conquistada.” 58. Sintetizando todo o exposto, a correta interpretação do art. 9º, inciso VII, da Lei nº 8.429, de 1992, deverá ser a de que existe ali uma presunção legal relativa, exigindo-se da Administração o ônus da prova da desproporção dos bens adquiridos pelo agente público, mas facultando a este a prova da legitimidade de sua origem patrimonial. Entendimento diverso, isto é, exigir a prova do nexo de causalidade do suposto enriquecimento, converterá em letra morta o dispositivo legal, vez que sua aplicação será nenhuma – o que certamente não atende à boa e melhor hermenêutica. Caso se verifique tal desproporção e não haja explicação legítima de sua origem, a Administração deterá o poder-dever de aplicar a penalidade de demissão, lastreada no art. 132, inciso IV, da Lei nº 8.112, de 1990. 59. Afora isso, o art. 13 da Lei de Improbidade Administrativa institui um dever disciplinar ao servidor, configurando falta funcional a recusa dos dados ou a prestação de informações falsas. Essa ilegalidade acarretará demissão com base no § 3º do dispositivo, e não com fundamento no art. 132, inciso IV, da Lei nº 8.112, de 1990. 60. Por fim, a demissão decorrente da prática de ato de improbidade pode ser aplicada pela própria Administração, sem necessidade de socorrer-se do Ministério Público e do Poder Judiciário. O fundamento do ato demissório será o art. 132, inciso IV, do Estatuto dos Servidores Público Federais, utilizando como parâmetro para identificar os atos de improbidade aqueles conceitos da Lei nº 8.429, de 1992. Ao Judiciário e ao Ministério Público só são reservadas a aplicação das penas especificamente previstas na Lei nº 8.429, de 1992, mas não a demissão decorrente da infração disciplinar.