Habitar em um novo bairro de luxo de Salvador Um olhar

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Habitar em um novo bairro de luxo de Salvador
Um olhar antropológico sobre a moradia de alto padrão
Yann Pellissier1
Resumo:
Como habitam os moradores do novo bairro de condomínios fechados de prédios de alto padrão da
cidade de Salvador-BA, Greenville? O que procuram nesta moradia fortificada (Frúgoli, 2005)?
Como conseguem habitar – no sentido de apropriar-se ao mundo – neste espaço surorganisé
(Haumont, 2001), concebido pelos urbanistas e arquitetos (Lefebvre, 1970) e onde domina a ação
instrumental (Santos, 2006)? Não existem espaços diferenciais (Lefebvre, 1970), “formas
alternativas de racionalidade” (Santos, 2006), ou “boas experiências urbanas” (Magnani, 2002) na
vida destas elites soteropolitanas? Procuro investigar esta questão na minha pesquisa. Com muita
cautela. De um lado, há a recear um effet-tribu: pensando conhecer o nosso trabalho, o grupo
privilegiado estudado pode decidir usá-lo para se proclamar como classe dominante, alimentar o
seu narcisismo e exaltar a sua singularidade (Abélès, 2000). Meu objetivo não é cobrir de um verniz
anti-conformista a adesão das elites à ordem estabelecida. No entanto, de um outro lado, não
podemos retirar todas esperanças às tentativas destas populações, elas habitam e produzem espaços,
às vezes, subversivos. É este dilema que me interessa, esta contradição, este paradoxo que quero
investigar. Ele tem um alcance profundamente político. Prestar atenção às formas de
resistências dos moradores de Greenville e considera-lo um lugar dos possíveis leva a delicada
questão de como todos, podem se encontrar na luta contra a cidade capital?
Palavras chave:
Antropologia urbana, habitar, condomínio fechado, estudo das elites.
1
Formado em antropologia (Graduação e Mestrado), atualmente aluno de doutorado do Programa de PósGraduação em Antropologia (PPGA) da Universidade Federal Da Bahia (UFBA), especializado em Antropologia
Urbana.
Entrei no curso de doutorado em antropologia no início do ano de 2014, redigindo este
artigo já consumi, portanto, quase um terço do tempo disponível para defender a minha tese.
Aqui, neste espaço de discussão oferecido pelos encontros da REABANNE, gostaria voltar
nestes três semestres de formação e expor a situação da minha pesquisa de doutorado à
profissionais da área, antropólogos interessados pela mesma temática, a fim de discutir e
melhorar as minhas reflexões, repensar a minha postura e tentar avaliar o caminho já percorrido
nesta aventura acadêmica.
Formado antropólogo, a antropologia urbana – temática deste Grupo de Trabalho (GT)
– não foi minha especialidade: minha pesquisa de mestrado se desenvolveu em um povoado de
1.500 habitantes da Chapada Diamantina, no interior do Estado da Bahia – o Vale do Capão.
Na verdade, trabalhando com os impactos do turismo e o conceito de neo-ruralidade, a questão
da urbanização não deixava de ser primeira; a população que me interessava, os neo rurais e
viajantes, eram definidos por vir da cidade. No entanto, minha abordagem era longe de ser
inspirada pela antropologia urbana, realizei um campo dito mais clássico, um ano de “estar lá”,
em uma realidade distante e rural, pouco povoada. Assim, iniciando uma pesquisa de quatro
anos sobre um novo bairro de condomínios fechados da cidade de Salvador, grande metrópole
contemporânea, além de questões metodológicas ligadas a práticas etnográficas em meio
urbano tive igualmente que me familiarizar com um novo campo teórico.
Seguindo o que penso ter entendido do método antropológico, é a partir de uma revisão
bibliográfica densa sobre a temática e a área estudada e com a construção de uma discussão
teórica capaz de delimitar um objeto de estudo que o pesquisador começa suas investigações. No
campo, esta discussão teórica serve de guia, é a delimitação do objeto que orienta as escolhas
metodológicas e organiza o levantamento de dados. A própria construção do objeto antropológico
começa nesta fase de investigação, no diálogo entre um objeto teórico e algumas experiências
empíricas, em um vaivém constante que acaba no ponto final da redação da tese. Como construir
um objeto em antropologia necessita esta presença do campo, no momento atual da minha
pesquisa, ainda na primeira etapa, só posso tratar da sua delimitação: são questões de ordem
metodológica e teórica que gostaria expor neste GT, são duvidas próprias à antropologia e aos
estudos urbanos que quero aprofundar com vocês. Trato, em um primeiro tempo, de discussões
que devem ser conhecidas pelos membros desta reunião de trabalho, mas nas quais preciso voltar
para falar da minha pesquisa: as reflexões existentes sobre a possibilidade de uma antropologia
urbana ocupou uma boa parte deste primeiro terço de doutorado. Depois, apresento o local onde
vai se realizar as investigações, abordo de mais perto o objeto da minha tese para levantar algumas
perguntas que tentarei resolver durante o meu trabalho de campo.
A possibilidade de uma antropologia urbana
O estudo da cidade não foi a obra privilegiada pelos clássicos da minha área, sempre
preferiram investigar a vida nas ilhas da Melanésia ou nas aldeias indígenas da América do Sul
do que na cidade onde moravam. Na disciplina balbuciante do início do século passado, a cidade
não parecia interessar aos antropólogos. O fenômeno urbano não era um objeto exótico, distante
ou singularizado (Magnani, 2003). Os modelos tradicionais de objeto antropológico eram as
bandas e tribos (La Pradelle, 2000), os pequenos grupos estudados em um quadro delimitado,
as sociedades simples, distantes, primitivas. No caso da cidade, restituir a totalidade de um
universo social, a sua cultura (2000), parecia uma tarefa impossível. A densidade demográfica
e a complexidade das inter-relações que sugere a cidade, foi um aspecto determinante na difícil
adaptação dos métodos etnográficos dos clássicos ao fenômeno urbano: “as estratégias da
pesquisa etnográfica, à primeira vista, não a credenciariam para deslindar as complexidades da
cidade contemporânea, imersa no sistema globalizado” (Magnani, 2002).
De fato, o projeto de uma antropologia na cidade não era tão evidente, como falar da
cultura de um povo se conhecemos só uma parte mínima dele? Ao invés da época de
Malinowski, grande clássico da antropologia, o etnógrafo urbano não tem a condição de
encontrar todos os atores de carne e osso que moram em uma cidade: “da janela de seu
apartamento não tem diante de si o espetáculo da vida social em sua totalidade” (Magnani,
1996). Na verdade, o principal problema com os estudos urbanos é que eles levantaram uma
questão já crucial para a antropologia: quais são as possibilidades e limites da generalização
do conhecimento etnográfico? É por dúvidas sobre as respostas a esta questão que os dois
projetos da disciplina – entender “the condition of human beings living in relationships [e/ou]
describe, interpret and understand specific historical situations” (Ingold, 1996: 74), a
formulação de “proposições sintéticas válidas para toda sociedade humana [e/ou] a “análise do
particular” (Viveiro, 2002: 299) – adaptaram-se com dificuldade ao contexto urbano.
Os primeiros antropólogos que se atreveram a realizar etnografias urbanas foram
aqueles interessados pela busca do particular, pela interpretação de uma situação histórica
específica. Eles legitimaram a relevância dos campos urbanos impondo um recorte empírico à
realidade investigada. Havia, no meio urbano, uma saída para a cultura, existia subculturas e
comunidades nos bairros das cidades, micro espaços justapostos onde encontrava-se uma rica
diversidade cultural. Assim, a antropologia urbana começou “identificar e compreender as
diferenças socioculturais dentro das grandes cidades” (Velho, 1989).
“Os mesmos pacientes métodos de observação despendidos por antropólogos
tais como Boas e Lowie no estudo da vida e maneiras do índio norteamericano deveriam ser empregados ainda com maior sucesso na investigação
dos costumes, crenças, práticas sociais e concepções gerais de vida que
prevalecem em Little Italy, ou no baixo North Side de Chicago, ou no registro
dos folkways mais sofisticados dos habitantes de Greenwich Village e da
vizinhança de Washington Square em Nova York” (Apud Park in Magnani,
2003).
O estudo na cidade não deixou de ser problemático para os antropólogos. Se o recorte
empírico permitia a generalização das observações etnográficas para desenhar uma subcultura
urbana, a “tentação da aldeia”, o recorte imposto à paisagem urbana pela antropologia na
cidade, não permitia à própria de existir embora “variável independente” e “espaço não
homogêneo” (Magnani, 1996). Abordada como “fragmentos disparates, soma de povoados e
tribos, na cidade dos antropólogos a cidade desaparece” (La Pradelle, 2000). Em outras
palavras, o rigor do recorte empírico que tinha permitido uma antropologia na cidade, impedia
uma possível generalização à cidade ou à sociedade onde o bairro estudado se encontrava. Para
poder chegar neste agregado maior precisava de uma etapa de abstração suplementar, os
primeiros antropólogos urbanos, interessados pelo estudo do particular, deviam inspirar-se do
outro projeto da antropologia: efetuar uma generalização a partir da comparação de vários casos
etnográficos urbanos. A operação de generalização que procura invariantes culturais a partir da
comparação da cultura de várias tribos espalhadas no planeta parecia ser a mesma que aquela
que tentaria, a partir da comparação de subculturas urbanas diferentes, chegar à cidade, à
sociedade maior onde se situam esses locais de pesquisa.
Porém, no segundo projeto antropológico, a possibilidade de generalização vinha da
capacidade de ampliar os exemplos de variabilidade cultural e tentar, comparando esta
diversidade de casos etnográficos, abrindo um diálogo entre culturas, entender um pouco mais
da Cultura, da vida social dos seres humanos. Nesta perspectiva, os casos urbanos não pareciam
muito úteis para o projeto antropológico. De um lado, se da generalização das observações em
uma aldeia, chegávamos à cultura de um povo, a generalização das observações realizadas em
um campo urbano levava, no máximo, à delimitação de uma variante local da cultura da
sociedade complexa onde se encontrava. A cultura dos bairros populares da periferia de
Chicago não podia ser da mesma natureza que a cultura dos Dogons ou dos Bororos, o conjunto
cultural descrito pelos etnógrafos nas ilhas trobriandeses não formava uma ordem simbólica do
mesmo tipo que os elementos compartilhados pelos moradores de uma favela do Rio.
Subculturas urbanas não podiam ser comparadas com culturas. Eram generalizações de ordem
distintas. Mesmo reconhecidas, as culturas das grandes metrópoles não tinham o mesmo crédito
que as culturas das tribos indígenas. Para uma possível comparação, talvez, teria que trabalhar
com entidades similares, apreender a cidade, a sociedade, a cultura como o todo onde se
encontram estas subculturas. Ou seja, analisar a sociedade complexa, o projeto evitado pelos
primeiros pesquisadores. Mas, na medida que este segundo antropólogo era da mesma
sociedade que aquela estudada pela antropologia urbana – cuja crença judeu-cristão, sistema de
troca capitalista e forma de organização política democrática já formavam um modelo
conhecido – ele não tinha interesse em usar os estudos urbanos. Ele não analisava sua própria
sociedade, esta, lhe servia para estabelecer um diálogo intercultural pelo fato de ser nativo
daquela cultura, mas não era o foco das suas investigações. Pesquisando o sistema de troca, as
crenças, as formas de organização política ou de parentesco, um bairro de Paris dificilmente
podia trazer novas contribuições para uma comparação que permitisse pensar os universais e
invariantes culturais da mente humana.
Nesta situação, as possibilidades da antropologia urbana ficavam bastante limitadas: a
antropologia na cidade e não da cidade, esta última aparecia só como um contexto exterior
opaco. Nenhum diálogo interdisciplinar tinha muita relevância.
Se é verdade que uma aldeia bororo tem um significado, e que a cidade grega
está cheia de sentidos, iremos por isso construir amplas aldeias bororos cheias
de signos da Modernidade? (Lefebvre, 1968: 69).
Da produção do espaço de Henri Lefebvre (1974) à globalização de Milton Santos
(2000), a cidade tornou-se o lugar de vida privilegiado dos seres humanos contemporâneos;
hoje, mais da metade do planeta mora na cidade. A sociedade urbana é uma sociedade de fluxos,
flexível, instantânea, maleável, é o lugar onde a velocidade e a simultaneidade do mundo em
rede se expressa com mais vigor. Envolvendo “novas maneiras dominantes pelas quais
experimentamos o tempo e o espaço” (Harvey, 1999), acentuando “o novo, o efêmero, o fugaz,
o contingente da vida moderna” (), a sociedade urbana é esta sociedade pós-industrial, pós
moderna, liberal e capitalista, midiática, sempre iluminada pelos projetores do espetáculo
(Debord, 1967). A sociedade contemporânea. O antropólogo não podia mais ignorar que o seu
campo, e qualquer que fosse, estava inserido em um complexo contexto cultural global
urbanizado onde existia uma luta feroz para a hegemonia: o seu esforço de contextualização do
local de pesquisa, indispensável para a realização de qualquer etnografia, devia dar conta desta
realidade. Ele não podia mais “pôr de lado a ‘grande narrativa’ do capitalismo e, assim, se
esquivar das poderosas questões associadas à hegemonia global do Ocidente” (Gupta e
Ferguson 1992; apud Sahlins, 1997: 55).
Assim, talvez por força maior – não havia mais “aldeias intocadas” a descobrir –,
provavelmente devido à expansão da globalização capitalista, que embaçou fronteiras culturais
que pareciam impermeáveis, sobretudo pela necessária adaptação da disciplina à atualidade da
sua época urbana, a antropologia teve que repensar o seu conceito de cultura.
O fim do colonialismo político formal e a aceleração dos processos de
mundialização dos fluxos econômicos e culturais tornaram mais evidente o
caráter desde sempre ideológico e artificial de algumas das ideias em questão:
a mônada primitiva não era primitiva e nunca foi monádica (Viveiro, 2002:
315).
A descoberta “de um nível intermediário entre a escada microsocial e a cidade como
referência global e inacessível, entre a observação na cidade e a sua transformação em saber
urbano” (Agier, 1996) foi facilitada por esta renovação ontológica da disciplina. A antropologia
esforçou-se, com dificuldades, de “substituir ontologias essencialistas por ontologia
relacionais” (Boltanski; Chiapello, 2009) e esta mudança combinou estreitamente com os
estudos urbanos: com um conceito de cultura mais flexível, menos hermético, a análise da
cidade era mais realizável. Os estudos interessaram-se à copresenca, à continuidade entre as
pessoas, à autopoiese – “processo pelo qual cada um de nós é construído por histórias pessoais
de auto constituição criativa” (Pina-Cabral; Silva, 2013: 8). Diante do risco apontado por
Lefebvre (1968: 69) – que “aquele que conceba a cidade e a realidade urbana como sistema de
signos [esteja] entregando-as implicitamente ao consumo como sendo objetos integralmente
consumíveis: como valor de troca em estado puro” –, o conceito de cultura começou a ser usado
com cuidado pela antropologia urbana, se não foi também pela antropologia em geral. Havia
novas “trilhas” a seguir para reagregar a cidade (Latour, 2012):
Do olhar de perto e de dentro, próprio da etnografia, para um olhar
distanciado, em direção, aí sim, a uma antropologia da cidade, procurando
desvelar a presença de princípios mais abrangentes e estruturas de mais longa
duração (Magnani, 2002).
As dificuldades que perpassavam todas as discussões sobre o interesse e a possibilidade
de realizar uma antropologia da cidade começaram a se dissipar, deixando o problema que os
antropólogos tinham encontrado aparecer com mais clareza: o temor sempre foi de analisar a
sua própria sociedade. A sociedade complexa impossível a alcançar, aquela, opaca, que
assombrava as pesquisas urbanas, era a sociedade do pesquisador. Assim sendo, a primeira
condição para sua análise, em antropologia, é a capacidade de um distanciamento próprio ao
nosso método, difícil de realizar em um contexto familiar. Quando se trata de investigar um
campo urbano os antropólogos consideram que a etnografia pode ser de mais curta duração pois
o pesquisador já conhece a língua e a sociedade onde vai realizar as investigações; eles
consideram também que, na medida em que o campo é conhecido, ele deve adotar uma
estratégia etnográfica que o permita uma certa distância com o objeto de estudo. Com efeito,
quando o antropólogo pretende estudar a sua sociedade, ele tem que poder sair dela.
Ora, se o estudo concerne grupos marginais como criminosos e prostitutos, a distância
necessária cuja é questão aqui, mesmo na sua cidade, não parece tão difícil. Quando se trata do
seu próprio grupo familiar, quando o sujeito ocupa um lugar no sistema do outro, o
distanciamento pode pedir mais esforço, mas ainda pode ser alcançável: a ideia é de delimitar
este subgrupo humano, “antropologicamente”2, para depois poder se afastar dele. Porém, no
caso de uma abordagem da cidade como conjunto, o ponto mais delicado para o antropólogo
é se distanciar desta sociedade complexa na qual vive, da cultura ocidental capitalista que
expressa a cidade. A questão torna-se profundamente política. Considerar os comportamentos
e discursos de uma população urbana específica com distância, qualquer que seja o grupo
estudado, não pede a mesma reflexão que distanciar-se de um modelo de sociedade, longe de
ser homogêneo, do qual o antropólogo, tanto como profissional, quanto como cidadão, tenta
desesperadamente se afastar.
De fato, acredito que o objetivo da própria disciplina é de melhorar a vida em comum,
trazer contribuições para ajudar os seres humanos a viver junto: nosso olhar é marcado por uma
tentativa obviamente não convencional de se distanciar de uma visão hegemônica que sabemos
que é prejudicial para todos. Como profissional, pelo menos, o antropólogo sabe dos perigos
das ideologias dominantes, ele receia a reutilização suspeita dos seus trabalhos, a manipulação
de uma análise global vulgarizada, midiatizada e oca, extraída de uma microanálise situada e tem
medo de tornar-se novamente a “grande prostituta” desta dominação (Bastide, 1971). A
passividade tornou-se sinônimo de colaboração, o gelo das possibilidades ofertadas pelas nossas
análises sob o pretexto do posicionamento político do pesquisador não faz mais sentido: a
antropologia não seria mais honorável sem nada para fazer (Guille-Escuret, 1996). Hoje, poucos
antropólogos defenderiam que a descrição do mundo social não passa por uma produção
ideológica, não podemos ter o luxo de considerar as questões do nosso trabalho ideologicamente
separadas das nossas aspirações pessoais, distorcendo a relevância mesma das nossas possíveis
contribuições, seu valor, ou fingindo a ingenuidade por medo de serem vistos como agitadores.
Somos agitadores. O nosso trabalho é indispensável às lutas contra as desigualdades atuais do
sistema capitalista e da hegemonia ocidental, com as tecnologias da comunicação e sua
expansão planetária que faz do mundo um vilarejo onde as noções de justiça mal se
estabelecem, a antropologia sabe que o seu papel é o de contribuir ao diálogo entre os povos e
a possível coabitação mundial entre os seres humanos.
2
Não se trata aqui de aprofundar este trabalho de delimitação, ver o epígrafe para engatilhar as reflexões sobre a
natureza das construções antropológicas.
Assim, a postura anti hegemônica da antropologia, sendo uma variante política da
sociedade na qual vive o pesquisador, a necessária distância que pede a abordagem
antropológica pode entrar em contradição com este posicionamento político. Tão convencido
da gravidade e da profundeza das feridas que deixa este modelo dominante, o principal
problema da análise da cidade é de esquecer como nela as pessoas vivem. Temos sim, que nos
situar, descrever exaustivamente “o lugar epistemológico” do qual falamos sem que esta
epistemologia seja, como muitas vezes foi na antropologia, “depurada do contexto político e
social” (Fonseca, 1999: 62). Não podemos negar que existe esta chamada cultura global e que
no nosso campo urbano, provavelmente, um modelo de urbanização já bem estudado aplica-se
com vigor. Precisamos, para entender a historicidade dos contextos onde se realizam estas
pesquisas urbanas e para dá-las um alcance maior, falar da nossa sociedade, abordar as
numerosas análises sobre as formas de urbanização capitalistas e o papel do Estado democrático
nas transformações do território urbano. Antes e no final das suas pesquisas, é desta sociedade,
destas formas de vida citadinas que lhes são associadas que a antropologia da cidade fala.
Porém, nunca pode se esquecer da natureza do conhecimento antropológico.
Nossa participação política não se expressa tanto pela elaboração de análise deste
sistema dominante, os resultados dos nossos trabalhos não tratam diretamente de conjunturas e
tendências da sociedade atual. É no campo, lugar de predileção da atuação do antropólogo, que
a disciplina tira sua relevância política. Trabalhamos com os seres humanos e é com eles que
tentamos descobrir “what social anthropology can credibly contribute to the understanding of
contemporary global or transnational cultural processes” (Hannerz, 1992: 34). São os atores
do campo, os nativos, as populações locais, os interlocutores privilegiados e outros
protagonistas não humanos – edificações, objetos, etc. – que nos dizem como abordar e atuar
politicamente neste mundo, nesta sociedade, nesta cidade. É com eles, no cotidiano, que
construímos uma análise destas entidades complexas capaz de responder aos desafios
contemporâneos. A antropologia poderia ser, talvez, uma disciplina aplicada em um mundo
anarquista, mas na condição atual da organização dos povos do planeta ela opera
clandestinamente, nas brechas e fissuras do sistema (Lefebvre, 1974).
Um local de pesquisa urbano: Greenville, Patamares, Salvador Bahia
Mapa 1: Patamares, Salvador, Bahia, Brasil. Dados cartográficos GoogleMap 2014.
Greenville é um novo bairro de condomínios fechados de prédios de alto padrão situado
na região de Patamares, na zona leste da cidade de Salvador-BA. Distante das áreas
historicamente povoadas da cidade, foi somente a partir dos anos setenta que começou a
expansão urbana do município em direção ao Litoral Norte, desta região de patamares. A
recente urbanização foi incentivada pelos poderes públicos – particularmente pelo antigo
governador Antônio Carlos Magalhães (ACM) – através da Lei de Reforma Urbana de 1968 e
com os investimentos que seguiram: a criação do Centro Administrativo da Bahia (CAB), do
Polo Petroquímico de Camaçari e da Avenida Luiz Viana Filho – a Paralela que deu nome a
esta nova região urbanizada da cidade. Dos anos 1970 até hoje, a população de Salvador se
triplicou. Povoando principalmente o norte-nordeste da cidade, a mata atlântica presente em
volta da avenida Paralela testemunhou esta nova ocupação: do shopping Iguatemi, inaugurado
em 1975, ao shopping Paralela, inaugurado em 2009, são 20 milhões de hectares de mata
atlântica que sumiram. Na verdade, conforme o último censo (Mota, 2008), sobrou alguns
milhões que esperem a implantação de novos projetos de urbanização assistindo à passagem
dos 20 mil veículos por hora que transitam nesta Avenida Paralela, hoje, uma das principais
vias da cidade de Salvador.
Mapa 1: Patamares, Salvador, Bahia, Brasil. Dados cartográficos GoogleMap 2014.
O novo bairro de Greenville encontra-se do lado do Parque Metropolitano de Pituaçu –
maior reserva ecológica de Salvador –, entre a orla atlântica e a Avenida Paralela, no chamado
– outrora e por pouco – “Vale Encantado”3. Este vale foi altamente valorizado pelas grandes
empreiteiras, há dez anos que novas áreas residenciais inteiramente planejadas, novos bairros
do mesmo tipo e do mesmo padrão – como o emblemático Alphaville – surgem dos restos de
mata atlântica presentes nesta parte da cidade. Seguindo o IBGE (2000), na área de ponderação
“A” da bacia hidrográfica de Pituaçu – incluindo Patamares, Pituaçu, Piatã e Bate Facho –, há
27.731 habitantes, 85,5% de pessoas de cor ou raça parda e branca, um rendimento nominal
médio mensal por domicílio de R$ 2.996,00 e 99,9% dos domicílios com iluminação elétrica,
98,7% com coleta de lixo. Considerando só Patamares, uma população de 4021 habitantes,
0,16% da população de Salvador, um quartos dos chefes de família ganham de 5 a 10 salários
mínimos e a metade têm de 11 a 14 anos de estudos. A localização do Greenville é, portanto,
estratégica, ele veio completar a oferta de moradia de alto padrão no mercado imobiliário da
capital baiana: o seu planejamento responde a critérios de moradia típicos das classes urbanas
favorecidas.
3
O Vale encantado não aparece no mapa pois a sua delimitação nunca foi realizada.
Figura 1: Implantação geral, fotografia do catálogo publicitaria do Greenville.
Greenville é uma versão soteropolitana recente destas novas formas de moradia. Com
uma área total de 900 mil m2 – cuja 350 mil m2 de área de proteção ambiental de reserva de
mata atlântica –, o novo bairro é dividido em duas principais zonas: a área comercial e
residencial. A zona comercial ainda está em fase de projeto. Dos nove condomínios fechados
da parte residencial, quatro estão em espera e cinco foram lançados, representando mais de
1.200 unidades em 18 torres que são entregues desde o início de 2015. Greenville é um bairro
de condomínios verticais, exclusivamente constituído por prédios com apartamentos de três ou
quatro quartos e de 88m2 a 276m2 – fora as coberturas4. Por exemplo, o condomínio Lumno é
composto de quatro prédios de uma unidade por andar, de 225 a 276 m2 e de quatro suítes. O
empreendimento é o mais luxuoso por enquanto, do novo bairro5. Os preços dos apartamentos
padrão deste condomínio chegam a R$ 1.400.000 para os primeiros andares, eles são equipados
com o sistema de automação residencial Ihouse, seis banheiros, uma sala de estar de 45 m2,
uma grande varanda de 24m2 e uma varanda gourmet de 8m2, accessível da cozinha – detalhe
de grande importância segundo os corretores. Sabendo que o preço mensal da taxa de
condomínio será inicialmente de R$ 5,00/m2, a título informativo, os moradores deste
4
No condomínio Platno tem apartamentos de 110m2, Atmos de 88m2 ou 116m2, Etco, de 136m2 ou 172m2, Ludco
de 134m2 ou 180m2 e Lumno, tem os maiores apartamentos, de 225m2 ou 276m2 – fora as coberturas.
5
Há quatro lotes preparados para construção de outros condomínios de prédios mas não lançados e todo o lado do
Greenville Leste ainda a ser planejado.
apartamento pagarão R$ 175,00 por mês só para a área de serviço de 35 m2. Outro dado
interessante a respeito do planejamento deste novo bairro é a escolha dos nomes dos edifícios
e dos condomínios: Olimpo, Eldorado, Avalon, três lugares utópicos6 para o condomínio Ludco
– o mais alto, 29 andares sem cobertura, e a maior área total, 22.296m2; Paládio e Irídio, dois
metais prateados para o condomínio Pltano; Átria, Avior, Antares e Sirius, as quatro estrelas,
só podiam ser prédios do condomínio Atmos; Floresta, Tropical e Atlântica são, obviamente,
do primeiro condomínio do Greenville, Etco; quanto ao condomínio Lumno, os grandiosos
Sigma e Quasar, dois gigantes astronômicos com cobertura duplex de 563m2 e cinco vagas de
garagem, impõem-se frente aos infelizes deuses da mitologia grega, Éris e Orion7.
Que seja a varanda gourmet ou os 35 m2 de área de serviço com acesso separado, os 30 ítens
de lazer ou a conciergerie8, os arames farpados, as cercas elétricas, as câmeras ou as outras
aparelhagens de segurança, os próprios nomes dados aos espaços, o planejamento do bairro é
claramente feito para responder à demanda de moradia das classes urbanas brasileiras favorecidas.
Uma breve análise do suporte publicitário do empreendimento já deixa claro quais são os principais
critérios que esta elite urbana privilegia: toda panóplia marketing do Greenville é caracterizada pela
possibilidade de uma certa homogeneidade social entre os moradores do bairro, por uma arquitetura
sofisticada que reforça o isolamento físico, pela obsessão com os equipamentos e serviços e pela
“proteção” da violência física da criminalidade9. Nestes enclaves fechados residenciais, gateds
communitys e new towns, condomínios fortificados implantados longe do centro das grandes
cidades contemporâneas, o “isolamento é vivido e reivindicado como conquista do indivíduo,
melhor, como sua realização” (Haumont, 2001), os moradores procuram permanecer “longe das
interações “indesejadas”, dos fluxos da cidade e da heterogeneidade social” (Ferreira, 2003). Afinal,
o novo bairro de Salvador, Greenville, não é uma grande novidade, mas uma formação urbana autosegregacionista, fonte e símbolo da violência urbana, das injustiças sociais projetadas no espaço,
presente desde os anos oitenta nos subúrbios das grandes metrópoles contemporâneas10. A proposta
6
Olimpo, o lugar onde habitam as divindades gregas; Eldorado, cidade de ouro fictícia da América do Sul, buscada
pelos exploradores do século XVI; Avalon, ilha lendária onde a espada Excalibur do Rei Arthur foi forjada.
7
Orion é o gigante caçador que morreu tragicamente e nunca conseguiu atingir Pleione, mãe das plêiades; quanto
a Éris, é a deusa da discórdia, a responsável da guerra de Tróia.
8
Ter uma empresa terceirizada para cuidar dos empregados pode ser valorizado, a conciergerie permite aos
moradores mais segurança graças a avaliação dos servidores, que são controlados com rigor ou até revistados na
saída do trabalho – prática habitualmente não aceitável nas relações direitas com empregados domésticos.
9
É desta violência física da criminalidade que os moradores seriam, atrás dos muros e até nas ruas vizinhas,
protegidos. A violência doméstica que atinge estas pessoas não é, evidentemente, “controlada”; a violência policial
tampouco lhes diz respeito; quanto ao impacto da violência da sociedade capitalista e das políticas públicas sobre
estas elites, minha pesquisa tentará trazer mais informações a respeito.
10
Para mais informações sobre os elementos básicos que movem esta nova suburbanização dos espaços urbanos
ver o trabalho de Caldeira (2000).
dos condomínios fechados é muito criticada na bibliografia existentes em antropologia urbana, ela
é descrita como anti-urbana – mesmo se ela sugere uma vida em comunidade, ela compromete o
encontro urbano (Lefebvre, 1970) – e antidemocrática – ela afasta os moradores do espaço público
e das suas responsabilidades de cidadãos (Caldeira, 2000). Os comentários não faltam sobre a
violência desta “ocupação diferenciada em uma região de alta valorização” (Greenville.com). O
que se faz de melhor em qualidade de vida concebida – para desviar as palavras de Lefebvre –, o
que permitiria mais de se distinguir (Bourdieu, 1979) na sociedade do espetáculo soteropolitana
(Debord, 1968) seria viver neste bairro planejado de alto padrão. Sinônimo de sucesso, ele é
“símbolo de diferenciação, de status e de ascensão social” (Menezes, 2009).
Ainda, as pressões das incorporadoras sobre os poderes públicos para liberar sempre
mais espaços destinados à construção faz que os 350 mil m2 de área de proteção ambiental que
do Greenville são resíduos preciosos que os moradores tem o luxo, a honra e a obrigação de
preservar. É também um excelente argumento marketing, a questão da preservação ambiental é
um ponto crucial para entender a proposta de Greenville. De um lado, os discursos
ambientalistas servem para reforçar a distinção social dos residentes: não é de 12%/m2 de área
verde por habitante, como o recomenda a OMS, que estes moradores desfrutarão; no Greenville
haverá o dobro, 24%/m2 de área verde por habitante, abaixando pela mesma ocasião os 6% de
verdura ainda sobrando em cada metro quadrado da cidade de Salvador. De um outro lado,
temática na moda, a questão da preservação permite às elites de considerar-se os guardiões da
natureza; respeitando certas normas ambientais que dizem respeito aos 30% a 40% de Área de
Preservação Permanente (APP) presentes no seus lotes, os compradores tem a possibilidade de
(des)responsabilizar-se pela preservação da “natureza intocável” (Diegues, 1996). Os discursos
ambientalistas vem mascarar uma proposta antiecológica que destrói a diversidade ambiental e
privatiza os últimos espaços verdes das grandes metrópoles (Carman, 2011).
Além disso, se as áreas de preservação esverdeiam a oferta do novo bairro, elas
permitiram, sobretudo, legitimar a implantação de Greenville neste 900 mil m2 de floresta. Os
350 mil m2 de APP de Greenville não foram preservados na única perspectiva de satisfazer a
demanda dos possíveis compradores em busca de mais natureza, mas foi a contrapartida das
incorporadoras para permitir a extinção das remanescentes de mata atlântica -- na votação do
PPDU 2008, ver Pellissier (2014). São decisões políticas que restringiram as áreas de proteção
ambiental, desafeitaram e venderam os espaços da cidade para o mercado imobiliário. Os
poderes públicos são os primeiros auxiliares das grandes empreiteiras, são eles que as
autorizaram a invadir este chamado Vale Encantado.
As abordagens, os olhares possíveis
Assim, com este campo de pesquisa, um das abordagens possíveis para minha pesquisa
é de apreender este novo bairro de condomínios fechados pelas reflexões dos urbanistas:
abordar Greenville como uma formação urbana especifica, uma ocupação do espaço inspirada
da lógica da urbanização contemporânea, das tendências e conjunturas mundiais da sociedade
ocidental capitalista pós-industrial. A urbanização, uma ferramenta do capitalismo, aquilo que lhe
permite resolver os problemas de surplus de capital e de trabalho (Harvey, 2011)11, engendra estes
tipos de formações urbanas. Assim, o estudo do Greenville seria pertinente analisando-o como
espaço concebido (Lefebvre, 1974), suroganisé (Haumont, 2001), um lugar onde domina a ação
instrumental, onde “a marcha do processo de racionalização está instalando-se no próprio meio
de vida dos homens” (Santos, 2006). Em soma, Greenville seria um grande empreendimento
como um outro. Nesta perspectiva, se o novo bairro é um produto desta urbanização capitalista,
fica interessante observar de mais perto o processo administrativo e jurídico, político que
permitiu a sua criação.
Numerosos decretos e leis municipais, estaduais e federais, decisões judiciares foram
necessários para autorizar a criação de Greenville. Analisar o conteúdo dos PDDUs do
município de Salvador, das LOUSs e das diversas emendas existentes, ajuda a entender a base
jurídica que legitimou a construção na área em questão, mas pouco informe sobre o caminho
percorrido para estas tomadas de decisão. Atrás destas disposições políticas, evidentemente, um
jogo político está escondido, “um movimento ditado pelo Capital que busca colonizar sempre
mais espaço para o gozo refinado e cosmopolita dos mais ricos” (Harvey 2011). Citar David
Harvey para relevar que as políticas urbanas de Salvador são frutos da manipulação do sistema
democrático pelos interesses privados, tão pouco explica o que aconteceu. Sim, estes decretos,
leis e decisões políticas auxiliam o mercado capitalista na sua busca de novos investimento para
absorver o excedente de produção, o surplus. Sim, eles servem à cidade capital (Rolnik, 1988).
Porém, uma investigação mais completa deveria se dedicar à análise das relações e do lobismo
das grandes financiadores com os representantes políticos; é nos corredores da câmara
municipal ou no gabinete do prefeito que encontraríamos provavelmente mais detalhes sobre
os mecanismos cotidianos que movem as políticas urbanas. Também, um estudo de parentesco,
tão caro ao antropólogo, permitiria revelar o poder de certas famílias da elite soteropolitana e
deixaria mais claro tanto a conivência entre o meio político e as fortunas locais, quanto a filiação
entre as decisões do famoso ACM e de seu neto, atual prefeito da cidade.
Como exemplo, a cidade de Dubaï: “Esponjar os excessos engendrados pela riqueza petroleira do jeito mais
descarado, socialmente injusto e ambientalmente irresponsável (pista de esqui interior, etc.)” (HARVEY, 2011).
11
Ora, na medida que existem outras esferas legislativas que a municipal, onde se decide o
desenvolvimento urbano de Salvador, a análise das autorizações que conseguiu Greenville se
complica. As políticas urbanas são aplicações da Constituição e de lei federais, como o Estatuto
da Cidade12, a chamada Lei Lehmann13 ou o Código Florestal e estas disposições federais também
passaram por um processo político complexo pressionado pelo Capital financeiro e por outros
interesses privados. Ainda, querendo entender como esta construção foi permitida pelos poderes
públicos, teria que falar dos diversos organismos, conselhos e instituições das secretarias que
aplicam ou regulam estas decisões legislativas – como a SUCOM, a COMAM e a SECIS no
município, a SEDUR, a SEMA14 no Estado e o Ministério das Cidades ou Ministério do Meio
Ambiente na escala federal. Estas inumeráveis estruturas responsáveis pelo controle das políticas
urbanas são igualmente sujeitas a manobras e trâmites institucionais complexos que desnaturam
o possível conteúdo público das bases legais para favorecer o mercado e a comercialização das
cidades. De novo, é investigando estas pressões do Capital tanto nas esferas legislativas outras
que municipais, quanto nos órgãos executivos de cada nível do Estado, que uma boa análise do
processo que legalizou a criação deste novo bairro pode ser realizada.
Enfim, um outro aspecto fundamental neste estudo são as disputas judiciais. Entender
como as grandes incorporadoras conseguiram construir 18 torres nestes 900 mil m2 de mata
atlântica, sem levar em considerações os numerosos processos que responderam, seria esquecer
uma grande parte das suas conquistas. Da mobilização de cidadãos isolados ou em associação
aos inquéritos do Ministério Público, existem centenas de casos onde o órgão judicial teve que
se pronunciar para desembargar parte das obras de Greenville. Se foi graças a estas decisões
favoráveis dos tribunais que o empreendimento conseguiu ser realizado, teria que acompanhar
as ações existentes envolvendo o novo bairro, mesmo se é um trabalho de longo prazo: de um
lado existem muitos tipos de conflitos que podem impedir a construção, trabalhistas, ambientais
entre outros; de um outro lado, não é unicamente a incorporadora de Greenville que sempre foi
incriminada, são várias as empresas participando das obras, de construção ou de transportes,
que foram alvo dos ataques judiciais. Nesta perspectiva, da mesma forma que para a descrição
dos processos legislativos ou administrativos, a densidade dos dados judiciais encontrados
sobre esta área de Salvador complica a descrição das tomadas de decisões que foram necessárias
para implantação deste novo bairro de alto padrão. Esta dimensão não deixa de ser primeira.
12
Lei Federal nº 10.257, de 10 de julho de 2001.
Lei Federal nº 6.766/79, de 19 de dezembro de 1979.
14
Superintendência de Controle e Ordenamento do Uso do Solo do Município – SUCOM. Conselho Municipal do
Meio Ambiente – COMAM. Secretaria Cidade Sustentável - SECIS. Secretaria de Desenvolvimento Urbano –
SEDUR. Secretaria Estadual do Meio Ambiente – SEMA.
13
O tamanho desta burocracia pode se explicar pelo tamanho da máquina estatal. Qualquer
seja as pistas seguidas para entender como Greenville foi criado, nos decretos e leis municipais,
nos diversos processos das secretarias e outros órgãos do executivo, nos diários da Justiça do
Estado da Bahia ou no Estatuto da Cidade, é a estrutura do Estado que aparece. Esta
complexidade do sistema judicial, legislativo e executivo é estreitamente ligada às pressões do
Capital que descaracterizam e falsam a índole pública destas instituições. O crescimento de
formas complexas de administração estatal (Weber, 1950), a máquina burocrática (Arendt,
2007), limita o controle do cidadão sobre os processos democráticos: “tecnocracia e democracia
são antitéticas, se o protagonista da sociedade industrial é o especialista, impossível que venha
a ser o cidadão qualquer” (Bobbio, 1986: 34). Pode-se presumir que para entender o percurso
político-jurídico que permitiu a um grupo de empresas criar o Greenville se faz necessário um
entendimento geral das relações entre o Capital e as políticas públicas, um conhecimento
puxado da máquina administrativa e judiciária do Estado brasileiro, do seu jargão, uma
familiaridade com o direito empresarial e um tempo consequente para realizar as investigações.
Porém, meu curso de doutorado não é em urbanismo, não quero abordar este novo bairro
de condomínios fechados de alto padrão só com os atores que produziram este espaço
concebido. Quero trabalhar, também, com os que habitam nestes espaços, quero entender como
os pessoas ordinárias conseguem habitar no Greenville. Quando o urbano é atacado “o habitar não
é mais obra e apropriação, mas apenas coações que se projetam sobre a práticas” (Lefebvre, 1968:
75). A urbanização capitalista produz a miséria mental e social, a pobreza da vida cotidiana, um
mundo onde as pessoas se deslocam num espaço que tende para a isotopia geométrica, cheia de
ordens e de signos (1968: 83). Esta condição seria contraria ao próprio conceito de habitar. Habitar
evoca a apropriação, o marquage e a produção de espaços, a reinvenção e a criatividade, a
cotidianidade, a prática espacial, a competência e performance espacial própria à cada pessoa, ele
chama formas alternativas de racionalidade. Ou seja, habitar não parece se adequar aos “conhecidos
discursos do senso comum sobre despersonalização, massificação, solidão, etc.” (Magnani, 2002),
e às ideias sobre a “predominância dos papéis secundários [formalizados, contratuais ou
institucionais] sobre os primários, o isolamento, a superficialidade, o anonimato, as relações sociais
transitórias e com fins instrumentais, a inexistência de um controle social direto, a diversidade e
fugacidade dos envolvimentos sociais, o afrouxamento dos laços familiais e competição
individualista” (Apud Oliven, 1985, p. 14; Frúgoli, 2005). Não há vida nos condomínios fechados,
mas pessoas habitam lá; é esta situação que estou investigando. Como habitam as pessoas neste
novo bairro? Para usar ainda Lefebvre (1974), eles reproduzem um modelo dominante, a
racionalidade da representação do espaço (espaço concebido) ou conseguem criar espaços de
representação (espaço vivido) e práticas espaciais (espaço percebido) contra hegemónicas? Como
conseguem habitar nesses espaços racionalizados? Quais formas de resistência (produção de novos
espaços) podem aparecer apesar deste controle da participação citadina e quais deveriam
necessariamente existir devido à esta participação citadina?
Aqui meu problema de pesquisa, aquilo que gostaria discutir nesta reunião da REABANNE.
Se a urbanização é um movimento de colonização, a antropologia seria tentada trabalhar, como teve
tendência, do lado do “colonizado”, estudando as difíceis condição de moradia das classes
populares, o impacto deste movimento sobre seu cotidiano. Mas, no meu caso, trabalho com as
elites, as classes dominantes, as populações favorecidas, aqueles que vivem nos espaços
racionalizados – e os produzem? – e não aqueles que produzem espaço diferenciais, que resistam e
lutam. “Para superar o mercado, a lei do valor de troca, o dinheiro e o lucro, é necessário definir o
lugar dessa possibilidade – a sociedade urbana e a cidade como valor de uso” (Lefebvre, 1968:79).
Greenville seria um lugar desses possíveis? Porquê procurar alternativa onde parece menos
provável encontra-las? Qual é a pertinência deste estudo? Devem existir poucas fissuras e
experiências contra hegemônicas na cotidianidade dos moradores de Greenville, e se existem, o seu
estudo leva a um problema deontológico, ético, político: a questão da antropologia das elites e das
classes dominantes. Assim, para concluir, duas reflexões me parecem importante compartilhar com
vocês:
1. Se o objetivo é “descrever de forma direta, incisiva, até mesmo panfletária a produção
dos subúrbios, guetos, enclaves étnicos e falsos conjuntos” (Lefebvre, 1974: 13), a análise dos
espaços vividos e percebidos pelos moradores de Greenville, o seu modo de habitar, pode levar
à certas dificuldades na realização do trabalho etnográfico e sérios dúvidas quanto à pertinência
da chamada restituição: a crítica aguda de uma forma de habitar a cidade que busca a
homogeneidade social e o isolamento físico dos moradores não traria muitos benefícios à
população estudada. Além disso, ela não seria muito fiável, esta descrição limitaria a
experiência citadina destes moradores a uma reprodução mecânica dos espaços concebidos e
assim sendo, faria das elites, das classes dominantes, as vítimas da pressão da globalização
urbana e capitalista.
2. De um outro lado, o effet tribu (Abeles, 2000), o risco da manipulação dos nossos
resultados para exaltar o narcisismo das classes dominantes é evidente. A descrição da
cotidianidade, do habitar, da apropriação e da produção dos espaços contra hegemônicos, a
análise do espaço percebido pela elite, pode servir esta população para se desresponsabilizar
das suas práticas. Eles também lutariam, com eficaz, contra o peso do mesmo espaço concebido.
É este dilema que me interessa, esta contradição, este paradoxo que quero investigar.
Ele tem um alcance profundamente político. Prestar atenção às formas de resistências dos
moradores de Greenville e considera-lo um lugar dos possíveis leva a delicada questão de como
todos, podem se encontrar na luta contra a cidade capital? Meu objetivo não é cobrir de um verniz
anti-conformista a adesão das elites à ordem estabelecida. No entanto, de um outro lado, não
podemos retirar todas esperanças às tentativas destas populações, elas habitam e produzem espaços,
às vezes, subversivos.
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