Sobre Domı́nios Euclidianos Clarissa Bergo Bianca Fujita Lino Ramada João Schwarz Felipe Yukihide Setembro de 2011 Resumo Neste texto, apresentaremos formalmente o que vem a ser domı́nio euclidiano, alguns exemplos e os seus principais resultados. Basicamente um anel euclidiano é a generalização dos inteiros, considerando o algoritmo de divisão de Euclides. Mostraremos que num anel euclidiano (assim, como nos inteiros), é possı́vel ter um algoritmo para calcular o máximo divisor comum entre dois elementos (definiremos o que vem a ser o mdc para domı́nios comutativos), é possı́vel fatorar unicamente cada elemento como produto de elementos irredutı́veis e apresentaremos uma caracterização dos elementos irredutı́veis e invertı́veis do domı́nio. No fim, apresentaremos resultados sobre o anel dos inteiros de Gauss Z[i], e comentaremos mais algumas aplicações. Conceitos básicos Apresentaremos algumas definições básicas, que serão úteis ao decorrer do texto. Começaremos com conceitos básicos envolvendo divisibilidade: Definição 1. Considere A um anel comutativo e a, b ∈ A. Dizemos que b divide a se existe algum c ∈ A de modo que a = bc. O elemento b é chamado de divisor de a. Definição 2. Seja A um anel comutativo. Um elemento a ∈ A invertı́vel com relação ao produto é denominado uma unidade. O conjunto das unidades de A é denotado por A∗ . Definição 3. Sejam A um anel comutativo e a, b ∈ A. Se existe uma unidade c ∈ A tal que a = bc, então a e b são denominados elementos associados. Um divisor de a que não é seu associado e não é unidade é denominado um divisor próprio de a. Um elemento que não admite um divisor próprio é denominado irredutı́vel. Proposição 1. Considere A um anel comutativo. A relação ∼, dado por a ∼ b se a e b são associados, é uma relação de equivalência. Demonstração. Imediato. Definição 4. Sejam A um anel comutativo e a, b ∈ A. Considere c ∈ A satisfazendo: 1 i. c divide a e b ii. Se d ∈ A divide a e b, então d divide c um tal elemento é denominado um máximo divisor comum de a e b. Denotamos por c = mdc(a, b). elementos irão admitir um mdc. Por exemplo, considere h√Nemi sempre dois √ √ Z −3 = {a + b −3 : a, b ∈ Z} e os elementos 4 e 2 + 2 −3. Note que 2 e √ 1 + −3 são divisores comuns de ambos e um não é multiplo do outro, e disto segue que não podem ter um mdc. No fim deste texto poderemos apresentar uma demonstração formal deste fato. Definição 5 (Domı́nio Euclidiano). Seja R um domı́nio de integridade. Considere uma função ϕ : R \ {0} −→ N0 satisfazendo: i. ∀a, b ∈ R, com b 6= 0, existem q, r ∈ R, com r = 0 ou ϕ(r) < ϕ(b), de modo que a = bq + r ii. ∀a ∈ R, ϕ(a) ≤ ϕ(ab), ∀b ∈ R \ {0} o conjunto (R, ϕ) é denominado um Domı́nio Euclidiano. Um domı́nio euclidiano é a generalização do algoritmo de divisão dos inteiros para anéis (domı́nios de integridade) em geral. Exemplo 1. Inteiros com a função ϕ(z) = |z| é um domı́nio euclidiano. Exemplo 2. Considere K um corpo. Então, o anel de polinômios K[X] é um domı́nio euclidiano. De fato, considere ϕ(p(x)) = grau (p(x)). A segunda condição de domı́nio euclidiano é imediata. Basta verificar a primeira: Considere f (x), g(x) ∈ K[x]. Se f (x) = 0 ou grau f (x) < grau g(x), então nada a fazer. Supondo grau f (x) ≥ grau g(x), escreva f (x) = an xn + · · · + a0 e g(x) = bm xm + · · · + b0 . Note que f1 (x) = f (x) − bamn xn−m g(x) é tal que grau f1 (x) < grau f (x) e f (x) = bamn xn−m g(x) + f1 (x). Se f1 (x) = 0 ou grau f1 (x) < grau g(x), então acabou. Caso contrário, repita o processo para f1 (x) e encontre f2 (x), que satisfaz f1 (x) = p(x)g(x) + f2 (x) e grau f2 (x) < grau f1 (x). Se f2 (x) = 0 ou grau f2 (x) < grau g(x), então acabou. Caso contrário, continue o processo até encontrar um fk (x) adequado. Daı́ K[x] é um domı́nio euclidiano. Teorema 1. Considere R um domı́nio euclidiano. Então R será um domı́nio de ideais principais. Demonstração. Considere I um ideal de R e ϕ a função que satisfaz as condições do domı́nio euclidiano. O subconjunto dos inteiros não negativos {ϕ(x) : x ∈ I} admite um menor elemento. Considere x ∈ I tal que ϕ(x) é o mı́nimo do conjunto, ou seja, se y ∈ I, então ϕ(x) ≤ ϕ(y). Note que o ideal gerado por x, hxi, está contido em I. Seja agora z ∈ I. Então, existem q, r ∈ R tais que z = xq + r, com r = 0 ou ϕ(r) < ϕ(x). Note que, como z, qr ∈ I, temos r ∈ I. 2 Logo, r não pode satisfazer ϕ(r) < ϕ(x), e então, temos r = 0. Segue que z = qx, e então, z ∈ hxi. Daı́ hxi = I, ou seja, I é um ideal principal. Como I é arbitrário, segue que R é um domı́nio de ideais principais. A volta não vale. Um contra exemplo é √ 1 −19 z1 + z2 : z1 , z2 ∈ Z, z1 ≡ z2 2 2 mod 2 Lema 1. Se R é um domı́nio de ideais principais, então todo a, b ∈ R possui um mdc. Além do mais, existem r, s ∈ R de modo que ar + bs = mdc(a, b). Demonstração. Seja c ∈ R tal que ha, bi = hci. Então c = ar + bs, para algum r, s ∈ R. Afirmamos que c = mdc(a, b). De fato, temos a ∈ ha, bi = hci, logo, c divide a. Da mesma forma, c divide b. Considere d um divisor comum de a e b. Então, em particular, d divide ar + bs = c, concluindo o resultado. Fatoração e MDC Num domı́nio euclidiano, temos uma boa caracterização das unidades e temos uma forma de verificar que um elemento é irredutı́vel: Proposição 2. Seja R um domı́nio euclidiano com função ϕ. Então a ∈ R é uma unidade se, e somente se, ϕ(a) = ϕ(1). Demonstração. Se a é invertı́vel, então ϕ(1) ≤ ϕ(a) ≤ ϕ(aa−1 ) = ϕ(1). Segue que ϕ(a) = ϕ(1). Reciprocamente, considere b ∈ R, b 6= 0. Temos ϕ(b) ≤ ϕ(ab). Existem q, r ∈ R tais que b = (ab)q + r. Se r 6= 0, então, terı́amos r = b(1 − aq), e então, ϕ(r) = ϕ(b(1 − aq)) ≥ ϕ(b), absurdo. Daı́ r = 0, ou seja, b(1 − aq) = 0. Como R é um domı́nio, temos 1 − aq = 0, ou seja, a é invertı́vel. Proposição 3. Nas mesmas hipóteses, considere m = min{ϕ(x) : x ∈ R, x 6= 0, x ∈ / A∗ }. Então y ∈ R tal que ϕ(y) = m é irredutı́vel e m > ϕ(1). Demonstração. Considere y com ϕ(y) = m. Então ϕ(1) ≤ ϕ(y · 1) = m, e se valesse a igualdade, terı́amos y invertı́vel, absurdo pela construção de m. Agora, suponha y = ab. Então ϕ(a) ≤ ϕ(y), e se ϕ(a) < m, segue que a é invertı́vel, e se ϕ(a) = m, segue que ϕ(b) = 1 < m, e então, b é invertı́vel. Proposição 4. Se a ∼ b, então ϕ(a) = ϕ(b). Demonstração. Considere u invertı́vel tal que a = bu. Então ϕ(a) = ϕ(bu) ≤ ϕ(buu−1 ) = ϕ(b). De forma análoga temos ϕ(b) ≤ ϕ(a), e então ϕ(a) = ϕ(b). Para concluir que nem todo par de elementos h√ i num anel possui mdc, provamos um lema. Nem para todo z ∈ Z temos Z z anel euclidiano, mas, podemos estudar a função “norma”: h√ i √ Lema 2. Considere Z z = {a + b z : a, b ∈ Z}. A função norma N : h√ i √ Z z −→ N0 , N (a + b z) = |a2 − zb2 | é multiplicativa. Além disso, a é invertı́vel se, e somente se, N (a) = 1. E se N (a) é primo, então a é irredutı́vel. 3 Demonstração. N ser multiplicativo é imediato. Agora, se a é invertı́vel, então 1 = N (1) = N (aa−1 ) = N (a)N (a−1 ), e então, temos necessariamente N (a) = 1. Reciprocamente, temos 1 = N (a) = aā, e segue que a−1 = ā. Por fim, suponha N (a) primo. Então, se a = bc, então N (a) = N (bc) = N (b)N (c), e daı́, N (b) = 1 ou N (c) = 1. Segue que b ou c é invertı́vel (e portanto, o outro é associado a a), e então, a não admite divisor próprio. Daı́ a é irredutı́vel. Nota. No caso especial em que z = −1, temos o anel dos inteiros de gauss, denotado por Z[i], que inclusive é um domı́nio euclidiano, como veremos adiante. √ h√Comi esse lema, podemos mostrar que 4 e 2 + 2 −3 não possuem mdc em Z −3 . Suponha d um mdc. Como 2 é um divisor comum de ambos, temos √ que 2 divide d, e então, podemos escrever d = 2x. Note que 1 + −3 também é um fator comum de ambos, daı́, deve dividir d, ou seja, deve dividir√2x. Como √ (1 + −3) = 2q, 1 + −3 não divide 2 (pois h√ seidividisse, poderı́amos escrever √ √ 1 1 mas q = 2 + 2 −3 ∈ / Z −3 ), segue que x = (1 + −3)y. Mas, escrevendo h√ i √ 4 = dk, deverı́amos ter yk = 2(1+4√−3) = 2 1− 4 −3 ∈ / Z −3 , absurdo. Segue que tal d não pode existir. Mostraremos que num domı́nio euclidiano, todo elemento pode ser fatorado como produto de irredutı́veis de maneira única, a menos de associados. Lema 3. Considere a, b ∈ R \ {0}, com b não unidade. Então ϕ(a) < ϕ(ab). Demonstração. Suponha ϕ(a) = ϕ(ab). Quero concluir que b é invertı́vel. Por R ser domı́nio euclidiano, existem q, r ∈ R, com r = 0 ou ϕ(r) < ϕ(ab) = ϕ(a) de modo que a = (ab)q + r Mas, temos que r = 0, pois se não fosse, terı́amos r = a − abq = a(1 − bq), e então, ϕ(r) = ϕ(a(1 − bq)) ≥ ϕ(a), absurdo. Segue que a = abq, e então, a(bq − 1) = 0, e como a 6= 0 e R é um domı́nio, temos bq = 1, ou seja, b é invertı́vel. Lema 4. Se b divide ac e mdc(a, b) = 1, então b divide c. Demonstração. Como mdc(a, b) = 1, existem r, s ∈ R de modo que ar + bs = 1. Multiplicando por c, obtemos arc + bsc = c. Daı́, b divide arc, por hipótese, e b divide bcs. Segue que b divide c. Corolário 1. Em um domı́nio euclidiano, se b é irredutı́vel e b divide ac, então b divide a ou b divide c. Demonstração. Assuma que b não divide a, ou seja, mdc(a, b) = 1. Segue que b divide c. Corolário 2. Se b é irredutı́vel e divide a1 · · · an , então b divide am , para algum m em {1, · · · , n}. Teorema 2. Considere R um domı́nio euclidiano. Então todo x ∈ R é invertı́vel ou pode ser escrito como produto de irredutı́veis. 4 Demonstração. Demonstraremos por indução em ϕ(x). Se ϕ(x) = ϕ(1), então x é invertı́vel e acabou. Agora, assuma que todo y, com ϕ(y) < ϕ(x) pode ser escrito como produto de irredutı́veis. Se x é irredutı́vel, então acabou. Então, suponha x = bc, com b e c não unidades. Então ϕ(b) < ϕ(x) e ϕ(c) < ϕ(x), e segue, por hipótese de indução, que b e c podem ser escrito como produto de irredutı́veis, e tem-se o resultado. Teorema 3. Considere R um domı́nio euclidiano. Então, dado x ∈ R, se x pode ser escrito de duas maneiras como produto de irredutı́veis x = a1 · · · an = b1 · · · bm , então n = m e, para alguma permutação σ ∈ Sn , temos ai ∼ bσ(i) , i = 1, · · · , n. Nota. Um domı́nio R em que cada x ∈ R tem essa propriedade é denominado domı́nio de fatoração única. Demonstração. Temos x = a1 · · · an = b1 · · · bm , e então, a1 divide a1 · · · an , e segue que a1 divide b1 · · · bm , e por a1 ser irredutı́vel, suponha, sem perda de generalidade, pois caso necessário reordene os termos, a1 divide b1 . Como b1 é irredutı́vel, segue que b1 ∼ a1 , e então, podemos escrever a1 · · · an = ua1 b2 · · · bm , com u invertı́vel. Daı́, por R ser domı́nio de integridade, segue que a2 · · · an = ub2 · · · bm , e por mesmo argumento, a2 divide b2 . Continuando o processo, chegaremos que n ≤ m e a1 ∼ b1 , · · · , an ∼ bn . Do mesmo modo, podemos concluir que m ≤ n e b1 ∼ a1 , · · · , bm ∼ am , obtendo assim o resultado. Exemplo 3. Para z = 4k + 1, com z livre h√ ide quadrados (isto é, se n 6= 1 divide 2 z, então n não divide z), temos que Z z não é domı́nio euclidiano. De fato, trabalhando com a função norma N , apresentada anteriormente, concluimos que 2 é um elemento irredutı́vel, de fato, se 2 = xy, então necessariamente N (x) √= N (y) = 2, mas não existe elemento tal que N (x) = 2, pois, escreva x = a+b z, então N (x) = |a2 − zb2 | = 2, e segue que a e b possuem a mesma paridade, pois 2 não divide z. Escreva |a2 − zb2 | = |a2 − b2 − (z − 1)b2 | = |(a + b)(a − b) − 4kb2 |, então, pelo menos 4√divide N √(x), absurdo, e segue que √ 2 é irredutı́vel. √ Além disso, hz − i1 = (−1 + z)(1 + z), e 2 não divide −1 + z e nem 1 + z. Segue √ que Z z não é domı́nio de fatoração única, e então, não pode ser domı́nio euclidiano. Corolário 3. Num domı́nio euclidiano R, para todo par a, b ∈ R, podemos efetivamente calcular o máximo divisor comum (caso pudermos efetivamente calcular a divisão). Demonstração. Sejam q1 , r1 , com r1 = 0 ou ϕ(r1 ) < ϕ(b), de modo que a = bq1 + r1 . Segue que todo divisor comum de a e b também divide r1 , e todo divisor comum de r1 e b divide a. Daı́, mdc(a, b) = mdc(b, r1 ). Se r1 = 0, então mdc(a, b) = b, caso contrário, escreva b = r1 q2 + r2 , com ϕ(r2 ) < ϕ(r1 ) ou r1 = 0. Pelo mesmo argumento, mdc(a, b) = mdc(r1 , r2 ), e se r2 = 0, então mdc(a, b) = r1 , caso contrário, continue o processo. Daı́, encontraremos uma sequência r1 , · · · , rn , com ϕ(rn ) < · · · < ϕ(r1 ) < ϕ(b), e então, para algum m ∈ N, esse processo acaba, e teremos que mdc(a, b) = rm−1 . Por fim, caracterizaremos os ideais maximais de um domı́nio euclidiano. Lema 5. Considere R um domı́nio de integridade e a, b ∈ R. Então 5 a. a divide b se, e somente se, hbi ⊆ hai b. a ∼ b se, e somente se, hai = hbi c. hai = R se, e somente se, a é unidade Demonstração. a. (⇐) : Claro. (⇒) : Escreva b = ac. Então b ∈ hai, e segue que hbi ⊆ hai. b. Segue do anterior, pois a divide b e b divide a. c. (⇐) : Temos que existe u ∈ R tal que au = 1, e então, 1 ∈ hai, e daı́, R = hai. (⇒) : Temos 1 ∈ R ∈ hai. Daı́ 1 = ar, para algum r ∈ R, e segue que a é invertı́vel. Corolário 4. Num domı́nio euclidiano, um ideal I = hai é maximal se, e somente se, a é irredutı́vel. Os Inteiros de Gauss Por fim, apresentaremos um dos domı́nios euclidianos mais importantes: os inteiros de Gauss! Queremos demonstrar o seguinte teorema, que quebraremos em partes Teorema 4. Considere Z[i] = {a + bi : a, b ∈ Z} e a função norma: N: Z[i] −→ z = a + bi 7−→ N0 a2 + b2 Assim, temos que Z[i] é um domı́nio euclidiano; dados a, b ∈ Z[i] \ {0}, os elementos q, r ∈ Z[i] (com N (r) < N (b) ou r = 0) tais que a = bq + r podem efetivamente ser calculados, e ainda, os elementos irredutı́veis são exatamente: i. ±p, ±pi, com p primo e p ≡ 3 mod 4 ii. z tal que N (z) é primo Mostraremos primeiramente que Z[i] é um domı́nio euclidiano: Proposição 5. Considere Z[i] e N : Z[i] −→ N a função norma. Então N é multiplicativa e (Z[i], N ) é um domı́nio euclidiano. Além disso, dados a, b ∈ Z[i], os elementos q, r ∈ Z[i] tais que a = bq + r, com r = 0 ou N (r) < N (b) podem efetivamente ser calculados. Demonstração. Verificação de que N é multiplicativa é imediata. Temos N (x) ≥ 1, ∀x ∈ Z[i], x 6= 0. Daı́, para a ∈ Z[i], segue que N (a) ≤ N (a)N (b) = N (ab), verificando a segunda condição. Sejam a, b ∈ Z[i]. Então, quero achar q, r ∈ Z[i], com r = 0 ou N (r) < N (b), de modo que a = bq + r. Mas, temos a −q N (r) = N (a − bq) = N (b)N b 6 então, basta encontrar um q ∈ Z[i], de modo que, sendo q = q1 + q2 i ∈ Z[i] e a b = z1 + z2 i ∈ Q(i), 1 1 |z1 − q1 | ≤ |z2 − q2 | ≤ 2 2 mas, note que sempre é possı́vel efetivamente calcular, pois, sendo a = a1 + a2 i e b = b1 + b2 i, a1 + a2 i (a1 + a2 i)(b1 − b2 i) a 1 b1 − a 2 b2 a 2 b1 − a 1 b2 = = + i ∈ Q(i) b1 + b2 i b21 + b22 b21 + b22 b21 + b22 então, tomando r = a − bq ∈ Z[i], que também pode efetivamente ser calculado, temos o requerido, pois N (r) = N (b)N (a/b − q) < N (b). Uma das aplicações deste anel é levar o problema de escrever um inteiro como soma de dois quadrados inteiros para o problema de uma fatoração em Z[i], mas, antes de apresentar um tal resultado, veremos um lema de teoria dos números: Lema 6 (Teorema de Fermat). Considere p um primo e a inteiro com mdc(a, p) = 1. Então ap ≡ a mod p. Demonstração. Segue pelo binômio de Newton e por indução. Teorema 5. Considere p ∈ Z um primo. São equivalentes: i. p = 2 ou p ≡ 1 mod 4 ii. Existe a ∈ Z tal que a2 ≡ −1 mod p iii. p é redutı́vel em Z[i] iv. p = a2 + b2 , para algum a, b ∈ Z Demonstração. (i) ⇒ (ii) : Se p = 2, então ok. Suponha p ≡ 1 mod 4. Considere Zp (que é um corpo) e tome o anel de polinômios Zp [x] (segue que é domı́nio euclidiano, e então, fatoração única). Considere o polinômio p(x) = xp−1 − 1̄. Pelo teorema de Fermat, 1̄, · · · , p − 1 são raı́zes de p(x), e então, podemos escrever p(x) = (x − 1̄) · · · (x − (p − 1)). Mas, como p = 4k + 1, podemos escrever xp−1 − 1̄ = x4k − 1̄ = (x2k + 1̄)(x2k − 1̄). Por ser fatoração única, temos que existe b̄ (algum elemento entre 1̄, · · · , p − 1) com b̄2k + 1̄ = 0̄. Tomando a = bk , temos que a2 ≡ −1 mod p, demonstrando o resultado. (ii) ⇒ (iii) : Se a2 ≡ −1 mod p, então existe k ∈ Z tal que pk = a2 + 1 = (a + i)(a − i), e então, p divide (a + i)(a − i). Se p fosse irredutı́vel, então p dividiria a + i ou a − i, o que não ocorre. Segue que p é redutı́vel. (iii) ⇒ (iv) : Escreva p = (a + bi)(c + di). Tomando a função norma, temos p2 = N (p) = N (a + bi)N (c + di) = (a2 + b2 )(c2 + d2 ) Segue que necessariamente p = a2 + b2 . (iv) ⇒ (i) : Suponha p 6= 2. Os possı́veis valores de congruência para a2 módulo 4 são 0 ou 1. Segue que se p é primo e soma de dois quadrados, então necessariamente temos p ≡ 1 mod 4. Assim, podemos caracterizar completamente os elementos irredutı́veis de Z[i]: 7 Teorema 6. Um elemento de Z[i] é irredutı́vel se, e somente se, é uma das formas: i. ±p, ±pi, com p primo e p ≡ 3 mod 4 ii. z tal que N (z) é primo Demonstração. Pelo teorema anterior e um lema anterior, segue que os elementos desta forma são irredutı́veis. Agora, seja x = a + bi ∈ Z[i] irredutı́vel. Se N (x) for primo, então ok. Se não, note que a − bi também é irredutı́vel, e escreva (a + bi)(a − bi) = N (x) = mn. Segue, por ser fatoração única, que a + bi ∼ m. Mas, por lema anterior, os elementos invertı́veis de Z[i] são exatamente {x ∈ Z[i] : N (x) = 1} = {±1, ±i}. Daı́ a + bi = ±m ou a + bi = ±mi, e então, a = 0 ou b = 0, ou seja, a + bi = ci ou a + bi = c. Por a + bi ser irredutı́vel, segue que c é irredutı́vel em Z[i], e então, irredutı́vel em Z, e então, pelo Teorema anterior, deve ser côngruo a 3 módulo 4. Extensões da Definição de Anel Euclidiano e outras Aplicações Nessa seção vamos comentar brevemente como a definição de Anel Euclidiano pode ser extendida de maneira natural, e vamos indicar algumas aplicações um pouco mais avançadas dessa teoria. Podemos notar que em todas as demonstrações envolvendo a função ϕ a única propriedade do seu contradomı́nio que foi relevante foi o fato dele ser bem-ordenado: um conjunto W com uma relação binária é bem-ordenado por quando esta relação torna W um conjunto linearmente ordenado (a relação é reflexiva, simétrica, transitiva e todos os elementos de W são comparáveis) com a seguinte condição a mais: todo subconjunto de W possui um elemento mı́nimo. Os naturais são conhecidamente bem-ordenados pela ordem usual (esse fato é equivalente ao Princı́pio da Indução). Então, o que difere nessa definição extendida de Anel Euclidiano é que o contradomı́nio de ϕ pode ser qualquer conjunto bem-ordenado (ϕ satisfaz, é claro, as mesmas condições que antes). Não se sabe se essa definição extendida realmente contém mais anéis - é um problema em aberto. A aplicação vista da teoria foi nos inteiros de Gauss, para estudar a representação de números como soma de dois quadrados. Outra aplicação importante da teoria é na estrutura dos módulos sobre Anéis Euclidianos finitamente gerados. Por ser um assunto mais sofisticado, apenas pincelaremos os resultados. Intuitivamente, um módulo é um ’espaço vetorial’ sobre um anel. Ele é finitamente gerado quando existe um subconjunto finito que gera o módulo inteiro (na teoria de módulos, isso não tem implicação nenhuma quanto ao módulo ter uma base!). Dois exemplos tı́picos de módulos sobre Anéis Euclidianos são os grupos abelianos hG, +i e os espaços vetoriais V sobre um corpo F qualquer: G é um módulo sobre Z com a ’multiplicação’ por escalar definida de maneira natural como ng = g + . . . + g n vezes, se n > 0, 0g = e e (−n)g = −(ng); dado um endomorfismo T de V , podemos considerar V como um módulo sobre F [x] da seguinte maneira: f (x)v = f (T )v. Usando essa caracterização, os teoremas sobre a estrutura de módulos sobre Anéis Euclidianos finitamente gerados nos dão ’de graça’ 3 teoremas importantı́ssimos: sobre a Estrutura dos Grupos Abelianos finitamente gerados, e os 8 teoremas da Decomposição Primária e Decomposição Cı́clica em álgebra linear. Estes teoremas seguem do que seria um análogo da decomposição cı́clia e decomposição primária para módulos. Referências 1. Arnaldo Garcia, Yves Lequain, “Elementos de Álgebra” (Quinta Edição), Projeto Euclides, Rio de Janeiro, 2001. 2. I. N. Herstein, “Topics in Algebra” (First Edition), Ginn and Company, Chicago, 1964. 3. Peter J. Cameron, “Introduction to Algebra” (Second Edition), Oxford, London, 1997. 9