PROTEÇÃO PARA QUEM? LEI MARIA DA PENHA E AS MULHERES TRANS. Saskya Miranda Lopes1 Bianca Muniz Leite2 Rosângela Costa Araújo3 RESUMO Este trabalho reflete a aplicação da Lei Maria da Penha a mulheres transexuais e como este impasse se apresenta desde a perda da oportunidade do Estado de assumir na lei que a violência tratada é fundada no conceito de gênero e não de sexo, perpassando decisões judiciais que transpõem o limite legal posto para contemplar aqueles esquecidos pelos legisladores, dissociados do conceito de família e considerados imunes à violência doméstica ou intrafamiliar. Ainda destaca conceitos sociológicos importantes para o cumprimento dos objetivos políticos e axiológicos dessa Lei, até chegar a propostas legislativas atuais, como o Projeto de Lei nº 8032/2014 proposto pela deputada federal Jandira Feghali, que ainda se embaraçam em exigências e proposições restritivas e não garantidoras de direitos para essas pessoas. Palavras Chave: Gênero, Lei Maria da Penha, transexuais, transgêneros e violência. Transexualidade, sexo e gênero: mulheres trans, mulheres de verdade. Distinguir a ideia geral dos conceitos de sexo e gênero, ainda que pareça um ponto já muito explorado e repetido em demasia nos chamados “estudos de gênero”, será, aqui, o nosso ponto de partida, em formato de panorama macro, pois a nitidez desses é de fundamental importância para debruçarmos-nos na proposta de pensar a Lei Maria da Penha enquanto direito das mulheres transexuais. A princípio, justificamos a escrita na primeira pessoa do plural em uma produção acadêmica como forma de nos 1 Mestra em Ciências Sociais (UFBA), Graduada em Direito (UESC), Professora Assistente do Departamento de Ciências Jurídicas da Universidade Estadual de Santa Cruz (DCIJUR/UESC). E-mail: [email protected] 2 Mestranda em Estudos Interdisciplinares Sobre Mulheres, Gênero e Feminismo (PPG NEIM/UFBA), Graduada em Direito (UESC). E-mail: [email protected] 3 Doutora e mestra em Educação (USP), Graduada em História (UFBA), Professora e Coordenadora do NEIM/UFBA. situarmos enquanto mulheres, feministas, militantes e, portanto, parte do processo de discussão e luta por direitos. Esse é o lugar de onde falamos, discutimos e pensamos ciências. Já não há que se defender a totalidade de um “olhar imparcial” inexistente por parte de pesquisadoras/es, mas reconhecer as suas pesquisas e referências e (re)conhecer o lugar de onde pensam e propõem, a fim de estreitar os laços da produção acadêmica em diálogos que busquem maior compreensão. O conceito de sexo está ligado ao corpo, ao biológico; sujeitos que nascem com aparelho genital e reprodutor masculino (testículos, pênis, etc) e cromossomos XY serão os machos, enquanto as que nascem como aparelho genital e reprodutor feminino (útero, trompas, vagina, etc) e cromossomos XX serão fêmeas. Há também as pessoas que possuem órgãos de macho e fêmea simultaneamente, são os hermafroditas. O sexo, inicialmente, está associado ao imutável, à ligação com a natureza e suas manifestações em características físicas. Gênero é um conceito posterior, construído ao longo de anos de elucubrações das diversas correntes e ondas das teorias feministas. Rompe com a ideia ligada ao determinismo biológico, ao que é tido como natural e assume um caráter político, baseado em construções sociais, culturais e discursivas (SCOTT, 1991). O gênero se torna, aliás, uma maneira de indicar as “construções sociais” – a criação inteiramente social das idéias sobre os papéis próprios aos homens e às mulheres. É uma maneira de se referir às origens exclusivamente sociais das identidades subjetivas dos homens e das mulheres. O gênero é, segundo essa definição, uma categoria social imposta sobre um corpo sexuado. [...] o gênero se tornou uma palavra particularmente útil, porque ele oferece um meio de distinguir a prática sexual dos papéis atribuídos às mulheres e aos homens (SCOTT, 1991, p. 7). O conceito de gênero mostra-se fundamental na discussão acerca do desempenho dos papeis socialmente construídos e destinados a homens e mulheres, suas representações e disparidades oriundas do sistema de organização social conhecido como patriarcado4 baseado numa concepção arcaica de família em que todos/as deveriam ser submissos/as ao poder paterno, isto é, ao homem. Predominantemente a transexualidade é percebida como uma patologia de transtorno de gênero; compreendendo esse transtorno como uma inadequação do gênero da pessoa com o seu sexo biológico. Essa perspectiva aceita e ratificada pela medicina e pelas chamadas ciências psi (psicologia, psiquiatria e psicanálise), coloca a pessoa trans 4 “A expressão [patriarcado] foi inventada pelos romanos para designar um novo organismo social, cujo chefe mantinha sob seu poder a mulher, os filhos e certo número de escravos, com o pátrio poder romano e o direito de vida e morte sobre todos eles” (ENGELS, 1986, p. 26). enquanto doente além de relacionarem o seu “problema” ao campo da sexualidade, o que configura um equívoco, pois sexualidade e gênero não devem ser entendidos como frutos de uma relação “causa-consequência”. A orientação sexual refere-se aos interesses afetivo-sexuais dos indivíduos e não deve ser vista por uma lente heteronormativa, sobretudo, ao pensarmos em transgêneros. A suposição implícita que segue orientando a classificação oficial de uma pessoa como transexual é a de uma mente aprisionada em um corpo, uma mente heterossexual. É inconcebível, a partir dessa perspectiva, que um corpo-sexuado homem se reconstrua como corpo-sexuado mulher e que eleja como objeto de desejo uma mulher, pois uma mulher “de verdade” já nasce feita, é heterossexual, e só assim poderá desempenhar seu principal papel: a maternidade (BENTO, 2006, p. 107). Partiremos então da perspectiva adotada por Berenice Bento (2008): “sugiro que a transexualidade é uma experiência identitária, caracterizada pelo conflito com as normas de gênero” (BENTO, 2008, p. 18). Isto é, para os interesses da discussão desse trabalho, a mulher transexual é aquela que, a despeito de ter nascido com pênis e aparelho reprodutor de macho, possui identidade de gênero feminina, se reconhece enquanto mulher e deve, portanto, ser tratada dessa forma. Lei Maria da Penha A construção do conceito de gênero e seu descolamento da categoria sexo foi fundamental no processo de reconhecimento de elementos como: identidade de gênero, que é a percepção de cada indivíduo sobre si mesmo, em entender-se e sentir-se homem ou mulher, independente de ser macho ou fêmea; expressões de gênero, como a maneira de uma pessoa demonstra seu gênero, por seu modo de agir, de vestir e de interagir; e independentemente destes elementos a orientação afetivo-sexual para iguais ou diferentes sexualmente. Todos estes elementos permitem várias combinações entre si e possibilitaram distinguir claramente os papeis sociais demarcados para cada gênero, ressaltando a estrutura patriarcal, como ideologia predominante. Contudo fatores como o desenvolvimento do capitalismo e a necessidade cada vez maior de mão de obra indistintamente, subverte a ordem dos papéis consagrados ao universo feminino, de esposa, mãe e mulher submissa, restrita ao espaço privado da família, para lançá-la ao mercado de trabalho, porém com a manutenção das teorias machistas sobre a inferioridade feminina, justificadoras da desigualdade entre os gêneros. As mulheres organizam-se a partir do fim do século XIX e passam a reivindicar a igualdade de gênero, na perspectiva liberal, corresponde à igualdade perante a lei, o reconhecimento universal da cidadania para homens e mulheres e esta será à base do movimento sufragista, bandeira da primeira fase do movimento feminista, nominado de primeira onda do feminismo. Na década de 60 do século XX adota-se o enfrentamento ao patriarcalismo, na luta contra a discriminação e pela igualdade de gênero, enquanto igualdade de direitos e oportunidades, é a segunda onda do feminismo, que ficou conhecido como o feminismo da igualdade. Na década de 80 e 90, a partir dos pensamentos pós-estruturalistas, pautava-se a necessidade de atender às particularidades dos indivíduos e enfatizar as diferenças - o feminismo da diferença será a marca da terceira onda do feminismo e onde se insere o reconhecimento das mulheres trans. Onde a igualdade liberal é insuficiente e passa-se a buscar a equidade aristotélica, que vai além da igualdade formal, mas associa a igualdade aplicada como justiça, como prática do resultado mais equilibrado e justo. Sem dúvida estas lutas ao longo do tempo levaram as organizações internacionais a reconhecerem o patriarcalismo como ideologia hegemônica, legitimadora de violências e injustiças para com as mulheres em todo o mundo e a exigir de cada país o compromisso para a equidade dos gêneros. Neste contexto de lutas dos vários movimentos feministas que, em 1994, o Brasil assinou a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher, também conhecida como Convenção de Belém do Pará e em 06 de agosto de 2006 foi promulgada a Lei nº 11.340/2006 (Lei Maria da Penha) para enfrentamento da violência doméstica e familiar de gênero. O sancionamento da lei deuse após recomendação da Comissão Interamericana de Direitos Humanos, depois de ter recebido a denúncia da biofarmacêutica cearense Maria da Penha Maia Fernandes, que ficou paraplégica em virtude da tentativa de homicídio perpetrada por seu marido em 1983 e reiterada em 1984, cujo processo se arrastou por 19 anos no judiciário, condenando-o a 10 anos dos quais não passou 1/3 em regime fechado. Neste ínterim ela publicou o livro “Sobrevivi, posso contar” em 1994, usando-o para denunciar em conjunto com o Centro pela Justiça e o Direito Internacional (CEJIL) e o Comitê Latino-Americano e do Caribe para a Defesa dos Direitos da Mulher (CLADEM) à Comissão. Após três notificações seguidas ao Brasil pelo desrespeito ao Pacto de São José da Costa Rica, sem resposta, é emitido o relatório 54/2001, apontando as falhas do estado brasileiro no cumprimento dos compromissos assumidos perante a comunidade internacional, denunciando a ineficácia judicial, a impunidade e a impossibilidade da vítima obter uma reparação pela violência sofrida, o que resulta na publicação da Lei que leva o nome de Maria da Penha. (CUNHA & PINTO, 2011) Considerando que o principal e mais festejando instrumento legal de defesa dos direitos femininos no Brasil se limita ao espaço privado, ao âmbito doméstico e familiar, pois a Lei Maria da Penha integra o micro-sistema legislativo previsto no Art. 226, §8º da Constituição Federal Brasileira, para proteção integral da família, deixando de estender a proteção por violência de gênero para aquelas que avançam do espaço privado da casa, das relações afetivas e familiares para o espaço público e conduzindo a um reforço, a perpetuação do perfil da mulher que é merecedora de proteção estatal para a mulher de família, a mulher do lar, a mãe, esposa, companheira, namorada, filha, ou seja, a mulher em sua relação patriarcal com um homem. Ainda é preciso ressaltar a falta de coragem e perda de oportunidade do legislador de deixar claro na Lei Maria da Penha que esta era uma Lei para proteção contra violências em virtude da identidade com o papel e expressões do gênero feminino, possibilitando estender essa proteção também às mulheres trans e travestis. No entanto o legislador menciona ao termo gênero no caput do artigo 5º, para configurar as violências contra a mulher no âmbito doméstico e família, não esclarecendo este conceito, nem considerando todos os seus elementos e características em qualquer outra parte do texto legal. Restringindo seu alcance e oferecendo argumento aos aplicadores da Lei na esfera penal para aplicar a Lei 11.340/2006 somente a mulheres, com base no conceito biológico (fêmea), alijando de qualquer proteção legal as vítimas de violência em virtude do alinhamento de identidade e expressão de gênero feminino das mulheres trans, das travestis e homossexuais, pois, de fato, existe vedação legal de se fazer analogia in malam partem no Direito Penal, impossibilitando o uso dos institutos legais como medidas protetivas e serviços importantes vinculados a tutela prevista pela Lei Maria da Penha a estas mulheres que representam a diversidade da terceira onda do feminismo. Proteção para quem? O despreparo de muitos profissionais que compõem os poderes Judiciário e Legislativo, frequentemente embaraçados com os conceitos de sexo, gênero, identidade, orientação sexual e seus desdobramentos, aliado à transfobia e à patologização da transexualidade, criam uma situação de insegurança jurídica muito grande para essas mulheres. Existem alguma decisões do judiciário brasileiro e doutrinadoras como Maria Berenice que defendem a aplicação da Lei 11.340/2006 aos casos de violência doméstica e familiar de casais homoafetivos e trans, como se pode observar na decisão do processo 201103873908 da comarca de Anápolis em Goiás: Desta forma, apesar da inexistência de legislação, de jurisprudência e da doutrina ser bastante divergente na possibilidade de aplicação da Lei Maria da Penha ao transexual que procedeu ou não à retificação de seu nome no registro civil, ao meu ver tais omissões e visões dicotómicas não podem servir de óbice ao reconhecimento de direitos erigidos à cláusulas pétreas pelo ordenamento jurídico constitucional. Tais óbices não podem cegar o aplicador da lei ao ponto de desproteger ofendidas como a identificada nestes autos de processo porque a mesma não se dirigiu ao Registro Civil de Pessoas Naturais para, alterando seu assento de nascimento, deixar de se identificar como Alexandre Roberto Kley e torna-se 'Camille Kley' por exemplo! Além de uma inconstitucionalidade uma injustiça e um dano irreparáveis! O apego à formalidades, cada vez mais em desuso no confronto com as garantias que se sobrelevam àquelas, não podem me impedir de assegurar à ora vítima TODAS as proteções e TODAS as garantias esculpidas, com as tintas fortes da dignidade, no quadro maravilhoso da Lei Maria da Penha (GOIÁS, 2011). No texto da decisão, a magistrada Ana Cláudia Veloso evidencia o despreparo do judiciário para tratar com respeito e equidade essas mulheres, insistindo, por exemplo, em usar o seu nome do registro civil em lugar do nome social, expondo-a a constrangimentos incalculáveis. Trata-se de uma decisão pioneira e que representa um avanço muito importante. Não obstante, cabe um olhar mais atento a alguns pormenores. 05. Pois bem! Compulsando detidamente os autos em testilha observa-se que apesar de constar na capa dos autos de processo o nome da ofendida como sendo 'Alexandre Roberto Kley', em verdade a referida pessoa fora submetida a uma cirurgia de redesignação sexual há 17 (dezessete) anos atrás como resulta do opúsculo objurgado. [...] 07. É possível colher ainda do cartapácio sub studio que, além da vítima declarar que fez a cirurgia mencionada no inciso 05 supra, esta possui a profissão de cabeleireira e, segundo o depoimento do condutor do investigado (fls. 03/04), aparentemente a mesma se apresenta como uma mulher. [...] Portanto, excluir ou não reconhecer direitos a uma pessoa apegando-se à sua orientação sexual, seria conceder tratamento indigno ao ser humano, ignorando a proteção constitucional da dignidade da pessoa humana. [...] 18. É por pertencer a um Estado Democrático de Direito, que não se deve admitir imposição da opção sexual, sendo dever todos respeitar e serem respeitados em suas respectivas proteções e orientações sexuais (GOIÁS, 2011). No texto da decisão, por muitas vezes, a despeito de buscar explicitar as distinções entre sexo e gênero, a confusão acontece, inserindo ainda a confusão com relação à orientação sexual que aparece sob o abandonado e repelido conceito de “opção” sexual. Além disso, cirurgia de redesignação de sexo é superenfatizada enquanto aspecto legitimador do ser “mulher de verdade”. A deputada Jandira Feghali do Partido Comunista do Brasil (PC do B) identificou essas dificuldades e insegurança jurídica à qual essas mulheres são submetidas e propôs o Projeto de Lei (PL) 8032/14 com o intuito de ampliar, explicitamente, isto é, alterar a letra da Lei a fim de estender a proteção da Lei 11.340/06 (Lei Maria da Penha) para as pessoas transexuais e transgêneros. Art. 1º Esta lei amplia a proteção de que trata a Lei 11.340, de 7 de agosto de 2006 – Lei Maria da Penha – às pessoas transexuais e transgêneros. Art. 2º O parágrafo único, do art. 5º da Lei 11.340, de 7 de agosto de 2006 – Lei Maria da Penha – passa a vigorar com a seguinte redação: “Art. 5º ............................. Parágrafo único. As relações pessoais enunciadas neste artigo independem de orientação sexual e se aplicam às pessoas transexuais e transgêneros que se identifiquem como mulheres.” (BRASIL, 2014, p. 1) É necessário o reconhecimento da importante preocupação com a segurança jurídica dessa minoria social e política e o importante avanço na discussão rumo à despatologização da transexualidade presente nesse PL. Orientação sexual e identidade de gênero são lucidamente diferenciados e as mulheres trans incluídas, em pé de igualdade, no rol de proteção da norma. Ainda hoje, no Brasil, pessoas transexuais são consideradas portadoras do transtorno mental Transexualismo, reconhecido no Conselho de Medicina sob o CID 10 F 64.0. A luta pela despatologização é uma pauta que agrega militantes e pesquisadoras/es, pois é consensual a importância de afastar o gênero das pessoas do domínio médico, a partir da compreensão desse fato enquanto exercício de poder da medicina e ciências psi sobre as/os transgêneros, quando, em verdade, é preciso garantir a essas pessoas autonomia sobre os seus corpos e sua vida (BENTO, 2009). Não obstante, algumas justificativas anexadas à proposição do PL 8032/14 são problemáticas, pois reforçam estereótipos há muito combatidos pelo movimento dos militantes da causa trans e pesquisadoras/es da área: “Ao se ver num corpo diferente do de seu cérebro, a pessoa passa a querer mudar de sexo, com o fim de ajustar o seu corpo à sua mente” (BRASIL, 2014). A afirmação da pretensão de realizar a cirurgia de redesignação de sexo como requisito para o reconhecimento da pessoa enquanto “trans de verdade” continua a aparecer. Berenice Bento (2008) chama atenção para essa interpretação moderna que toma a parte pelo todo, isto é, a genitália como o corpo todo, rememorando o século XIX quando o sexo passou a definir a verdade e o fim de nós mesmos (FOUCAULT, 1985). O desejo da cirurgia não é algo comum a todas as mulheres transexuais como amplamente difundido no senso comum. Em sua pesquisa de doutorado publicada parcialmente no corpo do artigo “A diferença que faz a diferença”, Bento (2009) relata a experiência com Bea5, mulher trans entrevistada por ela: Para Bea, o pênis faz parte do seu corpo e não reivindica a cirurgia, pois uma vagina não mudará seu sentimento de gênero, “não passará de um buraco”. Para ela, é o seu sentimento que importa, sendo o órgão totalmente secundário. [...] Histórias como as de Bea, que reivindica o direito à identidade de gênero feminina, desvinculando-a da cirurgia, nos põem diante da pluralidade de configurações internas à experiência transexual (BENTO, 2009, p. 102). É preciso aproximar o judiciário dos debates ligados às transversalidades que permeiam os temas e transpor os limites postos a fim de ampliar a proteção às que precisam e garantir os seus direitos, superar de fato as idéias do senso comum que insistem em subjugar, oprimir, violentar e invisibilizar minorias. Considerações Finais Diante das observações feitas, constata-se que a Lei Maria da Penha deixa a desejar para todas as mulheres, mesmo sendo o símbolo de uma importante vitória sobre o machismo, ainda alimenta a ideologia patriarcal, ao reforçar o papel social da mulher e assim excluir as mulheres trans de sua tutela. Ainda é preciso insistir na desconstrução de estereótipos, definições carregadas de machismo e homofobias, para o estabelecimento de conceitos cientificamente holísticos e amplamente divulgados na sociedade, no legislativo e no judiciário., evitando que medidas para a ampliação de direitos continuem esbarrando em entraves desarrazoados como é o caso do projeto de Lei 8032/14. 5 Os nomes da pesquisa foram alterados pela pesquisadora por outros fictícios, a fim de proteger a privacidade das colaboradoras. Sem dúvida o conhecimento, a educação e os debates transversais sobre a temática de gênero e sexualidades são prementes para toda a sociedade, mas são urgentes para o sistema de justiça, responsável por distribuir de forma equânime o justo direito de cada cidadão. Negligenciar o fato que estas cidadãs estão passíveis a sofrerem uma dupla ordem de violências: de gênero e de orientação sexual, por mais tênue que possam parecer a diferença entre eles e em virtude da confusão feita sobre estes conceitos, é virar as costas para os acordos e tratados internacionais sobre direitos humanos dos quais o Brasil é signatário, é desrespeitar a Constituição Federal e erigir uma subcategoria de sujeitos de direitos – cidadãos de segunda categoria, submetidos a toda ordem de desrespeitos ao princípio constitucional fundante dos direitos civis brasileiros que é o principio da dignidade humana. É dar aval, legitimando violências familiares, institucionais, simbólicas e físicas, sem que esteja pautado em todas as esferas de poder e de justiça, da polícia aos tribunais que as cidadãs do gênero feminino e em todas as diversidades sexuais são dignas do respeito e da proteção devida pelo Estado Brasileiro, que se diz.social e democrático de direito. 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