Direitos dos usuários do SUS1. Atenção à saúde dos idosos, portadores de deficiências físicas e mentais. Brasília, 08 de abril de 2009. O Sistema Único de Saúde traduz a forma de organização eleita pela Constituição Federal para o gerenciamento de toda a rede de saúde pública brasileira. Em teoria, o SUS abrange desde o simples atendimento ambulatorial até o transplante de órgãos, garantindo acesso integral, universal e gratuito para toda a população do país. A Conferência da Organização Mundial da Saúde de Alma Ata, realizada em 1978, definiu “a saúde, como o estado de completo bem-estar físico, mental e social, e não simplesmente a ausência de doença ou enfermidade, é um direito fundamental, e a consecução do mais alto nível possível de saúde é a mais importante meta social mundial, cuja realização requer a ação de muitos setores sociais e econômicos, além do setor de saúde”. Interessante observar a amplitude do conceito de saúde, pois ao ouvir sobre o tema, imediatamente somos remetidos à idéia de tratamentos, UTI’s, medicamentos e hospitais. Estamos, conforme salienta Luciana Temer Castelo Branco 2, condicionados a pensar em doença e não em saúde. No entanto, por saúde deve-se entender além da doença e da terapêutica, mas, também em prevenção e em especial ao conceito de dignidade humana. O Ministério da Saúde elaborou uma “carta dos direitos dos usuários da saúde 3”, onde se proclamou 06 direitos básicos, a saber: 1. Todo cidadão tem direito ao acesso ordenado e organizado aos sistemas de saúde; 2. Todo cidadão tem direito a tratamento adequado e efetivo para seu problema; 3. Todo cidadão tem direito ao atendimento humanizado, acolhedor e livre de qualquer discriminação; 4. Todo cidadão tem direito a atendimento que respeite a sua pessoa, seus valores e seus direitos; 5. Todo cidadão também tem responsabilidades para que seu tratamento aconteça da forma adequada; 1 André de Moura Soares, Defensor Público no Distrito Federal. E-mail: [email protected] Doutora em Direito Constitucional, autora do texto ‘abrangência do direito à saúde: fornecimento de medicamentos especiais é dever do Estado? 3 Brasil. Ministério da Saúde. Carta dos direitos dos usuários da saúde / Ministério da Saúde. – Brasília: Ministério da Saúde, 2006. 8 p. (Série E. Legislação de Saúde) ISBN 85-334-1108-1 1. Direito à saúde. 2. Defesa do paciente. I. Título. II. Série. Acesso em 08 de abril de 2009 no site: http://portal.saude.gov.br/portal/arquivos/pdf/cartilha_integra_direitos_2006.pdf 2 6. Todo cidadão tem direito ao comprometimento dos gestores da saúde para que os princípios anteriores sejam cumpridos. Todo cidadão sabe que os princípios acima elencados não são respeitados. O Sistema Único de Saúde é um verdadeiro caos, em que o desrespeito contra o cidadão prevalece, vitimando os idosos e portadores de deficiências físicas e mentais de forma acentuada. Citarei um exemplo, talvez um dos mais ultrajantes, das inúmeras hipóteses fáticas em que a dignidade inerente a todo ser humano é conspurcada. O Sistema Único de Saúde não fornece fraldas descartáveis para as pessoas que necessitam utilizá-las. Fralda é um produto de higiene íntima usado por bebês, crianças e adultos que não têm (ou perderam) o controle de suas necessidades fisiológicas e que, se não a usarem, podem se sujar com sua urina ou fezes. O adulto, que em função de doença (incontinência urinária, etc.) perde o controle de suas funções fisiológicas, tem de usar uma fralda comumente denominada fralda geriátrica (por geralmente serem idosos aqueles que utilizam esse tipo de fralda). Incontinência urinária4 é definida como a perda de urina involuntária em quantidade ou freqüência suficiente para originar um desconforto social ou problemas de saúde. Embora possa ocorrer em todas as faixas etárias, a incidência da incontinência urinária aumenta com o decorrer da idade. Calcula-se que 8 a 34% das pessoas acima de 65 anos possuam algum grau de incontinência urinária sendo que atinge cerca de 50% dos idosos institucionalizados e é mais prevalente em mulheres. Constata-se que apenas 50% dos portadores de incontinência urinária procuram consulta por esse motivo. Continência anal é a capacidade em retardar a eliminação de gases ou de fezes até o momento em que for conveniente fazê-lo. Resulta da inter-relação complexa entre volume e consistência do conteúdo retal, capacidade de distensão (complacência retal), sensibilidade retal e a integridade da musculatura esfinctérica anal, bem como sua inervação. A incontinência anal é a incapacidade, em graus variados, de reter a matéria fecal e de evacuá-la de forma voluntária. Trata-se de condição incapacitante, constrangedora e com repercussão socioeconômica significativa. Por esses motivos, a prevalência na população é de difícil mensuração. Por vezes, existe uma grande dificuldade do paciente de expor sua condição ao médico. A prevalência da incontinência fecal é de 42 por 10.000 indivíduos com idade entre 15 e 64 anos. Na faixa etária acima dos 65 anos, a prevalência é de 109 por 10.000 homens e 133 por 10.000 mulheres. O fornecimento de fraldas, caso fosse realizado pelo SUS, proporcionaria bem-estar e certa autonomia no ambiente domiciliar onde as atenções centram-se no idoso e nos portadores de deficiências físicas e/ou mentais. A incontinência urinária e fecal, por ilação lógica, conduz ao isolamento social da pessoa que sofre com tais enfermidades. O isolamento conduz à depressão e ao sentimento de menos valia. É certo que existe tratamento para tais enfermidades, mas enquanto a terapêutica é desenvolvida, uma forma de minorar os efeitos psicológicos nos pacientes e familiares é o fornecimento de fraldas descartáveis. Sem dúvida, 4 Fonte: http://www.saude.mg.gov.br/publicacoes/linha-guia/linhas-guia/LinhaGuiaSaudeIdoso.pdf com tal providência, estar-se-ia prestigiando o pórtico constitucional de observância obrigatória, qual seja, a dignidade da pessoa humana. Infelizmente, o pensamento acima ainda não foi encampado pelo Ministério da Saúde e pelo Chefe do Poder Executivo Federal. O Poder Legislativo também se queda inerte e não reclama a adoção de providências urgentes para salvaguardar a dignidade de inúmeros brasileiros. A inconstitucional omissão estatal brasileira é extremamente grave, máxime quando se depara com a notícia, amplamente divulgada pelos meios de comunicação, que o Brasil emprestará dinheiro ao Fundo Monetário Internacional para socorres os países em dificuldades financeiras por causa da crise mundial. Com efeito, a Agência Brasil5, veículo de notícias estatal, deu destaque ao fato de que “Brasil vai emprestar dinheiro para o FMI, afirma Lula após reunião do G20”. Lê-se na reportagem: “O presidente Luiz Inácio Lula da Silva disse hoje (2), em entrevista na Embaixada do Brasil em Londres, depois da apresentação do documento final da reunião do G20, que gostaria de entrar para a história como o primeiro presidente cujo governo vai emprestar dinheiro para o Fundo Monetário Internacional (FMI). A declaração foi feita depois que o G20, grupo dos países desenvolvidos e emergentes, decidiu destinar U$S 1,1 trilhão para socorrer países afetados pela crise financeira. Desse total, U$S 750 bilhões serão destinados a economias de países em desenvolvimento e dos emergentes que sofrem com a falta de crédito; U$S 250 bilhões serão empregados em financiamentos para estimular o comércio exterior; e uma reserva extra, de U$S 100 bilhões, está prevista para socorrer as economias de países mais pobres. O Japão sinalizou hoje que vai disponibilizar U$S 100 bilhões para o fundo, a China, U$S 40 bilhões, e o Canadá, U$S 10 bilhões. O presidente Lula disse que o Brasil tem condições de emprestar dinheiro para o fundo, mas o valor ainda não está definido. O ministro da Fazenda, Guido Mantega, que acompanhou o presidente na entrevista e no encontro do G20, disse que o país definirá nos próximos dias o valor previsto para socorrer as economias mais afetadas pela crise econômica mundial”. Pena que ao que parece o Presidente da República perderá a chance de ser o mandatário que assegurará o mínimo de dignidade aos inúmeros brasileiros que precisam de fraldas e permitirá que idosos e portadores de deficiências físicas e mentais continuem defecando e urinando sobre o próprio corpo sem lhes oferecer um mínimo de dignidade e oportunidade de evitarem o isolamento social, fator causador de depressão. Barack Obama tem razão, ele é o cara, acrescento eu, de pau! O Poder Judiciário já tem sinalizado não concordar com a inconstitucional postura governamental. Note-se que o Supremo Tribunal Federal, quando do julgamento do Agravo de Instrumento 588169, decidido no dia 26/04/2007, com a relatoria da Ministra Carmem Lúcia, em caso que se discutia a obrigatoriedade de fornecimento de fraldas, decidiu que “o direito à vida compreende o direito à saúde, para que seja possível dar concretude ao viver digno. A Constituição da República assegura o direito à dignidade da pessoa humana (Art. 1º, Inc. III) e, em sua esteira, todos os meios de acesso aos fatores e condições que permitam a sua efetivação. A impossibilidade de ter acesso a medicamentos necessários à sobrevivência digna agrava aquele direito. Bem assim, como aqui se põe, o acesso a materiais que podem 5 http://www.agenciabrasil.gov.br/noticias/2009/04/02/materia.2009-04-02.6355891221/view ser a eles equiparados, para a boa qualidade física de asseio e saúde assegure à pessoa condições de dignidade. Esse princípio constitui, no sistema constitucional vigente, um dos fundamentos mais expressivos sobre o qual se institui o Estado Democrático de Direito”. Assim, os médicos, quando se aperceberem de situações em que algum paciente precise do uso de fraldas descartáveis, devem prescrevê-las, em relatório circunstanciado, expondo as conseqüências físicas e emocionais que o indivíduo estará exposto caso não as receba. Após a prescrição, os médicos e serviços de assistência social devem orientar os pacientes ou os seus familiares a buscarem, v.g., por intermédio da Defensoria Pública, a via judicial, como forma de resguardo da dignidade inerente a todo ser humano. O maior de todos os direitos dos usuários do Sistema Único de Saúde é, sem dúvida, receber um tratamento digno. A postura institucional do Ministério da Saúde e da Presidência da República, todavia, direciona-se em sentido oposto ao da preservação e prestígio do reconhecimento da dignidade da pessoa humana. Nosso sistema de saúde não é acessível ou organizado. Os cidadãos não recebem tratamento adequado e efetivo, o atendimento não é humanizado ou acolhedor. Os idosos e portadores de deficiências físicas e/ou mentais são discriminados. O respeito à pessoa do doente é inexistente, eis que os obrigam a esperar meses, anos, por atendimento médico. Não há participação efetiva da população na gestão e definição de prioridades nas questões relacionadas à saúde e, principalmente, os gestores da saúde demonstram muito mais preocupações de ordem eleitoral e financeira do que real comprometimento para consecução dos princípios inscritos na carta de direitos dos usuários do Sistema Único de Saúde. Urge que a sociedade se mobilize, antes que seja tarde demais. .