Lucina Reitenbach Viana - TEDE

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UNIVERSIDADE TUIUTI DO PARANÁ - UTP
Lucina Reitenbach Viana
MÚSICA NA CIBERCULTURA: RECONFIGURAÇÃO DA
ESTRUTURA DO MERCADO A PARTIR DA DESINTERMEDIAÇÃO
DO FUNK BRASILEIRO E SUA PRODUÇÃO EM REDE
Curitiba
2009
UNIVERSIDADE TUIUTI DO PARANÁ - UTP
Lucina Reitenbach Viana
MÚSICA NA CIBERCULTURA: RECONFIGURAÇÃO DA
ESTRUTURA DO MERCADO A PARTIR DA DESINTERMEDIAÇÃO
DO FUNK BRASILEIRO E SUA PRODUÇÃO EM REDE
Dissertação apresentada, ao Programa
de Mestrado em Comunicação e Linguagens da
Pró-Reitoria de Pós-Graduação, Pesquisa e
Extensão da Universidade Tuiuti do Paraná
como requisito para a obtenção do título de
mestre, sob a orientação da Professora Doutora.
Adriana Amaral.
Curitiba
2009
1
TERMO DE APROVAÇÃO
Lucina Reitenbach Viana
MÚSICA NA CIBERCULTURA: RECONFIGURAÇÃO DA
ESTRUTURA DO MERCADO A PARTIR DA DESINTERMEDIAÇÃO
DO FUNK BRASILEIRO E SUA PRODUÇÃO EM REDE
Essa dissertação foi julgada e aprovada para a obtenção do título de mestre em
Comunicação e Linguagens, no Programa de Mestrado em Comunicação e
Linguagens da Pró-Reitoria de Pós-Graduação, Pesquisa e Extensão da
Universidade Tuiuti do Paraná
Curitiba, 28 de setembro de 2009
______________________________________________
Programa de Mestrado em Comunicação e Linguagens da Pró-Reitoria de PósGraduação, Pesquisa e Extensão da Universidade Tuiuti do Paraná
Orientadora: Professora Doutora. Adriana Amaral.
2
AGRADECIMENTOS
Agradeço imensamente àqueles que colaboraram para tornar essa pesquisa
possível, mas agradeço ainda mais àqueles que dificultaram seu desenvolvimento
por tornarem sua realização ainda mais vitoriosa.
Agradeço à Universidade Tuiuti do Paraná pelo investimento em minha
educação e pelo apoio à minha família, e ao CNPq pela Bolsa de Pesquisa.
Especiais considerações à professora convidada da banca de qualificação,
Professora Doutora Sueli Fragoso, num trabalho honrado que por muitas vezes não
tem seu valor reconhecido, mas cujas contribuições foram de fundamental
importância para meu processo de descobertas.
Agradecimentos aos integrantes da banca final: Professor Doutor Francisco
Eduardo Menezes Martins e Professor Doutor João Freire Filho pela leitura do
produto final e por suas considerações importantíssimas no momento de conclusão
deste trabalho.
À minha orientadora, Professora Doutora Adriana Amaral, pelas horas
dedicadas a realização desse trabalho e por todas as válidas opiniões que passaram
a fazer parte do dia a dia durante todo o tempo de orientação, entre encontros,
textos, artigos, telefonemas e emails.
Por todas as revisões ortográficas, broncas e puxões de orelha, durante
esses dois anos e meio e antes disso pela vida inteira, agradeço à minha mãe.
Pelas músicas e repertório que mantiveram o outro lado profissional
funcionando durante todo o tempo do mestrado agradeço imensamente ao Pedro,
DJ Gúy Pinheiro cujos CDs de mp3 e pen-drives foram importantíssimos.
Pela disposição dos entrevistados em ceder seu tempo para o refinamento
desse texto pela integração de suas falas, agradeço: Dj Marlboro, Pedro D´Eyrot,
Rodrigo Gorky e Fredi Chernobil Endres.
E finalmente, possivelmente o mais importante de todos os agradecimentos, a
minha colega de curso Georgia Natal, cuja companhia foi fundamental para todos os
aspectos dessa dissertação. Obrigada por ouvir todas as idéias, argumentos,
lamúrias e lamentações durante esses ricos anos em que vivenciei o contato direto
com aspectos da vida que me fizeram aprender mais do que qualquer pesquisa
poderia ter feito.
3
A VOZ DO DONO E O DONO DA VOZ
Até quem sabe a voz do dono
Gostava do dono da voz
Casa igual a nós, de entrega e de abandono
De guerra e paz, contras e prós
Fizeram bodas de acetato- de fato
Assim como nossos avós
O dono prensa a voz, a voz resulta num prato
Que gira para todos nós
O dono andava com outras doses
A voz era de um dono só
Deus deus ao dono os dentes, Deus deu ao dono as nozes
Às vozes Deus deu seu dó
Porém a voz ficou cansada após
Cem anos fazendo a santa
Sonhou se desatar de tantos nós
Nas cordas de outra garganta
A louca escorregava nos lençóis
Chegou a sonhar amantes
E, rouca, regalar os seus bemóis
Em troca de alguns brilhantes
Enfim, a voz firmou contrato
E foi morar com novo algoz
Queria se prensar, queria ser um prato
Girar e se esquecer veloz
Foi revelada na assembléia – atéia
Aquela situação atroz
A voz foi infiel trocando de traquéia
E o dono foi perdendo a voz
E o dono foi perdendo a linha – que tinha
E foi perdendo a luz e além
E disse: Minha voz, se vós não sereis minha
Vós não sereis de mais ninguém
Chico Buarque de Holanda
4
SUMÁRIO
RESUMO..................................................................................................................... 8
PALAVRAS CHAVE ................................................................................................... 8
ABSTRACT................................................................................................................. 9
KEY-WORDS .............................................................................................................. 9
INTRODUÇÃO .......................................................................................................... 10
1 PROCEDIMENTOS METODOLOGICOS .......................................................... 18
1.1 PROTO-OBSERVAÇÃO PARTICIPANTE OFF-LINE ........................................ 19
1.2 INCURSAO NETNOGRÁFICA PRELIMINAR .................................................... 20
1.3 REVISÃO BIBLIOGRAFICA ............................................................................... 23
1.4 ENTREVISTAS .................................................................................................. 26
1.4.1 MOMENTO DAS ENTREVISTAS .................................................................... 31
1.4.2 PROCEDIMENTOS DE REGISTRO E DOCUMENTAÇÃO ............................. 32
1.4.3 ANÁLISE DAS ENTREVISTAS ........................................................................ 33
2 CENÁRIOS: INDÚSTRIA CULTURAL E FONOGRÁFICA, TECNOLOGIA E
CIBERCULTURA ...................................................................................................... 36
2.1 INDÚSTRIA CULTURAL, INDÚSTRIA DA CULTURA E BENS CULTURAIS.... 36
2.2 INDÚSTRIA FONOGRÁFICA............................................................................. 45
2.3 ORGANIZAÇÃO DA CADEIA PRODUTIVA....................................................... 50
2.4 CENÁRIO ATUAL: INDÚSTRIA FONOGRÁFICA NA CIBERCULTURA ........... 51
3 A MÚSICA NA CIBERCULTURA ...................................................................... 55
3.1 A MÚSICA MEDIADA......................................................................................... 58
3.2 PROCESSOS HÍBRIDOS DE REMIXAGEM CULTURAL.................................. 59
3.2.1 O SAMPLE ..................................................................................................... 62
3.2.2 PROCESSOS DE REMIXAGEM ...................................................................... 64
4 O FUNK ............................................................................................................. 69
4.1 ORIGENS........................................................................................................... 70
4.1.1 A HISTÓRIA DO FUNK ENTRE OS ANOS 1990 E 2000 ................................ 74
4.1.2 O ARRASTÃO DO FUNK E A VIOLÊNCIA ...................................................... 76
4.1.3 ESTIGMA E PRECONCEITO ASSOCIADO PELA MÍDIA: .............................. 79
4.1.4 O PRECONCEITO COMO BARREIRA DE DEFESA: O CALDO BRASILEIRO
DO FUNK
..................................................................................................... 81
4.2 A HISTÓRIA RECENTE DO FUNK: 2000 E BONDES ...................................... 83
4.3 O “BONDE DO ROLÊ” E FREDY ENDRES ....................................................... 88
4.4 FUNK DE APARTAMENTO E O GRAU DAS RELAÇÕES NAS PLATAFORMAS
DE REDES SOCIAIS. ............................................................................................ 94
4.5 NOMENCLATURA E DERIVAÇÕES ................................................................. 97
4.6 HIBRIDAÇÃO E IDENTIFICAÇÃO ................................................................... 102
4.7 QUEM SÃO ESSAS PESSOAS? ..................................................................... 104
4.7.5 CIBER-REPRESENTAÇÃO ........................................................................... 111
5
4.7.6 REPUTAÇÃO ONLINE ................................................................................... 114
5 CONSUMO
E
O
MERCADO
DO
FUNK:
PARTICIPAÇÃO
E
DESINTERMEDIAÇÃO ........................................................................................... 118
5.1 A MUDANÇA DOS MERCADOS ..................................................................... 122
5.2 A INTELIGÊNCIA COLETIVA A FAVOR DO INDIVÍDUO E O CONSUMO
PARTICIPATIVO ................................................................................................. 128
5.3 A CONDIÇÃO DO FÃ COMO PRODUTOR DE CONTEÚDO.......................... 132
5.4 O VIÉS ECONÔMICO DO FUNK ..................................................................... 136
5.5 MUDANÇAS NA CADEIA PRODUTIVA........................................................... 138
5.5.7 O IMPACTO DA TECNOLOGIA NA CADEIA DE PRODUÇÃO MUSICAL DESINTERMEDIAÇÃO .................................................................................... 146
5.5.8 MUDANÇAS NO PAPEL DO PRODUTOR MUSICAL ................................... 149
5.6 O NEOFUNK E A INDÚSTRIA CULTURAL ..................................................... 150
CONSIDERAÇÕES FINAIS .................................................................................... 156
APÊNDICES ........................................................................................................... 166
LEVANTAMENTO NETNOGRÁFICO DO “BONDE DO ROLÊ” .............................. 166
ANEXOS ................................................................................................................. 175
ROTEIRO DAS ENTREVISTAS .............................................................................. 175
GRAVAÇÃO DAS ENTEVISTAS ............................................................................ 177
REPORTAGEM SOBRE PESQUISA DO IBOPE .................................................... 178
REPORTAGEM MANYMAIS ................................................................................... 179
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ....................................................................... 183
6
LISTA DE FIGURAS
1-1 Modelo Genérico de Roteiro de Pesquisa Qualitativa ......................................... 30
2-2 Estudos sobre Indústria Fonográfica ................................................................... 46
2-3 Fases de desenvolvimento da indústria Fonográfica .......................................... 47
2-4 Proposição: Quinta fase - em rede...................................................................... 54
4-1 Momentos da Trajetória do funk.......................................................................... 86
4-2 Trajetória do Funk no Brasil ................................................................................ 87
4-3 Nomenclaturas do funk ..................................................................................... 100
4-4 Gráfico de Classificação dos adotantes com base no tempo de adoção de
inovações ................................................................................................................ 105
4-4-5 Proporção de pessoas que acessaram a internet 2005-2008 ........................ 107
4-6 Proporção de pessoas que acessaram a internet 2005 – 2008 ........................ 108
4-7 Atividades desenvolvidas na internet ................................................................ 109
4-8 Habilidades relacionadas ao uso da internet..................................................... 110
5-1 Produção do baile: modo tradicional ................................................................. 140
5-2 Produção do Baile: modo das equipes .............................................................. 141
5-3 Produção do baile: tendência ............................................................................ 142
7
RESUMO:
Esta pesquisa se propõe a analisar de que forma a utilização do computador como
mediador dos processos comunicacionais e a participação do consumidor nas redes
sociais interferem na reconfiguração da música na Cibercultura. Parte-se do
levantamento netnográfico da presença online da banda curitibana “Bonde do Rolê”,
transformada em sucesso mundial a partir das interações sociais em torno de seu
perfil no site MySpace para chegar à sociabilidade entre ciber-representações como
objeto. Investiga-se a inserção do artista e seu trabalho nas redes sociais,
analisando a dobra onde os papéis de produtores e consumidores se sobrepõem em
decorrência da amplitude de participação desencadeada pela adoção da tecnologia
nos
processos
de
criação
de
bens
de
consumo
e
pelo
processo
de
desintermediação que transformou a configuração do mercado musical. Propõe-se a
revisão das fases de desenvolvimento da indústria fonográfica com base em sua
relação com a tecnologia, incluindo uma nova etapa intitulada quinta fase, onde a
produção acontece em rede, a partir de processos mediados e de hibridações
tecnológicas de gêneros musicais. As ferramentas de análise englobam a
observação participativa off-line, revisão bibliográfica, observação preliminar
baseada na Netnografia e finalmente, entrevistas qualitativas em profundidade.
PALAVRAS CHAVE
Comunicação, cibercultura, música eletrônica, funk, consumo;
8
ABSTRACT
This research aims to analyze in which way the use of computers as
mediators of communicational processes and the consumer participation in social
networks interfere in the music reconfiguration within cyberculture. The starting point
is a netnographic survey on the online presence of the Curitiba-based band “Bonde
do Rolê”, which became an international success as a result of the social interactions
on the band’s profile webpage on MySpace, reaching sociability between cyberrepresentations as object. This dissertation intends to investigate how influent the
insertion of the artist and its work in social networks is, analyzing the merging point
where the role of producers and consumers overlap, an outcome of the extensive
participation unleashed by the adoption of technology in the consumer goods
creative process and through the disintermediation process that transformed the
music trade configuration. This study also proposes a revision of the phonographic
industry development stages based on its relation with technology, including a new
stage, named the fifth stage, in which production occurs over a network, via mediated
processes and technological hybridizations of musical genres. The tools of analysis
comprise offline participant observation, bibliographic review, preliminary observation
based on the netnographic data and, finally, comprehensive qualitative interviews.
KEY-WORDS
Communication, cyberculture, electronic music, funk, consumption
9
INTRODUÇÃO
Um cientista completo é aquele que abarca
ao mesmo tempo a teoria e a prática experimental.
Claude Bernard
A partir das facilidades crescentes da composição musical derivadas da
adoção das novas tecnologias hoje disponíveis, temos a reconfiguração de diversos
conceitos tradicionais no universo da música. Enquanto alguns deles continuam a
versar sobre o segmento musical inserido nas trocas de sentido e nas trocas
comerciais, outros perdem o significado e tornam-se obsoletos. A fragmentação do
mercado e a desintegração de papéis outrora primordiais na indústria fonográfica
trazem à tona uma nova organização que prima o tratamento do segmento da
música como negócio desintermediado, e conseqüentemente a transformação desta
em uma mercadoria cada vez mais acessível
O desenvolvimento da produção musical segue a velocidade da inovação
tecnológica, encontrando-se hoje com as possibilidades de distribuição nas redes
digitais, disseminando da produção artística e eliminando os intermediários do
caminho entre os produtores e os consumidores, a partir de sua facilidade em
interagir com todos os tipos de suportes. Pela mão do consumidor final os processos
online e off-line se sobrepõem e pouco é planejado com eficiência. O estudo desse
campo nos permite conhecendo melhor este percurso, e ao refinar o olhar tornarmonos mais conscientes para então, podermos tomar as rédeas de nossas escolhas.
Ao tratar a música como mercadoria inserida dentro de um mercado, estudar
seu processo de produção e distribuição faz sentido para a comunicação tanto
quanto qualquer outro produto cultural.
10
A pesquisa no campo da comunicação é em si uma prática desafiadora.
Quando lidamos com objetos ou recortes online como no caso dessa dissertação, o
desafio é ainda maior, ora por conta das dificuldades acerca da adaptação ou
transposição dos métodos de pesquisa, ora pela inabilidade do pesquisador na sua
inserção. Pesquisar música dentro desse contexto engloba os mesmos desafios, e
ainda acumula a necessidade do conhecimento específico por parte do pesquisador,
para entender as peculiaridades técnicas do assunto tratado.
A chegada da Internet colocou um desafio significante para a compreensão dos
métodos de pesquisa. Através das ciências sociais e humanidades as pessoas se
encontraram querendo explorar as novas formações sociais que surgem quando as
pessoas se comunicam e se organizam via email, websites, telefones móveis e o
resto das cada vez mais mediadas formas de comunicação. Interações mediadas
chegaram à dianteira como chave, na qual as práticas sociais são definidas e
1
experimentadas. (HINE, 2005, p. 1)
Vencidas
essas
dificuldades,
as
possibilidades
da
pesquisa
online
principalmente em relação à interação e práticas sociais são imensas.
Quando a música como recorte de estudo se encontra inserida em
plataformas de redes sociais online, os processos comunicacionais relacionados a
ela encontram-se mediados pelo computador. Por isso, estudar música online
significa também estudar sociabilidade online, já que a interação e o relacionamento
entre os indivíduos e suas representações são partes integrantes do conjunto
denominado de rede social. Assim, a música se configura como uma lente através
da qual podemos observar o comportamento humano a respeito da transição de
suportes promovida pelas inovações tecnológicas sem nos deixar guiar pelo
1
Tradução livre da autora: “The coming of the Internet has posed a significant challenge for our
understanding of research methods. Across the social sciences and humanities people have found
themselves wanting to explore the new social formations that arise when people communicate and
organize themselves via email, web sites, mobile phones and the rest of the increasingly
commonplace mediated forms of communication. Mediated interactions have come to the fore as key
ways in which social practices are defined and experienced.”
11
determinismo tecnológico. É a música dentro do recorte de pesquisa escolhido, que
vai nos permitir manter o foco nas relações humanas.
Quando lidamos com as representações online do homem2 e não com ele
diretamente, estamos tratando de processos em contínua transformação, processos
provisórios, que merecem atenção da pesquisa em Comunicação, principalmente
quando podem ser recortados em grupos com características peculiares. É por isso
que os grupos formados em torno de plataformas de redes sociais3 focados na
música compõem campo fértil para pesquisas no campo da Comunicação.
Na análise dos dados levantados nas diversas abordagens metodológicas,
pretende-se a compreensão do processo de desintermediação nas interações sóciomusicais, bem como suas conseqüências para o mercado da música, considerando
que a partir da inserção dos artistas e de sua produção dentro das comunidades
online formadas em torno das plataformas de redes sociais temos a reconfiguração
da música na Cibercultura.
A hipótese aqui apresentada não pretende uma transposição do processo offline para o online, nem um comparativo entre eles. Apresenta-se o artista produtor
da música na Cibercultura equiparado ao consumidor participativo online, assumindo
que ambos estão na mesma plataforma, sem diferença de gênero, sendo diferentes
apenas no grau de envolvimento e na quantidade em que desenvolvem sua
participação.
Assim, a motivação para a colaboração do consumidor participativo seria a
mesma que move o produtor musical a publicar seu trabalho online. Buscando
2
Neste caso as representações do homem são seus perfis dentro das plataformas de redes sociais
online, que compõem sua ciber-representação, assunto que será abordado posteriormente com maior
detalhamento.
3
Adotou-se aqui a utilização do termo “plataformas de redes sociais” para designar espaços online
em torno dos quais as pessoas se organizam de forma a constituir laços relacionais, favorecidos pela
estrutura desses locais.
12
formas de construir a si mesmo através da participação, ambos experimentam a
notoriedade de suas representações online como resultado dessa busca. A
sociabilidade entre suas ciber-representações é o fator chave na promoção de si
próprios, que ocasiona visibilidade e notoriedade para eles e para sua produção.
Assim, seria a identificação para com a ciber-representação - considerando a
distinção entre sujeitos e objetos inscritos na rede como superada - que
desencadearia a desintermediação da cadeia de produção e distribuição, bem como
processo de consumo dos produtos culturais associados a eles.
A descoberta do recorte de pesquisa dessa dissertação tomou um caminho
longo, derivado dos primeiros contatos com a ainda prematura “cena musical
eletrônica” que se formava no final do século passado, quando nasceu a vontade de
tomar parte do processo de forma participativa. Entre a troca de papéis, passando
de consumidora de música eletrônica a integrante da cena musical, foi um curto
período de tempo.
Essa etapa foi iniciada em Curitiba, quando conjuntamente ao inicio do
trabalho como DJ, passei alguns anos depois, como porta voz do Red Bull Music
Academy4, a viajar por todo o Brasil, conhecendo outras pessoas envolvidas com a
música eletrônica e percebendo diferenças e similaridades da cena de cada local. A
partir daí, ficou claro que o futuro objeto de pesquisa estaria no segmento musical,
apesar de não ser possível ainda determinar qual seria o recorte.
Neste tempo, diversos amigos consumidores da inicial cena eletrônica
curitibana passaram a desenvolver projetos de produção musical, alguns com
sucesso e outros apenas experimentais. A mudança para São Paulo desencadeou a
4
Encontro anual patrocinado pela empresa Red Bull, a fim de promover uma plataforma mundial
itinerante de discussão e produção de música eletrônica. Para maiores informações sobre essa
iniciativa ver: http://www.redbullmusicacademy.com
13
concentração de esforços em trabalhar com a profissionalização da cena eletrônica,
desta vez nacionalmente, distanciando o contato com as produções curitibanas e
aproximando os estudos ao campo da Administração, durante o curso de pósgraduação em Marketing e Comunicação Integrada, o que resultou no interesse nos
estudos no campo da Comunicação, vinculado à música, mas com enfoque
mercadológico.
Foi em 2005, no último ano como porta voz do Red Bull Music Academy que
tomei conhecimento do que viria a se tornar o recorte desta pesquisa: um
desdobramento musical de funk carioca, do qual fazem parte o Bonde do Rolê e
seus produtores. Aquilo que para muitos parecia uma brincadeira chamava a
atenção pela composição híbrida, diferente daquilo que eram as minhas referências
musicais. Foi o estranhamento inicial a respeito da forma colaborativa como aquele
trabalho estava sendo feito, e seu reconhecimento quase que instantâneo que
ocasionou a vontade de entendê-lo.
Naquele momento, o “Bonde do Rolê” já era conhecido internacionalmente
pelo seu primeiro disco, mas aqui no Brasil era tratado com desdém pelos jornalistas
especializados e também pelo público, principalmente em Curitiba, onde não faziam
parte do circuito cultural local. Querendo entender como isso tinha acontecido, e
vislumbrando a possibilidade de aplicar o mesmo método em minha própria carreira,
tomei parte na produção do segundo disco, como observadora.
Durante as duas semanas de produção do disco, passei a freqüentar o local
de gravações da banda em Curitiba e vivenciar grande parte da interação entre os
integrantes. Foi com uma observação participativa que começava a ser desenhado o
processo de estudo que seria detalhado posteriormente.
14
Nesse período estavam sendo produzidas além do segundo disco da banda,
músicas para uma compilação que seria laçada no Japão. Foi observando a
produção, gravação e remixagem de alguns outros artistas em paralelo ao
desenvolvimento do disco, que houve o reconhecimento de que não se tratava
apenas de funk carioca feito no sul do país. Ali, estavam presentes outros elementos
que mereciam maior atenção. Eram questões identitárias, de sociabilidade, de
representação, experimentação e afirmação, desenvolvidas online e off-line e
intrinsecamente relacionadas à tecnologia, que precisavam ser colocadas em
perspectiva para uma melhor compreensão do fenômeno embrionário que em pouco
tempo invadiria o cotidiano das práticas mediadas por computador. Foi a partir
desses questionamentos que este trabalho de pesquisa tomou forma.
Essa dissertação é dividida em cinco capítulos, sendo todos eles compostos
por revisão bibliográfica e permeados pelo objeto e sua análise, além das
considerações finais, apêndices e anexos. Também fazem parte de todos os
capítulos, as falas levantadas em entrevistas e suas análises.
O primeiro capítulo apresenta os procedimentos metodológicos utilizados para
o desenvolvimento da pesquisa, bem como a metodologia escolhida para a etapa
das entrevistas aqui incluídas. São tensionados os pontos pertinentes à utilização da
abordagem qualitativa das entrevistas e seus resultados, como forma de aprimorar
os pontos de vista da pesquisa.
No segundo capítulo intitulado “Cenários”, será apresentado o referencial
teórico acerca da indústria cultural e da indústria fonográfica levando em
consideração o aporte tecnológico de cada época, paralelamente ao seu histórico de
desenvolvimento. Dentro disso, será apresentado o papel do homem em cada uma
das etapas vividas até agora no segmento, terminando com o cenário atual da
15
indústria fonográfica na Cibercultura. Nesse capitulo é feita uma proposição a
respeito do desdobramento da teoria existente de forma a incluir o momento atual
numa nova fase de desenvolvimento.
O terceiro capítulo é dedicado à Música na Cibercultura, apresentando a
música mediada como ponto de partida para esse estudo e suas três possibilidades
de mediação, bem como os processos de remixagem cultural, partindo da utilização
do sample como base para o surgimento da cultura da reciclagem.
No quarto capítulo adentramos ao assunto do funk, partindo de seu histórico,
apresentando a sua nacionalização e chegando aos desdobramentos quanto à sua
produção realizada fora da periferia carioca. São consideradas as nomenclaturas e
derivações, apresentando o funk de apartamento e o neofunk como possibilidades
atuais, para finalmente trazer as características das pessoas envolvidas na produção
dos mesmos.
O quinto capítulo trata do consumo e dos mercados, e é composto pelas
mudanças de cenário a partir da inserção do consumidor no processo de criação de
bens de consumo e seu engajamento na produção ou remixagem de conteúdo e da
mídia social gerada pela presença dos produtores/consumidores nas redes sociais,
tendo a atual configuração da internet como cenário propício para essas mudanças.
Apresentam-se
os conceitos
mercadológicos
para
determinar
a
revolução
colaborativa como fonte de toda a reestruturação do mercado.
Na apresentação das considerações finais, amarram-se os pontos de análise
apresentados até então, e é colocada uma proposta de continuidade. Ao final,
compondo o apêndice, está incluída uma das etapas preliminares à realização dessa
dissertação, que apesar de não figurar diretamente no corpo do texto, serviu de base
para a descoberta da sociabilidade entre ciber-representações como objeto desta
16
pesquisa. Esta etapa é intitulada de levantamento netnográfico preliminar da
presença da banda “Bonde do Rolê” na internet.
No anexo estão presentes o roteiro utilizado para as entrevistas, além da
captação em vídeo das próprias entrevistas na íntegra, disponibilizadas em dois
DVDs. São apresentadas também duas reportagens que são citadas durante o
desenvolver do texto.
As falas que foram levantadas nas entrevistas realizadas para essa
dissertação tomarão parte do corpo do texto, permeando todo o trabalho e
amarrando as abordagens metodológicas de incursão etnográfica e netnográfica,
além da revisão bibliográfica
17
...sem dúvida, os cânones metodológicos
são muitas vezes expedientes técnicos e,
ao mesmo tempo, obrigações morais.
(Merton, 1970, p. 652)
18
1
PROCEDIMENTOS METODOLOGICOS
As ferramentas metodológicas utilizadas englobam trabalho de pesquisa e
dados provenientes do online e do off-line, constituindo um modelo híbrido de
abordagem. Parte-se da observação participativa off-line do processo embrionário,
passa-se pela incursão netnográfica preliminar para mapeamento da presença do
objeto online, inclui-se a revisão bibliográfica, e por fim, permite-se que os atores
sociais envolvidos tenham voz a partir de entrevistas qualitativas de profundidade.
1.1 PROTO-OBSERVAÇÃO PARTICIPANTE OFF-LINE
Uma intuição não se prova, se vivencia.
Gaston Bachelard
Os dados coletados no momento anterior ao início desta pesquisa foram
vivenciados de forma não sistemática, sem a preocupação metodológica de
documentação dos dados coletados. Como forma de incluir aqui as considerações
levantadas durante esse período, foi adotada a nomenclatura de “proto-observação
participativa off-line”, indicando a forma como os dados vivenciais da pesquisadora
são considerados.
A proto-observação participativa off-line foi incluída na metodologia desta
pesquisa como ponto de partida, justificando os dados de observação empírica da
pesquisadora em suas vivências em relação ao objeto de estudo, quando esta
“consiste na inserção do pesquisador no ambiente natural da ocorrência do
fenômeno e de sua interação com a situação investigada.” (PERUZZO, [2005] 2009,
19
p. 125). O papel do pesquisador no caso de uma pesquisa com observação
participativa é delimitado quando:
O pesquisador se insere no grupo pesquisado, participando de todas as suas
atividades, ou seja, ele acompanha e vive (com maior ou menor intensidade)a
situação concreta que abriga o objeto de sua investigação. Porém, o investigador não
“se confunde”, ou não se deixa passar por membro do grupo. Seu papel é de
observador. (PERUZZO, [2005] 2009, p. 134)
Essa observação foi utilizada como parâmetro guia para o desenvolvimento
de todas as outras etapas metodológicas da pesquisa, a fim de entrelaçar os
resultados com as experiências que deram início à investigação como um todo.
Becker & Geer (1957) afirmam que a observação participante é “a forma mais
completa de informação sociológica”. Como tal ela fornece um marco referencial
diante do qual se pode julgar outros métodos ou como eles colocam, “conhecer que
tipo de informações nos escapa quando empregamos outros métodos. (GASKEL,
[2002] 2008, p. 72)
O processo de proto-observação foi realizado durante as duas semana em
que o primeiro disco da banda Bonde do Rolê foi produzido por seus integrantes e
por Fredi Chernobyl Endres na sala de um apartamento em Curitiba, no ano de
2005. Todo o período vivencial foi desenvolvido observando os acontecimentos de
forma a não interferir diretamente na produção, apenas estando presente e limitando
a interação aos assuntos que não estavam diretamente relacionados à produção do
disco em si ou às escolhas e decisões tomadas no decorrer desse processo.
1.2 INCURSAO NETNOGRÁFICA PRELIMINAR
A metodologia de pesquisa online da Netnografia foi um dos primeiros
assuntos tratados durante o Mestrado. O resultado da aplicação desta metodologia
no recorte de estudo resultou no levantamento netnográfico preliminar da presença
do objeto online, disponível no primeiro apêndice desta dissertação.
20
O termo Netnografia é baseado na transposição dos estudos etnográficos
para o ciberespaço, considerando suas peculiaridades e também limitações.
O neologismo “netnografia” (nethnography = net + ethnography) foi originalmente
cunhado por um grupo de pesquisadores/as norte americanos/as, Bishop, Star,
Neumann, Ignacio, Sandusky & Schatz, em 1995, para descrever um desafio
metodológico: preservar os detalhes ricos da observação em campo etnográfico
usando o meio eletrônico para “seguir os atores”. (BRAGA, 2007, p. 5)
Porém, o significado do termo não está limitado à transposição metodológica
para o ciberespaço, compreendendo a análise de praticas e interações, num
conjunto entre atores e ambiente social cujas características não correspondem
apenas a uma versão online de uma metodologia off-line. O método possui
características e acepções distintas, e emerge da necessidade de qualificar as
observações feitas no ambiente mediado por computador.
Não só a disponibilidade de informações a respeito de objetos de pesquisa na internet
é fator determinante para o emergir de uma metodologia de pesquisas online, mas
também a localização dos objetos no ciberespaço, além do posicionamento da
internet como próprio objeto de estudo em sua intrínseca relação com diversas
culturas. (AMARAL, NATAL, & VIANA, 2009, p. 5)
A Netnografia vem sendo utilizada em associação a diversas outras propostas
metodológicas, como forma de complementar as abordagens de pesquisas de
maneira híbrida, aproveitando as suas vantagens e sua eficiência em atuar em
conjunto com outros métodos. As vantagens de sua utilização, principalmente no
caso de levantamentos iniciais de pesquisa são muitas:
A netnografia, como transposição virtual das formas de pesquisa face a face e
similares, apresenta vantagens explicitas tais como consumir menos tempo, ser
menos dispendiosa e menos subjetiva, além de menos invasiva já que pode se
comportar como uma janela ao olhar do pesquisador sobre comportamentos naturais
de uma comunidade durante seu funcionamento, fora de um espaço fabricado para
pesquisa, sem que este interfira diretamente no processo como participante
fisicamente presente. Por outro lado, ela perde em termos de gestual e de contato
presencial off-line que podem revelar nuances obnubiladas pelo texto escrito,
emoticons, etc. Contudo, outros materiais como áudio e vídeo podem ser utilizados
de forma complementar. (AMARAL, NATAL, & VIANA, 2009, p. 6)
21
Portanto, a Netnografia foi escolhida como estratégia metodologia inicial, e na
medida em que se caminhou, outras metodologias foram sendo incorporadas para
suprimir as perdas derivadas da mediação do método.
A primeira descoberta importante decorrente da incursão netnográfica
preliminar foi de que a banda em si não era o objeto de estudo, mas sim os
processos de sociabilidade entre as representações de seus integrantes e
produtores no espaço online, além da produção e distribuição de conteúdo com base
nesses perfis.
Toda a documentação da incursão netnográfica presente no primeiro
apêndice desta dissertação seguiu os procedimentos metodológicos da teoria
referente. Nenhum tipo de autorização para essa etapa foi pedida ou concedida, pois
tratam-se de informações públicas a respeito de pessoas públicas, considerando
que “uma pessoa conhecida publicamente não pode estar apta a esperar que sua
privacidade seja considerada da mesma forma que a de uma pessoa comum”5.
(ELM, 2009, p. 86), da mesma forma que “coletar material de pesquisa sem
consentimento pode algumas vezes ser aceitável quando (a) o ambiente for público
e (b) o material não for delicado” (ELM, 2009, p. 73)6. Como o material dessa etapa
tem bases quantitativas e não qualitativas, e que se encontra em mecanismos de
busca ou páginas públicas dentro de plataformas de redes sociais onde o conteúdo
– particular ou não – não é analisado, as informações foram consideradas como
sendo de acesso público.
5
Tradução livre da autora: “A publicly know person may not be able to expect the same consideration
of privacy as an average ordinary person”.
6
Tradução livre da Autora: “Collecting research data without informed consent could sometimes be
acceptable if (a) the environment was public and (b) the material was not sensitive”
22
Os integrantes da banda analisada foram comunicados da pesquisa em seu
momento inicial, mas não foram requisitados até o momento final, onde foram
entrevistados no ambiente off-line. Os informantes nessa etapa netnográfica foram
considerados como sendo os próprios mecanismos de busca utilizados para o
levantamento, já que ninguém foi abordado para o levantamento dos dados.
Todos os levantamentos foram feitos a partir do perfil da pesquisadora dentro
das plataformas de redes sociais onde os integrantes da banda possuíam também
seu perfil. Obviamente, a proximidade e a relação de “amizade virtual”7 entre
pesquisadora e pesquisados permitiu o acesso total aos perfis, porém somente os
dados considerados públicos dentro de cada um deles foi analisado. Vale ressaltar
que nesse momento, as ferramentas de proteção de conteúdo dentro das
plataformas de redes sociais eram pouco desenvolvidas ou inexistentes, como n o
caso do Orkut, onde não existia ainda conteúdo restrito.
1.3 REVISÃO BIBLIOGRAFICA
Se uma verdade não é sólida o bastante para suportar que a desnaturemos e a
maltratemos, não é de uma espécie bem robusta
Samuel Butler
A revisão bibliográfica foi desenvolvida durante todo o mestrado, partindo das
necessidades de cada disciplina cursada e da produção de artigos específicos para
essas disciplinas que sempre envolvessem o tema da dissertação, que permaneceu
o mesmo desde o pré-projeto de pesquisa.
7
Amizade virtual é aqui considerada como sendo a afiliação de perfis dentro de plataformas de redes
sociais onde um integrante aceita o outro como sendo seu amigo. Não consideramos nesse momento
a existência de sociabilidade online entre perfis, apenas a declaração de amizade, já que esta permite
o acesso irrestrito ao conteúdo disponibilizado dentro dos perfis.
23
Pesquisa bibliográfica, num sentido amplo é o planejamento global inicial de qualquer
trabalho de pesquisa que vai desde a identificação, localização e obtenção da
bibliografia pertinente sobre o assunto, até a apresentação de um texto sistematizado,
onde é apresentada toda a literatura que o aluno examinou, de forma a evidenciar o
entendimento do pensamento dos autores acrescidos de suas próprias idéias e
opiniões. Num sentido restrito, é um conjunto de procedimentos que visa identificar
informações bibliográficas, selecionar os documentos pertinentes ao tema estudado.
(STUMPF, [2005] 2009, p. 51)
Inicialmente, foi adotado o procedimento de tratar os assuntos genericamente,
sem envolver o objeto ou o recorte do assunto em questão, tentando desenvolver as
leituras e sua transformação em revisão bibliográfica de forma a serem utilizadas
duplamente, na construção de artigos e posteriormente na produção da dissertação.
Assim, boa parte do resultado final dessa dissertação – pelo menos ao que se refere
à parte teórica – se encontra publicada em anais de eventos, congressos, revisas
científicas e capítulos de livros, cujas discussões foram fundamentais para o
desenvolvimento das idéias individuais neles apresentadas.
A primeira fase de leitura e produção bibliográfica teve como base a parte
econômica e as transformações gerais provenientes da transposição do segmento
da música para o espaço online, a fim de entender o funcionamento desse mercado.
A partir daí, foi feito o resgate histórico do segmento musical através da leitura
da produção bibliográfica nacional sobre indústria cultural e indústria fonográfica.
Nesse momento foi detectada a lacuna de produção bibliográfica que deu origem ao
ponto principal resultante desse trabalho: a revisão da teoria para incluir a fase em
que se encontra a música no momento atual, considerando sua mediação pelo
computador e sua produção e distribuição em rede.
A partir dessa proposta, foi possível partir para a leitura do material especifico
sobre o recorte desta dissertação: os processos mediados de construção do funk.
Foi desenvolvida a leitura de toda a produção bibliográfica sobre o assunto para a
24
construção do histórico do segmento, desde seu surgimento internacional, passando
pela sua entrada no Brasil, seguindo pela sua nacionalização até chegar ao
momento atual onde se encontram os entrevistados cujas idéias e falas estão aqui
presentes.
As leituras sobre metodologia permearam todo o desenvolvimento desta
dissertação, sendo retomadas a cada etapa distinta de utilização da metodologia
híbrida proposta.
O embasamento teórico sobre indústria cultual envolve ADORNO &
HORKHEIMER (2000), apoiados nos autores nacionais que versam sobre o
segmento: RUDIGER ([1999] 2002), DURÃO, ZUIM, & VAZ (2008), DIAS (2000) e
DURÃO (2008). Para as especificidades da indústria fonográfica inserida nos na
indústria cultural, foras utilizados todos os autores nacionais importantes, como
TINHORÃO, (1981); MORELLI, (1991); PAIANO, (1994); VICENTE, (1996); DIAS,
(2000); SÁ, (2002) e CASTRO (2003), sempre em relação ao processo de
industrialização tratado por ORTIZ (1994)e com alguma colocação sobre a
atualidade baseada em ANDERSON (2006).Para tratar da música no contexto da
Cibercultura foram utilizados KURZWEIL ([1999] 2007) e LESSIG (2004).
Abordando o funk, foi feita a revisão de todos os autores que citam o
movimento dentro do escopo da comunicação, tais como: SÁ, (2007 e 2009), FILHO
& HERSCHMANN (2003), FILHO, HERSCHMANN, & PAIVA (2004), FILHO,
HERSCHMAN (2000). Foram considerados os produtos da antropologia do
pesquisador mais importante sobre o assunto nos trabalhos de VIANNA (1987,
1988, 1990, 1997 e 2006), bem como todos os trabalhos com enfoque jornalístico,
25
como: MACEDO (2003), ESSINGER (2005), FACINA (2009 ), MEDEIROS (2006) e
SOUTO (1997).
Para tratar do consumo e suas configurações atuais de desintermediação,
TAPSCOTT & WILLIAMS (2007), ANDERSON (2006), LI & BERNOFF (2008),
apoiados em (LÉVY, [1994] 2003) e JENKINS (2006 e 2006a), que dão subsídios
para incluir o homem nessa equação
1.4 ENTREVISTAS
A abordagem qualitativa foi escolhida a partir das necessidades de
levantamento específicas do problema de pesquisa, para entender questões para as
quais a pesquisa quantitativa não delimita respostas capazes de satisfazer questões
mais amplas, e tendo como intenção principal realizar investigação exploratória a
respeito dos assuntos abordados.
A pesquisa qualitativa é um estudo não estatístico que identifica e analisa
profundamente dados não-mensuráveis – sentimentos, sensações, percepções,
pensamentos, intenções, comportamentos passados, entendimentos de razões,
significados e motivações – de um determinado grupo de indivíduos em relação a um
problema específico. (PINHEIRO, CASTRO, SILVA, & NUNES, 2004)
Para o detalhamento dos fatos e aprofundamento das opiniões dos atores
envolvidos com as delimitações do funk produzido no Brasil, o método exploratório
escolhido foi o das entrevistas individuais em profundidade. Essa escolha se deu em
parte pela necessidade de trabalhar os dados obtidos com outras formas de análise,
vinculando as opiniões e vivências pessoais ao trabalho de revisão bibliográfica e
observação presencial realizado anteriormente.
O emprego da entrevista qualitativa para mapear e compreender o mundo da vida
dos respondentes é o ponto de entrada para o cientista social que introduz, então,
esquemas interpretativos para compreender as narrativas dos atores em termos mais
26
conceptuais e abstratos, muitas vezes em relação a outras observações. (GASKEL,
[2002] 2008, p. 65)
Dentre os parâmetros metodológicos pesquisados para a escolha da
quantidade de entrevistas a serem realizadas, foi observado que não existe um
método único dentre a bibliografia sobre o assunto que mostre claramente quais os
princípios
para
quantificar
as
abordagens
qualitativas
e
obter
respostas
significativas. No entanto, fica claro que obedecer qualquer critério aleatório para a
tomada dessa decisão não seria uma escolha justificada.
Na busca pela solução desta questão encontrou-se a resposta chamada de
“construção de um corpus”, que significa a “escolha sistemática de algum racional
alternativo” (BAUER & AARTS, [2002] 2008, p. 40), a fim de justificar a escolha das
pessoas a serem entrevistadas de uma forma diferente do que seria feito numa
abordagem estatística aleatória. Considerou-se também a limitação do tempo de
pesquisa e a necessidade da análise profunda do que fosse levantado conforme
descreve o método (BAUER & AARTS, [2002] 2008, p. 60).
Desta forma, optou-se por realizar entrevistas individuais com todos os atores
citados diretamente dentro do que foi analisado, que foram restringidos aos
representantes principais da categoria analisada e o representante mais importante
do que seria o contraponto da categoria oposta, considerando que “nos estudos
qualitativos são preferíveis poucas fontes, mas de qualidade, a muitas fontes, sem
relevo. (...) uma pessoa só deve ser entrevistada se realmente pode contribuir para
ajudar a responder à questão de pesquisa.” (DUARTE, [2005] 2009, p. 68).
Foram entrevistados os dois integrantes originais da banda Bonde do Rolê –
Pedro D´Eyrot e Rodrigo Gorky – e o produtor Fredi Chernobyl Endres responsável
pelas primeiras experiências de funk fora da periferia do Rio de Janeiro, que se
27
mantém trabalhando com esse gênero até hoje. Como forma de complementar o
levantamento histórico sobre o funk carioca e das bases para análise do funk
desenvolvido fora do Rio de Janeiro, foi escolhido como entrevistado o DJ Marlboro,
peça fundamental no desenvolvimento da nacionalização do funk e figura chave do
segmento. A entrevista com Marlboro também foi escolhida como forma de
contrabalancear as opiniões e informações levantadas nas três primeiras
entrevistas.
A entrevista individual em profundidade foi escolhida em detrimento de outros
tipos de levantamentos qualitativos, por se tratar de abordagens diretas, onde o foco
das entrevistas foi o levantamento histórico de fatos e acontecimentos, bem como as
opiniões dos elementos chave de ambos os lados abordados no desenvolvimento da
pesquisa como um todo. Sua importância está na abertura para comparação das
idéias do pesquisador com as idéias dos envolvidos na pesquisa, como disse Gaskel
ao citar Robert Farr:
Nas ciências sociais empíricas, a entrevista qualitativa é uma metodologia de coleta
de dados amplamente empregada. Ela é, como escreveu Robert Farr (1982),
“essencialmente uma técnica, ou método, para estabelecer ou descobrir que existem
perspectivas, ou pontos de vista sobre os fatos, além daqueles da pessoa que inicia a
entrevista”. (GASKEL, [2002] 2008, p. 65)
Para as quatro entrevistas foi utilizado o mesmo roteiro de pesquisa,
apresentado no primeiro anexo deste trabalho, baseado na necessidade de manter
parâmetros para comparação na posterior análise dos resultados. A estruturação do
roteiro seguiu os princípios descritos por Pinheiro, Castro, Silva & Nunes, que
apontam que “o roteiro de pesquisa nada se parece com um questionário de
pesquisa, que é o instrumento clássico da coleta de dados utilizado em pesquisas
quantitativas” (PINHEIRO, CASTRO, SILVA, & NUNES, 2004). Desta forma, o
28
roteiro utilizado para as entrevistas8 pode ser considerado como semi estruturado,
por possuir pontos que permitem ao entrevistador inserir perguntas que possam
aprofundar a questão, e está estruturado por temas agrupados por assuntos além de
incluir testes de projeção:
Basicamente, o objetivo de qualquer teste de projeção é investigar além da superfície
das respostas para obter sensações, significados e motivações reais. A lógica por
detrás dos testes de projeção advém do conhecimento de que as pessoas muitas
vezes relutam ou não podem revelar seus sentimentos mais profundos. Em outros
casos ela não está ciente desses sentimentos devido aos mecanismos de defesa
psicológica. Os testes de projeção constituem técnicas para penetrar no mecanismo
de defesa das pessoas e permitir que surjam sentimentos e atitudes reais.
(McDANIEL & GATES, [2003] 2008)
Com as técnicas de projeção, indiretamente os entrevistados são incentivados
a analisar o comportamento de outras pessoas, a fim de entender suas próprias
motivações:
Indiretamente, quando falam de outros, os entrevistados acabam projetando as suas
próprias motivações, crenças, ou sensações, fazendo com que suas atitudes sejam
reveladas. (PINHEIRO, CASTRO, SILVA, & NUNES, 2004)
O roteiro das entrevistas foi estruturado em cinco etapas, seguindo o modelo
genérico de roteiro de pesquisa apresentado na figura 1-1.
A etapa de aquecimento e contexto foi feita previamente, deixando todos os
entrevistados cientes dos procedimentos e dos assuntos que seriam tratados, a fim
de proporcionar um esclarecimento a respeito da pesquisa e provocar um maior
conforto por se tratarem de entrevistas mais longas do que aquelas que os
envolvidos estão acostumados a conceder à imprensa. No momento da entrevista,
essa etapa foi feita com uma pergunta ampla para cada entrevistado a respeito de
quem eram eles, para que falassem mais abertamente de sua própria pessoa.
8
O roteiro completo está no anexo 1.
29
1-1 Modelo Genérico de Roteiro de Pesquisa Qualitativa
Fonte: (PINHEIRO, CASTRO et all, 2004)
Para a etapa de aquecimento, foram abordados temas relacionados à rotina
de atividades cotidianas e aos detalhes das atividades artísticas de cada um dos
entrevistados.
A etapa de aquecimento introduz a discussão num contexto genérico, tomando por
base a realidade de vida, o cotidiano dos entrevistados. A utilização de uma
abordagem ampla no início da entrevista visa facilitar a discussão das questões de
maior interesse previstas mais a frente no roteiro. (PINHEIRO, CASTRO, SILVA, &
NUNES, 2004)
Considerando que “a terceira etapa começa a direcionar a discussão para o
segmento relevante ao assunto” (PINHEIRO, CASTRO, SILVA, & NUNES, 2004),
30
foram abordados os assuntos relacionados ao funk carioca em si e suas
especificidades, pela visão das duas categorias de entrevistados. Seguindo esse
critério, as perguntas da quarta etapa foram focadas na relação dos entrevistados
com a indústria fonográfica.
Finalmente, na última etapa do roteiro foram abordadas as questões a
respeito do que foi chamado previamente de neofunk, para identificar a produção de
funk fora da periferia carioca, sem nenhuma intenção de estabelecer um segmento
derivado ou subcategoria de estilo, guardando essa discussão para a análise feita a
partir das respostas dos entrevistados.
Na aplicação do roteiro de pesquisa durante as entrevistas foram
consideradas também as respostas dos entrevistados, guiando o encerramento ou a
troca de assuntos, bem como a formulação de perguntas intermediárias que
permitissem o aprofundamento de pontos levantados que não estivessem previstas,
considerando a prática definida por Malhorta (2001) como sondagem, onde as
respostas dadas são utilizadas como parâmetro para novas perguntas.
A direção de uma entrevista em profundidade é orientada pelas respostas do
entrevistado. À medida que a entrevista se desenvolve, o entrevistador investiga as
respostas e as usa como base para fazer perguntas adicionais. (McDANIEL &
GATES, [2003] 2008)
Desta forma foi possível aprofundar pontos diferentes em cada uma das
entrevistas a partir do mesmo roteiro, mas seguindo a linha de respostas distintas de
cada entrevistado.
1.4.1 MOMENTO DAS ENTREVISTAS
O momento escolhido para a realização das entrevistas foi logo após a
qualificação, quando todas as leituras teóricas estavam finalizadas, bem como a
31
revisão bibliográfica. Como etapa de preparação para a realização das entrevistas,
foi desenvolvida a leitura de todo o material específico sobre funk (artigos,
dissertações, teses e livros), que gerou a parte histórica do segmento presente no
decorrer do texto. Além disso, foi desenvolvida a leitura e produção textual do que
faz parte da história de cada artista, como forma de conhecer melhor cada um dos
entrevistados.
Assim, durante cada entrevista foi possível explorar detalhes provenientes da
história de cada um e conseguir um resultado mais eficiente em termos de análise,
já que o conhecimento prévio proporcionou a abordagem das mesmas questões por
pontos de entrada distintos.
Procurou-se realizar todas as entrevistas num curto espaço de tempo, a fim
de manter o conteúdo de cada uma delas fresco, podendo então utilizar respostas
de um entrevistado nas abordagens de outros.
1.4.2 PROCEDIMENTOS DE REGISTRO E DOCUMENTAÇÃO
As entrevistas foram gravadas em vídeo, a fim de documentar os
procedimentos com maior autenticidade do que gravações apenas de áudio.
Portanto, foi possível em muitos momentos durante a análise, considerar as
expressões e a forma como cada resposta era entendida e enfim respondida.
Há uma perda de informações no relatório escrito, e o entrevistador deve ser capaz
de trazer à memória o tom emocional do entrevistado e lembrar porque eles fizeram
uma pergunta específica. (GASKEL, [2002] 2008, p. 71)
32
Optou-se por não realizar a transcrição total das entrevistas e sim por anexar
os vídeos9 de forma que possam ser assistido pelos leitores que poderão perceber
os detalhes que seriam perdidos com a apresentação da transcrição.
Todas as falas utilizadas no decorrer do texto provenientes das entrevistas
foram transcritas literalmente, num processo de transcrição parcial que foi feito após
todas as visualizações do material bruto das entrevistas em vídeo.
1.4.3 ANÁLISE DAS ENTREVISTAS
Além de servirem como fonte para as falas que permeiam a dissertação e
corroboram com os argumentos teóricos explorados na revisão bibliográfica, o
resultado das entrevistas serviu para a descoberta de detalhes e para o
aprofundamento das considerações de análise. Grande parte das opiniões
expressas pelos entrevistados foi transformada em análise de dados pela
comparação entre elas, seja quando feita entre os produtores e integrantes da
banda analisada, seja quando feita em comparação com a opinião expressa pelo DJ
Marlboro, integrante do funk carioca que está ciente das derivações do funk
produzido fora da periferia do Rio de Janeiro, mas que não faz parte desse
movimento.
Foram feitas um total de cinco visualizações do material bruto. Após a
realização de cada entrevista, os insights e pontos a serem utilizados foram
anotados previamente. Na primeira visualização essas anotações foram conferidas e
encorpadas, acrescentando indicações mais precisas a respeito das falas que
seriam transcritas. Após nova estruturação, foi feita a segunda visualização do
9
As gravações das entrevistas encontram-se no anexo 2 dessa dissertação, em DVD que inclui um
player ser instalado para a visualização das mesmas.
33
material bruto, para conferência. Na terceira visualização, foi produzida a parte
textual derivada das informações dos vídeos, englobando a parte histórica do
segmento e descritiva dos métodos. Na quarta visualização foi feita uma conferência
de todo o material produzido, e na quinta visualização foram transcritas as falas que
foram selecionadas para utilização permeando o texto.
Quando “falas ou comentários que numa primeira escuta pareciam sem
sentido podem, repentinamente, entrar em cena à medida que as contribuições de
diferentes entrevistados são comparadas e contrastadas (GASKEL, [2002] 2008, p.
71), todas as visualizações se mostraram importantes na construção do produto
final, tanto nas argumentações quanto nas falas dos entrevistados posicionadas
como citações pertinentes aos assuntos teóricos tratados.
34
Sempre achei que cada geração deveria enterrar-se completamente na areia, com
suas obras, sua filosofia e mesmo suas manias (...) Assim pelo menos, os jovens
realmente recomeçariam do zero.
Joseph Delteil
35
2
CENÁRIOS: INDÚSTRIA CULTURAL E FONOGRÁFICA, TECNOLOGIA E
CIBERCULTURA
Neste capítulo serão apresentados os cenários pertinentes à construção do
da análise disposta nesta dissertação, partindo da definição de indústria cultural e
considerando o histórico de industrialização como fator fundamental de seu
desenvolvimento. A indústria fonográfica será apresentada como parte integrante
desse cenário e seu histórico servirá como ponto de partida para a discussão da
inclusão de uma nova etapa de desenvolvimento ocorrente no momento atual de
desenvolvimento tecnológico da produção musical.
2.1 INDÚSTRIA CULTURAL, INDÚSTRIA DA CULTURA E BENS CULTURAIS
O verbo não vale se não se encarna.
Joseph Deiteil
Grandes mudanças no desenvolvimento tecnológico colocaram a indústria da
cultura no centro de questões econômicas, colocando bens culturais no cerne de
discussões sobre consumo. Segmentos de produção que antes eram vistos como
secundários passam cada dia mais a fazer parte do que se considera o centro da
economia mundial ao lado de bens duráveis e commodities. Pequenas e grandes
empresas atuam lado a lado com produtores independentes sem considerar
fronteiras, distribuindo seus produtos por todo o globo e atingindo locais cada vez
mais distantes, fundindo-se numa forma infinita de mixagem e remixagem.
É nesse contexto que se pretende discutir a validade do termo “indústria
cultural”, conforme proposto originalmente, em contraponto com a abordagem de
36
sua aplicação nos estudos culturais, onde este é apresentado com características
que definiriam muito mais “indústrias de cultura”, ou ainda “indústrias culturais”.
O autor David Hesmondhalgh afirma que a importância das indústrias de
cultura nos dias de hoje estaria conectada ao fator ligado ao seu papel fundamental
de produção e circulação de produtos, os quais seriam capazes de influenciar a
forma como entendemos o mundo (HESMONDHALDGH, [2007] 2008, p. 3). O autor
define os produtos culturais transformados em mercadorias que circulam através da
cadeia estabelecida pelas indústrias da cultura como “textos” que nos influenciam:
Nós somos influenciados por textos informacionais, como jornais programas noticia
de televisão aberta documentários e livros analíticos, mas também pelo
entretenimento. Filmes, séries de televisão, gibis, musica, vídeo games e outros, nos
proporcionam representações recorrentes do mundo, e elas funcionam como uma
forma de reportar. Tão crucial, eles baseiam e ajudam a constituir nossa vida privada
e intrínseca, e nossa manifestação pública: nossas fantasias, emoções e identidades.
Eles contribuem fortemente para com o senso de quem somos, e o que significa ser
um homem ou uma mulher, um africano ou um árabe, um canadense ou um novaiorquino, heterossexual ou homossexual. Somente por essas razões, os produtos das
indústrias de cultura são mais do que uma forma de passar o tempo.
10
(HESMONDHALDGH, [2007] 2008, p. 3)
O estudo da indústria cultural e da circulação de bens culturais como a
música, nos traria, portanto, uma forma de entender mais sobre esse papel central, e
sobre os desdobramentos do consumo do entretenimento na vida de cada pessoa,
seja ela produtor ou consumidor.
Em seu famoso texto “Dialética do Esclarecimento” ([1984] 1985), Adorno e
Horkheimer cunham o termo “indústria cultural”, que não trata da cultura produzida
10
Tradução livre da autora:” We are influenced by informational texts, such as newspapers, broadcast
news programmes, documentaries and analytical books, but also by entertainment. Films, TV series
comics, music, video games, and so on provide us with recurring representation of the world and thus
act as a kind of reporting. Just as crucially , they draw on and help to constitute our inner, private lives
and our public selves: our fantasies emotions and identities. They contribute strongly to our sense of
who we are, of what it means to be a woman or a man, an African or Arab, A Canadian or a New
Yorker, straight or gay. For these reasons alone, the products of the cultural industries are more than
just a way of passing time”
37
pela massa, e sim de uma organização industrial, econômica, com a determinação
de produzir bens de consumo, organizada de forma capitalista a gerar lucro.
Tal denominação evoca a idéia, intencionalmente polêmica de que a cultura deixou
de ser uma decorrência espontânea da condição humana, na qual se expressam
tradicionalmente, em termos estéticos, seus anseios e projeções mais recônditos para
se tornar mais um campo de exploração econômica administrado de cima para baixo
e voltado apenas para os objetivos supramencionados de produzir lucros e garantir
adesão ao sistema capitalista por parte do público. (DUARTE R. , [2003] 2007, p. 9)
A transformação da produção cultural em mercadoria e a organização de uma
indústria em torno seria uma forma de estimular o consumo através de estratégias
de massificação, que não seriam de forma alguma regidas pelas necessidades dos
indivíduos, e sim pela lógica de maximização dos lucros:
A transformação de bens culturais em produtos passíveis de comercialização
estimula a utilização do termo “indústria” para designar uma complexa cadeia de
criação de valores que tem por finalidade induzir o consumo através de estratégias de
massificação, a despeito da consciência de cada indivíduo. (VIANA, 2009, p. 102)
Partindo da definição inicial de indústria cultural como o oposto do que
deveria ser o resultado de uma cultura de massa (ADORNO, 1987, p. 287),
apresentando-a como algo que deveria soar como depreciativo, como “um conceito
destinado a chocar” (HESMONDHALDGH, [2007] 2008, p. 16), define-se o ponto de
observação da mesma como sendo a partir do conflito entre a massificação e o
surgimento espontâneo de manifestações culturais. Cultura e indústria, na visão dos
autores, deveriam ser coisas opostas, que acabaram por se encontrar numa
dinâmica capitalista comoditizada, que opera a despeito do homem e suas
necessidades fundamentais individuais.
A principal forma de manipulação da indústria cultural para produzir a
massificação apontada por Adorno e Horkheimer seria o esquematismo, quando:
38
Uma instancia exterior ao sujeito, industrialmente organizada no sentido de
proporcionar rentabilidade ao capital investido, usurpa dele a capacidade de
interpretar os dados fornecidos pelos sentidos segundo padrões que originalmente
lhe eram internos (DUARTE R. , [2003] 2007, p. 54)
Quando a indústria cultural provê de antemão aquilo que deveria ser
executado instintivamente pelo sujeito, se apropria da qualidade que o define como
ser autônomo e pensante, gerando a previsibilidade que faz parte do próprio
esquema de organização que virá a reforçar a aceitação por parte dos sujeitos
quando estes vierem a se identificar com aquilo que foi programado para sei aceito.
Atualmente discute-se amplamente se a utilização do termo “indústria cultural”
ainda é válida, frente às inovações tecnológicas que possibilitaram ao sujeito se
desprender da massificação outrora impostos pela indústria cultural, utilizada como
sinônimo de cultura de massa. O estudo atual a respeito desta questão, conforme
apontado por Andrew Beck (2002), englobam certas características:
atualmente, a pesquisa sobre indústria cultural tende a focar nas condições de
consumo e recepção ou nas mudanças de características das estruturas da indústria
cultural e nas mudanças nacionais, transnacionais e estruturas globais onde estas
11
funcionam . (BECK, 2002, p. 1)
Conforme o autor, a partir do que vem sendo feito até então nas pesquisas
sobre indústria cultural, estaríamos num ponto propício para uma retomada, levando
em consideração as mudanças nas características da produção cultural na
atualidade, incluindo entre elas o desenvolvimento de novas tecnologias de
produção e distribuição.
Assim, o termo tem aplicações técnicas de todo um segmento, tendo por
intenção
designar
a
indústria
da
cultura,
quando
“assume
um
caráter
11
Tradução livre da autora: “In recent times research into the cultural industries has tended to focus
on either conditions of consumption and reception or on the changing character of both structures of
the cultural industries and the changing character of the national, transnational and global structures in
with they function.”
39
ultracontemporâneo, desprovido de qualquer impulso crítico” (DURÃO, ZUIM, &
VAZ, 2008, p. 11).
A afirmação de que a indústria cultural “impede a formação de indivíduos
autônomos, independentes, capazes de julgar e de decidir conscientemente”
(ADORNO, 1987, p. 295) faz parte do discurso crítico acerca da influência à qual
estamos todos submetidos.
A lógica de produção da indústria cultural que inclui a participação dos
segmentos da comunicação e do entretenimento, num envolvimento harmônico
entre todos os atores da sociedade com a finalidade de promover o consumo,
defendida por Adorno e Horkheimer (2000), aponta para o consumidor um papel
pouco participativo, que vem sendo alterado na atual configuração do mercado de
bens de consumo, alterando as lógicas do mercado, apresentando um novo modelo
econômico, cujas características principais apresentam um desafio às indústrias
envolvidas, principalmente de mídia e entretenimento.
Além da possibilidade de liberação do sujeito frente à influência da
massificação imposta pela indústria cultural, outra condição que desafia a validade
trazida pelas inovações tecnológicas é a participação do consumidor no processo de
criação de bens de consumo. Se a massificação deixa de ser imposta, apresentado
pelos grandes como única opção e ainda passa a ser desenvolvido pelo próprio
sujeito, então vai ficando cada vez mais difícil manter o sentido original do termo.
Assim, indústria cultural passa cada vez mais a significar apenas indústria de
cultura, perdendo seu aspecto original de algo depreciativo, e conseqüentemente,
“as críticas à indústria cultural tornaram-se em boa parte fórmulas ocas para
contestar um ou outro emprego das comunicações” (RUDIGER, [1999] 2002).
40
Outros autores como Miège (1989) apontam que a massificação e
comoditização, ocasionadas pela “introdução da industrialização e novas tecnologias
na produção cultural”12 (HESMONDHALDGH, [2007] 2008, p. 17) também
ocasionaram um processo de novo direcionamento e inovações fundamental para o
desenvolvimento do que hoje conhecemos como a industria da cultura mundial.
Além disso, longe de ser um processo solidificado como costuma ser entendido, a
indústria cultural pode ser mais facilmente entendida como um campo de batalhas
onde lutas constantes a transformam diariamente, “considerando que existe uma
sensação constante em Adorno e Horkheimer de que a batalha já foi perdida, que a
cultura já foi absorvida pelo capital. 13 (HESMONDHALDGH, [2007] 2008, p. 17)
Quanto à validade do termo dentro dos estudos sobre indústria fonográfica,
Dias aponta que é comum que encontremos a recusa ao conjunto de idéias de
Adorno, principalmente nas questões da sociologia da música, porém afirma que
esse fato não compromete “o núcleo de argumentação sobre a indústria cultural, não
debilitam seu poder explicativo e, conseqüentemente, não conseguem negar sua
atualidade” (DIAS, 2000, p. 19).
Os estudos culturais são uma disciplina que compreende vários aspectos, que
ganha cada dia mais importância pela “crescente importância das praticas culturais e
instituições culturais em nossa vida social” (GAY, HALL, & all, [1997] 2003, p. 1)
O crescimento dos meios de comunicação de massa, novo sistema de informação
global e fluxos, e novas formas de comunicação visual teve - e continua a ter - um
profundo impacto sobre a maneira como nossas vidas são organizadas e sobre a
12
Tradução livre da autora: “introduction of industrialization and new technologies into cultural
production”
13
Tradução livre da autora: “whereas there is a constant sense in Adorno and Horkheimer that the
battle has already been lost, that the culture has been already subsumed by capital”
41
14
maneira pelas quais podemos compreender um ao outro e a nós mesmos "
HALL, & all, [1997] 2003, p. 1)
(GAY,
Considerando a dinâmica dos estudos culturais, a definição de indústria da
cultura deveria partir da definição de seus termos, de cultura e de indústria. A
dificuldade em definir ou adotar uma definição do termo deriva da dificuldade de se
escolher um sentido único do termo cultural, que em seu pluralismo de significados
dificulta o entendimento primário do termo indústria cultural. Da mesma forma,
quando falamos em indústria e envolvemos bens culturais, temos dificuldades
específicas que serão tratadas aqui para uma melhor contemplação do que se
entende a respeito da união dos dois termos. A linguagem que utilizamos para
definir os dois campos são também distintas:
a linguagem da ‘economia’ é idealizada para fornecer-nos a possibilidade de
conhecimento ‘duro’ e ‘objetivo’ do mundo, porque se trata aparentemente de um
processo ‘material’, ‘factual’. Em contrapartida, a linguagem da cultura parece lidar
com os elementos ‘leves’, aparentemente menos tangíveis da vida - significados,
representações e valores, por exemplo - e estes são considerados incapazes de
15
gerar claro, inequívoca e, portanto, ‘verdadeiro’ conhecimento (GAY, [1997] 2006)
Assim, considerando cultura primariamente como “o sistema de significação
através do qual necessariamente a ordem social é comunicada, reproduzida,
experimentada e explorada”16 (WILLIAMS, 1981), o autor David Hesmondhalgh
14
Tradução livre da autora: “The growth of the mass media, new global information system and flows,
and new visual forms of communication have had – and continued to have – a profound impact on the
ways our lives are organized and on the ways in which we comprehend an relate to one another and
ourselves”
15
Tradução livre da autora: “the language of the ‘economy’ is held to provide us with the possibility of
‘hard’, ‘objective’, knowledge of the world because it deals with seemingly ‘transparent’, ‘factual’,
material process. In contrast, the language of ‘culture’ is seem to deal with the ‘soft’, seemingly less
tangible elements of life – meanings, representations and values, for example – and these are
assumed to be incapable of generating clear, unambiguous and hence ‘true’ knowledge.”
16
Tradução livre da autora: “the signifying system through which necessarily a social order is
communicated, reproduced, experienced and explored”
42
apresenta as industrias de cultura como sendo “instituições que são na maior parte
envolvidas na produção de sentido social”17 ([2007] 2008, p. 12). Desta forma,
quase todas as definições das indústrias culturais podem incluir televisão (cabo e
satélite também), rádio, cinema, jornais, revistas e livros, a gravação de música e
indústria editorial, publicidade e artes cênicas. Estas são todas as atividades cujo
18
principal objetivo é o de comunicar para uma audiência, criar textos.
(HESMONDHALDGH, [2007] 2008, p. 12)
Tratando de detalhes econômicos nos quais a indústria cultural está
envolvida, temos algumas particularidades a serem abordadas, pois diferentemente
do caso de produção e distribuição de outros bens de consumo ou comodities,
estamos tratando quase sempre da comercialização de algum tipo de trabalho
artístico, o que envolve pessoas com características diferentes daquelas contratadas
para trabalhar nas linhas de produção. Artistas que trabalham com criatividade
precisam de uma forma de organização, e principalmente de uma noção de
independência de seu trabalho, que deve ser garantida por uma organização
hierárquica que compreenda essa necessidade.
David Hesmondhalgh ([2007] 2008) aponta que existe uma mistificação em
torno do fato de o trabalho de artistas, tratados por ele como “criadores simbólicos”,
não seria compatível com o comercio ou atividades que gerem lucro.
definir a criatividade fortemente contra o comércio - como uma grande parte do
pensamento romântico e modernista fez sobre a arte - é bobagem. Os criadores
precisam ser pagos e alguns dos mais belos, mais engraçados, a maioria dos
17
Tradução livre da autora: “institutions that are most directly involved in the production of social
meaning”
18
Tradução livre da autora: “nearly all the definitions of the cultural industries would include television
(cable and satellite too), radio, the cinema, newspaper, magazine and book publishing, the music
recording, and publishing industries, advertising and performing arts. These are all activities the
primary aim of which is to communicate to an audience, to create texts”
43
trabalhos de pensamento mais provocativos foram produzidos como parte de um
19
sistema comercial (HESMONDHALDGH, [2007] 2008, p. 20)
É importante também ressaltar que a economia cultural não é um processo
estanque que trata do comercio de bens culturais e das relações entre produtores e
indústria. Atualmente as tensões da economia cultural estão relacionadas
principalmente à forma como atuam os consumidores.
Embora, como o próprio nome sugere, a abordagem das indústrias culturais se
concentre no lado da oferta - na produção cultural e sua prática e seus contextos
20
sociais e políticos - não ignora a atividade de audiências (HESMONDHALDGH,
[2007] 2008, p. 36)
Tanto as questões dos criadores e da audiência suscitam questões de poder
em relação aos produtos culturais e sua circulação. A abordagem dos estudos
culturais é um campo fragmentado, mas “em sua essência, está a tentativa de
analisar e repensar a cultura, considerando sua relação com o poder social
21
(HESMONDHALDGH, [2007] 2008, p. 41).
19
Tradução livre da autora: “to set creativity too strongly against commerce - as a great deal of
romantic and modernist thought about art did – is silly. Creators need to be paid and some of the
loveliest, funniest, most thought-provoking works have been produced as part of a commercial
system”
20
Tradução livre da autora: “Although, as its name suggests, the cultural industries approach focuses
on the supply side – on cultural production an circulation and their social and political contexts – it
does not ignore the activity of audiences”
21
Tradução livre da autora: “at its core, is the attempt to examine and rethink culture by considering its
relationship to social power”
44
2.2 INDÚSTRIA FONOGRÁFICA
O que eu trabalho me trabalha ao mesmo tempo.
Antoine de Compagnon
O quadro de estudos acerca da indústria fonográfica do Brasil não representa
uma linha contínua. Fora trabalhos importantes (TINHORÃO, 1981; MORELLI, 1991;
PAIANO, 1994; VICENTE, 1996; DIAS, 2000; SÁ, 2002, CASTRO, 2003), a maioria
dos relatos está espalhada em pequenos pedaços ao longo de uma vasta
bibliografia composta por artigos ou livros organizados a partir destes. Apesar dos
inúmeros artigos acadêmicos publicados sobre o assunto, grande parte trata de
dados regionais ou enfoca o assunto com o recorte de movimentos específicos. Mais
precária é a história das gravadoras independentes, chamadas indies, bem menos
pesquisadas quando comparadas ao estudo e detalhamento do histórico das
grandes gravadoras, chamadas de majors.
A industrialização, como critério básico para se discutir a indústria cultural, até
bem pouco tempo se apresentou defasada no Brasil em relação ao resto do mundo.
É só em meados da década de 40 é que podemos considerar a existência no Brasil
de uma “sociedade urbano-industrial.” (ORTIZ, 1994, p. 38).
O conceito de indústria cultural conforme defendido por Adorno e Horkheimer
([1984] 1985) só pode ser aplicado para estudos no Brasil a partir do final da década
de 60 e início da década de 70, com a “consolidação de um mercado de bens
culturais” (ORTIZ, 1994, p. 113), a partir do advento da televisão e seu processo de
industrialização.
Não é possível discutir a indústria cultural mundial sem antes relacioná-la ao
desenvolvimento econômico. Assim, a influência da atuação dos aglomerados das
45
corporações transnacionais para a formação dos mercados da indústria cultural e
por conseqüência da indústria fonográfica no Brasil, é inegável.
2-1 Estudos sobre Indústria Fonográfica
Fonte: da autora
A indústria fonográfica como parte integrante da indústria cultural, apresenta
histórico paralelo de evolução e uma íntima conexão com o desenvolvimento da
tecnologia. Pode-se apontar o surgimento da indústria fonográfica a partir da
possibilidade de gravação dos sons, anteriormente apresentados somente ao vivo. É
este também o marco da “primeira grande onda de cultura popular” (ANDERSON,
2006, p. 26).
Assim, a evolução dos sistemas de gravação como resultado da própria
evolução tecnológica de cada época é ponto de partida para estudos acerca da
indústria fonográfica.
46
Vicente (1996) apresenta o desenvolvimento da indústria fonográfica dividido
em quatro fases, de acordo com a disponibilidade tecnológica de cada uma delas: a
mecânica, datada do final do século XX, da qual o centro foram os aparelhos
reprodutores de cilindros; a elétrica, a partir do ano de 1925, marcada pelo
desenvolvimento da estereofonia e do microssulco22; a eletrônica, onde vigoravam
os transistores e as gravações high fidelity, estúdios multi-canais e equipamentos
portáteis23; e a digital, a partir do surgimento do CD24, e da incorporação de
hardwares e softwares que interferiram no processo de produção musical,
terminando por transformá-lo em virtual (VICENTE, 1996, pp. 2,3).
2-2 Fases de desenvolvimento da indústria Fonográfica
Fonte: da autora
22
Tecnologia de gravação que permitiu o surgimento dos LPs
23
Neste momento, o walkman
24
Compact disc
47
O início do comércio musical no Brasil foi através da venda de fonógrafos
fabricados por Thomas Edson e de fonogramas importados. As primeiras gravações
brasileiras aconteceram nos primeiros anos do século XX.
As grandes gravadoras internacionais do ramo fonográfico chegaram ao
Brasil no final da década de 1920, no mesmo momento em que se desenvolvem as
primeiras iniciativas de rádios comerciais (SÁ, 2002). Conjuntamente, este era o
momento em que começava uma tentativa de padronização dos mecanismos de
gravação. Depois do desaparecimento do fonógrafo e dos cilindros e da passagem
pelo gramofone, “a década de 20 traz o advento das gravações elétricas, que
substituíram os aparelhos mecânicos.” (DIAS, 2000, p. 35).
Uma série de fusões e disputas entre empresas produtoras de mídias e de
reprodutores tomou lugar nas décadas seguintes, tendo como resultado a formação
de um mercado internacional relativamente bem definido, a partir da constatação de
que “os rumos da produção fonográfica vão estar sempre em estreita sintonia com
suas necessidades de reprodução técnica.” (DIAS, 2000, p. 37).
Mas é somente “na década de 50 estão lançadas as bases objetivas para a
padronização da produção da indústria fonográfica mundial” (DIAS, 2000, p. 37). O
long play foi o padrão de suporte adotado nos anos 50, que permaneceu até os anos
80, com o lançamento do CD. Esse longo período baseado num único suporte,
numa única tecnologia, permitiu uma ampla organização do setor, proporcionando
sua implementação no mundo inteiro.
Entre as décadas de 1950 e 1960 a massificação atingiu seu ponto máximo e
mais homogêneo, onde “era seguro supor que quase todo mundo no escritório tinha
visto a mesma coisa no dia anterior” (ANDERSON, 2006, p. 26) A influência da
televisão como ferramenta de massificação perdurou pelas décadas de 1970, 1980 e
48
1990, mas o fator preponderante da mudança de comportamento certamente
permeou o campo da música e de seu consumo.
A comercialização do CD, como resultado do avanço tecnológico e da crise
do setor na década de 1980 ocasionou a decisão de descontinuar a produção de
outras mídias, o que juntamente com a estabilidade econômica vigente na época
ampliaram o poder de consumo e deram força para o crescimento do setor.
No período compreendido entre as décadas de 1980 e 1990, a inovação
tecnológica foi responsável principalmente pelo barateamento o processo de
produção. Foi nesse momento que multiplicaram-se as gravadoras e os artistas
independentes, responsáveis por uma reestruturação do mercado.
O ápice da indústria da música foi na virada do século, onde esta carimbou
seus últimos hits com a receita de sucesso super experimentada outras tantas
vezes: “as gravadoras finalmente haviam aperfeiçoado o processo de fabricação de
arrasa-quarteirões e agora seus departamentos de marketing podiam prever e, mais
que isso, criar demanda com precisão científica.” (ANDERSON, 2006, p. 29).
A partir daí, com a produção do mercado fonográfico totalmente digitalizada e
a disponibilidade tecnológica, cresceu também o mercado da pirataria. Nesse
contexto, surgiram também diversas gravadoras independentes mais estruturadas
que no período anterior, dentre elas a Trama Records, que abraçaram renegados e
pequenos artistas.
Ao mesmo tempo, surgiram diversos estúdios especializados na gravação
independente a partir da redução dos custos de produção e do aparato técnico
necessário para sua realização.
49
2.3 ORGANIZAÇÃO DA CADEIA PRODUTIVA
A estrutura da cadeia de produção da indústria fonográfica passou muito
tempo sob o domínio de um oligopólio formado pelas chamadas majors, que eram
as grandes empresas transnacionais do segmento. A dominação do mercado
começou nos anos 50, quando a organização e padronização nas formas de
produção e suporte permitiram a organização do segmento.
As principais gravadoras naquela época trabalhavam de forma consolidada,
integrando todas as suas funções e dominando todas as etapas do processo de
produção musical, desde a criação, passando pela produção e distribuição, e
fechando sua atuação com a divulgação. Convivendo com esse oligopólio, sempre
existiram as chamadas indies, atuando paralelamente à dominação imposta pelas
majors e congregando os pequenos produtores independentes, em esquemas de
produção paralelos.
A forma de produção das majors e sua estruturação de cadeia produtiva se
manteve estável até bem pouco tempo, enquanto durou seu domínio. Essa cadeia é
composta de quatro grandes etapas: criação, produção, distribuição e divulgação.
A etapa de criação compreende tudo o que envolve a descoberta de artistas,
de composição musical, e é a etapa que precede todas as outras. Na seqüência,
entra a etapa de produção, onde é feito o registro de direitos e entram em foco os
processos de pós-produção e masterização. Na etapa de distribuição a música é
colocada no mercado, e chega ao consumidor final. Esta etapa coincide com a fase
de divulgação, onde a música é trabalhada de forma a garantir sua vendagem,
incluindo divulgação em canais de rádio e TV, apresentações ao vivo e aparições
dos artistas em programas específicos ou turnês.
50
Já a produção dos discos ocorria dentro de um processo de fabricação muito
parecido com os sistemas de linha de montagem. As etapas incluídas nesse eram,
em ordem:
concepção e planejamento do produto; preparação do artista, do repertório e da
gravação; gravação em estúdio; mixagem, preparação da fita máster; confecção da
matriz, prensagem/fabricação; controle de qualidade; capa/embalagem; distribuição;
marketing;divulgação e difusão. (DIAS, 2000, p. 65)
Dessa forma, a produção musical era sempre uma produção coletiva, que
envolvia setores de produção material e produção artística, englobando o trabalho
em diversas funções, tais como: “músicos, compositores, intérpretes, técnicos e
engenheiros de som, artistas gráficos, advogados, publicitários, divulgadores,
contabilistas,
funcionários
administrativos,
diretores,
gerentes,
operários,
vendedores.” (DIAS, 2000, p. 65).
Portanto, como o resultado final produzido dentro desse tipo de organização
operada pelas majors é sempre um trabalho coletivo, ele é também fruto de
negociação ininterrupta entre todas as instâncias de produção e profissionais
engajados nesse processo.
2.4 CENÁRIO ATUAL: INDÚSTRIA FONOGRÁFICA NA CIBERCULTURA
A configuração do que se pode chamar de uma indústria fonográfica da
atualidade, inserida na Cibercultura, teve início em meados da década de 1990,
quando podemos considerar um novo ciclo de evoluções tecnológicas a partir do
desenvolvimento da internet. As transformações advindas da rede alteram diversos
aspectos do mercado musical, com mudanças não só dentro da indústria
fonográfica, como principalmente por parte dos consumidores inseridos no processo
de produção e distribuição de conteúdo. Hoje, percebemos que a evolução
51
tecnológica e a já apontada mudança do papel do consumidor, proporcionaram uma
mudança na lógica do mercado, invertendo ou anulando papéis dentro do cenário
onde jogavam aqueles que estavam envolvidos na indústria fonográfica.
Os artistas, agentes da criação artística, aproximam-se do processo de produção,
antes intermediado e realizado pela grande indústria que, na atual conjuntura, passa
a ocupar-se especialmente das etapas de gerenciamento de produto, marketing e
difusão. O mercado começa a oferecer uma profusão de estilos, subgêneros e
mesclas de toda sorte. (DIAS, 2000, p. 41)
Diversos
fatores
atuaram
de
forma
concomitante
neste
momento,
ocasionando a dispersão dos ouvintes e desencadeando na transformação do que
hoje entendemos por consumo da música. Dentre eles podemos elencar desde a
quebra das pontocom, evoluções tecnológicas e a esmagadora adoção da internet, e
obviamente, a pirataria, que encontrou aqui ambiente propício para se desenvolver.
Entretanto, esses fatores em si não ocasionaram nem juntos nem sozinhos a
destruição de um mercado fortemente estabelecido. Opta-se aqui por tratá-los como
fatores que alteraram o comportamento de consumo do setor, que por sua vez sim,
estraçalharam a indústria fonográfica.
O ponto determinante é que,
embora a tecnologia tenha de fato desencadeado a fuga de clientes, ela não se limita
a criar condições para que os aficionados contornem a caixa registradora. Também
oferece enorme variedade de escolhas em termos de o que podem ouvir. [...] os
ouvintes não só pararam de comprar tantos CDs quanto antes, mas também estão
perdendo o gosto pelos grandes sucessos. (ANDERSON, 2006, p. 31).
As recentes transformações tecnológicas, principalmente no ramo da microinformática são responsáveis por uma mudança sem precedentes no modelo de
produção e consumo, que culminam numa redistribuição de papéis dentro da
indústria cultural, onde o consumidor passa a ocupar papel chave na mudança de
52
uma economia movida a hits para uma economia de nichos (ANDERSON, 2006, p.
17).
Quando no século passado a indústria do entretenimento encontrou uma
receita de sucesso aplicável repetidas vezes, baseada em ingredientes sobre os
quais exercia um poder intransponível, não imaginou que a revolução tecnológica
exponencial iniciada na virada do século devolveria a possibilidade de controle aos
consumidores. Como “produto de uma era onde não havia espaço suficiente para
oferecer tudo a todos” (ANDERSON, 2006, p. 17), a economia baseada na criação
de hits perde seu sentido primordial a partir da digitalização dos produtos, que se
tornaram não mais que bytes no ciberespaço, deixando de ocupar espaço físico no
mundo das prateleiras.
O consumo participativo como quadro atual da indústria fonográfica integrante
da indústria cultural e é de extrema importância para o presente estudo, pois
ocasiona interferência na criação, que por sua vez altera as características do que
se produz sobre o signo da indústria cultural, em detrimento da alienação produzida
nas
massas
receptoras,
da
perspectiva
do
determinismo
cultural.
Essas
transformações alteram o cenário atual e confundem aspectos e papéis do mercado
em que se insere a música.
Propõe-se então, a revisão da teoria de separação da indústria fonográfica
proposta por Vicente (1996), baseada na relação entre o desenvolvimento
tecnológico e as possibilidades fonográficas de cada época, adicionando às já
citadas quatro fases, uma quinta, referente ao momento atual de desenvolvimento
tecnológico, com base na inserção do consumidor na produção e distribuição
musical através da mediação por computador.
53
Considerando as fases anteriores – mecânica, elétrica, eletrônica e digital –
acrescenta-se a fase intitulada “em rede”, iniciada em meados dos anos 1990, a
partir do surgimento e desenvolvimento da internet. As características principais
dessa nova fase estão ligadas diretamente ao consumidor, que passa a co-habitar a
mesma plataforma dos produtores, nesse caso a internet. Como desdobramento,
temos uma nova hierarquia de produção e de distribuição, já que a aproximação
entre eles é inevitável. Ainda como resultado dessa aproximação, temos a formação
de uma nova lógica de mercado, onde surgem novas funções, enquanto outras
desaparecem, invertendo ou anulando papéis no cenário da música.
2-3 Proposição: Quinta fase - em rede
Fonte: organização da autora
54
E arde-me a cabeça de vos querer cantar com um excesso
De expressão de todas as minhas sensações,
Com um excesso contemporâneo de vós, ó maquinas!
Fernando Pessoa
55
3
A MÚSICA NA CIBERCULTURA
A evolução da tecnologia acaba confundindo o limite entre criador e criatura,
principalmente num tempo como este em que vivemos em que a utilização da
computação e de sistemas informatizados é inevitável. Quando a máquina vence o
homem em sistemas fechados como os jogos de xadrez25 e é capaz de gerar obras
de arte originais e criativas,26 descrever o homem como “fabricante de ferramentas”
parece pertinente.
O desenvolvimento de capacidades computacionais extraordinárias e o
refinamento das tarefas em que as máquinas se mostram destras não pode ser
considerado somente um avanço tecnológico. Precisamos considerar o criador e
tratar o avanço tecnológico como obra do homem, ainda que seja possível que essa
equação se inverta em um futuro próximo (KURZWEIL, [1999] 2007).
Definindo a tecnologia a partir de sua origem grega27 como “o estudo da
técnica ou da arte de fazer algo”, podemos colocá-la num ponto intermediário entre o
pensamento humano e a produção artística de cada época. A magia que emerge do
objeto resultante da aplicação da técnica por conta da vontade do homem como algo
maior que a soma de suas partes pode ser considerada como “o fenômeno da
transcendência na arte”, numa segunda revolução:
quando madeira, vernizes e cordas são reunidos de maneira correta, o resultado é
maravilhoso: um violino, um piano. Quando um dispositivo desses é manipulado de
maneira correta, existe uma magia de outra espécie: música. A música vai além do
velho som. Ela evoca uma resposta – cognitiva, emocional, talvez espiritual – no
ouvinte, outra forma de transcendência. Todas as artes compartilham o mesmo
objetivo: comunicação entre o artista e o público. (...) O significado grego de tekhné
logia inclui arte como uma manifestação-chave da tecnologia. (KURZWEIL, [1999]
2007, p. 37)
25
Informações adicionais sobre o software Deep Blue em http://pt.wikipedia.org/wiki/Deep_Blue
26
Informações adicionais sobre o software AARON em http://en.wikipedia.org/wiki/AARON
27
Tekhné = oficio ou arte, e logia = estudo
56
A relação fundamental da tecnologia com a música está na essência da
comunicação entre o artista e o público, ocupando lugar fundamental em qualquer
estudo que se proponha a abordar este assunto. A música neste contexto passa de
produção artística a evento comunicacional, como descrito por Diana Domingues:
novas espécies de imagens, de sons, de formas geradas por tecnologias interativas e
seus dispositivos de acesso permitem um contato direto com a obra, modificando a
maneira de fruir imagens e sons. As interfaces possibilitam a circulação das
informações que podem ser trocadas, negociadas, fazendo com que a arte deixe de
ser um produto de mera expressão do artista para constituir um evento
comunicacional. (DOMINGUES, 1997, p. 20)
Em cada giro de inovação tecnológica a música se apropria de novos
elementos para afinar essa relação, que parece estar num diálogo tão constante
quanto a própria busca pelo conhecimento:
A música sempre utilizou as mais avançadas tecnologias que existiram; os artesãos
criadores de gabinetes do século XVIII; as indústrias metalúrgicas do século XIX; e a
eletrônica analógica dos anos 1960. Hoje, praticamente toda música comercial –
gravações, trilhas sonoras de cinema e televisão – é criada em estações de trabalho
de música de computador, que sintetizam e processam os sons, gravam e manipulam
as seqüências de notas, geram notações e até mesmo produzem automaticamente
padrões rítmicos, linhas de baixo e progressões e variações melódicas. (KURZWEIL,
[1999] 2007, p. 219)
Sem a necessidade do domínio da técnica de tocar instrumentos para a
produção musical, o que se exige agora do compositor é um domínio da tecnologia e
dos procedimentos técnicos em que esta se desenvolve. O artista deixa de
simplesmente fazer uso do aparato para produzir música, e passa agora interagir
com ele numa espécie de sistema aberto e colaborativo.
Partindo do uso das tecnologias digitais, temos o rompimento da unificação
de gostos e costumes outrora impostos pela indústria fonográfica, permitindo novas
formas de trabalho acerca da música que conseqüentemente geram outras formas
de organização, armazenagem, distribuição e consumo, diminuindo o abismo
existente entre artista e público. Dessa forma, a utilização do computador como
57
mediador dos processos comunicacionais relacionados à música e a adoção de
mídias digitais interfere na formação do espectro considerado como música no
contexto da Cibercultura.
3.1 A MÚSICA MEDIADA
O plágio é uma idéia maravilhosa e o que faço é uma pilhagem original.
Malcom Mclaren
A entrada do computador como mediador de diversas etapas dentro da
indústria fonográfica alterou significativamente o que se poderia chamar de “cadeia
produtiva” do setor, da mesma forma com que embaralhou os papéis dos atores
dentro dessa cadeia. Não se pretende fazer uma transposição nem apontar
graficamente agrupamentos e novas distribuições dentro desse cenário. O intuito
aqui não é estabelecer uma classificação nova, e sim separar os processos musicais
em grupos, de acordo com a forma de mediação e relação com o computador, a
rede e os dados digitalizados que nela navegam, mantendo o ponto de vista a partir
das atividades dos produtores e consumidores participativos.
Desta forma, os processos musicais mediados por computador se encontram
em três grupos distintos de atividades. Num primeiro momento, a mediação por
computador se estabelece nas atividades de garimpo e reutilização da matéria-prima
da composição musical digital: o sample. A partir da digitalização do som e da
disponibilidade do mesmo na rede em sua versão composta por zeros e uns, passa
a existir a possibilidade de que qualquer pessoa conectada à internet tenha acesso a
uma gama inimaginável anteriormente de matéria-prima passível de utilização na
composição musical. Esta disponibilidade é favorecida pelos sistemas de indexação
58
e busca da Web, gerando novas formas de garimpo da informação, que passam a
ser utilizadas pelos artistas de diversas áreas, incluindo a música.
Numa segunda etapa, a mediação por computador toma parte no processo de
produção musical propriamente dito, quando a matéria-prima garimpada é
reorganizada dentro seqüenciadores digitais e de softwares de produção. Estes
softwares permitem o uso do computador como instrumento de notação direta,
liberando o produtor da necessidade de saber manejar instrumentos para produzir
música. Essa disponibilidade pode transformar qualquer usuário mais dedicado num
produtor musical, além de permitir novas formas de colaboração entre homem e
máquina.
A terceira etapa onde a mediação por computador aparece é no momento da
distribuição e consumo da música. A mediação nesse caso promove a
reconfiguração do consumo, pois tendo disponível uma gama maior de
possibilidades sonoras e sem interferência direta das estratégias de indução do
mercado fonográfico, os consumidores têm mais liberdade de buscar e ouvir novas
possibilidades, reconfigurando o que se ouve e reorganizando os processos
econômicos acerca do mercado da música.
3.2 PROCESSOS HÍBRIDOS DE REMIXAGEM CULTURAL
Repita duas vezes o mesmo fragmento sonoro:
não se tem mais um evento, tem-se música.
Pierre Shaeffer
Aquilo que conhecemos como cultura é algo estabelecido através do tempo e
a partir de trocas diversas, que fundamentam as possibilidades de negociação onde
indivíduos se identificam e replicam conteúdos através de praticas diversas de
59
transmissão. Quando falamos desta transmissão dentro dos contornos da
Cibercultura, estas práticas adquirem possibilidades advindas da adoção das
facilidades tecnológicas que acabam promovendo uma prática de hibridação mais
intensa do que quando as mesmas eram fruto de transmissão oral e pouco registro,
características de momentos não tão distantes do atual.
Na cibercultura, novos critérios de criação, criatividade e obra emergem
consolidando, a partir das últimas décadas do século XX, essa cultura remix. Por
remix compreendemos as possibilidades de apropriação, desvios e criação livre (que
começam com a música, com os DJ’s no hip hop e os Sound Systems) a partir de
outros formatos, modalidades ou tecnologias, potencializados pelas características
das ferramentas digitais e pela dinâmica da sociedade contemporânea. (LEMOS,
2005)
Podemos admitir que os processos de remixagem cultural não sejam novos
nas dinâmicas de existência e proliferação de informação adotados pelos indivíduos,
mas sim que eles foram extremamente favorecido pelos avanços tecnológicos
atuais.
Dessa forma, técnicas de apropriação são utilizadas para resgatar matériaprima dentre o grande fluxo de informação existente, e a partir dela trabalhar numa
dinâmica de reorganização ou reciclagem, criando novas possibilidades musicais.
A apropriação tem sempre uma dimensão técnica (o treinamento técnico, a destreza
na utilização do objeto) e uma outra simbólica (uma descarga subjetiva, o imaginário).
A apropriação é, assim, ao mesmo tempo forma de utilização, aprendizagem e
domínio técnico, mas também forma de desvio (deviance) em relação às instruções
de uso, um espaço completado pelo usuário na lacuna não programada pelo
produtor/inventor, ou mesmo pelas finalidades previstas inicialmente pelas
instituições. (LEMOS, 2006, p. 49)
A apropriação para Thompson (1995), é um aspecto da comunicação em que
os grupos sociais recebem mensagens associando a elas significados e interagindo
e integrando as mesmas no seu cotidiano, num processo chamado de “apropriação
cotidiana dos produtos de comunicação de massa” (THOMPSOM, 1995).
60
A partir da apropriação é que interagimos com a cultura, promovendo-a de
acordo com nosso ponto de vista e retrabalhando as informações que recebemos de
modo a conferir novos significados às praticas cotidianas de transmissão cultural.
Como base dessas atividades, temos o sample, resultado da prática de
sampling onde os sons originais são transformados em seqüências e dados, e
depois reorganizados para a criação de novos produtos. Porém, mais do que uma
prática associada à música, todo recorte cultural pode ser considerado como um
sample, a partir do qual o conteúdo original será reordenado em práticas de
remixagem cultural.
61
3.2.1 O SAMPLE
Eu não sei tocar nenhum instrumento, então toco todos.
Holger Czukay
Em termos técnicos, o sample é o resultado da utilização de um equipamento
chamado sampler para a obtenção de amostras de músicas.
O sampling digital é uma espécie de síntese computacional onde o som é
transformado em dados, dados que são como instruções comprimidas para
reconstruir aquele som. O sampling é visto caracteristicamente como um tipo de
citação musical, usualmente de uma música pop em outra, mas ele engloba a
28
incorporação digital de qualquer som previamente gravado num novo som gravado.
(KATZ, 2005, p. 138)
O sampler é um equipamento que descende dos sintetizadores digitais, que
são equipamentos que foram criados para produzir sons eletronicamente:
Herdeiro dos sintetizadores, instrumentos musicais criados para produzir sons
eletronicamente, o sampler permite a conversão de trechos de música em sinal
digital. Cada amostra sonora (sample) pode ser alterada, dando origem a novos sons.
A diferença entre o sintetizador e o sampler é que o primeiro produz sons inexistentes
e o segundo grava e manipula fontes sonoras pré-existentes. (BASTOS, 2003, p. 2)
O resultado da utilização do sample como matéria-prima para a criação de
novas composições musicais é uma música reorganizada a partir de trechos de
outras músicas, desde os menores pedaços irreconhecíveis em comparação com o
original até mesmo trechos inteiros como bases de bateria ou reefs de outros
instrumentos.
Se o sample é uma amostra, então o termo não se aplica somente a música.
Ele pode ser usado quando falamos de várias possibilidades eletrônicas, e até
mesmo quando falamos de composições textuais onde trabalhamos com referências
28
Tradução livre da autora: digital sampling is a type of computer synthesis in which sound is
rendered into data, data that in turn comprise instructions for reconstructing that sound. Sampling is
typically regarded as a type of musical quotation, usually of one pop song by another, but
encompasses the digital incorporation of any prerecorded sound into a new recorded work.
62
bibliográficas. A reciclagem do sample é característica corrente da produção cultural
em geral.
O lado positivo da cultura de reciclagem é a possibilidade de re-contextualizar os
produtos da mídia, equilibrando a ecologia cognitiva contemporânea. O lado negativo
é a voracidade que estabelece, suscitando uma reflexão mais cuidadosa sobre
parâmetros para as práticas de apropriação e re-utilização de textos, imagens e sons,
diante das possibilidades abertas pelas mídias digitais que oferecem tecnologias
sofisticadas de digitalização e compartilhamento de arquivos. (BASTOS, 2003, p. 5)
Como partimos da reapropriação e da re-significação, as questões de autoria
e direitos são suscitados sempre que o termo sample é utilizado. Deixando de lado a
legalidade, a propriedade e direitos autorais ficam em segundo plano quando
estamos falando de composição musical na Cibercultura pela dificuldade de se
estabelecer referências dentro dos processos de apropriação provenientes das
práticas decorrentes da utilização de samples, e também pela forma como as trocas
acontecem dentro da rede.
Diferentemente da já citada composição textual que se utiliza de referências
para construção de material original onde as apropriações são evidentes e são
apontadas como fontes de pesquisa, as marcas sonoras são dissimuladas pelas
alterações feitas no material de origem. Mesmo quando não são feitas alterações, a
identificação de material sampleado depende do prévio conhecimento do mesmo por
parte dos ouvintes.
As marcas não são evidentes, mas além disso outro fator que corrobora para
que as referências ao material sejam deixados de lado é que quando falamos de
comunicação mediada pelo computador, estamos tratando de pessoas se
relacionando entre elas através da troca, a qual é tratada pelas partes como sendo
mais importante que o conteúdo em si.
63
3.2.2 PROCESSOS DE REMIXAGEM
Não é tempo dos lapidadores de diamante;
há tempestade no ar e é preciso fazer tudo bem e rápido.
Luciano Berio
A técnica de reorganização de samples é chamada de remix ou remixagem.
Mas a reorganização de matéria-prima obtida por meio da utilização do sampler não
é feita de uma única maneira. Existem diversas formas, algumas mais e outras
menos abrasivas, de organizar conteúdo sampleado. Dentre elas, as principais são
apontadas como sendo a apropriação, a reutilização ou mashup e o que é
comumente chamado de remix:
Os principais tipos de reciclagem são três: a re-utilização (que inclui a colagem, a
fotomontagem e o assemblage), a apropriação e o remix. São lógicas distintas, por
trás do mesmo procedimento. Na re-utilização, o trabalho é atribuído a quem o
“criou”, mas os materiais re-utilizados questionam os limites dessa autoridade. Na
apropriação, o objeto anônimo se transforma em obra, mas o novo contexto implica
em outro sentido, resultado do gesto (anti-) autoral proposto. No remix, o trabalho é
recriado, compartilhando marcas do autor original e marcas do autor do remix
(BASTOS, 2003, p. 6).
A apropriação como forma de reorganização de conteúdo é baseada no
conceito de proferir outro significado a objetos quaisquer, retirados de seu uso ou
concepção original. É das formas de remixagem a menos utilizada na música, onde
o comum é a mescla entre apropriação, mashup e remix. Quando falamos de música
construída a partir de pedaços de outras composições, podemos tratar como sendo
apropriação toda a utilização de estilos diferentes na composição de músicas que
não fazem parte desse universo, como no caso do funk, ao utilizar samples de rock
ou de outros estilos.
A reutilização, chamada hoje em dia de mashup, consiste em fazer
articulações entre conteúdo distinto onde os originais permanecem marcados, quase
64
que na íntegra, dentro do resultado final. Atualmente este estilo de remixagem vem
tomando força frente às últimas possibilidades de interferências tecnológicas na
música. As inovações técnicas que permitem a manipulação de sons são o
parâmetro através do qual as novas construções tomam proporção.
O que chamamos de remix, é o resultado da reorganização de elementos
próprios de uma mesma música, preservando ou não suas características originais.
É importante observar que nenhuma destas técnicas é estanque, e que muitas
vezes elas são recombinadas da mesma forma que as músicas, produzindo
híbridos, tanto em questões técnicas como em questões de conteúdo.
O importante que deve ser destacado no caso da utilização de qualquer
técnica de remixagem, seja ela de música, de texto, de vídeo ou de qualquer outro
produto cultural, é que mesmo não sendo práticas novas dentro da condição
humana de transmissão cultural, elas são potencializadas pela disponibilidade
tecnológica dos dias de hoje, e que além disso, as trocas nas quais elas se baseiam
são da mesma forma potencializadas.
Outro ponto que não pode deixar de ser abordado é que a utilização de
objetos culturais existentes para a criação de novos objetos culturais provoca uma
re-significação do objeto original, que pode ser positiva ou negativa, de acordo com
a colocação do objeto final e do reconhecimento do objeto original:
Mas reciclar produtos culturais não é exatamente como reciclar detritos sólidos ou
programas de computador. Na reciclagem de lixo, o produto resultante será utilizado
novamente, com poucos e declarados prejuízos em relação ao material não reciclado.
Na reciclagem de produtos culturais, há o risco de efeito inverso. Como o
procedimento é amplo, podendo ser utilizado nos mais diversos contextos, serão
consideradas pertinentes à cultura da reciclagem apenas as práticas criativas que
exploram a materialidade das linguagens, manipulando com postura crítica e/ou
irônica o material tratado, especialmente nos casos em que isso acontece em
ambiente digital. (BASTOS, 2004)
65
Os resultados, portanto, não são somente referentes ao objeto final. Temos
toda uma gama de significados atribuídos posteriormente ao produto inicial que foi
utilizado como fonte primária para a obtenção de samples.
As plataformas sociais são a ponta do iceberg onde todos podem ver o
resultado do processo de remixagem cultural no qual estamos imersos. Esse
processo de remixagem foi extremamente favorecido pelos avanços tecnológicos
atuais, conforme previsto por Lessig:
Nos próximos dez anos veremos uma enxurrada de tecnologia digitais. Tais
tecnologias irão permitir a quase qualquer um capturar e compartilhar conteúdo.
Capturar e compartilhar conteúdo, claro, é o que os seres humanos fazem desde que
surgiram na terra. É como nós aprendemos e é o motivo para nos comunicarmos.(...)
Esse “capturar e compartilhar” digital é em parte uma extensão do capturar e
compartilhar que tem sido parte integral da nossa Cultura, mas também tem sua parte
inovadora. (...) A tecnologia de “capturar e compartilhar” digitalmente conteúdo nos dá
a esperança de vermos um mundo de ampla diversidade criativa que poderá ser
compartilhada de maneira ampla e fácil. E se a criatividade for aplicada à democracia,
ela irá permitir a uma gama ampla de cidadãos usarem a tecnologia para se
expressarem e criticarem e contribuírem para a cultura que nos cerca. (LESSIG,
2004, p. 166)
A música é o processo artístico criativo onde a remixagem aparece com maior
clareza e a apropriação de conteúdo é transformada em novas criações que
superam a soma de suas partes através do uso do aparato tecnológico disponível.
Porém, conforme os padrões legais internacionais atuais essa apropriação é
indevida e é considerada pirataria, mesmo quando resultando num objeto
completamente diferente do original ou beneficiando indiretamente o objeto original.
Além disso, “muitas formas de ‘pirataria’ são úteis e produtivas, seja para produzirem
conteúdo novo ou para criarem novas formas de negócios.” (LESSIG, 2004, p. 60).
Assim como a matéria-prima sonora, ações e providências técnicoburocráticas que eram tomadas somente por gravadoras ou grandes indústrias de
música e entretenimento se encontram à disposição dos artistas. A possibilidade de
utilização dessas ferramentas faz com que o artista passe a poder ter
66
responsabilidade completa pela sua arte, desde a origem até o encontro com o
público:
Você não precisa de uma distribuidora, porque sua distribuidora é a Internet. Você
não precisa de uma gravadora, porque ela está em seu quarto, e você não precisa de
um estúdio de gravação, porque esse é seu computador. Você faz tudo isso
29
sozinho . (FRERE-JONES, 2005)
Por conta disto, trabalhos diferenciados de artistas de renome ou de
desconhecidos passam a fazer parte do mesmo conjunto, dividindo espaço com todo
o restante do universo considerado pop na lista do que é ouvido e consumido.
A mudança do mercado de consumo e a fragmentação do mercado em nichos
cada vez menores é possibilitado pela da adoção da tecnologia e das mídias
eletrônicas que criam condições para essa mudança, e é um fenômeno que abrange
diversos segmentos, servindo de apoio para o estudo em diversos campos.
Grande parte deste estilhaçamento diz respeito à remixes e mashups, que
acabam por reconfigurar o que se escuta, implementando novas versões, ou até
mesmo melhorando o que não era tão bom assim:
Artistas criadores de mashup como Vidler, Kerr e Brown acharam uma forma de
trazer a música pop à uma grandeza que ela raramente atinge. Considere os
Mashups como pirataria se insistir, mas é mais correto observá-las através das lentes
do mercado, para vê-las como uma expressão da insatisfação dos consumidores.
Armados de tempo livre e do software certo, pessoas estão atirando através da pop
music inferior e frustradas, escolhem fazer de algumas delas tão boas quanto as
30
melhores . (FRERE-JONES, 2005)
Mashups e remixes englobam tudo o que diz respeito à reconfiguração da
música na Cibercultura, incluindo mudanças na indústria, adoção da tecnologia, e
29
Tradução livre da autora: “You don’t need a distributor, because your distribution is the Internet. You
don’t need a record label, because it’s your bedroom, and you don’t need a recording studio, because
that’s your computer. You do it all yourself.”
30
Tradução livre da autora: “Mashup artists like Vidler, Kerr, and Brown have found a way of bringing
pop music to a formal richness that it only rarely reaches. See mashups as piracy if you insist, but it is
more useful, viewing them through the lens of the market, to see them as an expression of consumer
dissatisfaction. Armed with free time and the right software, people are rifling through the lesser songs
of pop music and, in frustration, choosing to make some of them as good as the great ones”
67
principalmente a participação indiscriminada de artistas de gêneros e categorias
distintas no mesmo processo.
68
Eu só quero é ser feliz
Andar tranqüilamente na favela onde eu nasci
E poder me orgulhar
E ter a consciência que o pobre tem seu lugar.
Cidinho e Doca, Rap da Felicidade
69
4
O FUNK
O
presente
capítulo
tem
por
objetivo
apresentar
o
histórico
de
desenvolvimento do funk desde sua origem até o presente momento, considerando
o preconceito vivenciado pelo estilo no Brasil como elemento aglutinador, de
proteção e de crescimento do próprio gênero dentro de seu espaço de origem,
permitindo que o mesmo se fortalecesse como manifestação cultural e tomasse
corpo antes de se apresentar internacionalmente como a verdadeira música
eletrônica brasileira. Parte-se de uma revisão bibliográfica de livros e artigos sobre o
funk e a violência a ele associada, passa-se por entrevistas concedidas por figuras
envolvidas na dinâmica constituindo relato histórico, para chegar ao ponto em que o
funk ressurge fortalecido
4.1 ORIGENS
O certo é seguir os mandamentos black, que são
Dançar como dança um black
Amar como ama um black
Falar como fala um black
Andar como anda um black
Usar sempre o cumprimento black
Viver sempre na onda black
Ter orgulho de ser black
Curtir o amor de outro black
Gerson King Combo, Mandamentos Black
A raiz de todo o movimento funk que hoje se apresenta como tradução
cultural da periferia do Brasil não é brasileira. Sua origem está ligada aos Estados
Unidos, como derivado da soul music, que é o resultado da mistura do rhythm &
blues e da música gospel:
Descendente direto do soul, do rhythm & blues e do jazz, o funk nasce oficialmente
nos anos 1960 por meio de uma intervenção genial de James Brown (...) apontado
como godfather of soul (padrinho do soul), Brown é apontado como invento do funk
graças a sua mudança rítmica tradicional de 2:4 para 1:3. (MEDEIROS, 2006, p. 14)
70
A origem do termo está fortemente associada ao sexo: “tratava-se de uma
gíria dos negros americanos para designar o odor do corpo durante as relações
sexuais” (MEDEIROS, 2006, p. 13). Foi por volta de 1968 que a gíria “funky” perdeu
seu significado pejorativo e passou a remeter seu sentido a algo como orgulho
negro. Assim, conforme apresenta Hermano Vianna, “tudo pode ser funky: uma
roupa, um bairro da cidade, o jeito de andar e uma forma de tocar música que ficou
conhecida como funk” (VIANNA, 1988, p. 20).
O lastro do funk no Brasil é originário do final dos anos 1970, quando ele
invade a periferia carioca, porém os primeiros bailes foram realizados na Zona Sul.
Foi somente com o crescimento da MPB e a tomada do Canecão31 para shows
desse gênero que os bailes chamados de “Bailes da Pesada”, produzidos por Big
Boy e Ademir Lemos foram transferidos para o subúrbio, e passaram a acontecer a
“cada fim de semana num bairro diferente” (VIANNA, 1988, p. 24). Os bailes eram
promovidos pelos seguidores do filão aberto pelos precursores desses bailes que
“tiveram de investir na compra de equipamentos, boa parte deles importados”
(HERSCHMANN, 2000, p. 23), transformando-se em equipes:
As pessoas que freqüentavam os Baile da Pesada foram pro subúrbio e começaram a
fazer bailes... como se fossem o Baile da Pesada... E eles começaram a criar nomes
pras festas: festa Soul Grand Prix, festa Som 2000, Uma Mente Numa Boa,
Tropabagunça, Cash Box... Essas festas eram semanalmente... mas em clubes
diferentes, nunca no mesmo clube... Essa semana era no Renascença, na outra
semana era no Grajaú, na outra semana em Caxias... a mesma festa, com o mesmo
equipamento... (DJ MARLBORO in MACEDO, 2003, p. 43)
Em meados de 1976 a imprensa brasileira descobre o funk e seus bailes, e
nos anos seguintes eles se espalham pelo país em movimentos locais. É em
decorrência dessa expansão que a indústria fonográfica representada pelas grandes
gravadoras descobre o funk no Brasil, que até então era totalmente independente de
31
Local onde originalmente os bailes aconteciam
71
intermediários. Era um movimento da massa para a massa, produzido na periferia
para consumo direto e desintermediado da própria periferia.
A abordagem das gravadoras para dominar o mercado do funk desencadeou
grandes investimentos na produção de coletâneas e na produção de artistas
nacionais de soul. A tentativa foi fracassada, pois “a sonoridade dos arranjos
nacionais, com exceção dos de Tim Maia, não agradou aos dançarinos cariocas”
(VIANNA, 1988, p. 31). Depois disso, tanto as gravadoras quanto a imprensa
deixaram de lado os bailes e as equipes de som que passaram todo o período da
febre da disco music no Brasil em ostracismo.
A temática funk que dominou os anos 1980 teve origem no final dos anos
1970, quando se estabeleceram as equipes de som que “dominariam a cena funk
dos anos 80” (MEDEIROS, 2006, p. 15). Apresentando as produções de miami bass
com vocais em inglês, as equipes de som comandavam o movimento das “melôs”:
um jeitinho brasileiro de se cantar essas músicas. Os freqüentadores faziam as suas
próprias versões em português, utilizando palavras que soassem como a letra
original. Aí surgiram as “melôs”. E essa febre dos anos 1980 não perdoava ninguém,
do pop ao rock. Exemplos são a Melô da verdade (Girl You Know it´s True, de Milli
Vanilli) e a Melô do neném (Back on The Chain Gang, da banda Pretenders).
(MEDEIROS, 2006, p. 16)
Teríamos então o que seria a primeira incursão brasileira no funk, como “uma
primeira forma de apropriação criativa, que resulta num produto obviamente híbrido:
músicas americanas tocadas em versões instrumentais com refrões gritados pelo
público dos bailes em português” (SÁ, 2009, p. 6). Porém, o cenário de dominação
das produções americanas só vai mudar na virada da década, quando entra em
cena Fernando Luís Mattos da Matta - o DJ Marlboro – que ganha um concurso
nacional de DJs e recebe como premio uma viagem à Londres, de onde traz
72
novidades e a vontade de iniciar um desdobramento de funk genuinamente
brasileiro.
DJ Marlboro se apresentava como DJ nos bailes desde 1977, e suas
primeiras experiência como produtor são de meados de 1985, quando ganhou uma
bateria eletrônica do pesquisador Hermano Vianna, que naquele momento
trabalhava nas pesquisas para a sua dissertação de mestrado32.
A bateria que eu ganhei do Hermano em 1985, era o que eu precisava... eu podia
fazer música dentro do baile, eu podia revolucionar, fazer minhas próprias músicas.
Com a bateria você pode fazer o tipo de batida que você quiser... A batida é a coisa
principal do baile... Eu tendo uma bateria pra programar, fazer minha própria batida,
eu achava aquilo muito bom, porque era a maneira de eu me expressar... e em cima
daquela batida eu juntava outras coisas, outros sons (...) quando ele me deu a
bateria, eu fui e comprei um tecladinho. (DJ MARLBORO in MACEDO, 2003, p. 62)
Das experimentações com a bateria eletrônica nos bailes surgiram as
primeiras produções totalmente nacionais. O primeiro disco de Marlboro foi lançado
com o nome Funk Brasil, em 1989, e “o sucesso alcançado por essa coletânea
redimensionou o mercado fonográfico nacional” (HERSCHMANN, 2000, p. 28).
Quando eu fiz lá o funk em português, e fiz o funk nacional e lutei por aquilo que
quase ninguém acreditava, nem os próprios DJs do próprio meio; falavam que eu não
ia achegar em lugar nenhum (...) eu sabia que ia chegar (...)eu não sabia que eu ia
estar na ativa vendo aquilo acontecer, isso eu não sabia (...) sabia até que ia ter um
reconhecimento internacional como movimento cultural, que ia estar na boca de todo
mundo, que ia ser um movimento popular mas eu achava que fosse quando eu
estivesse bem velhinho ou não estivesse mais nesse mundo, que isso ia acontecer.
Mas eu vi isso acontecer, na ativa, tocando, assistindo na atividade o que está
acontecendo com o funk no mundo inteiro. (MATTA, 2009)
Nesse disco estavam diversas produções de Marlboro, com versões de
músicas americanas, vasta utilização de samples e “até músicas que já apontavam
uma produção de funk carioca original” (MEDEIROS, 2006, p. 17). Por volta de
32
A dissertação de Hermano Vianna é material seminal para as pesquisas sobre o funk no Brasil, e deu origem
ao livro “O mundo funk Carioca”. Foi desenvolvida na Universidade Federal do Rio de Janeiro, dentro do
Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social, intitulada “O Baile Funk Carioca: Festas e Estilos de Vida
Metropolitanos”, no ano de 1987.
73
1994, “as equipes só tocam músicas com letras cem por cento nacionais” (SÁ, 2007,
p. 11), adentrando a fase de consolidação do funk nacional. A despeito de todas as
questões atuais sobre a pirataria, Marlboro e “seu projeto Funk Brasil continua
fazendo sucesso à prova do tempo, lançando novos nomes do cenário funk carioca.
Em 2006, com o hit “Ela só pensa em beijar” de MC Leozinho, entre outras 25 faixas,
o sétimo volume conseguiu conquistar disco de platina. Isso em plena era da
pirataria.” (MEDEIROS, 2006, p. 18).
4.1.1 A HISTÓRIA DO FUNK ENTRE OS ANOS 1990 E 2000
Se tu não curte o funk
Pode crer, tá de bobeira
Bote uma beca esperta e se junte à massa funkeira
MC Marcinho,Glamourosa
Após o período de consolidação nacional, o funk encontrou espaços nunca
antes imaginados, adentrando a televisão brasileira pela emissora de maior
influência no país, e pela mão da então mais importante apresentadora:
O sonho dourado dos funkeiros se tornou realidade em junho de 1994, quando a
apresentadora infantil Xuxa inaugurou em seu programa de todo sábado, o Xuxa
Park, o quadro Xuxa Park Hits – uma espécie de parada de sucessos, com a
participação, em caráter experimental, do DJ Marlboro. Era mais ou menos como se o
funk entrasse pela porta da frente da TV, com tapete vermelho. (...) Marlboro tanto
fez, porém, que acabou virando atração fixa do Xuxa Park Hits, permanecendo no ar
durante três anos. (ESSINGER, 2005, pp. 135, 136)
Foi na fase de consolidação da produção nacional entre os anos de 1994 e
1995 que o funk produzido na periferia do Rio de Janeiro enfrentou seu momento de
maior desafio: lidar com o preconceito e a difamação por parte dos meios de
comunicação, quando “o funk sofreu a maior perseguição e estigma da mídia, da
polícia e dos “formadores de opinião”, que acenaram reiteradamente com os
argumentos do pânico moral para analisar o fenômeno” (SÁ, 2009, p. 9). Neste
74
mesmo momento, temos a máxima aproximação entre os jovens consumidores de
funk e seus produtores:
O fato é que, nos primeiros meses de 1995, a aproximação da juventude do asfalto
com o mundo funk já era uma realidade - e das mais vistosas, difícil de negar. A onda
da garotada em busca de emoções – ao menos aquelas que as boates da moda não
podiam oferecer. (ESSINGER, 2005, p. 134)
Em meio a essa aproximação, o funk continua a enfrentar ondas de
associação criminal, porém a indústria cultural se encanta novamente pelo gênero.
Mesmo com toda a repercussão e barulho dos funkeiros e com todos os recordes de
vendas de suas produções, o gênero não emplaca como sendo de primeira linha e
permanece estigmatizado como subproduto cultural, no sentido de ser classificado
como produção menor dentro das gravadoras que ainda apostavam no funk:
Tão rapidamente quanto chegou, a onda do funk em 1995 quebrou na arrebentação.
Por um lado, o movimento deixou de ser um estranho na indústria fonográfica –
mesmo que isso implicasse em ser tratado como um gênero de segunda ou terceira
classe. Por outro lado, uma vez passado o “armistício cultural” (...) o signo da
violência voltou a marcar a cena dos bailes – que é onde o funk nasce, cresce e
morre. (ESSINGER, 2005, p. 183)
A prova cabal de que o funk havia tomado corpo, e de que a despeito de toda
a discriminação ele era o gênero escolhido pela massa como representativo de seus
integrantes aconteceu em 1997, quando foi incorporada a “paradinha funk” dentro de
uma apresentação no desfile de escolas de samba do carnaval daquele ano,
demonstrando que o encantamento conquistado anteriormente continuava:
O ano de 1997 começou com uma demonstração da irreversibilidade cultural do funk.
Em pleno desfile de carnaval da Marquês de Sapucaí, a bateria da Viradouro, sob o
comando do mestre Jorjão, fez uma intervenção miami bass no meio do samba, cujo
enredo era “Luz, trevas, a explosão do universo”. Foi uma das raras vezes naquele
ano em que a música dos bailes despertaria uma discussão puramente cultural – na
maior parte das vezes as páginas policiais é que acolhiam o assunto. (ESSINGER,
2005, p. 185)
75
Foi somente no ano de 2000 que os bailes foram regulamentados, quando a
Assembléia Legislativa do Rio de Janeiro, através da Lei Estadual 3.410, de 29 de
maio de 2000 aprovou o funcionamento dos bailes, num período onde a indústria
fonográfica se encontrava “totalmente fechada para o gênero” (ESSINGER, 2005, p.
196). Foi ainda nesse mesmo ano de 2000, que pela primeira vez “um político seria
eleito para defender os interesses do funk (...) Verônica Costa. Candidata a
vereadora pelo Partido Liberal (PL), ela teve 37 mil votos – foi o quarto vereador
mais votado daquela eleição.” (ESSINGER, 2005, pp. 196, 197).
4.1.2 O ARRASTÃO DO FUNK E A VIOLÊNCIA
O funk não é modismo
É uma necessidade
É pra calar os gemidos que existem nessa cidade
Bob Rum, Rap do Silva
A associação entre o funk e a violência não é assunto novo, e figura em
praticamente todos os trabalhos de pesquisa que pretendam abordar o tema de
maneira completa. A referência clássica a respeito da violência nos bailes é de
Hermano Vianna, que descreve a origem do refrão “é o bicho, é o bicho” (VIANNA,
1988, p. 83). Segundo o pesquisador, o refrão surgiu durante um acerto de contas
entre gangues de traficantes, que invadiram o baile encapuzados, e assassinaram
um dos dançarinos.
Desde os episódios acontecidos no início da década de 1990, que
desencadearam a associação entre o funk e as facções criminosas, até o momento
do lendário “arrastão” em outubro de 1992 na praia do Arpoador, que o estigma da
violência é relacionado ao funk. Hermano Vianna vê esse episódio como uma
76
tentativa das galeras de diferentes favelas cariocas (veja bem, eu não falo de galeras
de funkeiros) de encenar na areia da praia o “teatro da violência”que inventaram nas
pistas de dança de centenas de bailes funk realizados semanalmente em quase todos
os bairros da cidade. (VIANNA, 2006, p. 2)
O autor ainda aponta esse episódio como sendo a porta de entrada do funk
no inconsciente coletivo da população, num “processo, quase diria violento, de
familiarização com sons e imagens provenientes do mundo funk” (VIANNA, 2006, p.
3). Essa entrada do funk na mídia pelos cadernos policiais marcou para sempre o
momento criminal que acontecia no inicio da década de 1990, quando “num início de
década tristemente identificado com as chacinas da Candelária e de Vigário Geral,
foram os arrastões ocorridos no Arpoador que deram visibilidade aos funkeiros”
(FACINA, 2009 ).
A violência desses eventos, associados ao cenário político da época,
desencadearam um sentimento de medo em relação aos “funkeiros” por parte da
elite da população carioca (MEDEIROS, 2006, p. 22), mas também é necessário
ressaltar que:
toda a campanha de estigmatização e a criação de uma onda de pânico moral em
torno do funk carioca – nos noticiários de TV e nas páginas da grande imprensa –
acabou, de certa forma, contribuindo para que o estilo de vida e a produção cultural
dos jovens funkeiros tenham exercido enorme fascínio entre grupos sociais situados
muito além dos morros e domínios da cidade do Rio de Janeiro. (FILHO &
HERSCHMANN, 2003, p. 62)
A discussão em torno do funk e sua associação com o crime, sobre a
violência dos bailes e a respeito da cobertura da mídia frente aos eventos
marcantes, perdurou durante os anos 1990:
Seguiu-se um enorme debate e a associação entre os bailes funk e a violência
atravessou a década de 90, presente no imaginário da mídia, das autoridades
policiais e da classe média, com medidas de repressão, cartas nos jornais e ondas de
demonização do fenômeno na mídia. O que em nada diminuiu a força do funk na
periferia do Rio de Janeiro. (SÁ, 2007, p. 12)
77
Os anos 1990 passaram com a visibilidade midiática relacionada ao funk,
ganhos de todas as partes com a criminalidade e iniciativas internas para sua
descriminalização, fundamentando toda a nacionalização do gênero na luta entre
manter sua essência e não se perder em meio à criminalidade que transborda:
Enquanto os bailes de corredor organizados por algumas equipes oficializavam os
confrontos entre galeras, dividindo os bailes em lado A e lado B, fazendo da violência
uma mercadoria lucrativa, fruto de uma sociedade profundamente desigual e
opressora com os de baixo, um outro movimento surgia no meio do funk. Em meados
dos anos 1990, donos de equipes e DJs começaram a organizar festivais de galeras,
buscando canalizar em outras direções não violentas as rivalidades territoriais. Entre
suas várias etapas que se assemelhavam às gincanas, os festivais passaram a incluir
a etapa dos raps, músicas que deveriam falar sobre as comunidades de origem das
galeras e também pedir paz nos bailes. O que surgiu daí foi mais um passo no
processo de nacionalização do funk, que agora passava a contar com a poesia da
favela, feita por aqueles que curtiam o ritmo e se identificavam com seus estilos de
vida. (FACINA, 2009 )
O reconhecimento que o funk obteve pela aproximação entre os jovens da
classe média e alta carioca e os jovens da periferia através do consumo exacerbado
das produções do gênero em meados de 1994 e 1995 não durou muito. Foi barrado
por uma nova onda de violência associada, após a chacina com o resultado de 10
mortos no Morro do Turano, na mesma época em que o traficante Elias Maluco
assumiu patrocinar bailes funk na favela de Vigário Geral:
Ele admitiu que patrocinava bailes em Vigário Geral, mas ressaltava que aquilo não
tinha nenhuma relação com seus negócios. “Não tem nada a ver. O funkeiro é duro,
não tem dinheiro para pagar uma cerveja. O pessoal financia os bailes porque é um
lazer para a comunidade. (ESSINGER, 2005, p. 183)
Toda a movimentação da mídia em publicar e especular sobre fatos
relacionados ou não com o funk e seus bailes acabaram por desencadear uma
dinâmica de estigmatização para com o gênero, seus artistas e seu público.
78
4.1.3 ESTIGMA E PRECONCEITO ASSOCIADO PELA MÍDIA:
O natural do Rio é o batidão
A playboyzada e os manos do morrão
MC Sapão, Diretoria
Compreendendo que a mídia ocupa papel fundamental na formação dos
conceitos que entendemos como estando associados a universos dos quais não
fazemos parte ao atuar como fonte de informação, que é “através dela, de modo
geral, que se adquire visibilidade e que se constroem os sentidos de grande parte
das práticas culturais” (HERSCHMANN, 2000, p. 90), e adotando a definição de
estigma de Goffman, podemos fazer um paralelo com a associação da violência ao
funk e os funkeiros a partir do arrastão de 1992, quando
um indivíduo que poderia ter sido facilmente recebido na relação social quotidiana
possui um traço que pode-se impor à atenção e afastar aqueles que ele encontra,
destruindo a possibilidade de atenção para outros atributos seus. (GOFFMAN, [1963]
1982, p. 14)
Considerando que “um estigma é, então, na realidade, um tipo especial de
relação entre atributo e estereótipo” (GOFFMAN, [1963] 1982, p. 13), no caso dos
funkeiros, o estigma é “uma linguagem de relações, e não de atributos” (GOFFMAN,
[1963] 1982, p. 13). Neste caso, o que se espera de um estereótipo construído pela
mídia. No caso dos arrastões de 1992, eles não eram um fenômeno “propriamente
novo ou inusitado, mas aqueles, particularmente, foram fundamentais para a
retificação de uma certa imagem estigmatizada dos jovens de segmentos populares
do Rio.” (HERSCHMANN, 2000, p. 16).
Como resultado do estigma imposto pela mídia, nos anos 1990 “o termo
“funkeiro” substitui o termo “pivete” passando a ser utilizado emblematicamente na
enunciação jornalística como forma de designar a juventude “perigosa” das favelas e
periferias da cidade.” (HERSCHMANN, 2000, p. 69).
79
As conseqüências desse processo de estigmatização caminham em duas
direções. Por um lado, provocou uma histeria em torno do assunto, a demonização,
como tratam os autores, e por outro, despertou o interesse geral pela produção
cultural associada ao funk. Herschmann afirma que a imagem do funk, apesar do
constante processo de estigmatização, “exerce um enorme fascínio sobre um
grande número de jovens que parecem ter encontrado nesses grupos sociais, na
sociabilidade e nos estilos que promovem formas fundamentais de expressão e
comunicação.” (HERSCHMANN, 2000, p. 20).
A lógica que rege o movimento da aparição do funk na mídia é controversa,
pois “a mesma mídia que demoniza é aquela que abre espaço nos jornais e
programas de televisão” (HERSCHMANN, 2000, p. 90). Alguns autores chegam a
defender que existem interesses ocultos nessa alternância entre promoção e
ostracismo, e no trânsito entre os cadernos policiais e de cultura em que as matérias
e reportagens sobre o funk aparecem. Marlboro afirma que “não dá pra saber
exatamente quem são os interessados diretos nessa dinâmica de desgastar e
denegrir a imagem do funk. Mas existe isso, não há como negar.” (SALLES &
MARLBORO, 1996, p. 42), observando que talvez seja interessante para aqueles
que trabalham com as tendências musicais provocar uma alternância de gêneros em
moda na música.
O que precisa ser considerado no caso do funk é o ponto oposto, onde este
promove formas alternativas de existência dentro dos limites impostos pela violência
real vivida dentro da periferia.
Vários jovens dos segmentos populares continuam identificando nesta atividade uma
opção, uma via de ascensão social neste país marcado por um modelo sociopolítico e
econômico excludente e autoritário. É possível afirmar que o funk, ao lado do futebol
e do mundo do crime, apresenta-se como alternativa de vida mais atraente a esses
jovens do que se submeter a um estreito mercado de trabalho que lhes impõe
80
empregos ´sem futuro´, com tarefas massacrantes e monótonas. Este tipo de
´carreira´ parece promover, em um contexto marcado pela experiência cotidiana
árdua, uma difícil sintonia entre as expectativas das famílias e as aspirações juvenis.
(HERSCHMANN, 2000, p. 256)
Considerando as possibilidades que o funk e sua produção oferecem, a
associação de um estigma, de características impostas àqueles que estão de
alguma forma envolvidos nesse segmento pode ser considerada como uma forma
de impor limites dentro de um universo considerado por muitos como sendo
periférico. Se a falta de alternativa de crescimento que enfrentam os jovens da
periferia é igualada pela mídia ao processo que de certa forma permite
possibilidades de desenvolvimento, então estamos realmente tratando de uma
dinâmica discriminatória e estigmatizante como um todo.
4.1.4 O PRECONCEITO COMO BARREIRA DE DEFESA: O CALDO BRASILEIRO
DO FUNK
É som de preto
De favelado
Mas quando toca ninguém fica parado
Amilckar e Chocolate, Som de Preto
Obviamente todo o preconceito pelo qual o funk passou acabou fazendo com
que ele lidasse com uma barreira de contensão, que o impediu de romper as
fronteiras brasileiras rapidamente. A violência associada aos bailes tem papel
fundamental na motivação para a formação dessa barreira, quando “o baile, depois
do arrastão, passou a ser visto como fenômeno, antes de qualquer coisa, violento. A
violência, e não a diversão, se transformou na sua principal marca” (VIANNA, 2006,
p. 4), e “tudo se passa como se o baile não fosse também um espaço de
confraternização e de festa, de produção de identificação individuais e grupais, de
encontro e de troca.” (HERSCHMANN, 2000, p. 149).
81
O funk, na medida em que alcançou destaque inusitado no cenário midiático, foi
imediatamente identificado como uma atividade criminosa, uma atividade de gangue,
que teve nos arrastões e na “biografia suspeita” dos seus integrantes a “contraprova”
que comprovaria esse tipo de acusação. (HERSCHMANN, 2000, p. 51)
A facilidade em se apontar a violência, denuncias sexuais e exploratórias
como estando associadas ao funk promove a instalação do preconceito como filtro
através do qual se analisa qualquer manifestação cultural proveniente desse gênero.
Porém,
é preciso estar mais atento para a multivascularidade da indústria cultural, como,
também, para a complexidade da interação das audiências com os meios de
comunicação e as possibilidades de reapropriação das representações hegemônicas.
(FILHO, HERSCHMANN, & PAIVA, 2004, p. 8)
É a multivascularidade aqui apresentada e o papel de proteção do
preconceito frente à maturação do funk enquanto enclausurado pela mídia e
estereótipos, que impediram de certa forma o acesso e julgamento inoportuno de
uma cultura enquanto essa tomava fôlego para se reinventar e romper as barreiras
construídas pela sua representação associada à criminalidade. Assim, o funk
brasileiro ficou restrito ao consumo interno, sem chegar ao internacional:
Aqui no Brasil o funk passava por um preconceito do próprio Brasil, porque aquilo
estava crescendo, se desenvolvendo, e eu achei muito bom esse preconceito (...)
vamos supor que você coloca um peixe para cozinhar, e esse peixe começa a cheirar
muito bem, e todo mundo vai lá e come desse peixe. Daqui a pouquinho o peixe não
cozinhou direito e você comeu o peixe antes dele estar no ponto. O preconceito fez
como se essa panela com esse peixe e esse molho lá dentro estivesse tampado por
muito tempo, e cozinhasse por mais tempo e entranhasse os temperos naquele peixe,
e quando a s pessoas abriram o caldeirão, - caramba, tem um peixe aqui muito
maravilhoso, muito gostoso que nós não tínhamos conhecimento, mas que está lá
cozinhando faz um tempão. – E o preconceito fez essa barreira, e faz as pessoas se
cegarem e não influenciarem no movimento para que não deixasse esse tempero
encruar. (MATTA, 2009)
Além do período de maturação que o preconceito proporcionou ao funk
brasileiro, também os períodos de alternância entre visibilidade e ostracismo foram
82
fundamentais para fortalecer o segmento e proporcionar uma união interna, mesmo
entre grupos rivais, quando se trata de defender a bandeira do funk:
É engraçado... mas cada baixo desses que dá... é um fortalecimento maior quando
volta... O funk é tão “preconceituado” que acaba a gente tendo que se unir, pra
fortalecer, pra poder passar por isso, entendeu? De repente essa coesão, essa união
do movimento funk também é em virtude do preconceito... Na verdade o funk acabou
sendo bode expiatório – ah, o brasileiro não é preconceituoso. É, só que ele não
demonstra e assume como os outros povos. Quando pegam o funk, que podem
descarregar todo o preconceito contra negros, pobres, favelados, eles descarregam.
(DJ MARLBORO in MACEDO, 2003, p. 109)
Assim surgiu a verdadeira música eletrônica brasileira, defendida das
influências estrangeiras pela tampa do preconceito que permitiu que o peixe do funk
cozinhasse com tempero totalmente brasileiro.
4.2 A HISTÓRIA RECENTE DO FUNK: 2000 E BONDES
O funk do meu Rio se espalhou pelo Brasil
Até quem não gostava quando viu não resistiu
MC Marcinho, Glamourosa
Na virada do século, o funk ressurge, “agora em espaços distintos de seus
bailes de origem. Casas noturnas de classe média, academias, novelas da Rede
Globo começam a tocar esse tipo de música” (SÁ, 2007, p. 12), numa vertente mais
feminina, com direito a presença de mulheres comandando as pistas, com a
temática do cotidiano vivido nas favelas em voga. Em meados de 2004, o funk volta
então “a chamar a atenção dos formadores de opinião (...) num outro ciclo do gênero
musical, mais marcado pela legitimação crítica e sucesso comercial que pela
condenação.” (FILHO & HERSCHMANN, 2003, p. 67).
Porém, foi na virada do ano de 2001 que foi percebida a nova onda do funk,
quando os “bondes” passaram a figurar no cenário das mais tocadas em todos os
cantos do país. A formação desses novos grupos de funk tinha uma característica
83
especial: eram formados por uma geração que cresceu nos bailes, podendo ser
considerados uma nova geração na produção do funk:
Esses grupos assumiam coletivamente a denominação de bonde. Não o bonde que a
classe média conhecia dos noticiários – o do comboio dos traficantes - mas o de
grupos de funk formados por um ou mais MC´s e um punhado de dançarinos.
(ESSINGER, 2005, pp. 199,200)
A forte conotação sexual que envolvia as letras apresentadas pelos bondes
era manifestada como sendo resultado de um senso de grupo muito grande, onde
certas expressões poderiam ser entendidas de uma forma por quem não participava
do universo das favelas, e de outra por aqueles que consumiam o funk. O resultado
positivo dessa categoria temática do funk foi tanto, que transformou o gênero em
sucesso de vendas novamente. Nesse momento, soluções paralelas foram utilizadas
para bater de frente com as gravadoras e seus contratos restritivos, tal como a
comercialização de CDs encartados em revistas, vendidos diretamente nas bancas
de jornal.
A onda dos bondes despertou interesse inusitados em diversos artistas da
MPB. Entre eles, encontra-se Caetano Veloso, que percebeu a forte associação das
batidas utilizadas como base nos bondes com a sonoridade da Umbanda.
O jornalista Silvio Essinger aponta que o movimento dos bondes e seu
sucesso poderia ser previsto ao observar manifestações paralelas provenientes de
outros cenários, tal como o rock alternativo brasileiro. A legitimação do funk em
outros segmentos advém dos anos 1990, quando fagulhas do funk adentraram o
cenário do rock alternativo, permitindo que fosse notado fora de seu contexto e
colaborando para sua validação como gênero musical genuinamente brasileiro.
84
Em meados de 1995 despontava em Porto Alegre o que seria a fagulha dessa
legitimação, quando surgia no mercado paralelo de rock a primeira fita demo33 da
banda Comunidade Ninjitsu, composta por uma mescla de batida de funk, guitarra
de hard rock e vocais de rap. Era a música “Detetive”, que obteve sucesso no
circuito nacional, sendo até mesmo premiada pela MTV em seu VMB, em meados
de 1997. A banda optava por inserir uma base pré gravada no lugar do baterista,
como forma de manter a base funk em suas apresentações. Também por volta de
1997 o rapper BNegão34 e sua banda The Funk Fuckers apontavam com o disco
“Bailão Classe A”, onde a batida do funk era a marca principal.
A influência do funk permaneceu constante dentro do trabalho da banda
Comunidade Ninjitsu, e acabou transbordando para os trabalhos de outros
conterrâneos: o grupo De Falla, que lançou seu álbum “Miami Rock 2000”, que
continha a clássica música “Popozuda rock´n´roll”.
Filho, Herschmann e Paiva descrevem três momentos na trajetória do funk no
Brasil, conforme a figura 4.1, a partir de sua nacionalização:
a) um primeiro, entre 1992 e 1998, em que o funk esteve fortemente associado à
violência e a criminalidade urbana da cidade; b) um segundo, de 1998 a 2002, em
que essa manifestação cultural foi acusada de promover um erotismo exacerbado ou
pornografia nos bailes; c) e, finalmente, o momento atual, em que as narrativas
midiáticas, em geral, condenam a falta de um conteúdo social ou político nas letras
das músicas e/ou a suposta falta de qualidade deste tipo de produto cultural. (FILHO,
HERSCHMANN, & PAIVA, 2004, p. 12)
Fita demo é uma forma de divulgação utilizada pelas bandas iniciantes, que gravam seu trabalho
como forma de demonstração ( demo = demonstração).
33
34
BNegão foi rapper da banda Planet Hemp, quando dividia o palco com o cantor Marcelo D2, além
de atuar como letrista. Sua principal banda foi a “The Funk Fuckers”.
85
4-1 Momentos da Trajetória do funk
Fonte: Filho, Herschmann e Paiva (2004), esquematizado pela autora
É possível acrescentar um novo momento a essa trajetória, que engloba o
interesse da imprensa internacional pela música proveniente do Brasil, e o
crescimento da visibilidade da produção contemporânea de funk. É nesse novo
momento que se desenvolve a produção de funk dentro das características
enumeradas como sendo pertencentes à quinta fase de desenvolvimento da
indústria fonográfica, exposta anteriormente.
Esse momento pode ser observado a partir de 2005, quando as redes de
contatos online estavam estabelecidas dentro das plataformas de redes sociais e foi
possível desenvolver trocas relacionadas à produção musical dentro delas. Não é
somente a partir da disponibilidade tecnológica que essas trocas passam a existir.
Elas precisam além disso, de um componente social onde possam fecundar, cujos
86
laços sociais estejam fortalecidos a ponto de permitir a colaboração na produção de
bens culturais.
Como principal característica, temos um certo abandono as questões
anteriores referentes à violência, criminalidade, erotismo e sexualidade, além das
questões de qualidade, quando o foco é transferido para as questões de
possibilidades sociais provenientes da produção do funk dentro das periferias.
Obviamente as questões anteriores não são esquecidas, sendo comum observar
que estas aparecem ainda vinculadas ao funk, ainda que esporadicamente.
4-2 Trajetória do Funk no Brasil
Fonte: organização da autora
O funk produzido dentro da quinta fase de desenvolvimento da indústria
fonográfica é considerada por Sá como uma “possível linhagem de música eletrônica
popular brasileira.” (SÁ, 2007, p. 3). Uma das bases para esta afirmação é a
87
incorporação do “tamborzão”, batidas com forte influência africana, que deram
característica única ao funk desenvolvido no Brasil, tanto pela mão dos cariocas
quanto pela mão dos novos produtores, que passaram a construir suas músicas
dentro de seus home estúdios baseados em seus computadores. Outro ponto
importante para o desenvolvimento dessa linhagem brasileira foi o tratamento tosco
e rudimentar dado às composições do estilo, primeiramente como decorrência da
falta de experiência e materiais primitivos utilizados na produção, e após como forma
de manter o discurso do funk presente nas composições feitas pelos produtores
mais cuidadosos.
De um lado, era a rudeza com que os produtores tratavam o material sonoro, em
seus programas de computador pouco atualizados, o que resultava em faixas com
edições frenéticas e criativas na medida das suas impossibilidades. De outro lado, foi
a adoção, quase que por todo o funk carioca, de passagens rítmicas feitas com
atabaques, muito similares aos dos pontos de macumba, que se adequaram
perfeitamente às batidas do Miami. (ESSINGER, 2005, p. 260)
O resultado dessa mistura de influências e influenciadores, do trânsito entre
underground e mainstream e da persistência dos atores desse segmento, é hoje
entendido como parte do movimento funk, um estilo que perpassa as estruturas
tradicionais de classificação taxonômica musical e transpassa as linhas entre
produtores e consumidores, num emaranhado tecnológico de interações.
Foi essa mescla que deu ao funk produzido no Brasil a qualidade de uma
variação única, que mesmo quando feita em localidades ou segmentos sociais
distintos, chegou ao ponto em que apresenta características culturais realmente
brasileiras.
4.3 O “BONDE DO ROLÊ” E FREDY ENDRES
88
O Bonde do Rolê é um trio Curitibano que mistura música eletrônica,
samplers de rock e de bandas conhecidas com as batidas do funk carioca, que
passou do anonimato ao estrelato em pouco tempo através da rede social formada
em torno do site Myspace35.
A história da banda começou em 2005, quando os amigos Rodrigo Gorky,
Pedro D’Eyrot e Marina Vello Ribatski se reuniram para experimentar suas recém
adquiridas habilidades de produtores musicais. Foi a partir dessas primeiras
experiências disponibilizadas no site Myspace nos seus perfis pessoais que o
produtor Fredi Chernobyl Endres conheceu o trabalho do Bonde do Rolê. Pioneiro
no segmento de produção musical despretensiosa e de cunho sarcástico, guitarrista
e produtor da banda Comunidade NinJitsu, Fredi Chernobyl Endres é um dos
responsáveis pela produção de diversos sucessos do segmento trash36 desde 1995.
Passando por diversas possibilidades tecnológicas, a base do seu trabalho como
produtor sempre foi a mesma: mistura de gêneros, samples inusitados e a utilização
da linguagem do funk como base de suas produções.
A historia musical de Fredi Chernobyl Endres começou na escola, quando
cantava no coral. Por influência de seu irmão mais velho, passou a tocar guitarra, e
já com 11 anos arriscava seus acordes numa banda escolar, com forte influência de
Metal Rock. Por volta de 1995 começa sua história recente, com a primeira fita demo
da Banda Comunidade Ninjitsu, intitulada “Detetive”. A música estourou, ganhou
prêmios, e desde então a trajetória da banda foi cercada de sucessos.
Já no ano 2000, Fredi Chernobyl Endres começa a trabalhar com produção,
ainda timidamente, ao desenvolver uma coletânea do trabalho de sua banda em
35
http://www.myspace.com
“Trash” aqui, tem o sentido de abarcar um estilo musical, fazendo referência aos produtos culturais
que não atendem padrões correntes, tais como moral, e qualidade técnica e artística.
36
89
versões de funk revisitado, chamado “Comunidade no Baile”. A batida funk e a
influência direta desse estilo está presente nas produções de Fredi Endres desde a
primeira fita demo feita para a sua banda Comunidade Ninjitsu em 1995:
O funk na época do “rap da felicidade” era o tipo de funk que eu gostava porque me
linkava com os anos 80, com o “2 Live Crew”, que eu gostava muito, e o “Run D.M.C”.
E ai eu pensei: essa música é só batida e voz, o funk carioca na época era os caras
cantando em cima da batida Miami dos anos 80. Eu já simpatizei na hora, achei muito
bom. E ai, porque não, em vez de botar um baterista, botar uma batida tipo isso?
(ENDRES, 2009)
Influenciado tanto pelo momento em que se encontrava o funk carioca – “Rap
do Silva” e “Rap da Felicidade” - quanto pelo funk internacional da Flórida com suas
letras repletas de bobagens e samples de rock como Van Halen e Guns´n´Roses,
Fredi Endres utilizou sua linguagem própria e regional para desenvolver as letras,
produzindo paralelamente ao funk carioca, um segmento de funk produzido no
Brasil, contemporâneo ao que estava sendo desenvolvido no Rio de Janeiro, mas
com linguagem e temática própria de Porto Alegre.
Falando do seu cotidiano com as mesmas influências com que o Rio de
Janeiro desenvolvia suas produções, com a mesma essência de diversão e
irreverência, surgia a vertente mais non-sense do funk produzido no Brasil.
As produções musicais da banda Comunidade Ninjitsu sempre flertaram com
o inusitado e atravessaram correntes, movimentos e influências, invariavelmente
marcadas pelo rock. Foi em 1999, no período de produção e lançamento de seu
primeiro CD, que se pode perceber o que viria a ser a base das criações iniciais do
Bonde do Rolê: utilização de bases internacionais de bandas de grande sucesso,
marcante influência do movimento funk carioca, bases eletrônicas, e obviamente, o
rock.
90
Esse primeiro disco da banda Comunidade Ninjitsu teve a produção de Edu K,
na época vocalista e produtor do Grupo De Falla. Por isso, torna-se indecifrável o
círculo de influências desse segmento recém formado, sendo difícil determinar quem
é responsável pela inserção de seus elementos característicos.
Nesse momento, o grupo De Falla já havia flertado com produções que
mesclavam funk, heavy metal, bases eletrônicas e diversos outros estilos, além de
ter passado por diversas formações e até mesmo ficado inativo por diversos anos.
Já havia mudado de sonoridade, trabalhado ao vivo com o que na época era
considerado como versões cover de bandas famosas, e também de um projeto
paralelo de Edu K, constituído puramente de versões eletrônicas de clássicos do
rock.
Foi posteriormente à produção do primeiro disco da banda Comunidade
Ninjitsu, que Edu K assumiu o miami bass como influência, ocasionando o que viria
a ser a primeira faísca de todo o processo aqui estudado: a mistura da já
esquizofrênica mescla de suas influências com um leve resgate de electro rock e
muito miami bass. O resultado foi o lançamento em 2005 da polêmica música
“Popozuda Rock´n´roll”, que invadiu o cenário do já bem estabelecido funk carioca,
além de toda a cena mainstream das rádios e emissoras de TV.
Foi logo depois desse período que ocorreu o encontro entre Fredi Endres e os
integrantes do Bonde do Rolê no Myspace. Movido pela familiaridade nas influências
e pela curiosidade de saber quem eram aquelas pessoas fora do círculo de seus
conhecidos, Fredi Endres entrou em contato com os integrantes do Bonde do Rolê
via Myspace. Em pouco tempo eles estavam trabalhando juntos, criando novas
produções, remixando e remasterizando o que havia sido feito até então de forma
experimental pelos integrantes do Bonde do Rolê. O trabalho de produtor tomou
91
proporção, e do encontro na internet com Rodrigo Gorky, surgiu o primeiro disco do
Bonde do Rolê, trabalho produzido em parceria com a banda, feito dentro da sala do
de um apartamento em Curitiba, em poucos dias. A partir dali, Fredi começou a
produzir também o trabalho da sua própria banda, que parou de chamar produtores
externos para essa atividade. Além disso, ele é responsável pelos remixes de
diversos trabalhos de outros companheiros de segmento.
Numa segunda rodada de interações, foram as visualizações do perfil de
Fredi Endres que promoveram o recém criado trabalho em parceria dentro do
cenário internacional. A banda adentrava o circuito de produtores do que vinha
sendo chamado de “favela chic”, “baile funk”, ou simplesmente “brazilian funk”, pelas
mãos do então ascendente produtor Diplo, este responsável pelas produções da
cantora M.I.A, que dominavam as paradas internacionais.
“Eu acho que a primeira música que eu fiz que usa o funk brasileiro foi “bucky done
gun”, e M.I.A naquela época estava muito perto de mim. Nós estavamos tentando
qualquer coisa que pudéssemos fazer para criar alguma coisa púnica, então peguei
alguns elementos do funk que eu achava realmente interessantes, como as cornetas
e os loops das batidas. Eu estava tentando algo que fosse pesado e louco, e aquilo
37
estava à frente do tempo, era uma um tipo de música underground” (DJ Diplo in NA
BATIDA DO FUNK)
Em 2007, após duas turnês internacionais e amplo reconhecimento, o Bonde
do Rolê anuncia a saída de sua vocalista, Marina Vello Ribatski. Esse foi o ponto de
virada da banda, que cruzou a linha midiática da internet e invadiu outras mídias de
massa. A música da banda intitulada “Solta o frango” entrou como trilha sonora do
“FIFA SOCCER 08”, um dos mais populares jogos do segmento desenvolvido pela
Eletronic Arts, que lançou o jogo para os principais consoles de vídeo game e
37
Tradução livre da autora: “I think the first song I´ve done that use brasilian funk was “bucky done gun”, and
M.I.A at the time was very close to me. We´re just trying whatever we can do to make something unique, and I
toke some of the elements of funk that I thought were really exciting, like the horns and drum loops. I was trying
something that was heavy and crazy, and it was ahead of the time, it was kind of an underground song”
92
também para telefones celulares, expandindo o sucesso da banda para todos os
cantos do mundo. Aproveitando o sucesso, a banda se associou à MTV Brasileira,
para a gravação de um reality show onde seria escolhida a sua nova vocalista.
Um dos fatores apontados por Pedro D´Eyrot como fundamentais para a
“partida” do Bonde do Role para o mercado internacional foi o valor dos cachês
pagos no começo da carreira da banda. Ele aponta que se o mercado tivesse sido
mais favorável no início, talvez a banda não tivesse focado no mercado internacional
e isso tivesse abafado o sucesso em outros países. Sem o compromisso financeiro
com o país de origem, a banda pode manter o foco sem arrependimentos.
Algo parecido aconteceu com Fredi Endres e Edu K, que em 2007 e 2008
fizeram parte do projeto “Produtores Toddy”, que os colocou como mentores online
de bandas iniciantes de todo o país, dentro de uma comunidade virtual criada
especialmente para o projeto38.
Para fechar o círculo, em 2008 Marina Vello Ribatski voltou a gravar em
carreira solo, tendo como produtor Edu K, que também teve suas produções
utilizadas em campanhas publicitárias tanto no Brasil, quanto no mundo. O clipe de
sua faixa “Gatas, gatas, gatas” apareceu na propaganda da Sony Erickson, e a
música “Popozuda Rock´n´Roll” foi ouvida em propagandas internacionais da CocaCola e da Nike.
O ponto de partida para a formação do Bonde do Rolê foi a primeira vinda de
Diplo ao Brasil. Ao constatar que já faziam como forma de brincadeira o mesmo tipo
de intervenção musical que resultou no sucesso de Diplo no Brasil, Rodrigo Gorky e
Pedro D´Eyrot resolveram desafiar a lógica da produção nacional e apresentar o que
38
Mesmo finalizado, o site da comunidade formada pelo projeto continua no ar. Para maiores
informações e para conhecer a comunidade acesse: http://www.produtorestoddy.com.br.
93
seria a sua versão da mistura do estilo então chamado de “baile funk” misturado com
Daft Punk. Assim surgiu a primeira demo da banda, no meio da madrugada e
movida por uma crise de ciúmes, intitulada “Melô do RoboRock”, baseada no que
eles imaginavam que teria sido a apresentação de Diplo, à qual eles não
compareceram.
De acordo com Pedro D´Eyrot, o sucesso do Bonde do Rolê está no fato de
que o modelo deles não é novo, e que é composto de uma idéia muito simples, que
estava dormente e foi resgatada no momento certo. “uma idéia feliz e aplicada no
tempo certo (...) A idéia é basicamente: vamos pegar tudo o que a gente gosta, jogar
no liquidificador e cantar em cima e se divertir. Não tem segredo.” (D´EYROT, 2009):
Eu acredito que quem gosta do bonde, gosta porque gosta de se divertir. A premissa
que eu tenho quanto a show (...) a nossa idéia é ser tão absurdo que a pessoa se
sinta a vontade com ela mesma. (...) você tem toda aquela coisa do modelo, a pessoa
que está no palco é seu modelo.(...) se meu modelo pode fazer isso, eu posso fazer o
que eu quiser. (D´EYROT, 2009)
A identificação como critério básico para a validade de uma música dentro do
universo reconhecido dos ouvintes é apoiada no caso do Bonde do Rolê pela
aspiração de seus integrantes em transmitir aspectos psicológicos passíveis de
identificação em suas apresentações e na concepção de suas músicas, criando
assim mais uma camada de sentido e permitindo aspectos mais profundos de
apreciação ou desgosto por parte dos ouvintes.
4.4 FUNK
DE
APARTAMENTO
E
O
GRAU
DAS
RELAÇÕES
NAS
PLATAFORMAS DE REDES SOCIAIS.
As facilidades de produção derivadas da adoção da tecnologia por parte dos
engajados em novidades na internet acabou por desenvolver toda uma classe de
94
produtores dedicados a fabricar híbridos da cultura popular, entre eles o funk.
Trabalhando o que já era uma característica pertinente ao movimento funk desde
seu início, misturas cada vez mais inusitadas transformaram a produção de um
grupo de amadores naquilo que vem sendo chamado de “funk de apartamento”,
fazendo uma referência direta à forma como este é construído, nas salas e quartos
da classe média brasileira que possui acesso à internet e tempo livre para empenhar
na produção musical. O grande sucesso decorrente dessa modalidade é a já citada
banda Bonde do Rolê:
Funk de apartamento eu quero dizer aquela coisa que não é feita na periferia do Rio,
e nem como a Comunidade Ninjitsu que é uma banda de rock com influência de funk
carioca, tocado com instrumento no show, e com o beat ali junto. (ENDRES, 2009)
Influenciados pelo sucesso adquirido por bandas como o Bonde do Rolê que
foram descobertas quando ainda eram não muito mais que uma produção
proveniente da sala de um apartamento, muitos produtores sentiram-se compelidos
a tentar a mesma façanha:
Acabei influenciando essa galera que quer fazer funk em casa misturado com outras
coisas. (...) Com os softwares de áudio todo mundo acha que pode fazer música em
casa, e não é bem assim. Rolou uma febrezinha de funk de apartamento há um
tempo atrás que parou, porque viram que não é bem assim. O melhor funk de
apartamento de todos é o Bonde do Rolê. (ENDRES, 2009)
A frustração do não desenvolvimento por completo de todos esses projetos
parece não fazer parte dos sentimentos desses produtores amadores em relação à
sua produção. Isso se dá pelo fato de não ser sua principal motivação o sucesso,
sendo este apenas uma delas. A troca, a experiência no decorrer da produção, de
estar em contato com pares que demonstram os mesmos interesses musicais tende
a ser a principal razão da dedicação em disponibilizar conteúdo:
95
De quatro anos para cá a gente tem a internet acessível e alta velocidade e Myspace.
O que aconteceu é que eu tenho mais gente pra andar junto nessa (...) o que mudou
é que tem um bando de produtor que simpatiza com o funk, gente que produz música
eletrônica, que simpatiza e que gosta. O que aconteceu é que eu tenho mais gente
pra trocar informação hoje em dia desse meio “não funk”. (ENDRES, 2009)
Dessa forma, dinâmicas mediadas de construção de sentido fazem parte dos
processos mediados de construção de funk, sejam eles vivenciados entre
conhecidos ou desconhecidos, entre pessoas famosas ou anônimas dentro da cena
do funk, pois uma das características mais marcantes dessas atividades é que elas
são desenvolvidas dentro de plataformas de redes sociais onde todos se encontram
em iguais condições de exposição, podendo as relações serem estabelecidas entre
pessoas de diferentes níveis de capital social ou representatividade, seja dentro da
rede ou fora dela.
Esta característica de igual capacidade de pertencimento para com as redes
sociais é uma das mais marcantes da quinta fase de desenvolvimento proposta
nesta dissertação para a música em relação à tecnologia disponível. Aqui, as trocas
entre artistas e seu público acontecem sem interferência da indústria fonográfica,
mesmo que os artistas estejam ainda extremamente conectados a ela. Estas trocas
deixam de ser especificamente musicais, pois ambos estão expostos ao contato a
partir das preferências e características descritas em seus perfis públicos. A partir do
contato estabelecido em decorrência da apreciação mútua de perfis em plataformas
de redes sociais, a condição de fã e ídolo se esvai, restando apenas a conexão
entre pessoas com interesses em comum. Esta mudança é significativa
principalmente em relação ao componente das trocas. Quando antes o artista estava
distante do seu público pela diferença de plataformas – mediado por canais de mão
única – esta conexão mais pessoal não era possível, nem fazia parte daquilo que
era almejado por ambas as partes.
96
Percebe-se que dentro das conexões estabelecidas entre artistas e fãs tendo
como suporte as plataformas de redes sociais onde ambos vivenciam o mesmo grau
de participação, a interação versa a respeito de temas variados, tendo sempre a
música como pano de fundo, mas permitindo também outras formas de relação.
4.5 NOMENCLATURA E DERIVAÇÕES
Um indivíduo adquire um verdadeiro nome próprio ao cabo do mais severo exercício
de despersonalização, quando se abre às multiplicidades que o atravessam de ponta
a ponta, às intensidades que o percorrem.
Gilles Deleuze
A abertura da produção de funk para outras localidades do Brasil gerou uma
dificuldade em estabelecer classificações de gênero e distinções entre o que era
legitimado como funk e o que era derivações, gerando muita confusão cercada de
várias piadas, que quando contadas com seriedade acabaram por confundir toda a
categorização do gênero.
A maior relação entre a produção do Rio de Janeiro e do restante do país é
realmente a língua portuguesa, utilizada por ambos como base para toda a
produção, diferentemente de outros estilos desenvolvidos no Brasil em idiomas
estrangeiros. Obviamente os regionalismos estão presentes em ambos, acentuando
o caráter identitário de cada um deles.
É tudo funk, na verdade as classificações musicais deveriam existir para você não se
perder, e normalmente as pessoas acabam usando essas derivações para separar, e
isso é muito ruim, então prefiro não ficar apegado às denominações. (...) As pessoas
acabam descarregando preconceito em cima das derivações. (MATTA, 2009)
A primeira distinção de nomenclatura que precisa ser feita para decorrer toda
a análise dessa dissertação é entre funk carioca e o restante da produção de funk no
97
Brasil. Em suma, não existem diferenças gritantes em termos de concepção ou
construção musical, sobrando somente diferenciações simbólicas em termos
regionais e de temáticas.
O funk quando nasceu lá há muito tempo atrás, a gente era os desclassificados.
Ninguém classificava a gente como nada. Fiquei muito feliz em estar viajando e as
revistas de música falando de mim, e uma revista de música eletrônica lá fora falando
do funk como se fosse música eletrônica, bootleg, músicas que têm pedaços de
outras músicas, sampler. E as revistas de hip hop também falam do funk como se
fosse o novo hip-hop, o hip-hop latente, feito no Brasil, que fala do dia a dia, do
cotidiano, da proposta que é o hip hop verdadeiro. Então nós éramos os
desclassificados, hoje estamos em várias classificações pelo mundo inteiro. (MATTA,
2009)
Quando falamos em “funk carioca”, geralmente pretendemos falar em funk
brasileiro. É obvio que nem todo funk feito no Brasil é produzido no Rio de Janeiro
ou em sua periferia, mas ele ficou assim conhecido por conta de suas origens
marcadas nessa região e pela pouca repercussão do funk originário do restante do
país. Atualmente, duas tendências se sobrepõem em termos de nomenclatura:
chamar toda a produção brasileira de “funk” simplesmente, ou adotar o termo “funk
carioca” como denominação de uma vertente temática do funk, caracterizado pelos
assuntos recorrentes da periferia carioca, independentemente de onde seja
produzido. O que sobra no caso da segunda vertente, é nomeado a partir de sua
localidade de origem, comumente chamado de “funk do sul”, ou a partir de sua forma
de produção simplificada, tratado como “funk de apartamento”. Outra possibilidade
ainda é tratá-lo como uma atualização mais abrangente do funk ao incluir novas
temáticas, chamando-o de “neofunk”.
Adotamos todas as nomenclaturas no decorrer desta dissertação, utilizando
cada uma delas de acordo com o enfoque que se pretende evidenciar em cada
abordagem. Ao tratar do histórico, fala-se em funk carioca e tende-se a utilizar em
algumas partes a nomenclatura de funk produzido no Brasil quando a intenção é
98
evidenciar algum processo que seja comum a todas as vertentes e temáticas.
Quando fala-se do funk do sul, normalmente a finalidade é restringir o assunto ao
foco do recorte dessa dissertação. Por fim, ao falar em neofunk, a tendência é
considerar aquilo que abrange temáticas diversas, mas que em comum tem o fato
de ser produzido em esquemas simplificados de distribuição, normalmente de forma
a estabelecer uma conexão direta entre produtores e consumidores.
O neofunk nos termos dessa dissertação é, portanto, o funk produzido dentro
da quinta fase de desenvolvimento proposta nessa dissertação: a fase em rede.
Dessa forma, o neofunk compreende o funk carioca quando desenvolvido nessa
concepção e o funk produzido no sul, bem como as temáticas diferentes presentes
em ambos. Trata-se então de uma nomenclatura a respeito da forma como o funk é
produzido, e não de sua origem regional ou sua temática de letras.
A brincadeira de chamar o gênero produzido pela banda Bonde do Rolê de
“pós-funk”, surgiu a partir da utilização de samples diferentes dos que eram
usualmente utilizados pelos produtores de funk carioca, que já havia passado por
algumas ondas de transformações, mas que mantinha as bases e os samples quase
que inalterados.
99
4-3 Nomenclaturas do funk
Fonte: organização da autora
Isso ocorre por causa da organização diferenciada dos dois tipos de funk. A
produção do funk carioca está centralizada na figura do DJ Marlboro como
representante da categoria e como porta de entrada para o sucesso dos pequenos
produtores, a tendência de produção é manter a utilização dos mesmos samples e
manter também as mesmas características de reorganização desses samples, com
a finalidade de agradar à referencia, facilitando o reconhecimento dos pequenos
produtores por parte de quem rege o mercado. Já a produção do neofunk, do funk
de apartamento e de todas as manifestações da fase atual fundamentadas nas
trocas entre muitos, dentro das plataformas de redes sociais, o que dissimula as
influências e resulta num processo bem mais fragmentado de derivações.
100
Podemos considerar que hoje esse quadro também não é mais a única
corrente no funk carioca produzido dentro da quinta fase de desenvolvimento, que
passou a trabalhar com influências diferentes após a virada do século e também se
reinventa constantemente acrescentando samples novos a cada dia.
Observando a parte instrumental, o background de repertório dos produtores
cariocas e o dos produtores do sul do Brasil são muito parecidos no que diz respeito
ao funk, porém muito distintos em relação às outras influências. Enquanto no funk
ambos cresceram escutando James Brown, George Clinton & Parliament Funkadelic
e todas as vertentes originais relacionadas ao funk e Black Music americanos dos
anos 1970, podemos dizer que suas influências gerais são outras: enquanto no sul a
tendência é que estas estejam associadas ao metal rock e a música eletrônica, no
Rio de Janeiro elas estão associadas ao disco funk e também aos gêneros
brasileiros, principalmente ao samba e MPB além de toda a base de soul americano.
É importante considerar que no neofunk, o funk carioca é considerado como
uma influência também, estando lado a lado com outras influências nos termos de
hierarquia. Embora a sonoridade final do neofunk hoje seja praticamente a mesma
do funk carioca, eles são resultados de formas de organização diferentes.
Outra diferença fundamental entre a produção do Rio de Janeiro e do Sul do
país, é a utilização de instrumentos tocados, derivada da formação musical que os
produtores do sul possuem e os do Rio de Janeiro em geral não têm. Esse fator é
também derivado da posição social distinta em que ambos se encontram. Enquanto
no Rio o funk deriva das classes mais desfavorecidas da população, no sul estamos
falando de classes média e alta.
101
A utilização de instrumentos tocados desencadeia uma diferença fundamental
na parte de composição do funk produzido no Rio de Janeiro e do funk do Sul do
país. Enquanto no funk carioca a reutilização de samples e a duplicidade de batidas
em músicas diferentes são constantes, o funk do Sul se caracteriza por uma
produção mais voltada a utilização de sons originais. Obviamente esta é uma
tendência que não inviabiliza que o oposto aconteça, principalmente quando
analisamos produções mais recentes, permeadas pelo que chamamos aqui de o
quinto momento dentro das fases de produção musical, intitulada de “Fase em rede”,
onde a circulação do material que serve de matéria-prima, bem como o material final
das produções circula no espaço da internet.
Finalmente, as músicas produzidas sob o signo do neofunk são mais longas
que as produções originais do funk carioca. Isso é decorrente da forma como estas
são apresentadas quando são mixadas por DJs em performances ao vivo. Como o
neofunk é apresentado por DJs que descendem da linhagem da música eletrônica,
as necessidades que estes têm de utilizar as músicas mais longas para promover
mixagens também mais longas são consideradas na hora da produção, além de
entradas e saídas mais longas para facilitar a mixagem entre as músicas. O funk
carioca que é tocado nos bailes não necessita destes detalhes de produção, pois a
forma como são mixadas é mais curta, mais baseada nas habilidades de corte e
passagem dos DJs desse estilo.
4.6 HIBRIDAÇÃO E IDENTIFICAÇÃO
É da diversidade do funk e de sua multiculturalidade que advém o
encantamento daqueles que se identificam com ele. E a identificação múltipla que o
funk permite vem da experimentação e das diversas possibilidades que temos em
102
seu processo criativo, onde tudo pode ser aproveitado e reestruturado em algo novo,
onde o resultado é maior do que a soma das partes, mas mesmo assim ainda
podemos identificá-las na equação.
O funk não poderia ter sido criado em outro lugar a não ser no Brasil. O funk é
multicultural. Você pega um funk com vários tipos de musicalidade dentro dele. Pode
ser uma guitarra de rock, pode ser uma melodia de axé, de forró. Pode ser politizado,
pode ser romântico, pode ser irreverente, pode ser erótico, pode ter melodia de
samba enredo num funk, ao mesmo tempo pode ter um sampler de uma música
eletrônica mais moderna do lado de fora, então ele aglutina e se alimenta de tudo.
Isso pra mim mostra que ele é cada vez mais brasileiro porque ele é a mistura de
cultura como o brasileiro é. (MATTA, 2009)
A melhor interpretação do que seria o funk para Marlboro veio de seus
contatos em viagens, quando procurou saber como era ouvido pelo público
estrangeiro. Ao perguntar a um DJ alemão amigo, Marlboro descobriu que o Brasil
sempre foi muito respeitado no exterior pela sua musicalidade. Quando houve a
febre da música eletrônica mundial, adeptos do mundo inteiro esperaram a reação
brasileira e a incorporação do tempero brasileiro ao estilo, mas mesmo com alguns
sucessos, não se reconheceu a musicalidade visceral brasileira, até que veio o funk
e apresentou características culturais brasileiras dentro de sua forma peculiar de
composição, como a multiculturalidade e a forma de acabamento onde o que mais
importa é a idéia e não sua execução.
A hibridação característica do funk ao acolher diversas formas de conteúdo de
varios segmentos musicais permite que a identificação aconteça também em
diferentes níveis. De alguma forma, em algum momento, quem se identifica com o
funk percebe nele elementos culturais com os quais tem contato dentro de suas
preferências:
quando o cara ouve funk ele se identifica porque tem um pouco da cultura dele ali,
mesmo que fracionada, e ele identifica. E isso faz com que o funk tenha essa
popularidade mundial. (MATTA, 2009)
103
Dentro disso, a multiculturalidade brasileira aparece marcante dentro das
composições do funk, mas é principalmente a característica de permissividade
dessas composições que fazem com que elas admitam outras influências, muitas
delas ligadas às influencias pessoais de cada produtor. Percebemos claramente que
o funk é a base para a montagem e desenvolvimento de criações muito pessoais,
mesmo que utilizando bases e influências repetidas ou parecidas. A utilização de
samples de forma pessoal faz com que cada música se torne produto único.
4.7 QUEM SÃO ESSAS PESSOAS?
Pela exposição do histórico individual e de interações, fica claro que o recorte
estudado não trata de pessoas ordinárias, comuns, e nem tão pouco de
casualidades ou focos isolados que tomam notoriedade do dia para a noite. Mas
também não estamos tratando da totalidade das pessoas. É preciso considerar que
mesmo que muitas vezes pareça que todos estão sob influência direta dos
fenômenos estudados nos recortes Ciberculturais, estamos falando de uma parcela
ainda reduzida de pessoas com acesso direto ao ciberespaço, e dentro dessas, uma
parcela menor ainda de ativistas ou pessoas envolvidas em produção e
disponibilização de conteúdo, seja esse original ou remixado. Eles dominam as
ferramentas de produção e distribuição, que mesmo estando disponíveis para todos
exigem habilidades específicas para sua utilização.
Estamos falando de early adopters, pessoas cujos dados de acesso e de
freqüência online não podem ser usados como parâmetro da totalidade dos
internautas, muito menos da totalidade da população. São os primeiros a testar as
novidades nas redes sociais, exprimem sua opinião a respeito daquilo que testam,
como consumidores ávidos sedentos por novidades. Eles colaboram dentro das
104
comunidades das quais participam para o crescimento das mesmas, e entendem o a
colaboração como parte da prerrogativa de estar online, portanto de ser quem eles
são.
O termo early adopter foi inicialmente cunhado por Everett M. Rogers, no seu
livro “Diffusion of Innovations”, de 1962. O livro descreve a teoria mercadológica de
uma curva de adoção de novas idéias e tecnologias, onde o autor afirma que “a
difusão é o processo pelo qual uma inovação é comunicada através de certos
canais, através do tempo, pelos membros de um sistema social”. Ele afirma que as
novidades se proliferam dentro de uma comunidade em um gráfico em formato de
“S”, onde o inicio da curva de adoção é referente aos inovadores e aos adotantes
iniciais, os early adopters.
4-4 Gráfico de Classificação dos adotantes com base no tempo de adoção de inovações
Fonte: ROGERS, Everett M. Diffusion of innovations. New York: Free Press, 1962. p.162
105
Pela primeira vez estão disponíveis dados de pesquisa dessa parcela da
população no Brasil. Em levantamento realizado durante o Campus Party39, em
janeiro de 2009, o “IBOPE Inteligência” entrevistou seiscentos participantes para
detectar as práticas de acesso e utilização da internet por parte dos heavy users de
tecnologias digitais do país.
Dentre os dados obtidos40, verificou-se que mais de noventa por cento dos
entrevistados estão envolvidos com tecnologias colaborativas, principalmente
ligadas à produção de conteúdo, como também as pessoas que compõem o objeto
de estudo desta dissertação.
Da mesma forma, assim como 87% dos entrevistados do IBOPE, os
entrevistados desta dissertação também possuem perfis em uma ou mais
plataformas de redes sociais, e os atualizam com a mesma ou maior freqüência41.
Todos os entrevistados dessa dissertação possuem blogs ou atualizam blogs
coletivos, como os 31% dos entrevistados do IBOPE que se declaram possuidores
de blogs. Dado esse, que complementa o interesse de 91% dos entrevistados em
blogs, e o índice de leitura diária de 38% deles.
Diversos outros dados são coerentes com o recorte aqui apresentado: 84%
usam a internet várias vezes ao dia, e mais da metade costuma acessá-la em casa.
Dentro do critério econômico, 80% deles fazem parte das classes A e B.
39
Evento realizado em São Paulo, entre 19 e 25 de janeiro de 2009, o Campus Party é um encontro
anual realizado desde 1997 na Espanha, e é considerado o maio evento de inovação tecnológica e
entretenimento eletrônico em rede do mundo. A edição brasileira é a primeira etapa da
internacionalização do projeto. Para mais informações, ver site oficial do evento brasileiro:
http://www.campus-party.com.br.
40
Os dados aqui apresentados foram obtidos em reportagens sobre a pesquisa realizada,
apresentada no site do próprio IBOPE, disponíveis no anexo número dois e também em:
http://www.ibope.com.br/calandraWeb/servlet/CalandraRedirect?temp=5&proj=PortalIBOPE&pub=T&
db=caldb&comp=Not%EDcias&docid=17FFBC82352731D38325754A005F0EB9
E também em reportagem adicional veiculada no Jornal O Estado de São Paulo, disponível em:
http://www.ibope.com.br/clip_inteligencia/09_01_26_oesp_campusparty.pdf
41
17% dos entrevistados do IBOPE afirmam atualizar seus perfis com freqüência diária.
106
Como dito anteriormente, os exemplos aqui citados fazem parte de uma
categoria de pessoas que se sobressaem à média.
Os dados apresentados em março de 2009 pelo Comitê Gestor de Internet no
Brasil42 (CGI.br) sobre o uso da internet nos domicílios brasileiros permitem uma
visão global do usuário brasileiro . A pesquisa chamada de “TIC Domicílios”43 de
2008 é a quarta edição da pesquisa, e apresenta dados sobre o desenvolvimento da
internet no Brasil.
4-4-5 Proporção de pessoas que acessaram a internet 2005-2008
Fonte: TIC Domicílios 2008 (CETIC.br, 2009)
42
O Comitê Gestor da Internet no Brasil, CGI.br, foi criado para tornar efetiva a participação da
Sociedade nas decisões envolvendo a implantação, administração e uso da Internet, o Ministério das
Comunicações e o Ministério da Ciência e Tecnologia o constituíram, de forma conjunta, em maio de
1995, pela Portaria Interministerial nº 147, de 31 de maio de 1995 e alterada pelo Decreto
Presidencial nº 4.829, de 3 de setembro de 2003, para coordenar e integrar todas as iniciativas de
serviços de Internet no país, promovendo a qualidade técnica, a inovação e a disseminação dos
serviços ofertados. Fonte: http://www.cgi.br/sobre-cg/index.htm.
43
Pesquisa Sobre o Uso das Tecnologias da Informação e Comunicação no Brasil.
107
De acordo com essa pesquisa, um quarto dos domicílios brasileiros possui
computador, dos quais 71% possuem acesso à internet. Os usuários de
computador44 constituem 41%, enquanto os usuários de internet somam 38%,
número que demonstra crescimento nos últimos anos.
Porém, os dados de uso e acesso não podem considerar somente
computadores domiciliares, haja vista que a pesquisa identificou os “centros públicos
de acesso pago”45 como principal local de uso da internet no Brasil, que têm 48% de
menções, superando o uso domiciliar.
4-6 Proporção de pessoas que acessaram a internet 2005 – 2008
Fonte: TIC Domicílios 2008 (CETIC.br, 2009)
4-4 Local de acesso individual à internet
Fonte: TIC Domicílios 2008 (CETIC.br, 2009)
Outro dado importante é a evolução da disponibilidade da banda larga entre
os usuários da internet. Até 2006 era predominante o uso de acesso discado, que
veio a ser equiparado em 2007 ao acesso por meio de banda larga. Em 2008 o uso
de banda larga ficou quase duas vezes maior que o anterior, apresentando 58% de
uso, contra os 31% de conexão discada.
44
Definidos como pessoas que utilizaram o computador nos últimos três meses.
45
Denominação utilizada na pesquisa para designar as lan houses.
108
Não é só o crescimento que conta ao considerarmos a real colaboração e
participação dentro das comunidades online. É preciso considerar que a qualidade
do acesso é em diversos momentos responsável pela profundidade da participação
do usuário. Nesse sentido, os brasileiros sempre se destacaram dos demais
usuários, e os dados de evolução da utilização da banda larga constituem
argumento para essa afirmação.
Dentre as atividades realizadas na internet, o perfil do brasileiro apresentado
na TIC Domicílios 2008 é coerente com o crescimento do acesso e da banda larga,
apresentando crescimento nas atividades de lazer, treinamento, educação e
comunicação, enquanto as atividades de e-banking permaneceram sem alteração.
4-7 Atividades desenvolvidas na internet
Fonte: TIC Domicílios 2008 (CETIC.br, 2009)
Dentre as atividades de lazer desenvolvidas na internet, foram incluídas na
pesquisa as atividades de “fazer ou atualizar blog ou fotoblog”, que atingiu 14% das
menções, e “divulgar filmes ou vídeos na Internet”, que obteve 15% das menções. O
fato de serem incluídas atividades colaborativas dentro das já existentes
possibilidades de lazer demonstra claramente uma mudança na forma como se
109
comporta o usuário brasileiro enquanto navega. Embora tenham uma menor
porcentagem de menções, configuram parcela considerável das atividades
desenvolvidas pelos internautas, já que atingiram esse percentual em sua primeira
aparição na pesquisa.
Outro fator que apresenta forte tendência de crescimento é o de habilidades
relacionadas ao uso da internet. A habilidade com maior percentual declarado é a de
“usar um mecanismo de busca de informações” com 37%, mas o ponto importante
aqui é o crescimento das práticas colaborativas, onde a habilidade de “criar uma
página na Web” teve um crescimento de 5 pontos, passando dos estáveis 6% em
2007 para 11% em 2008.
4-8 Habilidades relacionadas ao uso da internet
Fonte: TIC Domicílios 2008 (CETIC.br, 2009)
Conforme
análise
dos
dados
apresentados,
podemos
considerar
o
crescimento das práticas colaborativas dentro da também crescente parcela dos
brasileiros que possuem acesso à internet, seja este em casa ou nas lan houses. O
que não se pode deixar de perceber, é que mesmo diante desse crescimento, esta
110
ainda é uma parcela que não representa a totalidade dos brasileiros. Da mesma
forma, faz-se necessário ressaltar a distância entre as pessoas por trás dos dados
aqui apresentados e sua parcela complementar: os brasileiros que não possuem
computadores, nem tão pouco acesso à internet.
Tenhamos em mente que estamos falando de uma nova elite global, “a qual,
sempre que viaja (e ela viaja muito, seja por avião ou na rede mundial de
computadores), encontra outros membros da mesma elite global que falam a mesma
língua e se preocupam com as mesmas coisas.” (BAUMAN, [2004] 2005, p. 103).
A atitude em relação às coisas pertinente aos que fazem parte dessa elite é o
que se procura evidenciar no processo dessa dissertação, mostrando um extremo
que não faz parte da realidade da grande maioria da população mundial, e que
mesmo que fosse desejado por ela, não seria
uma atitude fácil de adotar para a grande maioria dos habitantes do planeta que
permanece presa ao local de nascimento e, se desejasse ir para outros lugares em
busca de uma vida melhor ou simplesmente diferente, seria detido na fronteira mais
próxima, confinada em campos para “imigrantes ilegais” ou “enviada de volta para
casa”. Essa maioria é excluída do banquete mundial. Para ela não existe “bazar
multicultural”. (BAUMAN, [2004] 2005, p. 103)
Não estamos tratando da maioria, nem mesmo de conceitos que possam ser
replicados em grande escala. Se assim o fossem, certamente seriam reconfigurados
pela amplitude de suas implicações.
4.7.5 CIBER-REPRESENTAÇÃO
A
imagem
pública
dissociada
do
entendimento
sobre
sua
própria
individualidade não é mais exclusividade de poucos famosos que lidam com a
dualidade de uma imagem pública distinta de sua imagem privada. Esse
desequilíbrio é vivenciado quando “brincamos com diferentes aspectos do nosso eu”
111
(TURKLE, 2006, p. 291) nas nossas ciber-representações em diversas plataformas
de redes sociais.
Se até hoje o reconhecimento estava relacionado à associação de um rosto a um
nome, na Cibercultura este aspecto é transferido ao perfil de usuário. Não importando
se este perfil é de uma pessoa real, se esta vive ou já morreu ou se quer ser
reconhecida, a carga de identidade de um indivíduo outrora carregada nele mesmo é
agora descarregada no ciberespaço. Estes perfis criados por nós mesmos nas
plataformas que permitem interação social são denominados ciber-representações.
(VIANA, Música Digital e Ciber-representação: as redes sociais na web 2.0, 2009b, p.
9)
Com a circulação das nossas informações pessoais no espaço da internet
como “condição de existência e de participação numa comunidade virtual
(MOSCOVICI, 2006, p. 78), necessitamos das ciber-representações para concentrar
as informações a nosso respeito. Mas a nossa existência nessa realidade não está
restrita à participação dos usuários com um único perfil. Muitos deles utilizam ciberrepresentações distintas para cada uma de suas ditas personalidades. No caso das
plataformas musicais, muitos se conectam ao sistema com ciber-representações
diferentes dependendo do que vão ouvir naquele momento. O que seria considerado
como patologia nos laços sociais da vida off-line é considerado como corriqueiro e
sem importância dentro do ciberespaço quando:
editamos e transferimos tudo o que diz respeito a nós mesmos ao ciberespaço ao
criar nossas ciber-representações, e sociabilizamos através delas. Transferimos
nossas questões de lugar. Descarregamos mais do que nossa identidade. (VIANA,
Música Digital e Ciber-representação: as redes sociais na web 2.0, 2009b, p. 9)
A falta de coerência entre as diversas representações dentro de uma
plataforma é fato, tal qual a existência de diferenças entre as ciber-representações
de um mesmo indivíduo em plataformas sociais diferentes. Da mesma forma como
exercemos papéis sociais distintos de acordo com o ambiente em que nos
112
encontramos e com os indivíduos com quem nos relacionamos, temos diferentes
representações em diferentes plataformas online.
O sentimento de pertencimento vivido em relação às comunidades substitui a
relação face a face, e a ciber-representação define o espaço público e o lugar
(ciberespaço) compartilhado por um grupo (MOSCOVICI, 2006, p. 79). A nãotransitoriedade como fator fundamental da existência das comunidades virtuais
(TURKLE, 2006, p. 287) é vencida dentro do ciberespaço pelos laços de interesses,
neste caso musicais, quando “brincamos com diferentes aspectos do nosso eu”
(TURKLE, 2006, p. 291)nas ciber-representações criadas por nós mesmos.
A ciber-representação nesse contexto passa a ser a representação do eu
desenvolvida por ele mesmo dentro das plataformas de redes sociais, com as
ferramentas disponibilizadas por estas.
É a partir da ciber-representação – e não da pessoa em si – que se dá toda a
troca desenvolvida entre as pessoas no ciberespaço. Isso acarreta dizer que nem
tudo o que as pessoas são está envolvido nessas trocas. Quando o contato é
através de perfis em plataformas sociais e não através de pessoas, ficamos
reduzidos àquilo que a plataforma permite que seja mostrado ou revelado. É claro
que hoje em dia, devido à profusão de plataformas de redes sociais, tendemos a
revelar diferentes coisas em diferentes plataformas, e também a nos relacionar
através de várias delas. Mas mesmo assim, estamos restritos a comunicação
mediada, em todos os atos de ligação feitos através do ciberespaço.
A ciber-representação como forma de participação no ciberespaço acarreta
outra consideração: a de que produtores e consumidores precisam da mesma
ferramenta para fazer parte do conjunto. Assim, aquilo que na vida off-line
113
representa a distinção entre produtores e consumidores, precisa ser transposto para
o online para fazer sentido, o que nem sempre acontece. Assim sendo, ambos
figuram da mesma forma no ciberespaço, necessitando outras formas de distinção.
Essas formas de distinção são difíceis de serem representadas, facilitando o
contato entre ambos despidos de suas características de diferenciação. É a
padronização das ciber-representações que promove a ligação entre produtores e
consumidores, fazendo com que os papeis de ambos se misturem no ciberespaço.
4.7.6 REPUTAÇÃO ONLINE
Ao apresentar a aquisição de reputação como principal força motora para a
colaboração, discutem-se as formas de se adquirir credibilidade online e as
possibilidades de influência acerca da utilização dessa qualidade para referenciar as
recomendações pessoais online, no caminho da autonomia que se espera num
sistema econômico onde cada um de nós é a mensagem (McCONNELL & HUBA,
2008).
Nos dias de hoje, com as possibilidades de participação disponíveis como
nunca antes, as pessoas identificadas com a colaboração sentem-se livres para
utilizar seu tempo disponível em prol de algo que acreditam ou se identificam, com
diversas intenções e finalidades.
Ao apontar a colaboração como uma cultura não comercial, mas envolvida
num contexto comercial, Lessig (2004) dá subsídios para o que é definido por
McConnell e Huba (2008) como uma experiência na “microeconomia da mão-deobra”, onde o talento não funciona de graça, mas nem por isso pressupõe a falta de
remuneração. Os mesmos autores apresentam quatro razões para o motivo do
114
envolvimento das pessoas em atividades colaborativas: “altruísmo, relevância
pessoal, bem comum e status” (McCONNELL & HUBA, 2008, p. 84).
Em outro pólo, os demais autores pesquisados apresentam razões de cunho
similar às de McConnell e Huba, porém as relacionam com a posterior conversão
destas em outros valores que têm significado dentro da economia tradicional.
Resumidamente, “o objetivo é experimentar uma nova maneira de ganhar
visibilidade” (TAPSCOTT & WILLIAMS, 2007, p. 50), principalmente empregada
entre criadores de todas as áreas quando “oferecer gratuitamente conteúdo e
construir uma relação leal fazem cada vez mais parte do arsenal dos criadores na
batalha pela atenção das pessoas” (TAPSCOTT & WILLIAMS, 2007, p. 51). A
relação estabelecida entre quem colabora e quem recebe os frutos dessa
colaboração gera características de envolvimento, transformando-a em “uma
atividade de lazer com dimensão social.” (TAPSCOTT & WILLIAMS, 2007, p. 51).
Aquilo que não começa com propósitos comerciais, é impulsionado por
“expressão, diversão, experimentação”, conta com “a existência de uma moeda no
reino capaz de ser tão motivadora quanto o dinheiro: reputação” para transformar
todo o fenômeno em economia, convertendo a reputação “em outras coisas de valor:
trabalho, estabilidade, público e ofertas lucrativas de todos os tipos.” (ANDERSON,
2006, p. 71).
De acordo com Tapscott e Williams, o fato da remuneração pela participação
não ser direta e não resultar em valor monetário, “não significa que elas não se
beneficiem de sua participação de outra maneira” (TAPSCOTT & WILLIAMS, 2007,
p. 90). Os autores afirmam que “as motivações para participar são, em última
instância, muito mais complexas que divertimento e altruísmo” (TAPSCOTT &
115
WILLIAMS, 2007, p. 92), e estão muito mais relacionadas à experiência, conexões e
status, que por sua vez “pode ser algo de grande valor em suas carreiras”.
Embora o reconhecimento social possa ser considerado como o grande
motivador da participação e por conseqüência, da criação de valor por parte de cada
indivíduo, é necessário considerar que em contrapartida, a possibilidade de
participar é democrática o suficiente para possibilitar voz àqueles que antes não a
tinham.
A reputação online pode ser conseguida de diferentes formas. Jenkins aponta
que as formas legítimas de ser reconhecido com credibilidade dentro de uma
comunidade virtual, transitam entre a quantidade de trabalho e de tempo dedicado
ao grupo, bem como a qualidade e a confiabilidade desse trabalho colaborativo
(JENKINS H. , 2006, p. 34).
Bowman e Willis (2003) apontam outras qualidades dentre os participantes de
comunidades que podem remeter à confiança e credibilidade são: igualdade,
intimidade, paixão, velocidade nas comunicações, e a facilidade de acesso aos
mecanismos de participação. Como parte dos problemas acerca da reputação, os
mesmos autores apontam a falta de portabilidade das identidades online:
um problema com a reputação online é a falta de portabilidade das identidades
virtuais (e reputações) entre os sistemas. Por exemplo, se você constrói uma
reputação positiva como vendedor no eBay ou Slashdot, isso não pode ser transferido
para outros ambientes virtuais (BOWMAN & WILLIS, 2003, p. 44)
Entretanto, a falta de portabilidade não corresponde a um impeditivo ao
desenvolvimento da ciber-reputação, pois esta, mesmo que exclusivamente
pertencente a uma única plataforma, é válida.
Assim, impelidos a colaborar, toda uma geração de consumidores
participativos disponibiliza suas idéias e troca influências com seus artistas
116
preferidos dentro das plataformas de redes sociais, quando num grau mínimo de
engajamento. Os mais arrojados fazem o movimento inverso, e se voltam também
para a produção, quando o contato com produtores mais desenvolvidos faz com que
eles desenvolvam suas habilidades, como no caso do que resulta em todo o “funk de
apartamento” existente hoje na rede de computadores.
117
Há um mundo inteiro que pode ser extraído de um simples som.
Brian Eno
118
5
CONSUMO
E
O
MERCADO
DO
FUNK:
PARTICIPAÇÃO
E
DESINTERMEDIAÇÃO
A Web em sua segunda geração, a dita Web 2.0, tem por característica
principal potencializar a coletividade dos processos de trabalho de fronteiras não
demarcadas. Hoje o termo Web 2.0 está consolidado, mas há ainda quem acredite
ser um termo estratégico de marketing, termo da moda e sem sentido. Por outro lado
há os que a consideram um novo paradigma. Segundo Tim O´Reilly, criador do
termo:
Web 2.0 é a mudança para uma internet como plataforma, e um entendimento das
regras para obter sucesso nesta nova plataforma. Entre outras, a regra mais
importante é desenvolver aplicativos que aproveitem os efeitos de rede para se
tornarem melhores quanto mais são usados pelas pessoas, aproveitando a
inteligência coletiva (O´REILLY, 2005)
Contrapondo o pensamento mercadológico, temos a definição de Alex Primo,
oriunda de sua vasta pesquisa na área da comunicação:
A segunda geração de serviços online e caracteriza-se por potencializar as formas de
publicação, compartilhamento e organização de informações, além de ampliar os
espaços para a interação entre os participantes do processo. A Web 2.0 refere-se não
apenas a uma combinação de técnicas informáticas (serviços Web, linguagem Ajax,
Web syndication etc.), mas também a um determinado período tecnológico, a um
conjunto de novas estratégias mercadológicas e a processos de comunicação
mediados pelo computador. (PRIMO, 2007, p. 1)
O aspecto importante a ser ressaltado das definições de Web 2.0, sejam elas
acadêmicas ou mercadológicas, é seu caráter social, pois “a troca, a base afetiva do
sentimento de pertencimento inerente às comunidades virtuais e à interação online
como um todo é o que fundamenta a denominação de Web Colaborativa” (VIANA,
Música Digital e Ciber-representação: as redes sociais na web 2.0, 2009b, p. 4). É a
partir do caráter de plataforma definido por O’Reilly e defendido por Primo que a
colaboração e a participação são reafirmadas.
119
Conforme esse entendimento, não se pode lutar contra a internet e sim
pensar como ela funciona e trabalhar em aplicativos que aproveitem melhor o que
ela tem a oferecer, livre das restrições da era onde era necessário instalar
programas para se conseguir as funcionalidades que hoje são possíveis pelo seu
caráter de plataforma. O desenho padrão para Web 2.0 em aplicativos que a
qualificam como colaborativa segue determinados pressupostos e regras anteriores
e é a solução arquitetural para construção de um efetivo e funcional aplicativo
colaborativo.
Formada por aplicações com base no trabalho colaborativo e nas redes
sociais, a principal mudança da Web 2.0 está na forma como os usuários encaram
as informações e em conseqüência a própria Web, que passa a ser vista como um
espaço comum, visão esta que confere o sentimento de pertencimento desenvolvido
pelos integrantes de comunidades virtuais e redes sociais.
Enquanto na Web 1.0 as organizações de dados eram feitas através da
taxonomia, um mecanismo baseado na biologia que surgiu para determinar
categorias de seres vivos, na Web 2.0 esse trabalho de categorização é
desenvolvido pelos próprios usuários, num sistema de folksonomia46, uma forma de
organização e categorização da informação feita pelas pessoas, dentro dos
aplicativos da rede.
Poderíamos dizer que a folksonomia é uma espécie de vocabulário descontrolado.
Isso não quer dizer que o esquema seja uma desordem total, (...) Na verdade, tratase de um mecanismo de representação, organização e recuperação de informações
que não é feito por especialistas anônimos, o que muitas vezes pode limitar a busca
por não trazer determinadas palavras-chave, mas sim um modo onde os próprios
indivíduos que buscam informação na rede ficam livres para representá-la, organizála e recuperá-la, realizando estas ações com base no senso comum e tendo assim
46
Expressão cunhada por Thomas Vander Wall. Numa analogia ao termo “taxonomia”, a folksonomia
é uma maneira de se organizar a informação de forma participativa e do linguajar natural da
comunidade que a utiliza.
120
um novo leque de opções ao efetuar uma pesquisa para encontrar algum dado.
(AQUINO, 2007, p. 10)
O princípio da folksonomia é de não hierarquia, feito através de um
etiquetamento das informações, classificadas colaborativa e coletivamente. Essas
etiquetas, as chamadas “tags” podem ser definidas como metadados ou metainformação, informações anexadas às próprias informações. Este processo de
folksonomia é semântico, onde computadores e pessoas trabalham em cooperação,
numa Web que interliga significados de palavras promovendo um sentido aos
conteúdos publicados na rede, aumentando a qualidade do resultado das
ferramentas de busca através da contextualização da informação e da resolução do
que possa parecer ou ter duplo sentido em uma informação.
Dentro desse novo contexto da Web emerge uma nova forma de representação,
organização e recuperação de informações que funciona com base no hipertexto,
subverte antigas formas de taxonomia e converge com os ideais de cooperação
derivados da noção de Web 2.0. (AQUINO, 2007, p. 3)
Desta maneira podemos apontar como vantagens deste novo mecanismo o
uso da coletividade na categorização das informações, os computadores
reconhecerem palavras pelo seu significado e a informação ser criada sem nenhum
tipo de determinação ou interferência, apenas direcionada pelos próprios usuários.
A colaboração é uma das características inerentes a quinta fase de
desenvolvimento tecnológico da indústria fonográfica aqui proposta. A inserção do
consumidor nas etapas de produção e de distribuição da música através da
mediação do computador coloca, como já apontado, consumidores e produtores
dentro das mesmas plataformas de participação.
A participação no caso dos consumidores se dá em diversos níveis. Alguns
deles como já citado acabam se transformando em produtores amadores, ou até
121
mesmo conseguindo reconhecimento para deixarem a condição de consumidores
permanentemente. Outros, simplesmente pelo fato de terem as mesmas
possibilidades de visualização que seus ídolos, acabam chamando a atenção destes
e se tornando colaboradores no sentido de prover opiniões, idéias ou matéria-prima
para os produtores em conversas informais ou até mesmo dentro de sistemas
planejados para essa finalidade.
Em última instância, os consumidores colaboram com suas opiniões
particulares publicadas dentro de plataformas de redes sociais, quando essas são
observadas pelos produtores mesmo estando estes sem contato direto como
material de pesquisa de opinião.
Quando o consumidor passa a coabitar a mesma plataforma que o produtor,
temos como desdobramento, uma nova hierarquia de produção e de distribuição, já
que a aproximação entre eles é inevitável. Ainda como resultado dessa
aproximação, temos a formação de uma nova lógica de mercado, onde surgem
novas funções, enquanto outras desaparecem, invertendo ou anulando papéis no
cenário da música.
5.1 A MUDANÇA DOS MERCADOS
O que é que alguns estão dispostos a comprar, e outros a vender, que não é
forçosamente a mesma coisa?
Gilles Deleuze
Os modelos de participação adotados pelas organizações como forma de
produzir um diferencial apresentam outras vantagens, principalmente no que tange à
redução de custos e agilidade nas inovações. Conforme apontado por Tapscott e
122
Williams, os principais benefícios do que é por eles chamado de peering47 para as
empresas são: “utilizar talento externo; não ficar atrás dos usuários; aumentar a
demanda por ofertas complementares; reduzir custos; mudar o lócus da competição;
eliminar o atrito da colaboração e desenvolver capital social.” (TAPSCOTT &
WILLIAMS, 2007, pp. 120,121).
A disponibilidade tecnológica propicia a colaboração, definindo um “novo
modelo de inovação e criação de valor” onde “grupos de pessoas e empresas
colaboram de forma aberta para impulsionar a inovação e o crescimento de seus
ramos.” (TAPSCOTT & WILLIAMS, 2007)
Esse é o caso das plataformas de interação social como o MySpace48 ou o
Last.FM49, locais no ciberespaço através dos quais a prática do peering cria uma
espécie de “rebelião” impulsionando inovações que podem configurar “ameaças
terríveis aos modelos de negócios existentes”, principalmente nos segmentos de
música e entretenimento (TAPSCOTT & WILLIAMS, 2007)
Todas estas vantagens juntas acabam por alterar os modelos de negócios
resultantes desta nova relação.
Partindo do uso das tecnologias digitais, temos o rompimento da unificação de gostos
e costumes outrora impostos pela indústria cultural, permitindo novas formas de
trabalho que conseqüentemente geram outras formas de organização, armazenagem,
distribuição e consumo, diminuindo o abismo existente entre as organizações e seus
respectivos consumidores. (NATAL & VIANA, 2008b, p. 10)
47
Peering poderia ser definido como sendo a colaboração em massa feita através de conexões
diretas entre usuários dentro do ciberespaço. Provém do termo peer-to-peer, que significa
estritamente a conexão de um usuário com outro através da rede de computadores.
48
http://www.myspace.com
49
http://www.last.fm
123
Como apontado pelos autores, “a partir de uma perspectiva estratégica, essa
abordagem do peering é uma forma de terceirização colaborativa.” (TAPSCOTT &
WILLIAMS, 2007, p. 106).
O remanejo do consumo em diversos segmentos a partir da redução ou eliminação
do custo de distribuição, logística e comercialização dos produtos industrializados
quando estes adentram o ciberespaço e passam a ser tratados como informação
provoca uma reestruturação da economia mundial que em determinados segmentos
pode até inviabilizar sua continuidade lucrativa. (NATAL & VIANA, 2008b, p. 11)
Os processos de apropriação e remixagem cultural exigem uma categoria de
pessoas adaptadas para que se produzam resultados condizentes com o que se
espera da colaboração como sistema de trabalho. Isso é necessário porque “não
existem regras pré-estabelecidas dentro desse ambiente colaborativo, pois ele está
em constante desenvolvimento. As regras estão sendo criadas enquanto se cria o
próprio ambiente, e isso exige certo desprendimento daqueles que se dispõem a
participar.” (VIANA, 2009b, p. 13).
Esta categoria de pessoas caracterizada por ser uma amálgama dos
consumidores que também são produtores é definida como “prosumers”.
50.
A conversão do mercado de massa em um mercado de nichos não é
espontânea. Ela está intimamente ligada aos conceitos de peering e prosumers na
medida em que é resultado da participação. O modelo econômico decorrente, como
apontado anteriormente, é novo para as indústrias, as quais se encontram
pressionadas pelas dúvidas entre mudar ou não suas restrições e esforços outrora
necessários para estimular o consumo dos grandes sucessos.
50
Prosumer seria o consumidor que de alguma forma está relacionado com o processo de produção.
Não necessariamente este participa diretamente do processo de produção, dando opiniões aos
executivos ou de outras formas. Podem ser considerados prosumers todos os consumidores que
opinem indiretamente cujas opiniões sirvam de referencia para outros consumidores ou até mesmo
como fonte de dados de pesquisa para as próprias empresas.
124
A força motriz de todos esses consumidores não é o retorno financeiro. Muito
do que se produz no contexto da Cibercultura atualmente não tem propósito
comercial. Estamos tratando de reputação.
Os resultados compreendem obviamente a democratização do consumo.
Mas além de borrar os limites dos papéis de produtor e consumidor no contexto da
produção cibercultural, a grande importância da colaboração é que depois de ter
sido dominado por toda a sua existência, o mercado de bens de consumo é agora
“um mercado de duas mãos.” (ANDERSON, 2006, p. 82).
No paradigma que coloca o prosumer no centro, os clientes querem um papel
verdadeiro no desenvolvimento dos produtos do futuro. Mas eles simplesmente farão
isso de acordo com suas próprias regras, em suas próprias redes e para suas
próprias finalidades. Na verdade, farão isso cada vez mais sem você nem saber
(TAPSCOTT & WILLIAMS, 2007, p. 185)
O remanejo do consumo em diversos segmentos a partir da redução ou
eliminação do custo de distribuição, logística e comercialização dos produtos
industrializados quando estes adentram o ciberespaço e passam a ser tratados
como informação provoca uma reestruturação da economia mundial que em
determinados segmentos pode até inviabilizar sua continuidade lucrativa.
A comunicação de massa está voltada para os grandes sucessos. A indústria
do entretenimento procura por produtos que possam abarcar uma incrível gama de
expectadores, e grandes sucessos que podem ser considerados como “lentes
através das quais observamos nossa própria cultura” (ANDERSON, 2006, p. 1).
Esse foi o ponto marcante até agora no que ao tange nosso cotidiano, mas conforme
o conceito da “cauda longa”51 descrito por Anderson, este quadro “está desbotando
nas pontas”, com a fragmentação dos mercados em nichos cada vez menores, que
51
O artigo “The Long Tail” foi originalmente publicado na revista Wired em 2004, antes de ser
publicado como livro em 2006.
125
somados podem se tornar tão grandiosos quanto os sucessos. Ainda procuramos o
grande sucesso, mas este não é mais tão proeminente quanto costumava ser.
As plataformas sociais são a ponta do iceberg onde todos podem ver o
resultado do processo de apropriação e remixagem cultural no qual estamos
imersos.
Diversos exemplos iniciais dentro da indústria do entretenimento dão conta de
mostrar como “a colaboração em massa está virando a economia de cabeça para
baixo” (TAPSCOTT & WILLIAMS, 2007, p. 21), mas faz-se necessário aceitar que
“os interesses de produtores e consumidores não são os mesmos. Em alguns
momentos eles se sobrepõem. Em outros momentos são conflitantes”
52
(JENKINS
H. , 2006, p. 58). Embora indústria e consumidores ainda não estejam de acordo
com o que entendem como participação, e até que ponto esta deve ir, existem
desafios que escapam a esta questão, como por exemplo, o fato de que “nem todos
os consumidores têm acesso às habilidades e aos recursos necessários para
participarem integralmente nas práticas culturais.”53 (JENKINS H. , 2006, p. 23).
Segundo McConnell e Huba (2008), é uma porcentagem mínima de visitantes
que produz conteúdo, cerca de apenas um por cento do público que acessa fóruns
de discussões, blogs e afins, contribui com informações, e cerca de dez por cento
destes visitantes contribuirá com comentários, isto é, irá interagir com aquele um por
cento. Mesmo considerando esse um por cento como sendo um número baixo, este
público é formado na sua maioria por pessoas jovens, de alto grau de instrução e
interessados em novas descobertas, sociáveis e curiosos, acreditam na informação
livre e tem intenção de prover informações precisas. Os autores afirmam que “um
52
Tradução livre da autora: “the interests of producers and consumers are not the same. Sometimes
they overlap. Sometimes they conflict.”
53
Tradução livre da autora: “not all consumers have access to the skills and resources needed to be
full participants in the cultural practices”
126
público não precisa ser grande para ser influente” (McCONNELL & HUBA, 2008, p.
22), os produtores colaboradores são o núcleo sólido, e são os que ajudam a dirigir
os outros para a ação. O trabalho árduo, constante e não remunerado de
colaboração é o que proporciona e estimula credibilidade online, para pessoas,
marcas, produtos, serviços ou empresas.
A mesma pesquisa do IBOPE citada anteriormente54 apresenta dados sobre a
motivação para a utilização de tecnologias colaborativas. Em primeiro lugar, 29%
dos entrevistados afirmaram ser movidos pela diversão, enquanto 25% são
motivados pelo desenvolvimento profissional e vantagens financeiras. Outros 15%
declaram a aprendizagem e a educação como sendo sua motivação principal, e por
fim, 15% dos entrevstados são movidos por motivos como ajudar os outros ou ajudar
a comunidade.
Nessa configuração onde o “boca a boca” é amplificado pelas interações
online dos consumidores, abre-se a possibilidade de “explorar o sentimento dos
consumidores para ligar oferta e demanda” (ANDERSON, 2006, p. 105), criando
assim um relacionamento entre produtor e consumidor que proporciona a detecção
intrínseca das necessidades destes.
Hoje, o consumo assume muito mais uma dimensão pública – não mais uma questão
de escolhas e preferências pessoais, o consumo se tornou tema de discussões
públicas e deliberações coletivas; o compartilhamento de interesses comumente leva
55
a conhecimento compartilhado, visões compartilhadas e ações compartilhadas
(JENKINS H. , 2006, p. 222)
A colaboração neste contexto é feita por identificação, constituindo um hobby
de colecionador para aquele que reúne as informações a respeito de uma marca ou
54
Pesquisa realizada pelo IBOPE nos dias 20 e 21 de janeiro de 2009 no evento Campus Party.
55
Tradução livre da autora: “Today, consumption assumes a more public and collective dimension –
no longer a matter of individual choices and preferences, consumption becomes a topic of public
discussion and collective deliberation; shared interests often lead to shared knowledge, shared vision,
and shared action”
127
produto, no que pode ser chamado de “microeconomia da mão de obra”
(McCONNELL & HUBA, 2008). Paralelamente, discute-se a finalidade da
colaboração online, que segundo Anderson não tem finalidades primarias
monetárias, e sim reputação. Desta maneira surgem pessoas cujas opiniões
importam,
sejam
elas
formadoras
de
opinião
tradicionais,
como
críticos
especializados e editores, ou celebridades, dentro de suas diversas categorias.
(ANDERSON, 2006).
5.2 A INTELIGÊNCIA COLETIVA A FAVOR DO INDIVÍDUO E O CONSUMO
PARTICIPATIVO
O baixo custo e efetividade da mídia em tempo real nesse ambiente
proporcionam um declínio da mídia tradicional em detrimento do ciberespaço,
acolhedor das inteligências coletivas. Assim a alternativa é usar a dinâmica das
redes sociais e interações no ciberespaço para desenvolver ações e estratégias
midiáticas, baseadas no poder da coletividade e da reputação, levando em
consideração um ambiente em que a mensagem pode ser alterada em seus ínfimos
fragmentos, a mixagem e a reorganização são partes do processo e os signos são
reordenados. Para isso, as novas mídias terão que trabalhar com a sensibilidade
das redes formadas por ligações emotivas, autênticas e genuínas, construídas por
laços de confiança calcados na reputação de seus participantes, pois nesta cultura
cada bit de informação colabora para o incremento do coletivo:
Esse projeto convoca um novo humanismo que inclui e amplia o “conhece-te a ti
mesmo” para um “aprendamos a nos conhecer para pensar juntos”, e que generaliza
o “penso logo existo” em um “formamos uma inteligência coletiva, logo existimos
eminentemente como comunidade. (LÉVY, [1994] 2003, pp. 31-32)
128
Audiências participativas e produtoras de conteúdo são mais um conceito de
marketing e menos uma “democracia semiótica” (JENKINS H. , 2006a, p. 136),
assim os grupos auto-organizados e focados na colaboração e na produção coletiva,
nos debates, circulação de significados e interpretações da cultura contemporânea,
são o que mais nos aproxima da utópica inteligência coletiva de Lévy (JENKINS H. ,
2006a, p. 137).
Pierre Lévy define inteligência coletiva como "uma inteligência distribuída por
toda parte, incessantemente valorizada, coordenada em tempo real, que resulta em
uma mobilização efetiva das competências" ([1994] 2003, p. 28), que nas redes
sociais é sustentada por conexões entre pessoas promovidas pela tecnologia.
Baseia-se na ampliação do conhecimento e na sua distinção, principalmente
promovendo singularidades quando “sua base e objetivo são o reconhecimento e o
enriquecimento mútuo das pessoas, e não o culto de comunidades fetichizadas ou
hipostasiadas.” (LÉVY, [1994] 2003, p. 29)
O que mantém a inteligência coletiva coesa não é a possessão do conhecimento –
que é relativamente estático, mas o processo social de adquirir conhecimento - que é
dinâmico e participativo, continuamente testando e reafirmando os nós sociais do
56
grupo. (JENKINS H. , 2006, p. 54)
O ciberespaço torna-se então, um ambiente ideal para disseminação de
conhecimento e interação entre conhecedores no ciberespaço como local
desterritorializado (LÉVY, [1994] 2003). É a valorização da condição humana, de sua
técnica, sua economia, seu sistema jurídico, entre outros, que fazem da inteligência
coletiva um ideal e é pela distribuição democrática do conhecimento em “tempo real”
56
Tradução livre da autora: “what holds a collective intelligence together is not the possession of
knowledge – which is relatively static, but the social process of acquiring knowledge – which is
dynamic and participatory, continually testing and reaffirming the group´s social ties.”
129
que a mobilização das competências se efetiva, proporcionando uma dinâmica de
reconhecimento positiva pelas partes envolvidas.
Quando “nenhum de nós pode saber tudo; cada um de nós sabe alguma
coisa; e nós podemos juntar as peças se juntarmos nossos recursos e combinarmos
nossas habilidades [...] a inteligência coletiva pode ser vista como uma fonte
alternativa de poder midiático”57 (JENKINS H. , 2006, p. 4), quando tratamos o
conceito de inteligência coletiva como algo que se refere à “habilidade das
comunidades virtuais de alavancar a competência combinada de seus membros”58
(JENKINS H. , 2006, p. 27), temos que reconhecer que a balança entre os
produtores e os receptores pode ser alterada pela força coletiva das comunidades
através da utilização de um certo poder de barganha coletivo frente às grandes
indústrias.
Esta aplicação do conceito reforça e democratiza as singularidades onde
cada indivíduo é igualmente importante no contexto geral, sua opinião e seu
conhecimento só fazem incrementar o coletivo, proporcionando que outros
indivíduos ali se identifiquem e acrescentem informações. Lévy chama esta
aplicação de “engenharia do laço social” que é “a arte de suscitar coletivos
inteligentes e valorizar ao máximo a diversidade das qualidades humanas” (LÉVY,
[1994] 2003, p. 32).
Neste contexto, os saberes e o conhecimento de todos estariam em constante
devir, mixando-se e fundindo-se no coletivo. No núcleo da engenharia do laço social
está a “economia das qualidades humanas”, uma economia subjetiva cujo princípio é
57
Tradução livre da autora: “none of us can know everything; each of us knows something; and we
can put the pieces together if we pool our resources and combine our skills (…) collective Intelligence
can be seen as an alternative source of media power”
58
Tradução livre da autora: “ability of virtual communities to leverage the combined expertise of their
members”
130
que o valor está nas identidades e não nos bens, diferentemente do contexto atual
onde essas têm o valor do que possuem, fazendo com que:
as forças das mensagens, das máquinas e das variedades naturais sejam por sua
vez avaliadas, exploradas e contabilizadas segundo essa economia subjetiva, que o
valor das coisas se exprima segundo os mesmo signos que as identidades das
pessoas (e não ao contrário!), que todo o nosso ambiente volte a ser “humano”, tal é
a utopia na utopia que esboça nas entrelinhas a engenharia do laço social (LÉVY p. ,
2003, p. 32)
O poder da inteligência coletiva se dá justamente na abertura e no aumento
de produtividade que o ciberespaço dá ao trabalho coletivo, proporcionando
instrumentos de valorizações individuais, qualidade por qualidade, sem desperdício
de inteligência e conteúdo, reafirmando “reconhecimento mútuo e a sinergização das
qualidades antrópicas” (LÉVY p. , 2003, p. 57).
A fonte do poder midiático que o ciberespaço evoca, está na interação e comunicação
transversal dos membros deste coletivo, comunicação esta, desprovida de hierarquia
e recíproca, formando um tecido informacional e comunicacional fundamentado no
laço de cada um com todos. (NATAL & VIANA, 2008c, p. 3)
Este respeito ao subjetivo e ao humano é o que, para Lévy, transforma as
diversidades em sociabilidade:
a inteligência coletiva não é um conceito exclusivamente cognitivo. Inteligência deve
ser compreendida aqui como na expressão ‘trabalhar em comum acordo’ (...) Trata-se
de uma abordagem de caráter bem geral da vida em sociedade e de seu possível
futuro. (...) Essa visão de futuro organiza-se em torno de dois eixos complementares:
o da renovação do laço social por intermédio do conhecimento e o da inteligência
coletiva propriamente dita. (LÉVY p. , 2003, p. 26)
Jenkins (2006b) define cultura participativa como a que não possui barreiras
para livre expressão artística ou engajamento cívico, um ambiente onde se é
encorajado e não se tem receio de compartilhar suas criações ou as de outros com
terceiros. Os “mentores” informais passam o que é de conhecimento de todos aos
novatos. Todos os membros acreditam que sua participação é relevante, sentindo
certo grau de conexão social uns com os outros e se importando com o que outros
131
membros pensam a respeito de cada contribuição criada. Não são todos os
membros que contribuem, mas todos devem acreditar que são livres para contribuir
quando quiserem e que esta contribuição será válida para todos. Para Jenkins as
comunidades desta cultura por elas mesmas são incentivo à criatividade e a
participação ativa.
5.3 A CONDIÇÃO DO FÃ COMO PRODUTOR DE CONTEÚDO
Considerando a cultura como ato coletivo de cultivar, tratamos o ser hipermediado (BOLTER & GRUSIN, 2000) como aquele que colhe a informação na
Cibercultura e a partir de quem se estabelecem as relações da rede associadas a
interesses em comum.
Sua importância se dá com a nova estruturação dos mercados onde as interações
realizadas no ciberespaço tomam grandes proporções e os locais onde estas
acontecem, passam de pontos de encontro a praças férteis para a busca de
informações e conteúdo. (NATAL & VIANA, 2008, p. 1)
A visão dotada de múltiplos e simultâneos pontos de vista do ser hipermediado o define justamente pela “tensão entre pontos de vista competitivos”
(BOLTER & GRUSIN, 2000, p. 257), fazendo dele um colecionador destes pontos de
vista.
É esse ser hiper-mediado que ocupa a condição de fã no ciberespaço ao
produzir e colecionar conteúdo, quando emprega seu tempo livre reunindo
informações online a respeito de seus hobbies, ou remixando conteúdo original na
condição de amador:
A Web representa um espaço de experimentação e inovação, onde os amadores
testam o terreno, desenvolvem novas práticas, temas, e geram material que pode vir
a atrair seguidores nos seus próprios termos. (...) Em tal mundo, o trabalho dos fãs
132
não pode mais ser entendido como um simples derivado do material das mídias de
massa, mas devem ser entendidos eles mesmos como aberturas para a apropriação
59
e remixagem pela indústria da mídia (JENKINS H. , 2006, p. 148)
Ao colecionar conteúdo, o fã proporciona maior relevância ao que seleciona, e
cria pontos focais no ciberespaço, como praças de idéias, as chamadas “ideágoras”
(TAPSCOTT & WILLIAMS, 2007). A notoriedade dessas praças de conteúdo e das
próprias pessoas envolvidas nas dinâmicas, bem como a rede formada entre elas
através do engajamento participativo, passa a influenciar ou até mesmo transformar
todo o cenário de atuação da propaganda e do marketing. Neste contexto, “as
pessoas são o antídoto à realidade injetada na cultura do dia-a-dia” (McCONNELL &
HUBA, 2008, p. 20), transformando-se na mensagem e multiplicando o seu poder
individual, dando a cada participante do processo o status de formador de opinião,
que este acumula ao seu papel de cidadão, pois “esses novos formadores de
preferência não são uma super-elite, cujos componentes são melhores do que nós.
Eles são nós. (...) Os novos formadores de preferências são simplesmente as
pessoas cujas opiniões são respeitadas.” (ANDERSON, 2006, p. 105).
Ao definir o fã no contexto da Cibercultura a partir dos pressupostos de
interação característicos do ser hiper-mediado, precisamos considerar que nem
sempre os estudos a respeito da cultura de fãs, principalmente de grupos
específicos deles, foram tratados com credibilidade. Em outros momentos, “os fãs
operavam de forma marginal na nossa cultura, ridicularizados na mídia,
estigmatizados socialmente, relegados ao underground por ameaças legais, e
59
Tradução livre da autora: “the web represents a site of experimentation and innovation where
amateurs test the waters, develop new practices, themes, and generating materials that may well
attract cult followings on their own terms. (…) In such a world, fan works can no longer be understood
as simply derivate of mainstream material, but must be understood as themselves open to
appropriation and reworking by the media industries.”
133
freqüentemente classificados como limitados e não articulados”60 (JENKINS H. ,
2006a, p. 1).
Henry Jenkins (2006) descreve o momento atual colocando o fã num ponto
central na dinâmica da cultura. Para o autor, as novas tecnologias propiciam ao fã
formas inusitadas de apropriação da informação, fazendo com que este participe,
organize e produza conteúdo. Ao contrário de participante de uma cultura marginal,
atuar na Cibercultura faz do fã um indivíduo engajado, pró- ativo e criativo, além de
assunto central em disciplinas e pesquisas acadêmicas, pois “durante a última
década, a Web trouxe esses consumidores das margens da indústria da mídia para
o ponto focal; a pesquisa da cultura dos fãs foi abraçada por importantes
pensadores dentro das áreas legais e nas comunidades de negócios”61 (JENKINS,
2006, p. 246).
As características do fã como produtor de conteúdo são as mesmas dos
consumidores participativos, haja vista que a motivação para a colaboração de
ambos tem as mesmas bases: “eles fogem à média e são levados pela paixão,
criatividade e por uma noção de dever” (McCONNELL & HUBA, 2008, p. 3).
A cultura do fã nos ajuda e ensina a colaborar e conviver dentro de uma
comunidade. Na Web esta cultura ganha notoriedade e visibilidade por proporcionar
trocas intelectuais, distribuição de informação a partir do engajamento. A rapidez na
troca destas informações e sua freqüência colaboram no estreitamento de laços
entre os membros, fortificando a comunidade. O compartilhamento de informações é
Tradução livre da autora: “fans where marginal to operations of our culture, ridiculed in the media,
shrouded with social stigma, pushed underground by legal threats, and often depicted as brainless
and inarticulate”
60
61
Tradução livre da autora: “across the past decade, the Web has brought these consumers from the
margins of the media industry into the spotlight; research into fandom has been embraced by
important thinkers in the legal and business communities”
134
umas das condições de ser fã neste contexto, pois um só fã não consegue obter
todas as informações necessárias para a completa apreciação de seu objeto
(JENKINS H. , 2006a).
O fã no contexto da Cibercultura é um usuário precoce das tecnologias e as
usa diariamente, atualizando suas contribuições de forma intensa.
São indivíduos receptivos e preocupados com o monitoramento e reputação de sua
rede, capazes de desenvolver uma ética e lógica internas, para manter a integridade
e relevância de sua comunidade. Têm a característica de disponibilizar e compartilhar
conteúdos, o que socialmente cria algo muito maior que a simples soma das partes.
Outra característica importante é o potencial de consumo do fã, na proporção em que
sua comunidade ganha relevância e as trocas de informação aceleram, o poder da
mobilização para o consumo aumenta. (NATAL & VIANA, 2008, p. 7)
Com o aumento das comunidades de fãs, esta atividade passa da
obscuridade para o ponto focal, fazendo com que corporações se preocupem em
proporcionar plataformas para o encontro dos fãs e consumidores, abrindo assim
espaços de diálogo. A fidelidade e paixão que envolve a condição deste fã é material
rico e ajuda na longevidade das linhas de produtos.
Numa mistura entre lazer e produção, a participação do fã que tem seu hobby
de colecionador de conteúdo como ferramenta para validar sua participação em
estâncias tanto da vida profissional, quanto da vida pessoal, funciona paralelamente
como forma de reafirmar sua identidade.
Além de motivos referentes à criação como estímulo para a vida diária, as
razões que impelem o fã a colecionar conteúdo para afirmar seu hobby, passam por
questões referentes à produção em massa, que “democratizou o ato de colecionar
criando objetos que por serem muito comuns asseguravam que se tornariam
escassos
porque
geralmente
eram
feitos
para
serem
jogados
fora.
Os
135
colecionadores resgataram objetos do lixo e criaram valor, inventando conjuntos
onde podiam encaixá-los” (GELBER, apud McCONNELL & HUBA, 2008, p. 82).
O hobby de colecionar na Cibercultura apresenta a mesma característica, pois
os fãs além de reunir objetos ou conteúdo, criam espaços para a apreciação dos
mesmo onde estes passam a ter sentido. É a través desses espaços criados para
apresentação do resultado sempre em curso de seu trabalho que o ato de colecionar
faz sentido.
5.4 O VIÉS ECONÔMICO DO FUNK
Considerando o funk como sendo um fenômeno de massa e da massa,
precisamos considerar seus desdobramentos como produto de massa. Depois de
todo o seu processo de nacionalização, iniciou-se o processo de formação de uma
cadeia produtiva derivada da formação de um novo mercado de consumo. Como
manifestação cultural, o funk se torna objeto de consumo quando adentra o campo
da indústria fonográfica, seja ela tradicional ou desintermediada, quando “integrado
ao mercado, o funk não deixa de estar também integrado a um intenso circuito de
trocas simbólicas, a uma rede de reciprocidade.” (SOUTO, 1997, p. 32).
Como mercado híbrido, a informalidade percorre todas as instâncias do
segmento, o que ocasiona um certo descaso para com a movimentação econômica
desencadeada pela produção, circulação e consumo do funk, ao considerar que este
não seria importante a ponto de movimentar parcela significativa de atenção por
parte de instituições de pesquisa e departamentos governamentais preocupados em
fazer levantamentos a respeito:
Pouca ou nenhuma importância tem sido dada à economia do funk. Assim, se
desconhece o montante de ocupação por ela gerado, as diferentes fontes de
136
captação de recursos e o quantum arrecadado em cada uma, a distribuição destes
recursos entre os diferentes agentes, suas formas de capitalização. (SOUTO, 1997,
p. 62)
Este quadro vem mudando nos últimos anos, principalmente entre os
institutos de pesquisa. Recentemente, a Fundação Getúlio Vargas publicou pesquisa
sobre o mercado do funk, realizada pelo seu “FGV Opinião”, núcleo de pesquisa
social aplicada do CPDOC/FGV62, com a proposta de diminuir o descompasso entre
a academia e o mercado privado na pesquisa social63.
A pesquisa intitulada “Configurações do Mercado do Funk no Rio de Janeiro”
buscou:
Mapear e compreender as relações sociais que dão sustentação à produção Funk na
Região Metropolitana do Rio de Janeiro; Levantar dados socioeconômicos sobre os
agentes e segmentos que compõem esta rede produtiva; Observar os impactos
socioeconômicos e culturais sobre os agentes envolvidos na produção da música
Funk, bem como a própria atuação destes agentes enquanto produtores deste gênero
musical. (CPDOC/FGV, 2008, p. 6)
Como resultado principal, a pesquisa levantou o montante movimentado pelos
negócios relacionados diretamente ao funk, dentro da região metropolitana do Rio
de Janeiro, apontando um faturamento mensal de dez milhões de reais, entre renda
das bilheterias dos bailes, salários e cachês de DJs e MCs e comércio informal dos
camelôs.
É o trânsito entre o morro e o asfalto que serve como base para o
desenvolvimento do funk como mercado de consumo. Quando o funk deixa de estar
62
Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea e do Brasil
63
De acordo com o que consta no site da FGV Opinião, “Na academia há um desenvolvimento
dinâmico de tecnologia de pesquisa social, contudo, ele é mais voltado para o conhecimento em si do
que para a aplicação. No setor privado, há uma grande preocupação com a aplicação e a utilidade
dos resultados, mas, o horizonte de curto prazo de suas pesquisas não permite a incorporação de
tecnologias
mais
sofisticadas.”
Texto
completo
disponível
em:
http://www.cpdoc.fgv.br/fgvopiniao/htm/apresentacao.htm
137
concentrado num mercado restrito, sua notoriedade passa a ser diretamente
conectada ao seu consumo, desencadeando trocas simbólicas:
Tal passagem só se tornou possível porque os grupos ligados ao funk deixaram de
ser apenas produtores e consumidores de bailes para se transformarem em
produtores e consumidores de uma nova e mais ampla rede de produção e
comercialização, configurando o que apropriadamente se poderia chamar de uma
invenção de mercado. (SOUTO, 1997, p. 60)
As oportunidades derivadas da transformação do funk em mercado
beneficiam principalmente o centro do movimento, considerando que essa
organização se deu de dentro para fora, “à margem dos interstícios do sistema, ou
seja, que não foi impulsionada nem pela lógica empresarial nem sob a tutela do
Estado.” (SOUTO, 1997, p. 62).
Tendo como ponto de partida a periferia e as camadas pobres da sociedade,
“a produção e a disseminação de seus produtos permanecem, em grande medida,
nas mãos de produtores ligados historicamente à tradição dos bailes do subúrbio”
(SOUTO, 1997, p. 64):
Assim, se a escala do mercado se amplia, projetando nomes impulsionando carreiras
e multiplicando as oportunidades econômicas abertas pelo mundo funk, a
manutenção dos bailes naqueles locais faz com que o recrutamento dos quadros
profissionais se dê basicamente junto às próprias camadas de baixa renda (SOUTO,
1997, p. 64)
Portanto, quanto mais o funk é reconhecido como sendo de certa origem,
mais ele tende a ser notado dessa forma pela hierarquia de transmissão de
informações e formação de novos artistas, seja dentro da periferia carioca, seja nas
salas da classe média intermediada por computador.
5.5 MUDANÇAS NA CADEIA PRODUTIVA
138
Existem divergências entre as formas de organização e produção direta e
indireta dos bailes funk, que ainda hoje são considerados o ponto de partida para
tudo o que obtém sucesso. É a produção de bailes que movimenta a produção dos
outros segmentos do mercado, tanto na parte de produção e distribuição de músicas
quanto na formação de novos talentos.
A pesquisa do CPDOC/FGV aponta que ainda existem dois tipos de bailes: os
bailes de comunidades e os bailes dos clubes, de onde eles são originários. Os
bailes mais fortes são apontados como sendo os de comunidades, por estarem mais
próximos ao público e terem mais relação com as pessoas das localidades. Da
mesma forma, os bailes de comunidade são importantes para os novos DJs e MCs,
por acontecerem perto da comunidade e serem a porta de entrada para novos
talentos. Mesmo assim, o baile vem perdendo prestígio por ocupar um local entre o
tráfico e a polícia (CPDOC/FGV, 2008, p. 10).
As músicas, de acordo com a pesquisa, também são compostas para atender
ao público dos bailes de comunidades, pois “acredita-se que uma música só pode
fazer sucesso se “estourar” no baile de comunidade” (CPDOC/FGV, 2008, p. 10).
No modo tradicional de produção do baile, os produtores são responsáveis
pelas questões práticas da organização, além da contratação da equipe que ficará
responsável pela execução técnica do evento, conforme organograma a seguir:
139
5-1 Produção do baile: modo tradicional
5Fonte: CPDOC/FGV
Já no modo onde as equipes são diretamente responsáveis pelo baile, o
produtor não encontra espaço para intermediar a organização, e as equipes ficam
responsáveis por toda a produção, abarcando as tarefas dos produtores, conforme o
organograma a seguir:
140
5-2 Produção do Baile: modo das equipes
5Fonte: CPDOC/FGV
A pesquisa do CPDOC/FGV aponta a tendência de unificação de forças
dentro da organização dos bailes de comunidades, onde além de retomar a
configuração anterior onde os produtores eram responsáveis pela organização do
evento, passam a contratar além das equipes, outros profissionais, Djs e MCs para
que estes integrem o quadro de apresentações dos bailes, abrindo cada vez mais
oportunidades aos novatos e iniciantes que antes precisavam integrar as equipes
para terem espaço dentro dos bailes:
141
5-3 Produção do baile: tendência
5Fonte: CPDOC/FGV
Dentre os papéis desempenhados pelas pessoas envolvidas o DJ é a
personagem que vem ganhando maior destaque através dos tempos, acumulando
funções e se profissionalizando para atender ao mercado em formação e as diversas
necessidades que surgiram durante seu desenvolvimento. Ao lado dos produtores
de som, “integram desde o início este mercado” (SOUTO, 1997, p. 64). Eles
acumulam papéis de “empresários, produtores de eventos, apresentadores de
programas de rádio e produtores musicais” (CPDOC/FGV, 2008, p. 17), e são os
responsáveis
“pelas
maiores
inovações
sonoras
no
mercado
do
funk.”
(CPDOC/FGV, 2008, p. 17).
Alguns DJs mais importantes formaram com o passar do tempo uma rede de
criação que integra diversas funções e promovem um crescimento do mercado
enquanto desenvolvem seu trabalho de forma colaborativa, como o DJ Marlboro:
142
Hoje eu tenho uma equipe de produção. Várias pessoas que trabalham comigo.(...)
vou produzindo a distância, orientando os produtores como eles devem fazer dentro
dos estúdios. Às vezes uma música é refeita dez, quinze vezes até ficar como eu
quero que seja feita. (MATTA, 2009)
Os reprodutores, comerciantes formais e informais do material produzido são
também integrantes de uma categoria presente no mercado do funk desde seu
início, mas que mudou de foco e de escopo de atividades com o passar do tempo.
No início, eles compunham um “mercado informal de compra, venda, reprodução e
troca de discos” (SOUTO, 1997, p. 65). No início, esse era um trabalho basicamente
realizado pelos DJs, que em viagem lotavam suas bagagens com discos importados
que movimentavam trocas e compras num mercado informal de negociação. Após a
nacionalização do funk, o comércio dos discos trocou de mãos, e as produções
brasileiras passaram a ser comercializadas por intermediários locais, desenvolvendo
uma nova categoria de intermediação de venda para os discos nacionais.
A partir das inovações tecnológicas e das possibilidades de reprodução
facilitadas pela pirataria, esta função de intermediário acaba se transformando,
quando cai na mão dos fornecedores de cópias ilegais. Assim, o mercado de
consumo do funk, que era restrito aos operadores de som e DJs, passa a ter a
possibilidade de chegar ao público final, que antes só tinha acesso às músicas
quando ia ao baile e as ouvia nas apresentações dos DJs. Dentro dessa dinâmica,
foi incluído no mercado do funk a figura do camelô, responsável por comercializar o
material ilegal oriundo de cópias
Neste ponto, a tecnologia ocupa papel importantíssimo no desenvolvimento
deste mercado, pelo menos no que tange à incorporação do consumo por parte do
usuário final e na comercialização ilegal do material produzido pelos DJS e
produtores de som.
143
Outro papel do mercado do funk foi derivado da nacionalização do segmento,
quando:
O “abrasileiramento” do funk permitiu introduzir, também, uma nova categoria de
profissionais, hoje certamente a de maior visibilidade social e a de maior poder de
atração sobre os jovens: a dos Masters of Ceremony – MCs -, misto de
cantores/compositores, que se apresentam individualmente ou em duplas. (SOUTO,
1997, p. 66)
Em parceria com os DJs, os MCs adentram o mercado do funk incorporando
seu trabalho às equipes de produção, vinculando suas apresentações a ambos. Sua
origem é sempre ligada à sua comunidade:
A trajetória dos MCs geralmente se inicia em suas comunidades de origem, onde
compõem e apresentam suas músicas para amigos e começam a se tornar
conhecidos em festas e bailes locais. (SOUTO, 1997, p. 66)
A pesquisa do CPDOC/FGV aponta que foi a partir de 2003 que os MCs
comecaram a se desligar das equipes e a conseguir um espaço próprio, assim como
muitos DJs independentes:
Sua imagem pública foi recolocada no cenário musical: passou a ser visto como um
artista – mas principalmente porque conquistou novos espaços, que não somente os
bailes Funk animados pelas equipes de som. Tal como ocorreu com o DJ, o
crescimento da música eletrônica possibilitou que o MC vislumbrasse uma carreira
fora do Rio de Janeiro e mesmo fora do País (CPDOC/FGV, 2008, p. 18)
Essa transformação da imagem dos MCs dentro do mercado do funk
ocasionou outra mudança de papéis: muitos DJs que não haviam conseguido
destaque dentro do seu próprio cenário, passaram a atuar como Djs contratados
para fazer a base e tocar as batidas sobre as quais os MCs apresentam seu trabalho
vocal. Essa mutação proporcionou uma adaptação que homogeneizou o mercado
com novas possibilidades para aqueles que haviam ficado para trás na busca pelo
seu espaço.
144
Outros papéis dentro das comunidades foram aos poucos ocupando espaço
dentro do segmento do funk carioca a partir de seu reconhecimento. Técnicos de
som e de iluminação, coreógrafos, dançarinos, instrumentistas, costureiras,
divulgadores, publicitários, designers e jornalistas foram aos poucos se tornando
parte do mercado, e produzindo novas oportunidades dentro das comunidades:
Ao inventar seu próprio mercado, o funk introduziu, ampliou ou reforçou
oportunidades de trabalho sobretudo para jovens pobres, abrindo, por essa via,
perspectivas profissionais criativas e sensíveis à cultura própria desses jovens e à de
seu tempo. (SOUTO, 1997, p. 68)
Esta movimentação proporcionou que os jovens da periferia carioca
pudessem optar por oportunidades criativas que por muitas vezes impediu seu
desvirtuamento para o crime, diminuiu o desemprego e fortaleceu os laços da
comunidade. Participando do mercado do funk e sendo remunerada por isso, a
periferia se torna de alguma forma parte do mercado de consumo da cidade como
um todo, quando a recompensa financeira por seu trabalho é utilizada para
promover o consumo.
Portanto, a inserção provocada pela participação no mercado do funk
desencadeia um processo de inserção ainda maior quando as conseqüências do
trabalho se expandem para toda a sociedade.
Iniciada dentro das camadas sociais de menor poder aquisitivo, juntamente
com o processo de nacionalização do funk, a formação da base do mercado jamais
se desvencilhou das formas de produção e distribuição dessa camada. A partir das
inovações decorrentes da adoção de novas tecnologias, formou-se uma cadeia
híbrida, composta basicamente da interdependência do mercado formal e informal
envolvidos na cena funk brasileira.
145
Curiosamente, as camadas de base dessa cadeia de consumo são as mais
rígidas a respeito de seu pertencimento e regras da indústria fonográfica. Grande
parte desse respeito às regras foi implantado pelo modelo de produção de maior
sucesso, coordenado pelo DJ Marlboro, enquanto “a escala do mercado se amplia,
projetando nomes, impulsionando carreiras e multiplicando as oportunidades
econômicas abertas pelo mundo funk.” (SOUTO, 1997, p. 64).
5.5.7 O IMPACTO DA TECNOLOGIA NA CADEIA DE PRODUÇÃO MUSICAL DESINTERMEDIAÇÃO
Os dados do relatório de música digital publicado pela IFPI (International
Federation of the Phonographic Industry) apontam as vendas de música digital com
uma participação de 15% dos lucros da receita fonográfica mundial no ano de 2007.
Em 2008, a participação já é de 20%, e estima-se chegar a 25% em 2009. (IFPI,
2009). No Brasil, o mesmo relatório aponta que a venda de música digital quase
dobrou em tamanho em 2008, e que abarca quase 10% das vendas de música no
país.
O IFPI ainda aponta que no ano de 2008, mais de 40 bilhões de arquivos
foram transferidos ilegalmente, o que comparado aos dados de vendas legais
totaliza 95% de todas as músicas adquiridas por download sem nenhum tipo de
pagamento a artistas ou qualquer companhia.
É dentro dessa porcentagem que se encontra a fatia que tratamos aqui, na
qual os artistas e produtores disponibilizam sua produção musical online sem
nenhum tipo de troca monetária primária envolvida na negociação.
146
Cada vez que a distância entre produtores e consumidores diminui,
encontramos um processo de desintermediação, clássico nos estudos de marketing
onde mercados são construídos a fim de obter maior lucro.
Os autores Li & Bernoff tratam esse processo como o nome de Groundswell:
(LI & BERNOFF, 2008), que pode ser traduzido como lombada ou onda abrupta.
Tudo o que diz respeito à aproximação entre produtores e consumidores através da
mediação por computador pode ser incluído nesse conceito, como também a música
produzida e distribuída dentro das plataformas de redes sociais. Em termos técnicos,
groundswell seria “uma tendência social na qual pessoas usam tecnologia para
conseguir as coisas que querem umas das outras, ao invés de instituições
tradicionais como corporações”
64
(LI & BERNOFF, 2008, p. 9). Ainda segundo os
autores citados, é a colisão de três forças que traz a desintermediação: pessoas,
tecnologia e a forma como a economia é considerada no universo online.
As pessoas e a necessidade de dependência delas umas para com as outras
apoiadas na forma como a tecnologia potencializou esses contatos, e considerando
que na nova configuração econômica todo fluxo online equivale a dinheiro fazem
com que o fenômeno da desintermediação tome força a cada instante.
A fagulha do processo de desintermediação no mercado da música brasileira
foi a banda chamada ManyMais, que é conhecida pelo pico de sucesso instantâneo
e oportunidades a partir da divulgação via redes de troca peer to peer de seu
primeiro sucesso intitulado “Segura o Chuck” ainda no ano 2000, antes mesmo que
64
Tradução livre da autora: “a social trend in which people use technology to get the things they need
from each other, rather than from traditional institutions like corporations”.
147
esse tipo de acontecimento se tornasse assunto corrente nas principais publicações
do gênero ou pensasse em fazer parte de pesquisas acadêmicas65.
É cada vez menos raro encontrar casos de sucesso derivados dos processos
de desintermediação do mercado musical, onde bandas e artistas independentes
tratam sua produção musical como meio de divulgar seu trabalho como “artistas de
palco”, promovendo suas apresentações através do compartilhamento de músicas
em plataformas de redes sociais. Também é raro encontrar entre a juventude que
permanece boa parte do tempo online, exemplos de indivíduos que nunca tenham
experimentado manipulação de sons através de práticas de remixagem. Desta
forma, não só o conceito de artista fica difícil de ser precisado, como fica também
difícil de descobrir quem são os artistas em meio a tantas possibilidades.
Esta dificuldade deriva do já citado sistema de pertencimento às redes
sociais, onde artistas e consumidores ocupam papéis dentro da mesma hierarquia
de perfis, não sendo possível através de técnicas simples diferenciar quem é quem.
Nas plataformas de redes sociais não existe o palco para separar as duas
categorias, e suas definições ficam restritas a análises mais profundas, sem contar
que se considerarmos as práticas colaborativas desenvolvidas entre ambos, essa
barreira fica ainda mais difícil de ser localizada.
Toda essa desintermediação no segmento da música foi criado por pessoas,
que ao caminharem juntas ao que consideram mais interessante, acabam gerando
uma força de modificação maior do que a que o mercado global pode combater.
65
Para maiores detalhes sobre a historia da banda, ver a reportagem em anexo, constante no anexo
número 3, ou as referências de internet:
http://www.myspace.com/manymais ou http://manymais.blogspot.com/2005/10/comdia-projetada.html
148
5.5.8 MUDANÇAS NO PAPEL DO PRODUTOR MUSICAL
Como figura presente em todos os tempos do histórico da indústria
fonográfica, a figura do produtor musical é fundamental para o entendimento das
transformações experimentadas pelo segmento. Entretanto, as atribuições do
produtor musical também mudaram com o passar do tempo. Ao mencionar o
produtor musical dentro do esquema de produção da indústria fonográfica, estamos
falando de uma figura conciliadora:
A partir de um trabalho altamente técnico e especializado, o produtor musical concilia
interesses diversos, tornando o produto musicalmente atrativo e economicamente
eficiente; como parte do quadro funcional da companhia, realiza, no estúdio, a
proposta de atuação desta. [...] Coordena todo o trabalho de gravação, escolhendo os
músicos, arranjadores, estúdio e recursos técnicos. Pensa na montagem do disco, na
seqüência em que as músicas devem ser apresentadas e escolhe as faixas de
trabalho. Cuida também para que seja cumprido o orçamento destinado ao projeto.[...]
Finalmente, é na transferência do conhecimento técnico de como relacionar música e
mercadoria que se centra o trabalho do produtor. (DIAS, 2000, pp. 91,92)
O produtor musical era naquele momento, um agente tradutor entre os
interesses da indústria e dos artistas. Porém, com a mudança dos mercados e a
proximidade entre músicos e as ferramentas de produção conseguidas através do
advento de tecnologia barata e ao alcance da mão, esse papel deixou de existir
juntamente com a necessidade de se ter uma gravadora para fazer música.
Assim, os produtores começaram a trabalhar com a cena independente, e em
diversos momentos tomaram a frente em projetos de nicho, trabalhando como
músicos e produtores dentro de suas próprias bandas, aplicando diretamente o
conhecimento adquirido em anos de trabalho lidando com os interesses de outras
pessoas.
149
Esse foi o caso dos produtores do neofunk, que ao mesmo tempo fizeram
parte de bandas e apresentaram trabalho de produção de outros artistas dentro do
segmento.
Quando falamos dos produtores de neofunk, estamos realmente longe da
figura que outrora trabalhava para os conglomerados ou empresas da indústria
fonográfica. Estamos tratando de pessoas com as mesmas capacidades, mas com
diferentes formas de aplicação. Em grande parte dos casos, eles compreendem a
totalidade do processo, sendo capazes de produzir – no sentido de confeccionar –
uma música completa, desde sua idéia e concepção, passando por todas as etapas
de desenvolvimento e chegando à sua finalização. Eles podem – como fazem – até
mesmo entregá-la ao consumidor final, seja de forma gratuita ou não.
5.6 O NEOFUNK E A INDÚSTRIA CULTURAL
Ao contrário do que se pode esperar a ligação do funk em todas as suas
instâncias com a indústria fonográfica é bem próxima. Nem todas as possibilidades
tecnológicas e processos de desintermediação são suficientes para que esse
segmento seja independente, se é que isso em algum momento foi sua pretensão.
“Continuo fazendo músicas para vender CD, para fazer DVD, porque o mercado do
funk é muito criativo, e hoje a gente conseguiu fazer funk sem um custo muito alto.
Enquanto nego gastava de três a cinco mil reais a gente fazia música a duzentos
reais. Funciona porque nós conseguimos baratear. Moleque na favela para mostrar a
música dele gasta cinqüenta reais. (...) o funk conseguiu porque é uma música
popular feita por pessoas carentes que se não tivesse esse valor não existiria. (...)
hoje um computador dentro da favela muda a vida de muita gente lá dentro à
cinqüenta reais cada música, pagando parcelado ainda, e aí os caras conseguem
colocar o talento em dia. Quem tem talento esta tendo porta para mostrar,
independente da situação financeira. Isso também ajuda a gente poder sustentar e
manter o movimento funk porque o nosso brakepoint para lucratividade não precisa
ser os absurdos que as gravadoras tinham criado há muito tempo atrás. (...) o funk
tem um poder social muito grande. (MATTA, 2009)
150
No que tange ao objeto de estudo desta dissertação, podemos apontar que
mesmo tendo nascido de experimentações amadoras, todo produto cultural do funk
que obtém algum sucesso é representado pela indústria fonográfica, seja
internacionalmente como no caso do Bonde do Rolê, seja a partir de intermediários
como no caso de Marlboro como representante dos pequenos produtores da
periferia carioca.
Em todos os casos está presente a vontade de fazer sucesso e de viver da
música, o que a partir de certo momento passa a ser possível somente com a
inclusão do trabalho em modelos estruturados de trabalho.
No caso do funk carioca percebe-se uma crença maior de que a indústria
fonográfica é um lugar a ser atingido, enquanto dentro do neofunk, esse parece ser
um destino coerente com manifestações de apreciação por parte do usuário final
que já experimentou seus sucessos de maneira anterior.
Em todo caso, a forma como ambos se comportam dentro dos esquemas de
distribuição tradicionais são distintas. No funk carioca, funciona um esquema
parecido com uma cooperativa, onde cada um tem seu papel dentro de todo o
processo e cada um tem seu reconhecimento por isso:
Ali tem o cara que tem que pagar o estúdio, tem o cara que vive autoralmente
daquela música, tem o artista que interpreta que às vezes não está fazendo show
ainda, mas que aquele dinheirinho vai ajudar ele a se manter no movimento funk,
cantando e levando sua carreira à frente, então se o cara fizer música, cantar, ou o
cara compor uma música, todo mundo cantar, tocar, ter a música no computador,
dançar e ele não ganhar nada, ele vai parar de fazer música. Se gosta daquela
música do cara e quer que ele continue compondo e fazendo música você tem que
pagar por aquilo para ele continuar sobrevivendo daquilo e passar a cada vez mais
desenvolver o talento dele em cima daquilo que você gostou. O artista vive muito
mais de show do que de direitos artísticos. Mas e o cara que compõe e que muitas
vezes não canta? E o cara do estúdio que gravou lá? E o técnico que fez a música? E
o produtor? Ninguém faz show. A música não gira somente em cima do show que o
cara fez. A música gira por um monte de gente que vive daquela música que foi feita.
(MATTA, 2009)
151
Conforme se desenrola, a cadeia produtiva se distancia do modelo implantado
por Marlboro, e passa a sofrer cada vez mais a influência da desintermediação,
chegando a modelos mais híbridos e mais influenciados pela atual configuração da
produção musical em rede, onde papéis são invertidos, desconfigurados ou passam
a não mais existir.
No funk produzido no sul do Brasil, o que funciona é um esquema mais
segmentado, principalmente pelo fato deles estarem ligados e representados por
gravadoras internacionais, que funcionam hoje dando mais independência aos seus
representados no desenvolvimento artístico. São poucas pessoas envolvidas na
produção, a fim de minimizar os riscos de que algum conteúdo vaze antes de seu
lançamento. O processo de produção é mais restrito, e feito de forma independente
da opinião da gravadora, que recebe as músicas quando elas estão prontas e
finalizadas, para então trabalhar com as etapas de finalização do disco em si e de
promoção e marketing.
Dessa forma, a participação da opinião do público na concepção das músicas,
que era antes uma das características do Bonde do Rolê passou a ser minimizado,
ficando restrito à apreciação de poucos amigos próximos, para diminuir o risco de
que esse material vaze, ou caia na rede antes mesmo de ser recebido e apreciado
pela gravadora.
Rodrigo Gorky acredita que o sucesso do Bonde do Rolê é derivado não de
uma necessidade do mercado, mas de uma possibilidade vivenciada no momento
certo, quando eles tinham em mãos um produto que transpassava as barreiras dos
estilos e que tem a dinâmica acelerada à velocidade da diversão. Isso desencadeia
um “encaixe” dentro do processo de produção e consumo vivenciado atualmente
152
dentro da indústria cultural, onde produtos são disponibilizados apenas pelo tempo
que leva para que outros produtos tomem o seu lugar. Utilizando-se da velocidade
da diversão, onde as etapas de produção de uma música são desenvolvidas no
tempo em que isso seja divertido, considerando as mesmas prontas quando o
trabalho deixa de ser divertido, o Bonde do Rolê é capaz de abastecer o seu
mercado de maneira a suprir as necessidades de seus consumidores nesse sentido.
O Bonde é uma coisa mais dinâmica. É o que funciona, como funciona, e sabe, o
mais certo e o mais diferente possível que a gente goste no final. Recortar samples,
usar dinâmicas de baterias diferentes, essas coisas. (GORKY, 2009)
Na mesma dinâmica de pensamento, Gorky afirma que o fato do trabalho do
Bonde do Rolê ser considerado tosco e mal acabado faz parte da estética desejada
na concepção do produto.
Não é que seja mal feito, tosco, etc. É que foi feito para ser assim, sabe? Por muitas
das vezes, por mais tosca que pareça, a música demora para sair às vezes. A idéia
sai muito rápido, a idéia você grava e pum, está pronto. Essa é a música, mas daí tá,
como a gente vai fazer essa música soar do melhor jeito possível. Tem que ser
tosco? Tem! (GORKY, 2009)
A primeira adequação feita na dinâmica de produção do Bonde do Rolê foi
conseqüência do sucesso, e faz parte do que é utilizado por muitas bandas hoje em
dia como ferramenta para conseguir visibilidade. Bandas desconhecidas utilizam-se
de samples de músicas muito conhecidas para derivar seu trabalho inicial e chamar
a atenção para ele, assim como foi o caso do Bonde do Rolê em suas primeiras
produções. Essa é uma prática ilegal na maioria dos mercados internacionais, mas
mesmo assim parece ser uma das mais adotadas nas produções desenvolvidas
pelos iniciantes de qualquer estilo.
O fato importante é que, assim que a banda adquire visibilidade e consegue
um contrato com gravadoras para seu lançamento pela indústria fonográfica oficial,
153
essa prática precisa ser abandonada pela questão da legalidade do trabalho. Ao
mudar a forma de trabalho, poucos conseguem um resultado tão dinâmico e
eficiente quando comparado às primeiras produções repletas de samples ilegais.
É que algumas coisas, com alguns artifícios que a gente usava no começo, era muito
mais fácil do que como a gente faz hoje. No começo a gente pegava um sample,
recortava do jeito que a gente imaginava, gravava o vocal e tava pronta a música. Só
que como agora a gente tem que fazer as músicas também, então a gente faz toda a
pesquisa de tipo, – com essa música vamos parecer que a gente sampleou tal coisa e
montou de tal jeito – é assim que a gente faz, então demora um pouco mais.(...) É
como aquele alho e sal que você compra pronto no mercado. Se eu não posso usar o
alho e sal, então tenho que picar e macerar o alho, depois por sal, pra daí depois
disso eu ter aquilo e daí voltar depois para a receita. Como a gente não pode usar o
alho e sal pronto, a gente tem que fazer o alho e o sal. (GORKY, 2009)
Essa é a real linha divisória entre o Bonde do Rolê e todas as outras bandas
de apartamento. Eles não foram os únicos a produzir coisas interessantes no
começo de sua carreira, nem tampouco foram os únicos a chamar a atenção de
gravadoras de dentro do circuito das majors da indústria fonográfica, mas figuram
entre os poucos capazes de adequar sua produção à legalidade exigida como ponto
de partida para o pertencimento ao esquema das grandes gravadoras, onde
adquirem status de banda de sucesso e passam a receber dividendos de forma
coerente com esse fato.
A noção que os produtores do Bonde do Rolê têm a respeito dessas
questões, obviamente derivadas da experiência que viveram, faz com que seu
trabalho seja reconhecido no meio e fora dele. Aos poucos os integrantes da banda
começam a prestar serviço e desenvolver trabalhos para outros artistas, sendo cada
vez mais requisitados para essa finalidade.
Da mesma forma que o Bonde do Rolê um dia se utilizou de samples de
bandas famosas ou da possibilidade de remixá-las, hoje produtores menos famosos
procuram a banda para que eles liberem a produção de remixes e a utilização de
154
samples. A posição da banda é clara, permitindo todo trabalho derivado, e
incentivando essa possibilidade pela disponibilização das músicas abertas66 em
canais de distribuição para que quem tiver interesse em utilizar esse material o faça.
Você não pode virar e falar: - ai não, não gosto, você está descaracterizando minha
música. - Não! Foi feita pra isso. Digamos que é a visão da pessoa em cima do seu
trabalho. Que eu acho que é a mesma coisa que funciona com os samples, que tipo,
é a nossa visão em cima do trabalho daquelas pessoas. (GORKY, 2009)
A produção das músicas do Bonde do Rolê hoje em dia é dividido entre vários
produtores e colaboradores, mas nasce sempre das gravações demos produzidas
por Rodrigo Gorky e Pedro D´Eyrot. De forma colaborativa e sempre mediada pelo
computador, o trabalho é produzido entre idas e vindas do material pela rede.
66
A música aberta é a forma de se nomear o arquivo de Multitrack, ou seja, o arquivo fonte onde a
música se apresenta dividida em canais, que podem ser manipulados idividualmente.
155
CONSIDERAÇÕES FINAIS
na economia do futuro, o capital será o homem total
(LÉVY, [1994] 2003, pp. 42-45)
A partir de uma metodologia híbrida e da abordagem multifocal permitida pela
inclusão das entrevistas em profundidade, foram visualizados pontos convergentes e
divergentes na produção do funk no Brasil, considerado desde sua e entrada no
país, até sua configuração atual como produto cultural pertencente à Cibercultura.
A partir da revisão do termo “indústria cultural” foi possível analisar o histórico
da indústria fonográfica desde sua instituição até o presente momento, sempre
considerando sua relação com a tecnologia em cada etapa de transformação dos
aparatos tecnológicos que a representam. Tendo essa relação em mente, foi
possível vencer o desafio de verificar a aplicabilidade da teoria existente sobre o
assunto ao momento atual de disponibilidade tecnológica, fazendo a revisão da
mesma e propondo que fosse acrescida às quatro etapas existentes, uma quinta
etapa de desenvolvimento da indústria cultural em relação à tecnologia, configurada
a partir da disponibilidade das relações mediadas por computador, intitulada como
sendo a fase “em rede”. Esta etapa tem origem, portanto, a partir dos anos 1990,
com o surgimento da internet que funciona como plataforma onde as trocas
características dessa fase acontecem. Porém, é só a partir de 2005 com o sucesso
do Bonde do Rolê que o funk passa a ser produzido com as características próprias
da quinta fase de desenvolvimento da indústria fonográfica.
As principais características da quinta fase versam sobre a inserção do
consumidor no processo de produção cultural, além de incluí-lo em outros degraus,
156
principalmente na etapa de distribuição. Com a presença de consumidores e
produtores na mesma plataforma, as trocas são facilitadas, quando não estimuladas
diretamente, dependendo da rede social em que se encontram.
Numa nova hierarquia, funções são transformadas e até mesmo excluídas
dos modelos de estrutura originais da indústria fonográfica. Entre eles, a principal
mudança está na transformação do papel do produtor musical, que passa a fazer
parte integrante das bandas ou grupos de artistas das quais é produtor, ao contrário
do modelo tradicional onde era contratado das grandes gravadoras como forma de
permitir que estas mantivessem algum controle sobre a parte criativa da
composição.
Quando a música se encontra mediada, processos híbridos de construção
são desencadeados, tanto no que diz respeito à participação do consumidor neste
quadro, quanto no que diz respeito à utilização de diversas fontes de matéria-prima,
inclusive de gêneros diferentes.
Dentro dos processos híbridos de remixagem cultural, temos o sample e a
técnica de sampling como ponto de partida para a reorganização de material
garimpado dentro e fora da rede, transformando toda a matéria sonora em fonte de
dados para novas criações, numa cultura que preza a reciclagem como forma de
transmissão de suas características, fazendo uso de processos de remixagem com
essa finalidade.
O funk nesse contexto é tomado como figura representativa para aplicar os
dados teóricos e empíricos e transformar tudo num produto representativo do campo
da comunicação. O funk carioca passou por muitas incursões na imprensa brasileira,
transitando entre cadernos culturais e policiais, desde sua entrada no país,
157
passando pela sua nacionalização e pelo seu momento atual com destaque na mídia
internacional:
Desde que foi revelado para a Zona Sul, o funk veio freqüentando a mídia em grande
escala, tanto do lado do bem quanto do mal. Foi olhado de rabo de olho, registrado,
louvado, perseguido, interpretado, absolvido, condenado de novo, processado,
defendido, criminalizado, explorado, exaurido, esconjurado, amado, ridicularizado e
até escondido.Só não conseguiu ser banido. (ESSINGER, 2005, p. 11)
Toda essa movimentação dentro da imprensa foi importante para o funk em
dois conceitos. Primeiramente provocou uma união interna fortalecendo as equipes,
os DJs e os produtores, fazendo com que se formasse uma massa coesa e unificada
no centro do movimento. Segundo, o preconceito fez com que o funk ficasse
compreendido
dentro
do
seu
próprio
território
nacional,
permitindo
o
desenvolvimento do estilo antes que esse fosse descoberto pela imprensa e
produtores internacionais.
Essa barreira de defesa foi fundamental para que o funk brasileiro estivesse
preparado para ser absorvido internacionalmente como a verdadeira música
eletrônica brasileira, com o tempero característico do país, em produções
encorpadas pelo “tamborzão” de origem afro-brasiliera dos atabaques, e com a
forma menos esculpida de outros estilos caracteristicamente brasileiros, como a
bossa nova.
Ao trazer à tona a história do funk desde sua entrada no país até os dias de
hoje, percebemos claramente que o estigma associado pela mídia e o preconceito
funcionaram como barreiras de contenção, permitindo ao funk se desenvolver dentro
de condições restritas, unificando tendências e padrões, e fazendo com que este se
fortalecesse antes de sua tardia entrada na quinta fase de desenvolvimento da
indústria cultural proposta nessa dissertação.
158
Em sua história recente, o funk apresenta todas as características comuns
aos produtos pertencentes a esta quinta fase, demonstrando a veracidade do
argumento apresentado, quando na virada do século ele transborda suas barreiras
de defesa e invade o mundo com a sonoridade que viria a ser considerada por
muitos como sendo a verdadeira música eletrônica brasileira, ao conjugar diversas
influencias e vertentes, tal qual a cultura brasileira como um todo.
É nesse momento também, onde o funk é vivenciado dentro das plataformas
de redes sociais através do contato direto entre produtores e consumidores, que
surge o que chamamos de “funk de apartamento”, onde amadores de todos os
cantos do país experimentam as possibilidades tecnológicas e trocam experiências a
respeito de produção musical, construindo a fagulha que desencadearia num
processo de reconhecimento e legitimação, que por sua vez originaria bandas de
sucesso de uma nova vertente do funk que passaria a ser chamada de neofunk.
O neofunk é, portanto, o funk produzido dentro da quinta fase de
desenvolvimento da indústria cultural na qual estamos atualmente. Assim sendo,
neofunk não poderia ser considerado uma derivação do funk, nem um subgênero,
nem uma cena musical constituída à parte do funk carioca, pois isso seria comparar
coisas distintas. Neofunk é uma classificação do funk, que é aplicada quando este
contém as características já citadas da quinta fase de desenvolvimento da indústria
cultural. Nestes termos, remete-se ao significado original do termo funk, referindo-se
a misturas e hibridações, tanto técnicas como de gêneros de quando este foi
originalmente criado.
Nesse caso, até mesmo outros estilos e outras sonoridades poderiam ser
classificadas como produções de neofunk, mesmo que não tivessem a batida do
159
funk em sua composição, desde que criadas com as mesmas características de
hibridação e colaboração.
Saindo da dicotomia funk carioca versus funk produzido no sul, passamos a
adotar parâmetros de classificação de outros graus, e deixamos as questões
relativas à localidade de desenvolvimento de cada produto para definições de
temáticas relacionadas ao cotidiano de onde eles são produzidos. A diferença entre
eles, portanto, está muito mais relacionada à concepção das letras do que a
qualquer outro referencial.
Voltando ao “funk de apartamento” tratamos da forma como as relações
estabelecidas no ciberespaço tomam corpo, quando consideramos que pela primeira
vez produtores e consumidores participam das mesmas plataformas sociais, e
pertencem a essas estruturas da mesma forma, fazendo como que a troca seja a
base da evolução dos relacionamentos mediados.
A troca direta entre produtor e consumidor desencadeia um processo de
desintermediação do mercado, onde em contato direto um com o outro, ambos
fazem escolhas tomando o outro como base. Quando produtor e consumidor não
estão separados por um palco de distância, a forma como são vistos muda,
principalmente quando tratamos de produtores musicais.
O contato entre eles transforma ambos. Enquanto os produtores usam os
consumidores como fonte de informação ou inspiração, os consumidores se
aproximam do papel de produtores em atividades amadoras, que também
movimentam esse circuito de trocas. O produtor passa a atuar como mentor, e seu
papel é estendido quando ele passa a distribuir seu próprio conteúdo dentro da rede,
ocupando o lugar que antes era de executivos das grandes gravadoras.
160
É a conexão entre pessoas através de seus interesses comuns que facilita a
formação desterritorializada de novos grupos, onde as relações mediadas são
estreitadas de forma diretamente proporcional à intensidade das interações. Como o
elo comum é o interesse em determinado assunto, grupos heterogêneos em relação
à idade, classe social, gênero e localização são formados, pois as barreiras físicas
não são características da comunicação mediada por computador.
O baixo custo e efetividade da mídia em tempo real nesse ambiente
proporcionam um declínio da mídia tradicional e promovem o ciberespaço, acolhedor
das inteligências coletivas. Assim a alternativa é usar a dinâmica das redes sociais e
interações no ciberespaço para desenvolver ações e estratégias midiáticas,
baseadas no poder da coletividade e da reputação, levando em consideração um
ambiente em que a mensagem pode ser alterada em seus ínfimos fragmentos, a
mixagem e a reorganização são partes do processo e os signos são reordenados.
Interessados em participar dessa dinâmica terão que trabalhar com a sensibilidade
das redes formadas por ligações emotivas, autênticas e genuínas, construídas por
laços de confiança calcados na reputação de seus participantes, pois nesta cultura
cada bit de informação colabora para o incremento do coletivo.
As atividades sociais realizadas em torno ou através de redes sociais
estabelecidas nas plataformas online de comunicação estão continuamente
ganhando importância na medida em que se tornam foco de ações de mídia ou
mesmo de observação por parte de empresas interessadas em estabelecer uma
conexão direta com seus clientes ou até mesmo observar seu comportamento. O
resultado desse processo é o incremento da importância individual de cada
participante
dentro
de
sua
rede
de
conexões,
desencadeando
grandes
161
transformações na forma como o consumidor é visto e tratado dentro dos sistemas
de produção atuais.
No contexto da Web 2.0, os limites entre produtor e receptor, entre fãs e
artistas são difusos. Além da promoção da própria música, a utilização das
ferramentas de autopromoção disponíveis no ciberespaço contribuem para este
quadro.
Com a reconfiguração do consumo de música possibilitado pelas novas
tecnologias, as plataformas sociais ganham notoriedade, e o consumo de música
como ato cultural transforma essas plataformas (sites, sistemas, interfaces) em
verdadeiras redes sociais, fortalecidas pela tecnologia de uma forma que antes não
era possível. O consumo de música como parte dos rituais de socialização neste
contexto ganha forca e credibilidade, mudando desde a forma como se consome a
música, até que música é consumida.
A escuta nômade da música e a difusão da cópia agregada ao processo de
produção industrial gerou a indústria fonográfica, que passa a moldar um padrão de
consumo com a intenção de massificar os lucros a partir da massificação dos gostos.
Porém a disponibilidade tecnológica possibilita uma arma na luta contra a
massificação, onde a diferenciação a partir gostos individuais de cada pessoa é o
ponto fundamental.
A diversidade e a multiculturalidade são evidenciadas nessas trocas, sempre
que pessoas diferentes estabelecem uma conexão. Quando na mistura de
referencias presentes numa música, identificamos traços de nossa cultura,
certamente estabelecemos conexão com aquele material, seja positiva ou
negativamente. São esses traços culturais presentes no funk que o tornam
consumível por diversas classes e por diversos tipos de pessoas.
162
Numa dinâmica que se assemelha ao que acontece na cultura brasileira, o
funk mistura, utiliza e reutiliza marcadores que são os mesmos do dia a dia, seja
qual for o canto do país que este tem origem. Por isso, o funk é considerado por
muitos a verdadeira música eletrônica brasileira.
Todas essas atividades são desenvolvidas por pessoas que fogem à média
em diversos aspectos. Os produtores de neofunk, bem como muitas vezes seus
consumidores têm uma relação muito intima com a tecnologia, que começa sempre
pela sua facilidade de acesso a ela. A partir da tecnologia, eles figuram o
ciberespaço como figuras participativas e colaborativas, bem acima da média do
usuário normal. È necessário ressaltar que eles não são a maioria, mas são os
produtores de grande parte daquilo que alcança todos os outros.
A desintermediação por sua vez, ocasiona mudanças nos mercados, onde os
consumidores engajados chamados de prosumers produzem e compartilham
conteúdo através do peering, produzindo algo maior do que simplesmente as trocas
decorrentes de sua conexão. É ai que entra a colaboração direta na produção de um
novo tipo de inteligência, que transforma cada indivíduo numa parte importante do
todo e faz com que suas opiniões e seu conhecimento sejam fundamentais para o
outro.
Dessa forma, as pessoas passam a ser o conteúdo, sendo elas próprias parte
da mensagem que transmitem em suas trocas de informações. As pessoas são as
mensagens quando dispõem de credibilidade dentro do meio onde transitam. Essa
credibilidade é desencadeada pela autenticidade de sua participação na rede e pelo
tempo dedicado àquela atividade, quando a intenção verdadeira cria confiabilidade e
boa reputação. Em outro pólo, o próprio excesso empregado pelos meios
163
publicitários confere credibilidade às vozes individuais. A saturação da propaganda
desencadeia um bloqueio por parte das pessoas para com o seu recebimento,
influenciando-as a migrar para outros locais em busca de informações a respeito
daquilo que consomem, pois “a fé na propaganda e nas instituições que pagam por
ela está diminuindo aos poucos, enquanto a crença nos indivíduos encontra-se em
ascensão. As pessoas confiam em outras pessoas iguais a elas” (ANDERSON,
2006, p. 97), e a publicidade muitas vezes vem se afastando disso.
Hoje, o consumo assume muito mais uma dimensão pública – não mais uma questão de
escolhas e preferências pessoais, o consumo se tornou tema de discussões públicas e
deliberações coletivas; o compartilhamento de interesses comumente leva a conhecimento
67
compartilhado, visões compartilhadas e ações compartilhadas. (JENKINS, 2006, p. 222)
Numa configuração econômica onde a participação individual tem poder,
“estamos nos tornando uma economia em nós mesmos” (TAPSCOTT & WILLIAMS,
2007, p. 26), ao trazer para cada indivíduo a possibilidade e a responsabilidade de
suas contribuições. A divulgação boca a boca transposta para o online e a
visibilidade que todos podem ter na internet dotou as opiniões individuais de
relevância no contexto do todo, opiniões estas que quando acopladas às identidades
online endossadas por credibilidade, transforma-se em informação passível de
influenciar outras pessoas.
A capacidade de explorar a inteligência dispersa de milhões de consumidores para que as
pessoas encontrem o que lhes é mais adequado está determinando o surgimento de todos os
tipos de novas recomendações e métodos de marketing atuando basicamente como os novos
formadores de preferências (ANDERSON, 2006, p. 55)
Através da ciber-representação, o sujeito se apresenta como objeto, sendo
fundamental considerar a revolução epistemológica que “ultrapassa a distinção entre
67
Tradução livre da autora: “Today, consumption assumes a more public and collective dimension –
no longer a matter of individual choices and preferences, consumption becomes a topic of public
discussion and collective deliberation; shared interests often lead to shared knowledge, shared vision,
and shared action”
164
sujeito e objeto, implode o sujeito, como ego que tudo domina, até que passe a ser
um só com o mundo que o cerca” (MAFFESOLI, 2007, p. 72).
Fechando o círculo, o neofunk se apresenta como objeto em torno do qual se
estabelece a sociabilidade online, através da ciber-representação de produtores e
consumidores que figuram conjuntamente nas mesmas plataformas de redes
sociais. É a produção, distribuição e consumo desintermediado do neofunk que
permite que a relação direta entre produtores e consumidores se desenvolva.
Como apontamento para continuidade dos estudos iniciados no mestrado,
reconhece-se a limitação de tempo que fez com que grande parte dos assuntos
relacionados à equação apresentada nessa dissertação não pode ser desenvolvida,
nem ao menos de forma inicial. Portanto, aspira-se o prosseguimento no mesmo
assunto, mantendo o relacionamento entre ciber-representações como recorte, mas
dessa vez abordando-o por outro ponto de vista.
Pretende-se futuramente tratar a relação dos produtores e consumidores com
suas ciber-representações, pensando em delimitar quais os aspectos de identidade
transpostos do off-line para o online. Considerando que a mediação por computador
está presente entre o homem e sua ciber-representação, e novamente entre suas
atividades de pertencimento e os rastros destas que permanecem online, pretendese encarar a multiplicidade do eu online a partir do enfoque de experimentação e do
jogo de se testar em diversas versões para a criação de um eu off-line que englobe
todas essas possibilidades.
165
APÊNDICES
LEVANTAMENTO NETNOGRÁFICO DO “BONDE DO ROLÊ”68
O inicio do trabalho de levantamento netnográfico a respeito da presença na
internet do objeto escolhido “Bonde do Rolê” aconteceu no site de buscas Google69.
Ao efetuar a busca pelo termo no sistema, foram obtidos 1.070.000 resultados com
impressionante relevância: os 700 primeiros resultados eram pertinentes. As 100
primeiras apresentavam uma maior relevância, mas poucas seguintes repetiam
conteúdos. Entre esses, grande parte se refere a noticias em portais de música e
entretenimento e letras das músicas. Aparecem também entre os 50 primeiros
resultados todas as plataformas sociais que serão observadas mais profundamente
neste levantamento. Com exceção do Orkut, que nunca aparece nos resultados do
Google, aparecem a Wikipédia, Last.fm, Myspace e Youtube
Wikipédia
A Wikipédia é uma enciclopédia online, livre e participativa, escrita de forma
colaborativa por diversas pessoas. Ela é baseada no modelo wiki, onde uma série
de páginas pode ser modificada através de qualquer navegador comum70.
A descrição do grupo contida na Wikipédia71 em português é bem sucinta e
desatualizada, com dados de julho de 2006, além de incompleta. Apesar da breve
68
Levantamento iniciado em junho de 2007 e concluído em setembro de 2007, apresentado como
paper da disciplina de Netnografia, que deu início dos trabalhos de pesquisa acerca do objeto dessa
dissertação. Apresento aqui um recorte deste paper, mas me reservo ao direito de repetir as citações
já apresentadas em outros momentos dentro da dissertação, para que não se perca o objetivo
primeiro de ter esse levantamento presente aqui, que é demonstrar a importância do levantamento
netnográfico preliminar da presença do objeto online, para a delimitação e descoberta do que é
efetivamente o próprio objeto.
69
70
http://www.google.com.br
Para uma descrição mais profunda
http://pt.wikipedia.org/wiki/Wikipedia
da
Wikipédia
e
do
modelo
wiki,
consultar
166
descrição da banda conter dados relevantes, a descrição dos integrantes como
artistas individuais foi deletada recentemente por ser considerada inapropriada. Já a
versão em inglês72 do termo Bonde do Rolê da enciclopédia livre traz uma versão
mais completa e atualizada da descrição da banda, com os últimos fatos relevantes
da data corrente.
A discrepância entre as descrições em português e em inglês na mesma
plataforma possivelmente tem origem no reconhecimento internacional da banda,
que em contrapartida não possui o mesmo reconhecimento e seu país natal, ou até
mesmo pelo desinteresse por parte dos brasileiros em manter a versão em
português da enciclopédia atualizada.
Last.fm
O last.fm73 é uma plataforma que abriga um site e uma Web rádio em torno da
qual está formada uma rede social e comunidade virtual a partir de perfis dos
usuários construídos pelo seu gosto musical. Isso é possível através do sistema de
audioscrobbler que é um plugin que capta as informações sobre as músicas
executadas nos tocadores do computador.
O perfil dos usuários é construído de duas formas: pela utilização do
audioscrobbler e ouvindo a Web radio do last.fm. Com um pouquinho de boa
vontade, é possível também transmitir as informações das músicas executadas em
seu ipod para o arquivo de dados do last.fm, acurando seu perfil de escuta.
A partir de um filtro de algoritmo, o cruzamento de informações sobre a sua
escuta e a de outros usuários gera recomendações, e é possível inclusive saber qual
71
http://pt.wikipedia.org/wiki/Bonde_do_Role
72
http://en.wikipedia.org/wiki/Bonde_do_role
73
http://www.last.fm
167
o grau de compatibilidade entre você e outro usuário de acordo com o cruzamento
de informações das tabelas de dados do que ambos escutam.
A informação no last.fm, é construída de forma colaborativa num ambiente
wiki, e indexada pelos próprios usuários através de etiquetas de informação74 que
são anexadas ao conteúdo como palavras chave através das quais é possível
realizar buscas. O trabalho de indexação do conteúdo, ou seja, a colocação das tags
é feita sem a pré-existência de categorias definidas.
O last.fm tem sido utilizado amplamente por brasileiros. Segundo as
estatísticas do próprio site, cerca de 57.000 usuários do sistema são brasileiros. A
vantagem de uma Web rádio está principalmente no fato dela ser assíncrona,
permitindo que cada usuário conectado ouça o que quer na hora que quer. No caso
do last.fm, é possível ouvir uma rádio criada especialmente para você, a qualquer
momento através de qualquer uma das tags ou dos nomes dos artistas.
No caso do Bonde do Rolê, as informações criadas a respeito da banda pelos
usuários estão dispersas em tags distintas75 e com grandes discrepâncias entre as
descrições em inglês76 e português77. O perfil em português é definitivamente o mais
completo em termos de texto, com informações atuais e especificas, incluindo
discografia e informações a respeito de reportagens atuais da banda.
O Last.fm aponta 275.500 execuções de músicas da banda captadas pelo
sistema de audioscrobbler, e as tags em que as músicas da banda foram
classificadas são: baile funk, brazilian, electro, electronic, funk, funk carioca, rock e
74
Ou tags, que são metadados dados obre dados, informação a respeito da própria informação.
75
Ver http://www.last.fm/music/Bonde+do+Rol%C3%AA
76
http://www.last.fm/music/Bonde+Do+Role?q=bonde+do+role
77
http://www.lastfm.com.br/music/Bonde+Do+Role?q=bonde+do+role&setlang=pt
168
seen live. De cada uma dessas tags deriva uma Web rádio da qual faz parte o
repertório do Bonde do Rolê.
O caso do Bonde do Rolê e sua presença na internet desperta o interesse
pela relação entre as bandas independentes e a comunicação de massa, que está
voltada para os grandes sucessos. A indústria do entretenimento procura por
produtos que possam abarcar uma incrível gama de expectadores, e grandes
sucessos que podem ser considerados como “lentes através das quais observamos
nossa própria cultura” (ANDERSON, 2008, p. 1)Esse foi o ponto marcante até agora
no que tange nosso cotidiano, mas conforme o conceito da “cauda longa” descrito
por Anderson, este quadro “está desbotando nas pontas”, com a fragmentação dos
mercados em nichos cada vez menores, que somados podem se tornar tão
grandiosos quanto os sucessos. Ainda procuramos o grande sucesso, mas este não
é mais tão proeminente quanto costumava ser.
A mudança do mercado de consumo e o “estilhaçamento da tendência
dominante e zilhões de fragmentos culturais multifacetados” (ANDERSON, 2006,
p.5) é resultado da adoção da tecnologia e das mídias eletrônicas que criam
condições para essa mudança, e é um fenômeno que abrange diversos segmentos,
servindo de apoio para o estudo em diversos campos.
No caso do last.fm o efeito da cauda longa é percebido quase que
instantaneamente vista a quantidade de artistas e músicas disponíveis e notado que
todas as músicas, por mais desconhecidas que possam ser, foram ouvidas muitas
vezes. Na fronteira difusa entre produtores e consumidores a qualidade de produção
não é fator de diferenciação e um pequeno produtor pode ser escutado entre
grandes produtores, desde que seja classificado pelos usuários com tags
semelhantes.
169
O audioscrobbler possibilita a análise de outro fenômeno, o da alocação da
memória. Catalogar e processar a informação sobre o que escutamos seria um
trabalho árduo e com poucos resultados aplicáveis quando feito manual e
isoladamente. A própria existência desses (e de outros) arquivos de memória “da
algo concreto às pessoas para se referirem” criando “um novo objeto para pensar a
respeito da memória”, uma certa “conexão” para o resto de nossas vidas. (TURKLE,
2006, p. 296)
Dessa forma parte da nossa memória que já existia e estava indisponível por
falta de critérios de classificação passa a fazer parte de nossa representação. Posso
saber mais a respeito de mim mesma a partir das relações que o sistema de
scrobbler faz e a partir do cruzamento de informações entre minhas preferências e
as preferências de outras ciber-representações.
Da mesma forma a disponibilidade do histórico de nossas preferências,
permite o acesso a mais informações sobre nós mesmos trazendo para o hoje
informações antigas com “a mesma presença na tela” e com a mesma presença
tecnológica. Segundo Turkle, tenho o mesmo poder acerca do meu histórico que
tenho sobre minha informação atual. Meu histórico não é mais empoeirado, e não
está mais em mim, pois “memória e lugar tornam-se desconectados”, e passamos a
nos acostumar a ter parte das informações em alocadas em outros lugares que não
em nossa memória. (TURKLE, 2006, p. 300)
Orkut
O Orkut é uma rede social filiada ao Google, baseada em criar novas
amizades e manter relacionamentos, a partir de perfis pessoais. É possível adicionar
amigos e comunidades de interesses comuns. A inspiração para a criação do Orkut
170
está na teoria dos seis graus de separação, onde uma pessoa pode estar conectada
a qualquer outra pessoa por no máximo cinco amigos intermediários78.
O Brasil impera entre os usuários do Orkut, com 53,4% dos usuários
declaradamente brasileiros, e idade dominante dos participantes entre 18 e 35 anos.
A participação do “Bonde do Rolê” na maior plataforma do Orkut é
massivamente em português, já que poucos usuários são realmente de outros
países. Das doze79 comunidades apenas uma não é brasileira.
A maior comunidade possui 2928 membros, e é a que possui mais tópicos
nos fóruns, e maior quantidade de postagens em cada um deles, ou seja, muito
movimentada. Seis outras comunidades são mais expressivas com cerca de cem
integrantes cada, mas pouca movimentação no fórum que é basicamente dos
mesmos assuntos da grande comunidade. Quatro comunidades de cerca de cinco
integrantes são inexpressivas, e apenas uma comunidade desfavorável, nomeada
comumente como “Eu odeio o Bonde do Rolê”80.
No Orkut ainda estão os perfis pessoais de todos os integrantes da banda:
Marina Vello81, Pedro D´eirot82 e Rodrigo Gorky83. Numa observação superficial dos
scraps deixados nos três perfis, a maioria deles está relacionada a assuntos
pessoais, alguns comentários de fãs e poucos comentários negativos ou maliciosos.
Isso se justifica por ser uma plataforma social baseada nos perfis e gostos
pessoais e pelos integrantes já estarem presentes no Orkut antes da existência da
78
Para maior explicação do funcionamento da rede social Orkut e a teoria dos seis graus de
separação, consultar http://pt.wikipedia.org/wiki/Orkut e http://www.orkut.com/About.aspx
79
Observação verificada em 13 de setembro de 2007
80
http://www.orkut.com/Community.aspx?cmm=13902550
81
http://www.orkut.com/Profile.aspx?uid=341075550042298614
82
http://www.orkut.com/Profile.aspx?uid=4873420745129445106
83
http://www.orkut.com/Profile.aspx?uid=5125256703090868378
171
banda. Assim, o círculo de supostos amigos dos integrantes já estava formado antes
do sucesso.
O nome da banda aparece no perfil de 788 usuários no campo de
preferências musicais.
Myspace
O Myspace84 é um serviço de rede social que possibilita a comunicação online
através de perfis de forma similar ao Orkut, que era inicialmente mais completo e
dotado de melhores ferramentas, mas que a partir das últimas atualizações do Orkut
tornou-se muito similar.
O perfil do Myspace do Bonde do Rolê85 é colocado como site oficial da
banda, e é o principal local de informações do grupo. É utilizada uma plataforma
variante do Myspace original, chamada Myspace Music. Essa variante possui
funções específicas para bandas, DJS e grupos musicais como agenda de shows e
player online. As informações estão atualizadas, com agenda completa de shows
pelo mundo, fotos atuais e músicas para download além de vídeos.
Chama a atenção no perfil da banda o blog vinculado, onde aparece review
de cada apresentação e postagens a respeito do dia-a-dia da banda, todos em
inglês e assinados pela banda inteira. Os integrantes da banda com seus próprios
perfis (Pedro86, Marina87 e Rodrigo88) costumam comentar as postagens, e vários
fans e amigos fazem o mesmo. Os perfis pessoais de Marina e Pedro não são feitos
84
http://www.myspace.com
85
http://www.myspace.com/bondedorole
86
http://www.myspace.com/with_lasers
87
http://www.myspace.com/polacadanhanha
88
http://www.myspace.com/djgorky
172
com a plataforma Myspace Music, e sim com a ferramenta tradicional. Apenas o
perfil de Rodrigo Gorky, o DJ da banda está no Myspace Music.
Os perfis dos integrantes estão todos linkados entre si, e estão sempre entre
os primeiros exibidos, já que o myspace permite escolher quais dos perfis dos seus
amigos aparecerão na primeira pagina. Da mesma forma o perfil dos produtores
nacionais e internacionais e dos principais artistas estão sempre presentes uns nos
outros, remetendo ao conceito de acúmulo de capital social (RECUERO, 2006, p. 8),
onde adicionar amigos influentes ou reconhecidamente importantes em seu perfil faz
com que o usuário seja também reconhecido.
Muitos artistas independentes ou não além do Bonde do Rolê utilizam o
Myspace Music como site oficial, pela facilidade de atualização que as ferramentas
específicas permitem. No caso do Bonde do Rolê, a adoção do Myspace Music
supre necessidades de se estar na estrada com a dinâmica de atualização facilitada.
Youtube
De acordo com a Wikipédia, o Youtube89 é um site na internet que permite
que os que seus usuários carreguem, assistam e compartilhem vídeos em formato
digital.
A presença do Bonde do Role no Youtube é tímida, e se restringe aos clipes
da banda, entrevistas, performances ao vivo e vídeos das aparições do trio em
programas de TV, com apenas 249 resultados obtidos na busca pelo termo.
Conclusão
Percebe-se a emergência de pesquisas relacionadas ao objetivo de suprir o
campo da comunicação e os objetos da Cibercultura da carência metodológica em
que se encontra.
89
Para
maiores
informações
http://pt.wikipedia.org/wiki/Youtube
sobre
o
funcionamento
do
youtube,
consultar:
173
Com a reconfiguração do consumo de música possibilitado pelas novas
tecnologias, as plataformas sociais ganham notoriedade, e o consumo de música
como ato cultural transforma essas plataformas (sites, sistemas, interfaces) em
verdadeiras redes sociais, fortalecidas pela tecnologia de uma forma que antes não
era possível.
Assim, as interfaces e plataformas sociais funcionam como elemento
aglutinador, capaz de promover até mesmo um crescimento intelectual dos
participantes através da troca de informações. Num nível mais elementar, pelo
menos agregar repertório.
O consumo de música como parte dos rituais de socialização nesse contexto
ganha forca e credibilidade, mudando desde a forma como se consome a música,
até que música é consumida.
A
música
nesse
contexto
passa
de
produção
artística
a
evento
comunicacional, como descrito por Diana Domingues:
novas espécies de imagens, de sons, de formas geradas por tecnologias interativas e
seus dispositivos de acesso permitem um contato direto com a obra, modificando a
maneira de fruir imagens e sons. As interfaces possibilitam a circulação das
informações que podem ser trocadas, negociadas, fazendo com que a arte deixe de
ser um produto de mera expressão do artista para constituir um evento
comunicacional (DOMINGUES, 1997, p.20)
A escuta nômade da música e a difusão da cópia agregada ao processo de
produção industrial gerou a indústria fonográfica, que passa a moldar um padrão de
consumo com a intenção de massificar os lucros a partir da massificação dos gostos.
Porém a tecnologia de plataformas como o last.fm e também outras plataformas
sociais musicais como o myspace possibilitam uma arma na luta contra a
massificação, onde a diferenciação pelos gostos individuais de cada pessoa é o
ponto fundamental.
174
ANEXOS
ROTEIRO DAS ENTREVISTAS
APRESENTAÇÃO
1) Quem é você?
• Apresentação
• História (de vida e musical)
AQUECIMENTO
2) História do entrevistado
• Quais as suas Influências ( separar em influencias de base e influencias atuais)
• Quem é que você influencia
3) Rotina de atividades
• Como é a sua rotina diária?
• Onde entra a música em tudo isso?
• E a tecnologia?
4) Composição do “produto DJ Marlboro”
• Qual a importância da discotecagem, da produção e de outros projetos dentro da sua
rotina
RELAÇÃO COM O SEGMENTO
5) O funk carioca
• O funk carioca é um gênero? Subgênero? Onde ele se encaixa dentro da música, ou da
música eletrônica?
• Quais são as influências gerais do funk carioca
• Quais são os gêneros que o funk carioca influencia?
• O que você acha do funk carioca ser tocado hoje no mundo todo, e do fato do Brasil ser
reconhecido por ele?
• O funk carioca fala de quê?
• Qual é o discurso do funk carioca?
RELAÇÃO COM INDÚSTRIA FONOGRÁFICA
6) Sobre Indústria fonográfica
• Qual a sua motivação para a produção?
• Quem são as pessoas envolvidas em dar suporte ao seu trabalho
• A venda de CDs, lançamento oficial, promoção, fazem diferença no teu trabalho?
• Ao longo dos anos, você sente que a estrutura da indústria fonográfica mudou? Como?
• Onde você se encaixa dentro da indústria fonográfica
7) Sobre Matéria-prima
• Como é que você pesquisa música?
• Pesquisar música para tocar é a mesma coisa que procurar matéria-prima para
produção?
• O que é certo e o que é errado na utilização dos samples?
175
• O que é certo e o que é errado na hora de fazer um remix?
• Um remix é uma homenagem?
• Como você se sente quando as pessoas remixam o seu trabalho?
• O que uma música tem que ter para que você sinta vontade de remixá-la?
8) Sobre produção
• Como é sua rotina de produção? Onde você procura inspiração?
• Quais são os equipamentos e softwares que você utiliza?
• Como a tecnologia mudou a forma como você produz?
• Como isso aconteceu através dos anos? Teve algum momento difícil?
• Como a tecnologia e a disponibilidade de matéria-prima online mudaram a forma como você
produz?
• Você considera produção musical como uma arte?
9) Sobre Distribuição
• Você acha que ter as suas músicas na internet ajuda ou atrapalha no final das contas?
• A desintermediação do canal de venda, ou seja, a proximidade do publico com o artista
através do download (legal ou ilegal) ajuda ou atrapalha a sua carreira?
• Você ainda vende?
10) Sobre redes sociais:
• Você navega? Tem perfil em Orkut, facebook, twitter, etc? Lê email?
• Qual a sua rotina online? O que você faz conectado?
• A proximidade do público online, dentro das mesmas redes sociais ajuda ou atrapalha?
• Você considera a opinião do publico em algum dos canais online?
TEMA PRINCIPAL:
11) Sobre o neofunk
• Existe um “movimento”, ou um sub-gênero, chamado hoje de neo funk, favela chic, ou
movimento “pós baile funk”, dos quais fazem parte alguns produtores brasileiros do sul do
Brasil, e alguns nomes internacionais, como Diplo. O que você acha?
• Você reconhece o neo funk como subgênero?
• Você toca neo funk?
• Você se relaciona com os produtores de neo funk?
• Como você chamaria esse segmento?
• Qual a diferença entre o neofunk e o funk carioca?
12) Sobre os pares
• Fredi Chernobyl Endres
• Bonde do role
• Diplo - Remix M.I.A
• Qual a diferença entre tocar a original ou tocar seu remix, no caso da música da MIA
(bucky done gun)
• Você acha que remixar o Diplo, seria uma terceira fase da coisa toda? Seria uma espécie
de visita?
• Qual foi o processo de produção desse remix? Quando aconteceu? Teve contato com o
Diplo?
• O que foi que você inseriu, qual era sua proposta para esse remix? O que ele conserva e
o que ele
• Como você conheceu o trabalho da MIA (ou do Diplo)
176
GRAVAÇÃO DAS ENTEVISTAS
177
REPORTAGEM SOBRE PESQUISA DO IBOPE
178
REPORTAGEM MANYMAIS
Especial Manymais – Mondo Bacana
Escrito por Abonico – 29 de abril de 2008
Eles viraram mania nacional por causa de um MP3 na internet e um tosco
videoclipe que custou dez reais. Sha-Zan e Charly Xyn conquistaram o país
narrando uma série de crimes contra brinquedos, cometidos pelo boneco assassino
Chuck. Após uma atabalhoada passagem por grande gravadora, estão de volta à
independência e ameaçam fazer o primeiro show da carreira. Abonico R. Smith
conversou com os rappers e conta a história dos Manymais.
Charly Xyn e Sha-Zan: mais de mil discos de rock e rap em vinil, muito humor
afiado e influência assumida dos Beastie Boys.
Dez reais este foi o preço do passaporte para a fama do grupo que desde o
ano passado deu a Curitiba um pouco de projeção nacional. Duas horas de
produção propositalmente tosca, cinco minutos de filmagens sem cortes, uma fita de
vídeo velha foram mais do que suficiente para convencer a produção do Piores
Clipes do Mundo, programa trash da MTV, a colocar os Manymais no ar. Resultado:
“Segura o Chuck” virou hit em todo o país e chegou a receber indicação para o
prêmio de pior clipe do ano (categoria sem vencedor, claro). De quebra, ainda
abocanhou algumas radiofusões e um contrato com uma grande gravadora, hoje
devidamente rescindido. Tudo isso sem uma apresentaçãozinha sequer ao vivo.
O Manymais foi criado há dois anos pelos rappers Sha-Zan e Charly Xyn, na
verdade identidades não muito secretas de Marco Aurélio da Silva, 33 anos, e
Charles Fernando da Silva, 32 – segundo Charly Xyn, “irmãos por parte nariz”.
Depois de tanto fazer piada a vida inteira – fosse em casa, no colégio ou mesmo na
rua – eles resolveram canalizar suas duas grandes paixões, o humor e a música,
para uma mesma direção.
A música sempre fez parte da vida de Sha-Zan e Charly Xyn. Além de ter um
outro irmão músico que ganha a vida tocando noite (“reconhecemos que ele é muito
bom, mas só faz coisa brega”, disparam, sem a menor cerimônia), a dupla alimenta
uma grande paixão por discos desde a adolescência, preenchida por muitos
contorcionismos durante a época de breakdancers. Charly possui uma extensa
coleção de mais de mil vinis de rock e rap – entre eles coleções inteiras como do
Rolling Stones e Led Zeppelin e algumas raridades do humorista Ary Toledo. ShaZan, por sua vez, nunca pensou duas vezes antes de torrar o salário de office-boy
adquirindo obras-primas de Kurtis Blow, Mantronix e Afrikaa Bambaataa. Hoje, os
irmãos chegam a passar até 18 horas diárias ouvindo música
Já a parte da comédia e da diversidade de criação de personagens, roteiros e
ambientações em versos rimados vem sendo desenvolvida desde a infância. Tudo
graças ao rico background de cultura pop formado por infinitas sessões de desenhos
179
animados como Pernalonga, Picapau, Os Simpsons (trinta horas consecutivas
compiladas) e South Park; leitura de milhares de histórias em quadrinhos; milhares
de folhas rabiscadas e desenhadas com besteiras e piadinhas; e muito seriado de
tevê e filme B injetados diariamente no cérebro.
Sucesso na rede
Tudo começou durante o período final do auge do mais famoso e conhecido
site de disponibilização de arquivos pessoais em MP3, o Napster. Marco e Charles,
com a ajuda de um Pentium, um microfone, um software de edição, um amigo
guitarrista (Tiagus Terceirus, hoje não mais na banda), resolveram fazer uma graça
com o verso “Segura o Tchan”, um dos mais famosos e recentes hits da música
popular baiana. Criaram “Segura o Chuck”, um gangsta rap que lista uma série de
crimes do famoso boneco de pano – nos versos, ele comete violência apenas contra
outros brinquedos. Além da narrativa completamente cinematográfica (você
consegue construir em sua mente, com perfeição, as cenas descritas pelos dois), há
hilárias referências brasileiras de versos como “Todo mundo com presente, os mano,
as mina”, “Na dança da garrafa o Chuck dá risada/ Ele tá segurando uma garrafa
quebrada/ Cuidado se você for dar uma abaixadinha/ O Chuck te enforca usando
uma cordinha”, “Da minha coleção nenhum brinquedo sobrou/ Ele matou os
playmobil, a barbie ele estrupou” e “O pânico, o terror, o sangue, o medo/ Ninguém
explica isso, nem o Padre Quevedo”.
Música disponibilizada, uma rápida campanha de propaganda “corpo a corpo”
na prórpia internet fez com que o Manymais saltasse para o topo das paradas de
busca de alguns sites. O burburinho chegou à MTV e o apresentador Marcos Mion
tratou de fazer o resto do trabalho. Logo veio um contrato com a Warner e o trio
viajou para o Rio de Janeiro para gravar o single promocional de Segura o Chuck
com duas versões, uma mais lenta, puxada para o rap, e outra mais rápida, com
guitarras pesadas e vocais acelerados.
E o que prometia virar um grande furacão na música pop nacional acabou
degringolando. Sha-Zan e Charly Xyn culpam alguns erros da gravadora. “Primeiro,
descaracterizaram a banda fazendo um clipe da versão rock sem sequer nos
consultar”, reclama Xyn. Além de lançar o grupo sem a identidade do rap, os manos
alegam que o vídeo – feito apenas com animação – havia custado muito caro (R$ 10
mil, contra os R$ 10 da versão tosca inicial).
Sha-Zan também relembra o atraso no cronograma “Gravamos o single no
começo do ano passado, o disco saiu em maio e só começou a tocar nas rádios em
julho. O clipe novo só foi produzido entre setembro e outubro, divulgado em
dezembro e veiculado a partir de janeiro deste ano. Ficamos quase um ano presos e
perdeu-se o timing da piada. Já ficou um clima esquisito com a gravadora. Ainda por
cima nos indicaram um empresário que, depois que gravamos um rap para uma
campanha contra a dengue feita pela Globo de São Paulo, pegou os mil reais que
recebemos, nem pagou a gente e nunca mais voltou sequer a nos procurar”, conta.
“Aí queimou o filme e a paciência com a gravadora.”
Contrato rescindido, o primeiro semestre significou um período de
reconstrução para a dupla. Tiagus foi substutído pelo DJ DVD (membro não-fixo na
180
formação oficial) e o grupo passou a admitir a idéia de fazer shows e ainda a
preparar seu primeiro álbum em casa. Conversas com outra grande gravadora já
estão adiantadas, mas caso o Manymais não chegue a um acordo, o disco deverá
ser lançado por conta própria no final de setembro.
Segura o Chuck – parte 2
A escolha do repertório foi um caso à parte. A dificuldade ocorreu na hora da
eliminação. Além das doze faixas selecionadas há outras tantas dezenas de letras
(cinco ou seis, divergem os irmãos) já prontas, esperando um tempo para a criação
do arranjo. O humor afiado, vozes escrachadas, o pensamento (dá para notar que
os versos não são tão simples como parecem ser) e o cruzamento de informações
com o rock (entre os samples utilizados estão trechos mais ou menos reconhecíveis
de ícones do rock como Deep Purple, AC/DC e Nirvana) apontam para uma grande
referência, devidamente assumida por Zan e Xyn: o primeiro álbum dos Beastie
Boys (Licensed To Ill, de 1986, que deixou para a história hits como “Fight To Your
Right To Party” e “Don’t Sleep Till Brooklyn”).
“Segura o Chuck” pertence à Warner e não estará no disco. Entretanto, os
manos mais do que rapidamente fizeram uma nova música sobre o boneco. “Segura
o Chuck – Parte 2” fala de mais mortes horríveis de brinquedos e ainda brinca com
os clichês de desenho animado (“Muitos policias já fizeram sua parte/ Agora vão em
paz/ Isso é mais um caso para os Manymais”) e continuações cinematográficas de
carnificina (“Segura o Chuck parte 2 / De novo o mesmo filme que eu já assisti”).
Sobra até para um personagem curitibaníssimo – Inri Cristo aparece em voz e
imitação. Por falar em seqüências do assassino, uma outra (“Chuck In Rio”,
composta em iglês) já está pronta e disponível para quem procurar na rede.
Há ainda outras faixas de primeira grandeza no futuro primeiro álbum dos
Manymais, sempre com humr afiado e melodias-chiclete. Em “Nóis É DJ”, eles
chupam descaradamente o irresistível riff da guitarra de “You Shook Me All Night
Long” e satirizam a febre de rodar discos que tomou conta da molecada nos últimos
anos (“Inventado no antigo/ Lá na terra do inglêis/ Se criou o toca-disco/ Instrumento
dos DJs/ Hey, hey, hey/ Nóis é DJs”). O mais engraçado é a voz esganiçada de
Brian Johnson feita por um dos rappers.
Nas rimas de “Website”, Xyn e Zan discutem a azaração na internet: “É no
website que eu passo a minha night/ Tô ficando com umas mina que são o mó
megabyte/ Dá pra namorá tomando uns mé/ Eu nem tomo banho e fedo chulé/ O
problema é saber se é homem ou mulher/ Porque aqui ninguém fala direito o que
que é/ Na web não tem atentado ao pudor/ Mulheres peladas estão ao seu dispor/
Nem mesmo o Bill Gates pudia supor/ Tamanhas imundícias no computador”. Em
“Videogame, eles vão fundo em outra dependência tecnológica. “Pra jogar o
videogame tem que ser que nem eu sou/ Raciocínio ligeiro entender computador/
Minha infância foi cruel e hoje não me alugo/ Perdi meu tempo com o João Gordo,
com o Hugo”, cantam os irmãos.
Protesto no aeroporto
181
Este ano também ocorreu outro acontecimento marcante na carreira do
Manymais. No dia 5 de abril, o trio pulou a cerca que separa da rua a cabeceira da
pista do Aeroporto Afonso Pena, em São José dos Pinhais (região metropolitana da
Curitiba). “Volta e meia a gente toma sorvete em frente à cabeceira, vendo avião
subir e descer. E reparamos que estava muito fácil, tudo meio escancarado”, relata
Sha-Zan. “Então tivemos a idéia de invadir a pista para protestar. Acabamos
pegando o que estava ocorrendo de maior destaque na imprensa na época”.
Como só se falava do cerco imposto pelo exército israelense a Yasser Arafat
no próprio QG do líder da Palestina, o Manymais entrou na pista do aeroporto com
uma faixa pedindo liberdade para Arafat e provocando atrasos nos vôos que
estavam prontos para a decolagem. Antes, claro, tiveram todo o cuidado para avisar
jornais, fotógrafos e equipes de televisão, para registrar o corrido. Na hora, porém,
os seguranças da Infraero trataram de recolher a trinca em uma sala reservada para
uma advertência e posterior liberação. No dia seguinte, a notícia correu por todo o
país – há o sample de uma repórter narrando a insólita aventura. Mais do que isso,
Zan, Xyn e DVD ganharam o status de “grupo de atitude”.
Em tempos onde ser branco e apostar no humor não são mais contraindicações para quem quer fazer rap (Beastie Boys e sobretudo Eminem que o
digam), os Manymais se preparam para, finalmente, fazer você cantar e dançar sem
parar de rir. Afinal, se Matt Groening fosse criar uma banda de rock para um novo
desenho animado, Sha-Zan e Charly Xyn seriam sérios candidatos a personagens
principais.
182
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