A sociedade no ritmo do funk Com letras polêmicas, um novo movimento ganha voz e reflete um novo tipo de comportamento “Se eu fico sem, eu tenho a sensação que eu vou morrer. É a treva”. A declaração nasce em lábios negros, acompanhados por dentes brancos e alinhados, brilhantes por pedras de strass. Parte de alguém que não sabe explicar os sentimentos, ainda. As palavras se misturam ao som do bar em que a garota toma a última bebida antes de entrar na danceteria, construída no lado oposto da rua. Steffaanny Semeão de Lima, 18, é dona de uma paixão desenfreada pelo funk, de um shorts que deixa suas pernas longas a mostra e da ausência de mãe em sua criação. A relação com o ritmo é intensa e alimentada semanalmente desde os 12 anos. “Eu vou pro funk quarta, sexta, sábado e domingo”. O destino, desta vez, foi a casa noturna Nitronight. As luzes da danceteria esquentam o vermelho forte da fachada e convidam os recém-chegados à festa. “Algumas meninas ficam do lado de fora, elas querem conhecer um cara pra pagar bebida”, conta Diego Garcia, 20, também freqüentador do local. Comportamento cantado pelo grupo Gaiola das Popuzadas na música “Um otário para bancar”. As unhas são curtas e pintadas por um esmalte escuro e descascado, o rosto infantil combina com as presilhas pequenas, destacadas nos longos cabelos feitos com fios de plástico. O tom de voz é empolgado e às vezes dá lugar a pequenos gritos e risadas, mas vira embargado ao lembrar algo vivido em um dos bailes. “Eu tava dançando e um menino veio e me empurrou. Eu quis matar ele, quando eu bebo tenho vontade de matar as pessoas”, confessa a menina. O doutorando em ciências sociais, Expedito Leandro Silva, explica a música como uma busca por referência. “O pobre que se vê marginalizado encontra no funk sua identidade. É como se alguém cantasse a realidade deles”. Steffaanny não consegue engolir o nó que nasce na garganta ao falar de sua família. “Eu moro com os meus irmãos e eles sempre ficam na rua”, comenta. Para o estudioso, “a música é uma forma deles viverem em sociedade. Eles encontram outras pessoas na mesma situação”, conclui. Funk Consciente Paralelamente ao hit da pornografia explícita, surge um subgrupo dentro da música funk. O movimento vem com força e espera atingir a mesma popularidade. “O pessoal critica muito, mas no baile funk não tem só minissaia”, conta MC Jhony, de 17 anos. A gíria ganha ainda mais força em seu discurso adolescente. Jhony canta há um ano e meio nos bailes do Brasil, sempre acompanhado de MC Magrão, 34. Para a dupla, o sentido das letras de funk está no protesto, em “falar do dia a dia das favelas”. E por que não o Rap? “O funk é muito mais alegre”, diz Jhony. Magrão é pernambucano e vem do “funk das antigas”. Optou pelo ritmo pesado, pelas batidas envolventes. Hoje ganha a vida em uma banquinha de CDs no centro de São Paulo. Para ele, ainda falta espaço para sua música. “É muito mais fácil ganhar dinheiro com putaria”, afirma com indignação. Embora se considere “mente aberta”, inclusive com aspectos “revolucionários”, Magrão ainda reproduz dentro do baile a posição masculina machista. “A mulher adora se exibir, ver que está abalando, que o homem está olhando para ela. Hoje estão mais vulgares que os homens”, diz. Já Jhony enxerga a mulher como “mais poderosa” dentro do funk. O neofeminismo das funkeiras A força das cachorras e potrancas do funk não está somente na dança sensual ou no rebolado provocante. Com o movimento, surge também um novo papel da mulher na sociedade. “São mulheres que não encontravam respaldo social fora de suas comunidades”, afirma a professora Márcia Fonseca Amorin, em entrevista à Folha de Londrina, que usou o tema para sua tese de doutorado. Steffanny concorda. Sempre que ouve a palavra funk, uma vivacidade diferente sai de seu olhar e chega aos lábios. A satisfação é nítida. E quando fala, o brilho dos dois pircings presos em sua língua explode. “Antes, o funk era muito machista, mas hoje as mulheres estão se igualando dentro do movimento”, conta. Expedito Silva compartilha a mesma opinião. Segundo ele, “dentro dos bailes a mulher encontrou uma maneira de autoafirmação, e isso independe da minissaia”. Ela assume uma posição autônoma e é responsável por suas escolhas, contraditoriamente à atitude da geração anterior à sua, geralmente submissa. O doutorando fala ainda que esse tipo de preconceito é originário de todo tipo de música popular massiva. Defende que, além do rebolado, estão as reais razões que levam mulheres a cantar e reproduzir letras eróticas. “Pode parecer agressivo, mas se formos olhar o contexto, esse linguajar que para muita gente é chulo, vulgar, faz parte do dia-a-dia da sociedade brasileira. Não foi o funk que criou”, diz Márcia Amorin. Dayse Oliveira e Natália Oliveira