A NORMA DAS CONSTITUIÇÕES E A CONSTITUIÇÃO DA NORMA NO SÉCULO XIX Emilio Gozze Pagotto* Resumo: o texto apresenta os resultados de um estudo comparando os dois primeiros textos constitucionais brasileiros: a constituição do Império, de 1824, e a constituição da República, de 1891. A comparação entre os dois textos permite concluir que teria havido, no espaço de tempo decorrido entre os dois textos, uma alteração significativa nos padrões normativos daquilo que se concebe como boa ou má língua, ao menos quanto às construções aqui examinadas. De fato, quanto à posição dos pronomes clíticos, quanto ao emprego de preposições em completivas e relativas, quanto ao emprego do relativo onde, dentre outras construções, percebe-se uma clara diferença de preferência entre um e outro texto constitucional. Elas materializam a passagem entre o que se costuma chamar de português clássico e o que se costuma chamar de português moderno, este último entendido aqui como o português normatizado que se recomenda nos manuais de gramática. Tal passagem de uma norma a outra se dá, no Brasil, à revelia dos processos de mudança em curso e da direção que redundará no português brasileiro atual. Palavras-chave: normatização, português clássico, português europeu moderno, português brasileiro. 1. Introdução O século XIX é palco de uma contradição linguística aparente: de um lado é apontado como o período em que o português do Brasil chega a um ponto de inflexão, na direção de suas características atuais; de outro lado, é reconhecido como o período em que se fixa a moderna norma padrão recomendada pelos manuais de gramática atuais. O primeiro movimento tem sido capturado por meio do estudo de textos que refletiriam o vernáculo falado e foi sintetizado por Tarallo (1993); o segundo movimento, ainda difusamente apreendido, é objeto deste trabalho.1 O que se pretende é relativamente simples: comparar os dois * Doutor em Linguística, UNICAMP. Note o leitor que este texto antecede os demais, que tenho produzido a respeito do tema. Sua primeira versão é ainda de 1993 e foi escrita como um trabalho de final de curso de uma disciplina do prof. Eduardo Guimarães, quando eu ainda cursava o doutorado. Uma versão posterior foi apresentada no II Seminário do Projeto para a História do Português do Brasil, não ganhando publicação por razões que me fogem. Em Pagotto (1998) os resultados que aqui se publicam serviram de base para as reflexões acerca do processo político de construção normativa no Brasil. 1 Linguagem & Preconceito – Emilio Gozze Pagotto n 31 textos constitucionais do século XIX - a constituição do Império, de 1824, e a primeira constituição republicana, de 1891, à luz de alguns processos de mudança. Como são textos produzidos nos limites temporais do período e, em princípio, seriam os representantes máximos do cuidado com a linguagem, não se esperaria que houvesse grandes diferenças entre eles, no que diz respeito à gramática em que foram escritos. Se mudanças há, que tipo de gramática estaria sendo refletida: aquela que caminha para o português atualmente falado no Brasil, ou aquela que caracteriza o português recomendado pelas gramáticas normativas atuais? Seu ponto de partida é a constatação de que, com a vinda da família real para o Brasil e a posterior independência, um movimento de constituição da nacionalidade procurou construir uma elite intelectual e política que se distanciasse da maioria da população, aproximando-se dos padrões europeus de comportamento, um processo “civilizatório”, que buscava tirar as suas elites da vida “primitiva” em que supostamente chafurdava o Brasil colonial, para entrar no mundo das grandes nações. Nada muito diferente de movimentos semelhantes havidos até recentemente. Alencastro (1997) chama a atenção, ainda, para o aspecto linguístico envolvido nesse movimento: A partir dos anos 1850, quando o Jornal do Comércio começa a publicar o registro dos debates parlamentares previamente taquigrafados, os leitores de todo o Império puderam familiarizar-se com a linguagem mais apurada que predominava na corte, ou melhor, com a versão padronizada dos discursos editados pelo jornal. Com efeito, as seções da Câmara e do Senado passaram a ser transcritas numa sintaxe e num vocabulário mais polido, que apagava os regionalismos difundidos na imprensa provincial durante os embates políticos das revoluções regenciais. Em momentos diversos, Gonçalves Dias e o jovem Machado de Assis trabalharam como revisores dos discursos da Câmara e do Senado.2 (Alencastro: 1997, p. 34) Se agregarmos a esta informação as polêmicas nas quais José de Alencar esteve envolvido, teremos um quadro em que, a partir da consolidação do Império, pondo-se em prática o projeto de construção da nacionalidade, irradiado especialmente a partir do Rio de Janeiro, um trabalho de normatização procurou fixar uma nova norma culta, que chega aos começos do século XX devidamente descrita e codificada pelos gramáticos e vem, até os dias de hoje, como padrão idealizado de linguagem. 2 Pode-se ainda retirar desta passagem uma indicação de fontes de pesquisa muito interessantes para a história do português do Brasil, como se vê. 32 n Revista LETRA – Rio de Janeiro • 2013 No que se segue, temos uma investigação dos dois textos constitucionais mencionados sob duas formas: um pequeno estudo quantitativo3 sobre a posição dos clíticos e o registro de itens da gramática ou do léxico que poderiam servir de índices do processo de alteração dos padrões normativos. 2. A posição dos clíticos pronominais nos textos constitucionais do século XIX Vários trabalhos registram mudanças no português brasileiro e europeu, no que toca ao sistema de clíticos pronominais: tanto a perda dos clíticos acusativos de 3ª. pessoa (Duarte: 1986, Cyrino: 1993, dentre outros), quanto à mudança na posição dos clíticos na sentença (Pagotto: 1992, Cyrino: 1993, Nunes: 1993), bem como as mudanças envolvendo o clítico se (cf., por exemplo, Nunes: 1990). Pagotto (1992) analisou a posição dos clíticos pronominais no período que vai do século XVI ao século XX. Seus resultados delimitam dois períodos bem distintos: aquele que vai do século XVI ao século XVIII e aquele que vai do século XIX aos nossos dias, com propriedades bem definidas. No primeiro temos: 1) Próclise a) a verbos simples de sentenças finitas, desde que precedidos de algum elemento; b) à negação, desde que precedida de complementizadores; c) ao primeiro verbo de grupos verbais, desde que precedidos de material lexical (a ênclise ao segundo verbo só começa a ocorrer nos seus dados, com alguma frequência, a partir da 2ª. metade do século XVIII); d) a infinitivos preposicionados (há variação, mas a próclise é majoritária). 1) Ênclise a) a verbos finitos iniciando período; b) a gerúndios e infinitivos não preposicionados. A partir do século XIX, contrariamente ao que seria esperado, os resultados revelam uma frequência alta de: a) ênclise a verbos simples de sentenças finitas; b) ênclise ao segundo verbo de grupos verbais; c) ênclise a infinitivos preposicionados. 3 Na versão original do trabalho, foram apresentados os resultados de outros dois estudos quantitativos: um sobre a posição do sujeito em relação ao verbo e outro, sobre o preenchimento do sujeito. Tais resultados não apontaram para nenhuma diferença significativa entre os textos constitucionais e, por razões de espaço, foram excluídos da versão que ora se publica. Linguagem & Preconceito – Emilio Gozze Pagotto n 33 Os resultados eram estranhos, porque, se tomamos por base que o português brasileiro atual é essencialmente proclítico, e, se o português dos séculos XVI-XVIII já se revelava bastante proclítico, seria de esperar que os textos do século XIX já apresentassem tais características de próclise. Obviamente esse desvio se deveu ao uso de fontes do século XIX que não refletiriam a língua do período, uma vez que trabalhos como o de Cyrino (1993) e Martins (1994) mostram claramente a mudança a partir do século XVIII. No caso de Cyrino (1993), em direção ao português brasileiro atual; no caso de Martins (1994), na direção do padrão enclítico do português europeu atual. Podemos, a partir dos resultados de tais trabalhos, formular a mudança na posição dos clíticos pronominais, mais ou menos da seguinte maneira: 1) o século XVI assiste a um incremento da próclise em sentenças finitas que tende a ficar estável até o século XVIII em textos mais formais, como documentos notariais, cartas oficiais, etc.; 2) a partir de meados do século XVII, os textos portugueses começam a registrar uma implementação da ênclise, que chega à segunda metade do século XIX com praticamente 100%; 3) no Brasil, dois movimentos podem ser registrados: o sistema de textos mais formais tenderá à ênclise em sentenças não encaixadas, revelando uma aproximação com o português de Portugal moderno; por outro lado, seria possível captar, em textos mais próximos do vernáculo falado, a mudança na direção da proclitização radical, como temos hoje em dia. Vejamos como se comportam os textos constitucionais, face os quadros esboçados acima. Os 284 clíticos registrados nas duas constituições se encontram distribuídos em diversos contextos estruturais, como se pode ver na tabela 1, a seguir: Império (XIX-I) República (XIX-II) Contexto Linguístico Não encaixada (sem negação) 37 43 Encaixada ou adverbial finita 50 40 Gerundiva 10 19 Infinitiva prep. 7 5 Infinitiva não prep. 11 9 Negação 8 5 Grupos Verbais 30 10 Total 153 131 Verbos simples Tabela 1 – Distribuição dos clíticos por contextos estruturais relevantes, nos dois textos constitucionais. 34 n Revista LETRA – Rio de Janeiro • 2013 Há 40 dados de clíticos localizados em grupos verbais; os restantes ocorrem com verbos simples. Há 90 casos de verbos simples em orações encaixadas ou adverbiais. Esses contextos têm se mostrado, em trabalhos descritivos sincrônicos e diacrônicos, como de aplicação de próclise, não estando, em geral, sujeitos a variação. No caso das duas constituições, não houve variação quanto à posição do clítico, ocorrendo a próclise categoricamente.4 Portanto, tais dados não serão utilizados daqui por diante, no presente trabalho. A posição dos clíticos em sentenças não encaixadas, com verbos simples, já revela uma grande diferença entre os dois textos constitucionais, como se pode ver na tabela 2: Constituição Próclise % Império 29/37 7% República 5/43 12% Tabela 2 – Frequência de próclise nos dois textos constitucionais, com verbos simples de sentenças não encaixadas, sem elementos “atratores”. Lembro ao leitor que tais sentenças não incluem a presença de negação nem de outro operador que desencadeasse próclise. Claramente se percebe que a constituição do Império é muito mais proclítica que a constituição da República. É preciso dizer que os casos de mesóclise estão aí computados como ênclise. Como a mesóclise é bastante estranha ao português atual, pode-se pensar que ela esteja influenciando de alguma maneira as frequências acima (ou seja, as formas de futuro do presente e futuro do pretérito acarretariam próclise). Este não é o caso. Do total de ênclises da constituição republicana (38 casos), 30 são ocorrências de mesóclise; na constituição do Império, dos 8 casos de ênclise, 3 são de mesóclise. Ou seja, as ênclises republicanas se implementam mesmo nos contextos em princípio refratários à ênclise. Pode-se pensar também que a posição do verbo na sentença esteja influenciando a distribuição das frequências. Em Pagotto (1992) como em Cyrino (1995) e em Martins (1994) esse foi um fator relevante. As três condições estruturais relevantes são: a) o verbo é precedido de material lexical, no âmbito da própria sentença em que se encontra (X V): (1) A sua eleição se fará na capital da província. Para não dizer que foi categórico, há um dado com ênclise nesse contexto, o que poderia revelar hipercorreção, especialmente se considerarmos os resultados que vêm a seguir. 4 Linguagem & Preconceito – Emilio Gozze Pagotto n 35 b) O verbo está no começo de sentença, precedido de uma outra sentença adverbial (...V ): (2) Admitida a discussão, e vencida a necessidade da reforma do artigo constitucional, se expedirá lei, que será sanccionada e promulgada pelo imperador. c) O verbo é cabeça do período (V....): (3) Dar-se-há habeas corpus sempre que o indivíduo sofrer ou se achar em iminente perigo de sofrer violência ou coação por ilegalidade ou abuso de poder. Em nenhum desses casos a próclise é opção em português europeu moderno, segundo Martins (1994). As gramáticas normativas brasileiras atuais admitem a próclise no primeiro caso e a condenam nos contextos b e c. Os resultados são bastante interessantes, quando observados esses contextos estruturais, especialmente na constituição do Império, como se pode ver na tabela 3: Império Posição do verbo República Próclise % Próclise % X V 21/23 91 5/34 14 ... V 7/10 70 0/3 0 V ... 1/4 25 0/6 0 Total Tabela 3 – Frequência de próclise em verbos simples de orações não encaixadas, segundo a posição relativa do verbo. A tabela 3 nos mostra, em especial, que a diferença entre os percentuais de próclise nas duas constituições não é devida a uma atuação da posição do verbo na sentença. No contexto em que o verbo é precedido de material lexical no interior da própria sentença X V, o texto de uma difere radicalmente do da outra: a constituição do Império tem 91% de próclises nesse contexto, enquanto a constituição republicana apresenta 14%. A tendência proclítica da constituição do Império pode ser confirmada nos outros dois contextos estruturais. No contexto ...V, em que o verbo inicia a sentença, mas é precedido de uma adverbial, a constituição do Império apresenta 7 casos de próclise em 10; mesmo quando o verbo inicia o período, há um caso de próclise na constituição do Império, que transcrevemos a seguir: (4) Art. 131 Haverá differentes Secretarias de Estado. A Lei designará os negocios pertencentes a cada uma, e seu número; as reunirá, ou separará, como mais convier. 36 n Revista LETRA – Rio de Janeiro • 2013 Diante desses resultados, o que se poderia perguntar é: seria a constituição do Império mais “brasileira” que a constituição da República, no que diz respeito à posição dos clíticos pronominais? Se observarmos outros contextos, perceberemos que essa impressão de “brasilidade” é falsa. Vejamos inicialmente a posição dos clíticos nos grupos verbais, em que há, conforme o caso, até quatro possibilidades de posição para o clítico: a) próclise ao primeiro verbo cl-V V b) ênclise ao primeiro verbo V-cl V c) próclise ao segundo verbo V cl –V d) ênclise ao segundo verbo V V-cl Destas, a variante c é típica do português brasileiro moderno, enquanto as demais são encontráveis em português europeu (lembremos que a variante d sofre restrição quando o segundo verbo está no particípio). Vejamos como os clíticos se comportam em tais contextos estruturais, nas duas constituições: Constituição cl-V V V-cl V V-cl V V-cl V Total Oc. % Oc. % Oc. % Oc. % Império 21 70 1 3 0 0 8 27 30 República 3 30 1 10 0 0 6 60 10 Tabela 4 – Posição dos clíticos em grupos verbais nas duas constituições. A tabela 4 nos mostra novamente um padrão diferenciado para a posição dos clíticos nas duas constituições. No caso da constituição do Império, predomina a próclise ao primeiro verbo; no caso da constituição republicana, predomina a ênclise ao segundo verbo. Observe-se que nos dois textos constitucionais não foi registrada nenhuma ocorrência da variante com próclise ao segundo verbo, que caracteriza o português brasileiro atual. Confrontados esses resultados com os da tabela 3, pode-se perceber que aqui a constituição do Império perde a suposta “brasilidade” que os resultados da tabela 3 poderiam sugerir. Por outro lado, na constituição republicana, o padrão de ênclise a verbos simples se encaixa com o padrão de ênclise ao segundo verbo de grupos verbais aqui registrado. Ou seja, há uma clara mudança na preferência das formas, mas nenhuma delas é brasileira. O contexto que envolve a negação pré-verbal pode nos fornecer mais uma pista para entender a gramática que subjaz aos dois textos constitucionais. Neste contexto, há duas posições possíveis: Linguagem & Preconceito – Emilio Gozze Pagotto n 37 a) a próclise à negação cl-Neg V b) a próclise ao verbo Neg cl-V A próclise à negação, no português normativo atual, está restrita aos casos em que se trata de contexto obrigatório de próclise (como em sentenças encaixadas). Nos dados de Pagotto (1992), a ocorrência de próclise à negação se dava também em sentenças não encaixadas. Os dados são poucos nas duas constituições, mas igualmente sugestivos: Constituição Total Neg cl-V cl-Neg V % Oc. % Oc. Império 8 100 0 República 2 40 3 60 5 Total 10 3 5 13 8 Tabela 5 – Posição dos clíticos em relação à negação pré-verbal. Como se vê na tabela 5, na constituição do Império a opção pelo clítico antecedendo a negação foi categórica, nos 8 casos possíveis; na constituição da República dos 5 casos, 3 estão em posição pré-verbal. Novamente, os dados mostram que a constituição do Império não reflete a mudança no português brasileiro, que não disponibiliza a interpolação da negação. A constituição da República, por outro lado, está bem de acordo com o português normativo e o português europeu moderno: há dois casos de interpolação, ocorridos em sentenças encaixadas. A análise dos clíticos em sentenças infinitivas e gerundivas pode nos auxiliar a compor o retrato que estamos tentando compor, no qual nenhuma das duas constituições parece refletir as mudanças que estavam em curso no português brasileiro no século XIX. A tabela 6 apresenta a próclise em sentenças com gerúndio: Próclise Constituições Freq. % Império 2/10 20 República 1/19 5 Tabela 6 – Frequência de próclise em sentenças gerundivas. Aqui as duas constituições se igualam, especialmente se considerarmos que as três ocorrências de próclise ocorrem em sentenças nas quais o gerúndio 38 n Revista LETRA – Rio de Janeiro • 2013 vem precedido de algum elemento lexical. O mesmo se pode perceber nos dados de infinitivas não regidas por preposição: Próclise Constituições Freq. % Império 0/11 0 República 0/9 0 Tabela 7 – Frequência de próclise em sentenças infinitivas não regidas de preposição. Novamente, as duas constituições apresentam um mesmo padrão: a ênclise é categórica nas sentenças infinitivas não regidas de preposição e mais uma vez nenhuma delas reflete as mudanças em curso no século XIX. Já os resultados com infinitivas preposicionadas voltam a afirmar a diferença entre os dois textos constitucionais, como se pode ver na tabela 8: Próclise Constituições Freq. % Império 7/7 100 República 2/5 40 Tabela 8 – Frequência de próclise em sentenças infinitivas preposicionadas. Voltamos à diferença estabelecida pelos verbos simples em sentenças finitas: a constituição do Império é eminentemente proclítica, enquanto a constituição republicana tende para a ênclise no contexto de infinitivas regidas de preposição. 2.1. Algumas conclusões – algumas hipóteses Se voltarmos aos resultados de Pagotto (1992), especialmente no período que vai do século XVI ao século XVIII, perceberemos que a constituição do Império tem um comportamento totalmente coincidente com tais resultados. Isto levaria a que fixássemos o seguinte ponto de partida: a gramática da constituição do Império é basicamente a norma do português clássico. O interessante é que, do ponto de vista da Teoria da Variação e da Mudança, espera-se que textos de épocas diferentes reflitam estágios diferentes de um dado processo de mudança, na direção apontada pelo estágio sincrônico. Dadas as características do português brasileiro atual, como explicar os resultados na constituição republicana? É mais ou menos óbvio que eles refletem a norma culta lusitana atual, a mesma pela qual se guiam nossos manuais de gramática. O que Linguagem & Preconceito – Emilio Gozze Pagotto n 39 chama a atenção é que, uma vez que os dois textos são de mesma natureza discursiva, espera-se que ambos tenham o mesmo grau de monitoração do uso linguístico. Por conseguinte, o texto da constituição do Império é uma mostra de que até 1824 a norma portuguesa para o texto escrito era uma; no final do século, já era outra. É no espaço de tempo entre uma e outra que o português de Portugal dá às mudanças que por lá se efetuavam o estatuto de norma culta. Provavelmente, em Portugal esta mudança de atitude deve estar relacionada ao romantismo, que popularizou a escrita e tinha como um de seus aspectos programáticos a aproximação com um novo público leitor, incorporando mudanças havidas na fala. A este propósito, vale a pena dar uma olhada no trabalho de Martins (1994) sobre a mudança na posição dos clíticos em português europeu. A autora detecta três períodos importantes. O primeiro, que vai do século XIII ao século XV, apresenta um padrão de ênclises muito mais produtivas (além de características que depois desapareceram, como a subida do clítico para posições mais altas na sentença; em períodos posteriores, somente a interpolação da negação e de alguns advérbios parece ter sido possível). No século XVI a próclise sobe bastante de produtividade, mas a autora detecta, já no século XVII, os começos de uma mudança em andamento, na direção da ênclise. Esta mudança é concretizada no século XIX, em que se vão encontrar resultados de ênclise praticamente categóricos. Observe-se, a propósito, que a autora lida com esses resultados como produto de mudança gramatical, ou seja, alterações na estrutura da língua em funcionamento que se vão incorporando na escrita. Chega mesmo a supor que, para certos autores, haveria uma espécie de escolha entre duas gramáticas – uma ligada a padrões de escrita e outra fruto das mudanças da língua em uso. A certa altura do texto a referia autora assinala: ...Certas ocorrências de próclise nos textos de Vieira não decorreriam de sua própria gramática, mas teriam o carácter de empréstimos às gramáticas de alguns de seus contemporâneos ou às gramáticas de autores tomados como seus modelos literários. (Note-se que a grande maioria dos textos escritos a que Vieira teria acesso na época seriam do século XVI ou a autores que espelhariam a “antiga” colocação dos clíticos (...) O quadro ter-se-á alterado no século XIX, com a expansão (entre os falantes do português europeu) do tipo de gramática saído da mudança iniciada no século XVII. A gramática arcaizante encontrar-se-ia agora representada apenas em domínios dialectais socialmente menos prestigiados. Os falantes que dela dispunham já não podiam influenciar os falantes que haviam adquirido a gramática inovadora. (Martins: 1994, p. 297-298, aspas do original) 40 n Revista LETRA – Rio de Janeiro • 2013 Se aceitarmos os argumentos da autora5, poderíamos dizer que o Brasil teria sofrido o mesmo processo, só que com atraso. Porém, há uma diferença, no nosso caso: enquanto em Portugal os autores românticos conferem às formas novas (no caso, a ênclise) o estatuto de formas de prestígio, no caso do Brasil, as mudanças aqui ocorridas não são incorporadas como modelo de língua a ser seguido. No Brasil, terminamos o século XIX com uma nova norma importada de Portugal. O movimento em Portugal parece bem claro: uma nova gramática emerge e, aos poucos, vai tomando a escrita, até se expandir completamente no século XIX. No Brasil, a gramática antiga é abandonada por outra, moderna, sem que isto passe necessariamente pela incorporação de formas do português brasileiro falado. O mais interessante é que isso parece se dar no intervalo de 60 anos. Esta mudança nos padrões normativos teria estreita ligação com o processo de europeização que o país sofreu ao longo do século XIX, assim como pode ter ligação com a forte imigração portuguesa verificada no século XIX. Segundo Alencastro (1997) pelo menos duas grandes levas podem ser detectadas: na vinda da família real e em meados do século XIX. Mais que tudo isso, porém, é importante destacar que o processo de alçamento de formas novas à escrita nem sempre segue o percurso que nos predispomos a ver: é possível que se passe um valor normativo a outro, sem que isto se dê, necessariamente, pela incorporação, na escrita formal, da gramática vernácula emergente. Outra observação importante a fazer diz respeito ao trabalho de fixação da norma culta pelo trabalho de descrição e sistematização gramatical. Até os dias de hoje, sobreviveu esta norma culta cunhada ao longo do século XIX, que tem sido utilizada como parâmetro para uma suposta unidade linguística com Portugal. Tal unidade, longe de ter sido fruto de um processo natural de convergência, foi construída a ferro e fogo. Uma vez codificada e higienizada pelos gramáticos, passou a valor dominante, do qual os brasileiros não conseguem escapar, porque se tornou parâmetro avaliativo último do texto escrito.6 3. Emprego de preposições Nesta seção gostaria de explorar brevemente algumas construções envolvendo o emprego de preposições: as construções com pronome relativo, as encaixadas completivas nominais, expressões adverbiais sem preposição e o emprego da preposição a. De lá para cá, vários trabalhos têm procurado reavaliar a mudança sofrida pelos clíticos. Ainda que a época de implementação da mudança ou mesmo as estruturas relevantes sejam objeto de discussão, penso que o ponto central que discutimos aqui ainda se mantém. 5 6 O processo histórico e político implicado na alteração normativa foi objeto de vários trabalhos posteriores e as hipóteses aqui apenas delineadas têm sido refinadas, numa investigação ainda em curso. (cf. Pagotto: 1998, Pagotto: 2001, Pagotto e Duarte: 2005, Pagotto: 2008, Pagotto: 2011, Cavalcante, Duarte e Pagotto: 2011. Linguagem & Preconceito – Emilio Gozze Pagotto n 41 No caso das construções relativas, Tarallo (1983) estudou o processo de mudança de que são objeto, tendo constatado a entrada da relativa cortadora no sistema do português brasileiro, mudança encaixada em outras. Não se esperava encontrar nos textos constitucionais nenhuma construção relativa que fosse não padrão (cortadora ou com pronome lembrete). Mas há, na constituição do Império, dois casos em que a relativa aparece sem preposição, como se pode ver a seguir: (5a).Art. 65 – Esta denegação tem effeito suspensivo sòmente: pelo que todas as vezes, que as duas Legislaturas que seguirem áquella, que tiver approvado o Projeto, tornem successivamente a apresental-o nos mesmos termos, entender-se-há, que o Imperador tem dado a Sancção. (5b) Art. 179 – I – Ainda com culpa formada, ninguem será conduzido á prisão, ou nella conservado estando já preso, se prestar fiança idonea, nos casos, que a lei a admite; e em geral nos crimes, que não tiverem maior pena, do que a de seis mezes de prisão, ou desterro para fóra da Comarca, poderá o Réo livrar-se solto. Esse tipo de construção co-ocorre com outro, em que a preposição se encontra presente: (6) Art. 142 – Os Conselheiros serão ouvidos em todos os negocios graves. e medidas geraes da publica Administração; principalmente sobre a declaração de Guerra, ajuste de paz, negociações com as Nações estrangeiras, assim como em todas as occasiões em que o Imperador se propinha exercer qualquer das attribuições proprias do Poder Moderador, indicadas no Art. 101, á execpção da VI. Já na constituição da República, não foi registrado nenhum caso de relativa sem preposição. Nesse sentido, é interessante observar como ficou a redação do artigo citado acima, sobre as garantias individuais no texto republicano: (7) Art.72 par. 14 Ninguém poderá ser conservado em prisão sem culpa formada, salvas as execpções especificadas na lei, nem levado á prisão, ou nella detido, si prestar fiança idonea, nos casos em que a lei a admitir. Se comparadas as duas redações, vemos claramente a preocupação em não deixar relativas cortadoras, mesmo nos contextos em que o antecedente já vem regido da preposição de que se rege na subordinada. Casos como esses são reconhecidos como legítimos por alguns normativistas e teriam sido possíveis no português clássico. Um outro caso que pode ser comparado ao das relativas cortadoras é o do apagamento da preposição em completivas nominais. Na constituição do Império, há variação no emprego da preposição em tais construções, como se pode ver a seguir: 42 n Revista LETRA – Rio de Janeiro • 2013 (8a) Art. 29 – Os Senadores, e Deputados poderão ser nomeados para o Cargo de Ministro de Estado, ou Conselheiro de Estado, com a differença de que os Senadores continuam à ter assento no Senado, e o Deputado deixa vago o seu logar na Camara, e se procede a nova eleição, na qual póde ser reeleito e acumular as duas funções. (8b) Art. 41 – Cada Provincia dará tantos Senadores, quantos forem metade de seus respectivos Deputados, com a differença que, quando o numero de Deputados da Provincia fôr impar, o numero dos seus Senadores será metade do numero immediatamente menor, de maneira que a Provincia que houver de dar onze Deputados, dará cinco Senadores. Novamente, nenhum caso de apagamento da preposição em completiva foi registrado na constituição republicana; em todos os casos a preposição estava presente. E mais uma vez, mais de um gramático registra a possibilidade de omissão da preposição em tais construções, o que aponta para a sua aceitação no padrão clássico. Outro uso que diferencia as duas constituições é o emprego do relativo onde em contextos de regência de preposição a. Como se sabe, em português clássico as formas aonde e onde se empregavam indistintamente, quer como interrogativos, quer como relativos. Na constituição do Império, em todos os oito casos de emprego de relativo onde, a forma usada foi aonde, como no exemplo abaixo: (9) Art. 53 – O Poder Executivo exerce por qualquer dos Ministros de Estado a proposição, que lhe compete na formação das Leis; e só depois de examinada por uma Commissão da Camara dos Deputados, aonde deve ter principio, poderá ser convertida em Projecto de Lei. Já na constituição da República, categoricamente se usou a forma onde, como no exemplo a seguir: (10) Art. 37 (par. 1º.) Si, porém o Presidente da Republica o julgar inconstitucional, ou contrario aos interesses da Nação, negará sua sancção dentro de dez dias uteis, daquelle em que recebeu o projecto, devolvendoo, nesse mesmo prazo, à Camara onde ele se houver iniciado. Mais uma vez o contraste entre os dois textos aponta para normas diferentes em que foram codificados: a constituição do Império, escrita em português clássico, e a constituição da República, em português moderno. Por fim, uma última observação com relação ao emprego de preposições, em certos contextos específicos. Tomemos os seguintes artigos da constituição do Império e o artigo equivalente na constituição da República: Linguagem & Preconceito – Emilio Gozze Pagotto n 43 Império Art. 6º. São cidadàos Brazileiros: I. Os que no Brazil tiverem nascido, quer sejam ingenuos, ou libertos, ainda que o pai seja estrangeiro, uma vez que este não resida por serviço de sua Nação; II. Os filhos de pai Brazileiro, os ilegitimos de mãi Brazileira, nascidos em paiz estrangeiro, que vierem estabelecer domicilio no Imperio. III. Os filhos de pai Brazileiro, que estivesse em paiz estrangeiro em serviço do Imperio, embora elles não venham estabelecer domicilio no Brazil. República Art. 69 São cidadãos brazileiros: 1º. Os nascidos no Brasil, ainda que de pai estrangeiro, não residindo este a serviço de sua nação; 2º. Os filhos de pai brazileiro e os illegitimos de mãi brazileira, nascidos em paiz estrangeiro, si estabelecerem domicilio na Repiblica; 3º. Os filhos de pai brazileiro, que estiver noutro paiz ao serviço da Republica, embora nella não venham domiciliar-se. Tendo sido apontado pela literatura (p. ex. Ramos (1989)) que o quadro de preposições no português brasileiro teria sofrido uma redução, especialmente com a diminuição na frequência de emprego da preposição a, o que me chamou a atenção nos trechos acima foi a substituição óbvia das preposições em e por, utilizadas na constituição do Império, pela preposição a. É possível pensar que o quadro de preposições tenha sofrido um rearranjo quanto aos contextos estruturais de seu emprego, especialmente no que diz respeito ao espaço ocupado pela preposição a. Se lembramos que as pesquisas indicam uma diminuição do emprego da preposição a no português brasileiro, é possível ver a passagem de uma norma para outra como uma espécie de implementação desta preposição, num movimento contrário ao da língua. Veja-se, a esse propósito, mais uma comparação entre as duas constituições, no artigo que trata da autorização para contrair empréstimos: Império Art. 15 – é da Attribuição da Assembléa Geral: XIII. Autorisar ao governo, para contrahir emprestimos. República Art. 34. Compete privativamente ao Congresso Nacional 2º. Autorizar o Poder Executivo a contrahir emprestimos, e a fazer outras operações de credito; 44 n Revista LETRA – Rio de Janeiro • 2013 Não me parece ser possível, na norma atual, o emprego da preposição para, que se faz no artigo 15 da constituição do Império. É sintomático que a constituição republicana tenha alterado a estrutura de emprego do verbo autorizar, colocando o segundo complemento regido de a. Finalmente, podemos observar como há uma diferença significativa no emprego de preposições em construções de caráter adverbial indicando aspecto, no caso, quantificadas. Comparem-se os seguintes artigos dos dois textos aqui examinados: Império Art. 18 – Capítulo 1 A Sessão imperial de abertura será todos os annos no dia tres de Maio. República Art. 17 – O Congresso reunir-se-há, na Capital Federal, independentemente de convocação, a 3 de maior de cada anno, si a lei não designar outro dia, e funccionará quatro mezes da data de abertura; podendo ser prorrogado, adiado ou convocado extraordinariamente. Ambos os artigos tratam do mesmo tema. No caso da constituição do Império, chama a atenção o sintagma todos os annos, sem a preposição. Ao mesmo tempo, a data específica é indicada pela preposição em. Já na constituição republicana, a data é introduzida pela preposição a, enquanto se optou por uma construção adjetiva para indicar a frequência, substituindo-se o quantificador. Mas não podemos deixar de registrar a ausência de preposição, na constituição republicana, diante do sintagma quatro mezes, o que revelaria, agora, uma proximidade entre as duas normas, no que diz respeito ao emprego de preposição nesses contextos adverbiais. Na constituição do Império, tais sintagmas adverbiais não se encontram sempre sem preposição, embora sua ausência seja relativamente produtiva: Art. 65 – Esta denegação tem effeito suspensivo sòmente: pelo que todas as vezes, que as duas Legislaturas, que seguirem áquella, que tiver approvado o Projeto, tornem successivamente a apresental-o nos mesmos termos, entender-se-há, que o Imperador tem dado sancção. Art. 142 - Os Conselheiros serão ouvidos em todos os negócios graves (....) assim como em todas as occasiões em que o Imperador se proponha exercer qualquer das attribuições proprias do Poder Moderador (....) 4. Algumas curiosidades Por fim, gostaria de indicar dois ou três casos que me chamaram a atenção, mas aos quais não me é possível estabelecer o estatuto adequado. Penso que revelam mais uma vez a diferença entre uma norma e outra, que teria se estabelecido ao longo do século XIX. Linguagem & Preconceito – Emilio Gozze Pagotto n 45 4.1. Perfeito Composto Em dois artigos da constituição do Império há o emprego da construção verbal ter + particípio, com valor aspectual perfectivo, não usual nem na norma moderna, nem no português brasileiro atual: Art. 59 – Se o Senado, depois de ter deliberadi, julga que não póde admittir a Proposição ou Projecto, dirá nos termos seguintes – O Senado torna a remeter á Camara dos Deputados a Proposição (tal), á qual não tem podido dar o seu consentimento. Art. 63 – Esta remessa será feita por uma Deputação de ste Membros, enviada pela Camara ultimamente deliberante, a qual ao mesmo tempo informará á outra Camra, aonde o Projecto teve origem, que tem adoptado a sua Proposição, relativa a tal objecto, e que a dirigiu ao Imperador, pedindo-Lhe a Sua Sancção. Jerônimo Soares Barboza, escrevendo em finais do século XVIII, denomina essa construção de Presente Perfeito e faz uma observação interessante: Pelo que esta Linguagem, póde-se dizer que qualquer tempo passado, cujo período venha a acabar na epocha presente. Posso dizer: Hoje, Esta semana, Este anno, Muitos annos tenho sido Spectador de grandes acontecimentos. Mas não posso dizer de tempo algum pretérito, cuja epocha tenha expirado antes da presente. Não posso dizer: Hontem, A semana passada, há dous annos tenho lido este livro, O Seculo passado tem sido fertil em acontecimentos. Devo dizer: Li este livro, Foi fertil em acontecimentos. Comtudo, nossos Grammaticos confundem um hum estes dous tempos, dizendo Li ou Tenho lido. Barboza: 1830, p. 213) A interpretação para o assim chamado pretérito perfeito composto parece ser aquela que tem na língua atualmente, ou seja, a indicação de aspecto frequentativo. Mas é interessante assinalar que Barboza observa a confusão que os próprios gramáticos fazem, utilizando uma forma pela outra. É exatamente isso que ocorre na constituição do Império. Tal fato demonstraria que, nesse caso, o texto constitucional conserva um uso mais antigo, já não presente no sistema ao tempo de Jerônimo Soares Barboza. A constituição republicana não registra tal ocorrência. 4.2. Elisão do genitivo Comparem-se as duas redações para o parágrafo que define o cidadão brasileiro, nas duas constituições: Império: Art. 6º. São cidadàos Brazileiros: I. Os que no Brasil tiverem nascido, quer sejam ingenuos, ou libertos, ainda que o pai seja estrangeiro, uma vez que este não resida por serviço de sua Nação; República: 46 n Revista LETRA – Rio Art. 69.de Janeiro • 2013 São cidadãos brazileiros: Io. Os nascidos no Brasil, ainda que de pai estrangeiro, não residindo este a serviço de sua nação; A elisão do genitivo, no texto constitucional do Império, soa bastante informal para os dias de hoje, o que aponta para a inversão de valores normativos que ocorreu para um certo conjunto de formas. 4.3. Para cima Aqui, outra construção que dá à constituição do Império um doce sabor popular brasileiro: Império: Art. 45. Para ser Senador, requer-se: II. Que tenha de idade quarenta annos para cima. República: Art. 26 – São condições de elegibilidade para o Congresso Nacional: 20. Para a Camara, ter mais de quatro anos de cidadão brazileiro e para o Senado mais de seis. 4.4. Menos O emprego de menos como denotativo de exclusão, aos nossos ouvidos de hoje faz novamente soar a constituição do Império como uma conversa de esquina (elas ainda existem?): Império: Art. 27 Nenhum Senador, ou Deputado, durante sua deputaçao, póde ser preso por Autoridade alguma, salvo por ordem orden da sua respectiva Camara, menos em flagrante delito. e é evitado na constituição da República: República: Art. 20 – Os Deputados e Senadores, desde que tiverem recebido diploma até sua nova eleição, não poderão ser presos, nem processados criminalmente, sem prévia licença de sua Camara, salvo em caso de flagrancia em crime inafiançavel. 4.5 O parente mais chegado Por fim, para deleite dos leitores, o parente mais chegado, em pleno texto constitucional do Império: Linguagem & Preconceito – Emilio Gozze Pagotto n 47 Art.122 – Durante a sua menoridade, o Imperio sera governado por uma Regencia, a qual pertencerá ao Parente mais chegado do Imperador, segundo a ordem da Successão (...). E apenas a título de curiosidade, um artigo da constituição republicana em que, obviamente, o parente é consanguíneo e afim: Art. 47 (§ 4). São inellegiveis, para os cargos de Presidente e VicePresidente os parentes cosangüineos e affins, nos 1º. E 2º. Gráos, do Presidente ou Vice-Presidente, que se achar em exercicio no momento da eleição, ou que o tenha deixado até seis mezes antes. 7. Conclusão O que pudemos constatar na análise dos dois textos constitucionais escritos no século XIX é que há uma diferença quanto ao uso de uma série de construções, em especial aquelas que envolvem os clíticos pronominais. Em alguns casos, podese mesmo detectar uma inversão nos valores atribuídos a tais formas linguísticas. É o que ocorre com a forma aonde, ou com o clítico em começos de sentença, que passam a ser considerados impróprios nos textos escritos, não por serem arcaísmos propriamente, mas por se lhes atribuir um valor inferior ou popular, o que motivaria sua exclusão da norma recomendada. É no século XIX, portanto, que se dá a constituição de uma nova norma culta que, obviamente, não abandona todos os traços da norma anterior. Paralelamente a esse processo de mudança de valores para as formas recomendadas para a escrita, há o processo de mudança operado no português do Brasil, que veio dar nas características que hoje assume. Importante a destacar é que, no mais das vezes, a constituição dessa nova norma não se dá pela incorporação das mudanças que se processavam na gramática brasileira. Ao contrário, vários traços incorporados a essa nova norma parecem ir na direção oposta àquela que seguia o português brasileiro. Assim é com os clíticos, com a forma aonde, com a variação na presença de preposição em relativas e completivas, com a variação no emprego de infinitivos com se apassivador, ou no emprego de certos itens lexicais. Foi justamente esse processo de constituição da norma no Brasil, na direção oposta aos rumos tomados pela língua, que permitiu construir a unidade da língua escrita entre Brasil e Portugal, que hoje em dia é ponto de honra para a manutenção da norma padrão idealizada como bom uso nas gramáticas normativas brasileiras. Não se pode ignorar que esse processo de normatização tem estreita relação com o momento histórico que se vivia no século XIX, em que a construção de uma identidade nacional precisava acomodar um passado e um presente 48 n Revista LETRA – Rio de Janeiro • 2013 escravocrata, ao mesmo tempo em que inicia a transição para uma sociedade sem escravos legalmente constituídos. A manutenção da elite branca levou a um processo de europeização do país, que teria ocasionado, no caso dos usos linguísticos, a constituição de uma norma mais próxima da norma europeia moderna, do que o português brasileiro bastardo. Referências bibliográficas ALENCASTRO, L. F. 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In fact, one can notice a clear difference between the two texts as regards the position of pronominal clitics, the use of prepositions in oblique and relative clauses, in the use of the relative aonde/ one (where), among other structures and differences in the use of some lexical items. They materialize the passage from what one refers to as Classical Portuguese to Modern Portuguese, here understood as the normative Portuguese recommended in grammars. Such passage from one norm to the other ignores the processes of change in course which would shape the contemporary Brazilian Portuguese. Keywords: standardization, Classical Portuguese, Modern European Portuguese, Brazilian Portuguese. 50 n Revista LETRA – Rio de Janeiro • 2013