- Sociedade Brasileira de Sociologia

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XIV CONGRESSO BRASILEIRO DE SOCIOLOGIA
28 A 31 DE JULHO DE 2009, Rio de Janeiro (RJ)
GT: TEORIA SOCIOLÓGICA
A SOCIOLOGIA E A ABORDAGEM TEÓRICA SOBRE O CRIME COMO PROFISSÃO
MARISA SOUZA NERES
INSTITUIÇÃO: UFT – UNIVERSIDADE FEDERAL DO TOCANTINS
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APRESETAÇÃO
Este trabalho objetiva apresentar uma elaboração teórica para uma modalidade de crimes
que designo crime como profissão. Atualmente, estão praticamente ausentes no Brasil discussões
acerca de uma teoria sociológica para explicar este tipo de crime. A denominação de profissão da
Sociologia das Profissões, por exemplo, não contempla a possibilidade de considerar o crime como
uma profissão. É fato inegável que as mais diversas práticas criminosas têm sido adotadas como a
profissão de quem as pratica com fortes conseqüências nas relações e dinâmicas sociais. Considerase necessário buscar na teoria sociológica conceitos e idéias que possam embasar pesquisas e
fornecer explicações para este fenômeno social. Acredita-se que a Sociologia Clássica com Marx,
Durkheim e Weber; e a Sociologia contemporânea com Edwin Sutherland e Dick Hobbs oferecem
elementos para embasar e consolidar tal empreitada.
Há algum tempo tem-se constituído como objeto de minhas reflexões e preocupações os
limites da teoria sociológica para explicar os fenômenos sociais contemporâneos. Alguns destes
fenômenos sociais contemporâneos podem ser observados nas novas formas de sociabilidade e
interação possibilitadas pelas constantes inovações tecnológicas, especialmente na área da
informática e dos meios de comunicação. Observa-se que o lugar dos indivíduos na hierarquia
social cada vez mais tem como elemento balizador o seu padrão de consumo. Zygmunt Bauman, em
Modernidade Líquida explica que a passagem do fordismo para o modelo de acumulação flexível
fluidificou, tornou “líquidas” as estruturas sociais “rígidas” do período precedente, tendo
desdobramentos nas atuais configurações sociais, econômicas, políticas e culturais. Uma das
principais conseqüências do ponto de vista cultural é a existência de uma grande vazio por trás da
constante sensação de insaciabilidade que a sociedade de consumo não consegue preencher.
A partir das mudanças e transformações econômicas, políticas, sociais e culturais que
ocorreram no decorrer do século XX, a sociedade contemporânea passa por um processo que chamo
de ressignificação de valores. Os antigos valores morais e éticos promovidos pelo campo religioso,
familiar, profissional não fornecem mais de modo abrangente e consistente valores e significados
para o agir em sociedade que sejam capazes tanto de dar sentido para a vida dos indivíduos, quanto
de estabelecer limites em seus desejos e em suas ações. Para utilizar os termos de Stuart Hall, A
identidade cultural na pós-modernidade, por um lado, há dificuldades na definição do conceito de
identidade e, por outro lado, as identidades contemporâneas estão sendo descentradas, estão em
constante deslocamento.
A partir dos exemplos acima se pode refletir acerca das dificuldades encontradas pela teoria
sociológica para explicar muitos dos fenômenos sociais contemporâneos. Fenômeno que merece
destaque, neste contexto, é o crime como profissão. Uma análise mais apressada pode chegar à
conclusão que o crime como profissão é praticado tendo como motivação principal o ganho material
para conquistar um certo padrão de consumo e, consequentemente, de prestígio social. Tal
conclusão não está incorreta, mas está incompleta. Para analisar e explicar de modo apropriado este
objeto é necessário levar em consideração a atual configuração social resultante das transformações
que ocorreram (principalmente) no decorrer do século XX; o vazio no interior das identidades, em
suma, a ressignificação de valores. A partir desta compreensão fica claro porque o crime como
profissão é praticado no interior das mais diferentes classes sociais, dentre as mais diversas
estruturas familiares.
Todavia, ao deparar-me pela primeira vez com esta temática tive certa dificuldade em
encontrar na teoria sociológica o suporte necessário para poder, com propriedade, explicar o crime
como profissão.
As dificuldades iniciais da pesquisa sobre o crime como profissão – que foi meu objeto de
estudo no curso de Mestrado em Sociologia – foram sendo superadas gradativamente e encontrei o
suporte teórico para explicar e discutir meu objeto em parte na teoria sociológica clássica
(principalmente com Durkheim e Marx), mas principalmente com a teoria sociológica
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contemporânea presente nos trabalhos de Edwin Sutherland e Dick Hobbs.
Desde a conclusão desta pesquisa e de forma mais enfática no decorrer do último ano tem-se
constituído como objeto constante de minhas reflexões a atualidade da teoria sociológica clássica
para explicar novos problemas e fenômenos sociais. Como, a partir da herança dos clássicos,
podem-se elaborar conceitos, reflexões, novas teorias capazes de dar contar da complexidade dos
problemas de pesquisa provenientes desta realidade social em constante e rápida mutação?
Questionei-me se não estaríamos mais expostos ao risco de – como Weber argumentava –
tentar encaixar a realidade em nossos modelos teórico-metodológicos. Foi a partir destas
inquietações que, modestamente, decidi reler algumas obras dos clássicos para tentar responder a
estas questões. Afinal, é possível explicar o crime como profissão a partir de Durkheim, Marx e
Weber? Propus-me também como tarefa reler os trabalhos de Sutherland e Hobbs a fim de encontrar
respostas para a seguinte questão: há intersecção entre a obra destes autores contemporâneos e dos
autores clássicos no que se refere à análise, compreensão e interpretação do crime profissional?
Qual a contribuição destes autores contemporâneos para compreender o amplo fenômeno da
violência (e do crime como profissão) na realidade brasileira?
ALGUMAS PALAVRAS DA SOCIOLOGIA DAS PROFISSÕES
Uma das maiores dificuldades dos sociólogos e sociólogas na busca de uma definição
conceitual para o termo é que os mesmos tentam realizar teorizações/conceituações de profissão
buscando elementos comuns a todas as ocupações/profissões e a partir destes tentam generalizar
estabelecendo aí a conceituação teórica do que seja profissão .
Eliot Freidson (1998) em Renascimento do Profissionalismo, explica que somente merece
tal título aquelas ocupações que buscam e conseguem conquistar certo prestígio e status; que
envolvem investimento e tempo em aprendizado especializado, ou seja, para o domínio do saber e
do fazer; que buscam espaço, reconhecimento e retorno do campo econômico, ou melhor, o tempo e
o investimento no aprendizado, na luta por status, são meios de valorizar a profissão de modo que o
retorno econômico seja satisfatório.
Embora do ponto de vista teórico seja problemático conceituar profissão tal “definição” no
senso comum, ou no meio popular, não é tão problemático assim. No meio popular, não obstante as
mudanças que ocorrem ao longo do tempo-espaço histórico, profissão são ocupações que
apresentam um saber e um saber fazer desenvolvidos e mais ou menos consolidados, além de um
amplo reconhecimento social, ou seja, de prestígio e status (Freidson, 1998).
Nas dificuldades de definição teórica de profissão por sociólogos e na concepção que se tem
de profissão no meio popular é que residem, ou melhor, residiriam a impossibilidade, ou a
dificuldade de denominar certas atividades de crime como profissão. O crime, nesta concepção,
ainda que seja realizado como atividade que visa um ganho material, não poderia ser considerado
como atividade que participa da luta por prestígio e status por motivos óbvios. Além disso, não
contaria com um investimento em aprendizado, em formação, ou seja, em um saber ou saber-fazer
que toda profissão apresenta.
O crime, em geral – especificamente o crime contra o patrimônio, o crime organizado, ou
atividades criminosas em geral que visam um ganho material – é comumente percebido como
atividades que fazem parte, ou que compõem um submundo, um mundo paralelo ao mundo
“normal” onde prevalecem os valores morais considerados dignos, honrados. Este submundo seria
um outro mundo paralelo cujos caminhos sombrios e indignos não se cruzam ou intercruzam com
os caminhos do mundo honrado. Assim sendo, nada mais coerente do que considerar que há uma
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incontornável impossibilidade de chamar estas atividades do submundo de crime como profissão.
Sobre isso vejamos o que nos dizem dois sociólogos que trabalharam o tema do crime como
profissão.
DA SOCIOLOGIA DAS PROFISSÕES PARA A SOCIOLOGIA DO CRIME COMO
PROFISSÃO
Outra forma de ver e compreender o problema pode ser encontrada nos trabalhos de Edwin
Sutherland (1937): The Professional Thief e de Dick Hobbs (1997): Professional crime: change,
continuity and the enduring myth of the underworld. Antes de prosseguir, entretanto, ressalto que
voltarei à questão da Sociologia das Profissões poder explicar ou não o crime como profissão.
Lançando nosso olhar para o passado mais ou menos distante é possível encontrar exemplos
de indivíduos que utilizaram o crime como profissão. É o caso do receptador profissional de objetos
roubados que atuava no século XVI apresentado por Klockars (1974) e do grupo de ladrões
profissionais do século XIX, descritos por Charles Dickens (1954) em sua obra “Oliver Twist”. Na
primeira metade do século XX, o tema crime como profissão já era discutido Edwin Sutherland em
The professional thief (1937). O livro é constituído de duas partes, sendo que na primeira parte o
ladrão profissional descreve a estrutura, as relações, as características específicas da profissão; na
segunda parte, Sutherland analisa as informações coletadas na primeira. As reflexões encontradas na
obra permitem demonstrar como o crime pode se transformar e, de fato, se transforma em profissão.
O ladrão profissional é aquele que rouba profissionalmente e isso significa que: ele realiza,
como em um negócio, atividades relacionadas ao roubo; há um planejamento peculiar e detalhado
na atividade de roubar; possui técnicas e habilidades que o difere de outros criminosos, destacandose a habilidade para manipular as pessoas; migra permanentemente, tanto para renovar sua área de
ação, quanto para evitar a prisão. Além disso, o ladrão profissional descrito por Sutherland não é
considerado um ladrão profissional a não ser que assim seja reconhecido pelo grupo do qual faz
parte; não deve de forma alguma delatar seus colegas; é capaz de reconhecer um policial mesmo
quando este não está uniformizado; possui um sólido código de ética que guia suas ações na
profissão (1937, p. 3-10).
A partir do manuscrito produzido pelo ladrão profissional na primeira parte do livro,
Sutherland discute dois pontos: as características da profissão de quem rouba são similares às
características de outras profissões legais e estáveis e, por outro lado, há algumas características que
são específicas deste grupo conforme segue abaixo.
A profissão de ladrão como um complexo de técnicas: os ladrões profissionais possuem um
complexo de habilidades específicas necessários à profissão, da mesma forma que um médico, ou
advogado, a diferença é que as habilidades dos ladrões estão voltadas para a prática de roubar e este
complexo de técnicas representa uma preparação para todos os problemas provenientes da profissão
na vida do ladrão (ibid, p. 197).
A profissão de ladrão possui também uma rede de status, assim como qualquer outra
profissão. O status de um ladrão é baseado em suas habilidades técnicas, no prestígio financeiro, em
suas conexões sociais que lhe proporcionam poder, na sua forma de se vestir e no amplo
conhecimento da profissão adquirido por meio de sua vida migratória. Este status pode ser
percebido na atitude de outros criminosos, da polícia, dos oficiais da lei, etc. (ibid, p. 200).
A profissão de ladrão como um consenso: a profissão é composta por um complexo de
sentimentos comuns que são partilhados por todos os membros do grupo e que ditam as formas de
agir de cada um. Os ladrões são capazes de trabalhar juntos sem muitos desacordos porque possuem
atitudes comuns e similares (ibid, p. 202).
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A profissão de ladrão como uma associação diferencial: ela é comum tanto aos ladrões
profissionais quanto a outros grupos profissionais. A idéia contida neste termo é a de que o
comportamento criminoso, ou seja, o modo de agir específico do criminoso profissional é aprendido
por meio da convivência com outros indivíduos que praticam a mesma atividade desenvolvendo
associações baseadas em características que lhe são peculiares (ibid, p. 206-209).
A profissão de ladrão como uma organização: a profissão pode ser compreendida como
crime organizado, apresentando racionalização em sua estruturação, é um sistema composto por
uma unidade e organização de suas atividades (ibid, p. 209). Outras características destacadas são a
seleção e o apadrinhamento promovidos pelo grupo. Um indivíduo só se torna um ladrão
profissional se for aceito e selecionado, primeiramente, como aprendiz pelo grupo; segundo, deve se
submeter a uma espécie de apadrinhamento em que ele irá aprender o ofício com os ladrões
experientes, já profissionalizados. Somente quando o grupo considera que ele está pronto em seu
treinamento é que passa a ser visto e tratado como um ladrão profissional.
As características acima demonstram que a profissão de ladrão está organizada em prol do
esforço de conseguir obter dinheiro com relativa segurança, tal como em outras profissões
legítimas. Segundo Sutherland, dinheiro e segurança são bens valorizados pela civilização ocidental
e os métodos utilizados para consegui-los – seja nas profissões honestas, seja no crime como
profissão – estão de acordo com a cultura geral que predomina na sociedade (ibid, p. 217).
Sutherland afirma que não houve um estudo comparativo por parte do ladrão profissional –
que é quem conta sua própria história na primeira parte do livro – para que ele pudesse afirmar que
sua atividade trata-se de uma profissão. A utilização do termo estava relacionada com o fato de que
o grupo ao qual pertencia o utilizava e esta utilização está de acordo com as características que
definem as profissões legítimas da sociedade mais geral. O crime profissional não apresenta um
aprendizado em escolas, nem há um registro formal dos ensinamentos da profissão, mas o conjunto
de conhecimentos que possui tem sido acumulado durante séculos e estes conhecimentos são
transmitidos ao aprendiz de forma peculiar, de acordo com a as características específicas da
profissão (ibid, p. 216-217).
O autor identificou três motivos que explicam porque a profissão apresenta uma relativa
segurança. Em primeiro lugar, esta segurança se deve às habilidades dos próprios ladrões:
selecionam alvos em que a segurança é mínima; roubam de quem tem contas a acertar com a lei;
roubam de lojas que hesitam em acusar pessoas que parecem ser apenas clientes; devido à lei da
prova, prender os ladrões de bolsas e carteiras, é quase impossível; evitam roubos que envolvam
grande perigo ou muita publicidade; nunca tentam o roubo de objetos de arte famosos devido à
dificuldade de vendê-los anonimamente.
Segundo, pelo treinamento e experiência os ladrões
profissionais desenvolvem métodos engenhosos e habilidades para controlar as situações, sendo
especialistas em manipular pessoas. Terceiro, trabalham com o princípio de que sempre se pode
“consertar” praticamente todo caso em que houver prisão. Os casos em que os ladrões são presos
podem ser “consertados” de duas formas: devolvendo o que foi roubado à vítima para que esta não
prossiga com a acusação; conseguindo a proteção dos oficiais da lei por meios financeiros ou
políticos.
No primeiro caso, a vítima aceita negociar devido à demora do processo na justiça, além
disso, está mais interessada em obter seus bens de volta. Tanto ladrão quanto vítima estão
interessados em conseguir o que querem, ninguém está muito interessado no bem-estar social geral,
argumenta o autor.
Em última instância, o que faz com que a profissão seja viável e segura é o que Sutherland
chama de “desorganização social”. Isto significa que a sociedade não estaria trabalhando de forma
coesa e harmoniosa para reprimir os crimes; vários profissionais da lei trabalham em conjunto com
os ladrões, por exemplo. Por outro lado, a ação de quem desiste da queixa para conseguir seus bens
de volta é característica da sociedade moderna e individualista: seus interesses buscam satisfação
imediata e são, em geral, particulares e o bem-estar público significa pouco. Devido ao fato de que
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o bem-estar público significa pouco para muitos cidadãos é que há ladrões, esquemas de corrupção
e profissionais da lei ineficientes. A sociedade não se une pelo seu próprio bem-estar e esta ausência
de unidade e harmonia é o que caracteriza uma desorganização social.
Para concluir sua análise, Sutherland destaca cinco pontos. Primeiro, o estudo demonstra
para membros da classe média da sociedade os detalhes de uma profissão com a qual eles têm
pouco contato e que provavelmente nunca seria reconhecida como uma profissão1. Segundo,
demonstra o caráter grupal que a profissão possui. Se um estudioso do assunto quiser compreendêlo, deve fazê-lo a partir do grupo e não do indivíduo separadamente. Terceiro, o livro contribui para
a compreensão de nossa própria cultura e a forma como funcionam nossas instituições sociais
gerais. Também mostra como se desenvolve e cresce o submundo, contribuindo para a produção de
conhecimento pela Sociologia. Quarto, contribui no sentido de demonstrar como o crime
profissional pode ser controlado de forma adequada. Não é somente com sanções punitivas ou
reformas no sistema policial, mas modificando a ordem social na qual o crime profissional cresce2.
Quinto, o trabalho pode contribuir com outras pesquisas que venham a ser realizadas sobre o tema.
A profissão torna-se viável devido a uma conjugação de fatores de cunho social. Não se trata de
algo totalmente estranho à sua constituição (ibid, p. 229-231).
O trabalho de Sutherland demonstra que o crime pode funcionar, de fato, como uma
profissão. No caso analisado, o autor, apresenta um conjunto de regras, formas de agir, padrões de
comportamento e habilidades que caracterizam o roubo especializado com as características de uma
profissão tal como uma profissão legítima: possui regras específicas de estruturação e
funcionamento e servem ao objetivo de prover o necessário à sobrevivência.
O estudo foi produzido no início do século XX e já naquele período havia uma abordagem
do crime como profissão, com características que ainda podem ser observadas
contemporaneamente, o que contribui para reforçar a pertinência da discussão que está sendo feita
no presente trabalho. Contudo, há algumas questões no trabalho de Sutherland que devem ser
observadas e serão feitas a partir do artigo de Hobbs (1997): Professional crime: change,
continuity and the enduring myth of the underworld.
Hobbs se propõe discutir o conceito de crime profissional e os elementos que caracterizam
sua organização específica. O autor argumenta que o termo crime profissional ainda é de difícil
definição “por qualquer critério que tenha sua origem na construção legal da ação criminal”. Ou
seja, sua definição por meio do que é definido legalmente como crime é pouco viável e, apesar de
haver uma discussão na sociologia sobre o tema, afirma que as definições que se encontram são
pouco consistentes.
Buscando uma definição do crime profissional satisfatória, o autor utiliza-se de dados
etnográficos e de entrevistas com criminosos profissionais. Argumenta que há uma extensa
discussão acerca do crime profissional, mas que o trabalho de Sutherland se destaca como
referência. “For Sutherland, professional crime – pervades as a fragment of criminal activity to be
comprehended as a behaviour system (...) that is organised around the shared cultural identity of the
thieves” (1997, p. 57).
Hobbs destaca que há vários argumentos que contrariam as afirmações de Sutherland.
Lemert (apud Hobbs 1997), por exemplo, considera os falsificadores de cheques como altamente
não qualificados; Einstadter (apud Hobbs 1997), por outro lado, encontrou uma coerência lógica
entre ladrões armados, mas não encontrou evidência de um sistema de apadrinhamento.
Argumentam ainda que entre ladrões de residências e lojas o que predomina não é uma cultura
comum, mas uma condição ocupacional comum (ibid, p. 58).
O maior problema no trabalho de Sutherland, argumenta, é a conotação do termo subcultura,
ou submundo aplicado às redes de criminosos. Esta é uma das questões mais problemáticas na
discussão do crime profissional contemporâneo. Há elementos que contrariam a coesão e o sistema
1
2
Grifo meu.
Grifo meu.
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de comportamento.
Indeed, the notion of a full time commitment to crime is probably the most useful and
historically relevant segment of Sutherland’s theory. However, within the contemporary
criminals are committed to, and whether this commitment differs sufficiently from that of
non-criminals to justify the continue use of the term underworld (loc.cit.).
De acordo com Hobbs o mercado criminal mostra-se instável tal qual o mercado econômico,
ou seja, a organização do crime profissional está estruturada com base no modelo do mercado
econômico e não em um conjunto de valores mais específicos do campo da profissão criminosa
conforme afirmava Sutherland.
Suas pesquisas demonstram que o ladrão profissional contemporâneo não ingressa na
profissão com base em procedimentos específicos de adesão, treinamento e normas que guiam o
agir na profissão. Ele, em geral, se une a indivíduos que tenham em comum o interesse de obter
dinheiro com a mesma atividade e quem já está na profissão ensina o necessário para que se possa
realizar a atividade que, em comparação com o ladrão pesquisado por Sutherland, é feita com pouco
planejamento e atenção aos detalhes, de forma as vezes “quase casual”. Esta evidência caracteriza o
fato de que semelhante ao que acontece no mercado formal de trabalho, no mercado do crime há
profissões não qualificadas que são adotadas pelos indivíduos por falta de opção e/ou oportunidade
de obter trabalho melhor.
É recorrente encontrar entre os criminosos profissionais a ausência de sentimentos de
comunidade pelo “grupo de trabalho” e o crime seria simplesmente um meio de acumular dinheiro,
o que caracteriza uma atividade altamente instrumental e racionalizada. Outro fator comum
encontrado por Hobbs em suas pesquisas é que as habilidades individuais dos criminosos são o que
promovem seu maior ou menor grau de sucesso na profissão e não a adesão e execução de um
conjunto de regras e valores partilhados por um grupo comum.
A perda de importância dos valores de uma comunidade criminosa tradicional aconteceu
devido a uma nova ética que funciona com base em valores empresariais. As habilidades individuais
técnicas, sociais, psicológicas só são, portanto, úteis se forem conjugadas com a capacidade
empresarial de comercializar mercadorias. Não é mais tão lucrativo, por exemplo, ter somente
habilidade para roubar. É necessário ter habilidade para negociar e ter a possibilidade de
comercializar mercadorias com alto potencial de gerar lucro, argumenta o autor.
O tráfico de drogas e atividades a ele relacionadas é o que se destaca dentro desta lógica
racional e instrumental que guia o crime profissional contemporâneo. Os grupos criminosos se
organizam menos por ligação de laços comuns. Sua colaboração é, em geral, temporária e selada
pelo dinheiro. Esta é uma característica marcante do crime, em especial do que está relacionado ao
tráfico de drogas: funciona com a lógica da lucratividade do mercado acima de qualquer valor de
ética, ou identidade de grupo (Hobbs, 1997).
O esvaziamento da legitimidade do mercado de trabalho serviu para redefinir a atividade
criminosa à luz de um novo mercado econômico descentralizado e imprevisível:
Contemporary serious crime is located not whit some dark seductive alcove, but within
rhetorics that legitimate and enable entrepreneurial activity. (...)Contemporary serious crime
group reside in a socio-economic terrain that is largely indistinct from that inhabited by
civilians, and differ from the preceding forms of criminality (ibid, p. 68- 69).
Diante de tal panorama, o único modo de se obter alguma ordem interna e identidade é
retomando e rearticulando estratégias tradicionais que freiam o potencial do mercado e os eleva
acima de uma consciência pragmática. O recurso ao modelo de crime profissional descrito por
Sutherland, embora pareça paradoxal, pode ser visto assim como uma estratégia para tornar a
profissão contemporânea mais eficiente, explica o autor.
Perde sentido, assim, a imagem do submundo defendida por Sutherland. Não há uma
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separação com base em critérios sociais entre indivíduos bons e maus. Os grupos criminosos
organizam suas atividades com base em regras e atitudes que norteiam as ações da sociedade em
geral. Partilham os mesmos valores (lucratividade, racionalidade, individualismo) e organizam e
constroem suas atividades a partir deles:
As legitimate markets have globalised, accelerating the desintegration of traditional
cultures, so global drug markets have contributed to the erosion of traditional criminal
territories and their criminal progeny. The dialectic between local and global (…) typifies
both legitimate and illegitimate markets, and the resultant enacted environment, where
intricate relations between global and local spaces are negotiated (…), is both too elaborate
and too disparate for the term underworld to have any contemporary utility. (...)
Professional crime is no longer the sole prerogative of an ‘underworld’ (...) its precepts,
tenets, and methodologies originate in an overworld functions as little more than, ‘a passive
screen on to which the righteous project their own inhibited lusts and rapacities’ (ibid, p.
69-70).
Fazendo uma comparação, pode-se dizer que o criminoso profissional de Sutherland
caracteriza-se por valores de um submundo do crime e o criminoso profissional de Hobbs
caracteriza-se por valores da sociedade em geral (capitalismo, lucro, racionalidade, individualismo).
A partir do artigo de Hobbs é possível delinear algumas limitações à aplicação das
concepções encontradas no livro de Sutherland. Contudo, é necessário observar que Sutherland
publicou sua pesquisa na década de 1930 e ela se referia ao período de 1905 a 1925, portanto,
apresenta características específicas daquela configuração social. É evidente que entre os vários
anos que separam as pesquisas dos dois autores aconteceram várias transformações sociais,
portanto, não é um fato estranho que as características do crime profissional do início do século XX
sejam diferentes das que são encontradas no início do século XXI. Ressalvadas as diferenças na
abordagem e nas características apontadas pelos dois autores acerca do crime profissional, é
importante notar que ambos estão buscando delinear quais são os elementos que explicam o crime
como uma profissão.
Se o crime profissional contemporâneo não apresenta os preceitos e ética característicos de
um grupo comum, por outro lado, conforme o próprio Hobbs ressalta, quem se envolve com a
atividade criminosa o faz com um comprometimento que é integral, o crime passa a fazer parte da
vida do indivíduo. Se não apresenta mais uma sistematização tão marcante, ainda apresenta
características tais como a de uma profissão legal – conforme é possível notar tanto em Sutherland,
quanto em Hobbs. Possuem um conhecimento, um saber fazer que lhe é específico, apresentam uma
divisão por status (muito comum no crime organizado e no tráfico de drogas) e servem como a
fonte geradora dos elementos necessários à sobrevivência.
A apresentação das idéias de ambos os autores tem menos o objetivo de confrontá-las e mais
de utilizá-las como suporte para a discussão que está sendo realizada. Na sociedade contemporânea,
várias modalidades ou formas de cometer crimes se originaram (como os crimes praticados pela
Internet), outras já existentes se refinam com o objetivo de se obter um retorno material. E este
desenvolvimento do crime se dá de acordo com os valores e com a estrutura de relações que
predominam socialmente.
Voltando à Sociologia das Profissões, observa-se que, de fato, não é possível colocar o crime
como profissão no mesmo patamar que as profissões em geral como elas são tradicionalmente
definidas e pensadas, pelo simples fato de que as primeiras são crimes, transgressão, desobediência
à lei. Fora isso, a generalidade dos elementos que caracterizam o crime como profissão são os
mesmos que caracterizam uma profissão legal, ou “honrada” (para usar os termos de Hobbs),
conforme se tentou demonstrar acima e conforme se continuará verificando no texto que segue
abaixo.
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A ATUALIDADE DOS CLÁSSICOS
O que os clássicos nos permitem ver, pensar, entender, explicar sobre os mais diversos
fenômenos sociais atuais que se configuram e se colocam como objeto de reflexão da Sociologia?
Foram estas perguntas que orientaram as reflexões apresentadas a seguir.
Dermeval Saviani em “O choque teórico da politecnia” nos diz que muitos consideram que
Marx está ultrapassado, mais do que isso, que Marx está superado. Todavia, argumenta ele, a
sociedade sobre a qual o pensador se debruçou foi a sociedade capitalista e não a sociedade
socialista. Esta última é a projeção que ele fez acerca de seus sonhos e desejos de como deveria ser
a sociedade no futuro. A sociedade socialista não foi seu objeto de estudo simplesmente porque não
existia. A sociedade capitalista é que foi seu objeto de estudo e enquanto esta forma de organização
social não for superada também não estarão superadas as idéias e explicações sobre a mesma que
Marx formulou. Acredito que o mesmo possa ser dito sobre Durkheim e Weber.
Os clássicos nos permitem sim ver, pensar, entender, explicar as formas de sociabilidade e os
fenômenos sociais de nossa sociedade contemporânea. Inclusive os fenômenos sociais e problemas
“novos” que se configuram e se apresentam. Eles nos fornecem sim, lá do lugar, do contexto, das
configurações sociais que vivenciaram, conceitos, teorias e mais, elementos para conceituar e
teorizar sobre questionamentos contemporâneos.
Se assim é, então por que surgem questionamentos acerca da “ainda” propriedade das idéias
destes homens do passado para compreender, explicar, tornar inteligíveis os processos sociais do
presente?
O problema, a meu ver, não está na atualidade, ou na propriedade dos clássicos em nos
fornecer elementos explicativos para o presente. Penso que o problema está (pelo menos para mim,
para o meu caso, para o meu problema) na “sacralização” que fazemos em duas esferas que estão
interligadas: da esfera teórica (clássica) e da esfera da definição dos objetos de estudo, de pesquisa
sociológica. É como se existissem “objetos” indignos, ou inviáveis de serem abordados, discutidos,
explicados pela teoria sociológica.
Emile Durkheim
Para tomar as idéias de Durkheim para explicar a ocorrência do crime como profissão dois
de seus conceitos serão particularmente importantes: crime e solidariedade social. Como distinguir
o que é normal e o que patológico nos fatos que acontecem em sociedade? O crime, que à primeira
vista seria considerado como um evento patológico é, segundo Durkheim ocorrência que está dentro
da mais perfeita normalidade. É normal que o crime exista em qualquer sociedade, pois para que
assim não fosse seria necessário que todas as consciências individuais fossem iguais, que todos
pensassem as mesmas coisas e tivessem os mesmo sentimentos, o que, como se sabe, é impossível.
Mas o fato de ser a ocorrência do crime normal não explica o que ele é, então vejamos. Crimes são
atos, atitudes, comportamentos, ações que ferem a consciência coletiva em seus valores mais caros.
Na passagem das sociedades mais simples para as mais complexas o direito se modificou e nas
sociedades industrializadas as leis cristalizam a moral social que todos devem observar. Aqueles que
não guardam a observância das leis causam um mal que deve ser reparado. Crimes são atos que
transgridem as normas constituídas pela moral social, cujos danos requerem uma reparação.
A solidariedade social nada mais é do que o sentimento de coesão do indivíduo com o grupo
do qual faz parte, ou seja, é o sentimento de pertencimento ao grupo social. Nas sociedades simples,
em que predomina uma divisão social do trabalho também simples, pouco diversificada e pouco
especializada, a solidariedade social é garantida pelas similitudes de sentimentos que ligam os
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indivíduos uns aos outros de forma direta formando a solidariedade mecânica. Já nas sociedades
complexas, industrializadas, a divisão do trabalho social é complexa, diversificada e especializada.
Há grande multiplicidade e especialização de funções. Nestas organizações sociais é exatamente a
diversidade e especialização de funções que garantem a coesão social por meio da interdependência
das diversas partes que compõem o corpo social com suas diferentes funções. As diferentes e
diversas profissões criam entre si uma interdependência que é responsável pela harmonia do corpo
social, na forma da solidariedade orgânica.
Pensando sobre o crime como profissão a partir das idéias de Durkheim podemos apresentar
as seguintes reflexões: Primeiro, se crime são ações que ferem a consciência moral da sociedade em
um contexto sócio-histórico específico, então, é ponto pacífico que quem pratica ações consideradas
ilegais com a finalidade de ganho material está praticando um crime, ou seja, está transgredindo
aquela consciência moral indicada anteriormente. Apoderar-se da propriedade alheia ou agir
contrariando os preceitos jurídicos estabelecidos é ferir a consciência coletiva, é um crime em
nossas sociedades contemporâneas. Segundo, ao colocar o crime como uma profissão, estaríamos
reconhecendo algum papel deste na manutenção da solidariedade social? O próprio Durkheim nos
responde:
Poderíamos ser tentados a situar entre as formas irregulares da divisão do trabalho a
profissão do criminoso e as outras profissões nocivas. Elas são a negação mesma da
solidariedade e, no entanto, são verdadeiras atividades especiais. Contudo, para sermos
exatos, não se trata nesse caso de divisão do trabalho, e sim diferenciação pura e simples,
não se devendo confundir os dois termos (1999, p. 368).
Certo, se apoderar-se da propriedade alheia ou agir contrariando os preceitos jurídicos
estabelecidos a fim de obter ganho material é crime, então por que, em primeiro lugar, existe hoje o
que se chama de “lado honesto do crime”3 ? Seja na pirataria; no contrabando de animais, ou de
obras de arte; no tráfico de drogas; no tráfico de órgãos humanos e dos próprios humanos, na
lavagem de dinheiro que faz o dinheiro desonesto virar dinheiro honesto; seja na corrupção de
políticos ou do sistema de justiça, parece que o crime organizado, o crime como profissão está em
todo lugar. Segundo, se tais atividades são crimes, se ferem a moral coletiva por que parece haver
uma maior tolerância a eles disseminada por todo o tecido social?
Deixando as (possíveis) respostas para estas questões para mais adiante, os problemas aqui e
agora são: apoderar-se da propriedade alheia ou agir contrariando os preceitos jurídicos
estabelecidos a fim de obter ganho material estaria perdendo o status de crime, ou seja, do seu
potencial agressivo à moral social, uma vez que parece estar havendo uma maior tolerância por
parte da sociedade a algumas modalidades do crime profissional? Se começa a haver um “lado
honesto do crime” que está intimamente ligado com as atividades sociais, com as profissões
honradas, este estaria passando a desempenhar um papel de importância na manutenção da
solidariedade social?
Absurdo? Talvez. Vejamos. Absurdo seria dizer que as atividades consideradas crime como
profissão estariam se tornando mais aceitas pela sociedade, que estariam caminhando para uma
legalização? Ou o absurdo seria dizer que com os conceitos de Durkheim temos sérias dificuldades
teóricas para explicar este fenômeno social? Acredito que a primeira questão não é um absurdo, é
um fato observável; quanto à segunda questão acredito que os conceitos durkheimianos nos
remetam a reflexões importantes e necessárias acerca deste fenômeno social.
A meu ver, a definição de crime de Durkheim permite sim entender o fenômeno da
criminalidade contemporânea. Muito embora os formatos que os crimes assumem ao longo do
tempo, penso que continua e deverá continuar a existir atividades, ações, comportamentos que
transgridem as regras e ferem a moral social. Por outro lado, muito embora a idéia de uma
3
Expressão cunhada pelo Professor de Direito da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Goiás Pedro
Sérgio dos Santos.
10
solidariedade social promovida pela coesão da interdependência das diferentes profissões existentes
possa deixar uma lacuna nas explicações acerca das relações em que o conflito se configura,
podemos seguramente concordar com o autor de que todo grupo social necessita de regras de
conduta e de limites para suas ações a fim de garantir a coesão do grupo e sua própria manutenção e
sobrevivência.
Sendo assim, acredito que o fato de existir o crime como profissão nas proporções atuais
indica que fortes mudanças tem ocorrido e estão ocorrendo por todo o tecido social. Aí está, a meu
ver, a atualidade e a contribuição da teoria durkheimiana para compreender os fenômenos sociais
atuais. Se podemos continuar considerando que crime são ações que ferem a consciência coletiva;
que há uma base moral que garante a coesão do tecido social, a solidariedade social, mas,
concomitantemente, existem ações consideradas criminosas sobre as quais parece estar havendo
uma maior tolerância por parte da sociedade e se parece que a coesão, a solidariedade social está
fragilizada é porque estamos vivenciando um momento de mudança social. Nosso dever, então, é
tentar compreender qual é o caráter e os (possíveis) rumos destas mudanças a fim de não chegarmos
(se é que já não estamos chegando) a um estado de anomia. É este um dos objetivos que tenho
perseguido com as pesquisas que venho realizando há alguns anos sobre o crime profissional.
Todavia, não é meu intuito dar conta da totalidade do problema. Primeiro, porque isto é inviável e
segundo porque acredito que este tipo de problema necessita de tratamento coletivo e conjunto de
pesquisadores e pensadores das questões que compõem as temáticas das quais trata a Sociologia.
Karl Marx
No início deste texto foi chamada a atenção para a afirmação de Saviani de que as teorias de
Marx continuam atuais e com vigor para explicar os fenômenos sociais que se desenvolvem no
contexto da sociedade capitalista. Este é o nosso ponto de partida aqui: a sociedade na qual o crime
profissional se desenvolve é a sociedade capitalista, por isso, será útil, sucintamente elencar
algumas características básicas deste modo de organização social.
Em Lei Geral da Acumulação Capitalista, Marx (1980) nos mostra a irresistibilidade do
capital. Nem mesmo o capitalista pode dele escapar. O capitalismo é um modo de produção que,
ontologicamente, se constitui sobre a exploração da força de trabalho. Toda a fonte da estruturação e
da vitalidade do capitalismo se assenta sobre a exploração do trabalho humano, a atividade que
realmente é capaz de gerar, de criar valor, por isso, é a verdadeira fonte do lucro e da riqueza
capitalista. Contudo, à medida em que a riqueza gerada pelo trabalho humano aumenta, igualmente
aumenta a infelicidade da maioria da humanidade. Isto se deve à impossibilidade de que todos
usufruam de forma igualitária da riqueza de que este mesmo trabalho humano é gerador, pelo
simples fato de que na organização social capitalista, assim como nos modos de produção que o
precederam, os bens estão distribuídos de modo desigual. Aqueles que não detem a posse dos bens
de produção, dependem inteiramente de sua força de trabalho para garantir sua sobrevivência. Por
outro lado, entretanto, a concorrência própria do sistema faz com que a riqueza gradativamente
passe a se centralizar nas mãos de uma minoria, enquanto diversos segmentos de capitalistas se
vejam passar desta condição para a de trabalhadores e vendedores de sua força de trabalho.
Assim, o capitalismo é um modo de produção no qual se observa a constante luta pela
sobrevivência, a constante luta de todos para não integrarem as fileiras e pobres e miseráveis que
fazem parte da base mesma deste sistema. Todavia, e sem desconsiderar a importância da
compreensão da base vital do sistema capitalista, penso que para o problema que aqui se discute
uma compreensão muito mais profunda se faz com a análise de Marx presente em Trabalho
estranhado e propriedade privada, contido no livro Manuscritos econômico-filosóficos.
11
O panorama acerca da condição humana apresentado por Marx neste texto – em que o autor
analisa conceitos que permitem compreender a essência do capitalismo – é assustador. A exploração
do trabalho humano, ou exploração do homem pelo homem faz pior do que se o reduzisse à
condição de simples animal bruto: ela o torna um ser totalmente estranho a si mesmo, do mesmo
modo que torna estranho para si o outro, o ser humano que o explora, bem como aquele que partilha
de sua condição de ser estranhado. A essência do que é ser humano se torna algo totalmente
impensável porque simplesmente deixa de existir ao se perder a autonomia sobre sua força de
trabalho, sobre sua força criadora e produtiva. Angústia profunda é o sentimento que fica no lugar
do vazio causado pela aniquilação da identidade humana construída a partir do trabalho. Não é de
estranhar que estar no trabalho, que estar trabalhando é estar não vivendo e que um mudo e agudo
sentimento de dor intensa acompanhem o ser (des)humano aonde quer que ele vá4.
O trabalho é a ação humana sobre e natureza que o cerca. Esta ação é necessária para que se
produzam as condições de vida necessárias à sobrevivência do corpo físico; mas, ao agir sobre a
natureza o ser humano a modifica e modifica a si mesmo, ele toma consciência de que é um ser que
se diferencia dos outros seres existentes na natureza porque é capaz de pensar, de planejar suas
ações, de agir intencionalmente; agindo sobre a natureza o ser humano a modifica e institui,
constitui e transforma continuamente suas relações com outros seres humanos. Cria, recria,
modifica, transforma a cultura. Assim, é no resultado do seu trabalho, nos objetos materiais e
imateriais que o ser humano produz e reproduz a partir de sua ação sobre a natureza e de sua relação
com os seus semelhantes que ele constitui sua identidade. Tal identidade é o elemento capaz de
atribuir sentido a si mesmo e ao mundo que o cerca. De modo que na sociedade capitalista em que o
trabalho é convertido em mercadoria
...quanto mais o trabalhador se desgasta trabalhando (ausarbeiteb), tanto mais poderoso se
torna o mundo objetivo, alheio (fremd) que ele cria diante de si, tanto mais pobre se torna
ele mesmo, seu mundo interior, [e] tanto menos [o trabalhador] pertenci a si próprio. (...)O
trabalhador encerra sua vida no objeto; mas agora ela não pertence mais a ele, mas sim ao
objeto. Por conseguinte, quão maior esta atividade, tanto mais sem-objeto é o trabalhador.
Ele não é o que é o objeto de seu trabalho. Portanto, quanto maior este produto, tanto menor
ele mesmo é (Marx: 2004, p. 81).
Quanto mais o trabalhador exerce sua atividade, seu trabalho, tanto mais ele se torna
estranho a si mesmo, tanto mais ele perde seu referencial de formação e preservação da sua
identidade. O reconhecimento de si mesmo, da humanidade que lhe é própria somente poderia
ocorrer na medida em que em sua atividade, em seu trabalho o ser humano se sentisse integrado à
natureza por meio de sua ação livre e criativa sobre ela e a partir da realização de sua humanidade é
que a relação com seu semelhante se constituiria. Assim, tomando de Marx uma citação um pouco
mais longa pode ficar mais claro o significado destas afirmações.
...o objeto (Gegenstand) que o trabalho produz, o seu produto, se lhe defronta como um ser
estranho, como um poder independente do produtor. O produto do trabalho é o trabalho que
se fixou num objeto, fez-se coisal (sachlich) é a objetivação (Vergegensätndlichung) do
trabalho. A efetivação (Verwirklichung) do trabalho é a sua objetivação. (...) A efetivação do
trabalho tanto aparece como desefetivação que o trabalhor é desefetivado até morrer de
fome. A objetivação tanto aparece como perda do objeto que o trabalhador é despojado do
objetos mais necessários não somente à vida, mas também dos objetos do trabalho. Sim, o
trabalho mesmo se torna um objeto, do qual o trabalhador só pode se apossar com os
maiores esforços e com as mais extraordinárias interrupções. A apropriação do objeto tanto
aparece como estranhamento (Entfremdung) que, quanto mais objetos o trabalhador produz,
tanto menos pode possuir e tanto mais fica sob o domínio do seu produto, do capital. (...)
Em que consiste, então, a exteriorização (Entäusserung) do trabalho?
Primeiro, que o trabalho é externo ao trabalhador, isto é, não pertence ao seu ser, que ele
não se afirma, portanto, em seu trabalho, mas nega-se nele, que não se sente bem, mas
infeliz, que não desenvolve nenhuma energia física e espiritual livre, mas mortifica sua
4
Esta dor pode ser facilmente percebida na letra da música Construção de Chico Buarque.
12
physis e arruina o seu espírito. O trabalhador só se sente, por conseguinte e em primeiro
lugar, junto a si [quando] fora do trabalho e fora de si [quando] no trabalho. Está em casa
quando não trabalha e, quando trabalha, não está em casa. O seu trabalho não é portanto
voluntário, mas forçado, trabalho obrigatório. O trabalho não é, por isso, a satisfação de
uma carência, mas somente um meio para satisfazer necessidades fora dele. Sua
estranheza(Frendheit) evidencia-se aqui [de forma] tão pura que, tão logo inexista coerção
física ou outra qualquer, foge-se do trabalho como de uma peste. O trabalho externo, o
trabalho no qual o homem se exterioriza, é um trabalho de auto-sacrifício, de mortificação.
Finalmente, a externalidade (Auserlichkeit) do trabalho aparece para o trabalhador como se
[o trabalho] não fosse seu próprio, mas de um outro, como se [o trabalho] não lhe
pertencesse, como se ele no trabalho não pertencesse a si mesmo, mas a um outro
(pp.80-83).
Pode-se, pois, compreender o crime profissional a partir das ideias de Marx expostas acima?
Acredito que sim, mas não sem fazer algumas considerações. A primeira é que o modo de produção
capitalista funciona com base em uma racionalidade que busca, de modo objetivo organizar a
concepção da produção, o gerenciamento e controle do processo produtivo, a maximização de
resultados de forma a extrair a maior produtividade e lucratividade dos frutos do trabalho, da
geração da riqueza capitalista. Nos casos de crises as soluções serão buscadas também com base
nesta racionalidade e objetividade e assim, o capitalismo está constantemente se reinventando para
continuar sendo o mesmo, ou para manter a mesma lógica de obtenção de lucros, de acumulação, de
geração de riqueza. As atividades criminosas profissionais seguem esta mesma lógica de
funcionamento do capitalismo: não está comprometida com valores morais e éticos mais gerais, se
estrutura com base na racionalidade e na objetividade e também em casos de crises ou da
impossibilidade (ainda que momentânea) de atuação estas atividades se renovam, se recriam.
A segunda consideração é que o estranhamento do trabalho, de si mesmo e do outro que o
ser humano vivencia no sistema capitalismo variam de intensidade ao longo do tempo e de acordo
com as condições sociais específicas em que o sujeito está vivendo; ora pode ser mais intenso, ora
pode ser menos intenso. Além disso, acredito que algumas formas de interação social podem servir
como paliativo ao sentimento de não reconhecimento no trabalho, da fragmentação ou da perda da
identidade humana: as relações de amizade e de parentesco, as relações vivenciadas em grupos que
se constituem por afinidade de interesses – grupos esportivos, religiosos, profissionais, políticos,
artísticos, etc. No cômputo dos sentimentos experimentados nestas formas de interação social o
indivíduo acaba por encontrar um significado para sua existência que pode diminuir a sensação de
estranhamento de si mesmo explicado acima. Essas interações servem também para formar e
fornecer princípios e valores morais e éticos que guiam as ações desses indivíduos em sociedade.
O crime como profissão pode ser pensado, então, como um esforço do indivíduo (em geral
inconsciente) por não se submeter a um sistema de trabalho que o torna estranho a si mesmo, por
um lado; e, por outro, porque em algumas configurações sociais os sentimentos e valores éticos
promovidos pelas interações sociais que o indivíduo experimenta não são fortes o bastante para
impedi-lo de agir contrariando as normas e regras estabelecidas.
Max Weber
As reflexões sobre o crime como profissão que serão apresentadas a seguir a partir dos
conceitos weberianos é apenas uma primeira tentativa de explicar este fenômeno a partir das ideias
do autor. É necessário enfatizar que ainda há uma amplo caminho a ser percorrido na compreensão
e nas possibilidades de utilização dos conceitos weberianos para a análise deste fenômeno social.
13
Serão utilizadas as concepções de Weber sobre o capitalismo (e os seus diversos tipos) e
mercado; e os conceitos de ação social, ação econômica e ação economicamente orientada.
Em Ensaios de Sociologia , H. H. Gerth e C. Wright Mills (1979) analisam as explicações de
Weber sobre o capitalismo. Em sua metodologia de análise dos fenômenos sociais o autor rejeita as
concepções predominantes na historiografia alemã de sua época, como o “caráter nacional” ou o
“espírito popular”. Ele explica a dinâmica social a partir de “uma análise pluralista de fatores, que
podem ser isolados e medidos em termos de seus respectivos termos causais. Assim o faz pela
análise comparada de unidades comparáveis, que se encontram em diferentes ambientes culturais”
(p. 85).
A partir desta perspectiva de análise, Weber apresenta dois tipos básicos de capitalismo:
capitalismo político – que se apóia nas oportunidades de manobra e controle político para obter
lucro (ganhos materiais em geral) e capitalismo industrial moderno ou burguês – que se apóia no
processo de produção de bens através da “organização do trabalho” e da “fábrica fixa”. Quanto ao
surgimento do capitalismo em geral, este se dá quando uma economia monetária começa e existir5.
Digno de nota e útil para os objetivos deste texto é a distinção das concepções de Marx e de
Weber acerca da racionalidade do capitalismo. Para Marx, os elementos racionais que constituem o
capitalismo alimentam elementos “incontrolados e irracionais”. Para Weber
o capitalismo é a forma mais elevada de operações racionais, implementada, não obstante,
por duas irracionalidades: os resquícios de uma atitude de fundamento religioso, o impulso
irracional pelo trabalho contínuo; e o socialismo moderno, visto como 'utopia' daqueles que
não podem tolerar o que lhes parece ser justiça insensata de uma ordem econômica que os
torna dependentes dos empresários possuidores de propriedades (p. 88).
Além disso, para Marx o comportamento do indivíduo está sempre subordinado aos
imperativos materiais de sua condição de sujeito pertencente a uma classe social. Weber, sem
desconsiderar a importância dos fatores econômicas nos comportamentos individuais e nas
estruturas sociais, entende que prestígio e grupos de status podem fornecer elementos explicativos
relevantes.
Somente quando opiniões subjetivas podem ser atribuídas a homens numa situação objetiva
de classe, fala Weber da “consciência de classe”; e quando problemas de “convenções”,
“estilos de vida” e atitudes ocupacionais, prefere falar de prestígios ou “grupos de status”.
Esses últimos problemas, decerto, relacionam-se com o consumo que, na verdade, depende
da renda privada da produção ou da propriedade, mas vai além dessa esfera. Estabelecendo
uma distinção clara entre classe e status, e direnciando entre tipos de classes e tipos de
grupos de status, Weber pode tornar mais claros os problemas de estratificação, em
proporções que até agora não foram superadas” (p.89).
Richard Swedberg em Max Weber e a idéia de Sociologia Econômica (2005) analisa a teoria
e os conceitos weberianos com o objetivo de demonstrar a atualidade do autor e de explorar um
aspecto importante de suas idéias que até então, em sua opinião, não foram suficientemente
trabalhados, explorados, reconhecidos.
Primeiramente, Swedberg explica que a Sociologia de Weber se construiu devido ao esforço
do autor em explicar as ações sociais dialogando com a Economia. As idéias de Weber, segundo ele,
não estariam voltadas para formular uma teoria econômica mais refinada, mas para discutir os
pressupostos da teoria econômica e avançar a partir daí proporcionando, com a Sociologia, uma
compreensão mais apropriada acerca dos comportamentos, das ações dos indivíduos. Se a teoria
econômica estava mais preocupada com a ações econômicas em si mesmas, Weber estava
interessado nas ações econômicas que são também ações sociais. Para a teoria econômica a ação
econômica leva em consideração apenas os elementos racionais que influenciam as escolhas e os
comportamentos, enquanto que Weber entende que a ação econômica é uma ação racional mas que
é orientada levando em consideração o comportamentos dos outros. Nas escolhas e ações dos
5
A informação sobre quando esta economia monetária teria surgido não é apresentada pelos autores.
14
indivíduos, que agem por motivos que são subjetivos, está sempre presente a sociedade
influenciando tais escolhas de modo nem sempre objetivo ou mesmo racional.
Quanto à ação, ela é “'social [somente] na medida que seu significado subjetivo leva em
conta o comportamento dos outros, que, assim, orienta seu curso” (p. 47). Partindo do conceito
weberiano de ação social, podemos avançar para o conceito de ação econômica. Toda ação,
especialmente a ação econômica, é movida pelos interesses do indivíduo. Tais interesses são
guiados pela utilidade que produtos, bens, ou oportunidades podem oferecer. O conceito de
utilidade, por sua vez, é constituído por três fatores: Primeiro, o que mais importa em um objeto não
é sua qualidade própria, mas a utilização que se poderá fazer dele; Segundo, é preferível utilizar o
termo “satisfação de necessidades” do que o de utilidade porque aquele possui um alcance mais
abrange do que este; Terceiro, a idéia de oportunidades:
A ação econômica, diz Weber, é sempre mais orientada pelas oportunidades do que por
certezas, isso influencia profundamente seu caráter. (...) Posso adquirir um artigo na
esperança de que me venha a ser útil (para me gerar lucros ou para a satisfação de minhas
necessidades), mas o que adquiro de fato é uma oportunidade de usá-lo de uma série de
formas diferentes (p. 53).
Em última instância, salienta Swedberg, a ação econômica implica o poder de “controlar e
dispor”. Esta noção fica mais clara na distinção entre ação econômica e ação economicamente
orientada que Weber utiliza ao falar de economia doméstica (ação econômica tradicional) e da
geração de lucros (ação econômica racional).
Mas o que Weber tem em mente agora é destacar dois tipos de ação econômica que não se
qualificam como formas integrais de “ação econômica” mas que, apesar disso, são de
grande interesse. Tem-se, em primeiro lugar, as ações que não são primariamente orientadas
pelas ações econômicas, mas que, ainda assim, levam em conta considerações econômicas;
e, em segundo lugar, as ações que são diretamente orientadas por objetivos econômicos,
mas que usam a violência para alcançá-los. Chamar essas duas categorias de “ações
economicamente orientadas” permite a Weber incorporar uma série de fenômenos
importantes do mundo econômico em sua sociologia econômica, mesmo que não
constituam sua essência (p. 57).
Podemos sintetizar as ideias acima da seguinte forma: a ação econômica (conclui Weber) é:
Primeiro, uma tentativa pacífica de obter o poder de controlar e dispor; Segundo, é a ação dirigida
para algo que oferece uma oportunidade de utilidade; Terceiro, é a ação orientada pelo
comportamento dos outros. Ação economicamente orientada é aquela em que o o interesse
econômico não é o principal fator a orientar a ação, mas está, ainda assim, presente e ações que são
orientadas por interesses eminentemente econômicos mas que se desenvolvem com o uso da
violência. Aqui já temos elementos para uma reflexão sobre o crime como profissão, mas antes
vejamos a concepção de Weber sobre o mercado.
O primeiro ponto a destacar sobre o mercado é a dificuldade de sua definição devido a sua
“estrutura amorfa”. Todavia, Weber entende o mercado como o espaço social em que os indivíduos
interagem e tal interação “consiste em atos de troca repetidos – isto é, interações que são
simultaneamente dirigidas a dois tipos diferentes de agentes. É dirigida ao parceiro de troca (com
quem se comercia) e aos concorrentes (que são suplantados por uma oferta mais vantajosa)” (p. 70).
Outros dois fatores importantes é que no mercado não importam valores como honra, ou de grupos
de status, ou seja, a pessoa não é levada em consideração e apenas os interesses, ou que está sendo
trocando é que conta; segundo, o mercado moderno tem seu funcionamento estruturado de tal modo
que é difícil que valores éticos possam exercer sobre ele alguma influência relevante.
Que medidas devem ser tomadas em relação ao mercado quando, por exemplo, a demanda
por um artigo cai levando muita gente ao desemprego e à miséria? Não existe nenhuma
resposta pronta para isso de uma perspectiva religiosa ou ética, segundo Weber, que usa o
15
termo “impessoalidade” para esse fenômeno. O fato de ser tão difícil influenciar o mercado
de um ponto de vista moral faz da “impessoalidade” uma característica da sociedade
moderna. (pp. 71, 72).
O crime como profissão pode ser considerado como uma ação economicamente orientada. É
motivada por interesses subjetivos, mas que são construídos levando em consideração a ação
esperada dos outros; envolve o poder de controlar e dispor; pode ser desenvolver, ou não, mediante
a utilização da violência; Dada a configuração específica do capitalismo burguês, da forma própria
de funcionamento do mercado, cada vez mais as ações dos indivíduos tem por motivação alguma
tipo de ganho, ou seja, alguma interesse em adquirir o poder de controlar e dispor, tanto de bens
materiais, quanto de bens simbólicos através de ações constituídas com base na racionalidade. Esta
ânsia pelo poder de controlar e dispor pelo qual as ações sociais em geral e a ação economicamente
orientada se configura está relacionada com algo que o próprio Weber já apontava: o
desencantamento do mundo.
Penso que os processos sociais que passam pelas ressignificação de valores citados acima
aprofundam o vazio existencial que a própria racionalidade do mercado produtivo engendra. Ao agir
por meio de uma ação economicamente orientada, ao adotar o crime como profissão, em geral, o
individuo o faz porque isto pode lhe garantir um padrão de consumo que estabelecerá o seu lugar na
hierarquia social, ele poderá conquistar o prestígio e o status que o próprio mercado (quase) elimina
das relações sociais. Este espaço que se busca preencher deste modo pode gerar a sensação de que
se está construindo identidades mais sólidas e menos voláteis. De certo modo, ao adotar o crime
como profissão, ao agir de modo economicamente orientado, em certa medida, o sujeito está
buscando a formação de uma identidade, de encontrar seu lugar em um mundo construído a partir
de padrões de consumo que formam estilos de vida e estabelecem formas de sociabilidade próprias
e este ethos de consumo.
(I)COCLUSÕES
Me parece profundamente preocupante que nas sociedades contemporâneas exista um
desencantamento do mundo ou um vazio no lugar das identidades e que se estejam buscando
preencher estes espaços vazios através de ações como as que caracterizam o crime como profissão.
Diante disso, defendo que a discussão acerca desta temática se faz urgente e necessária e necessário
se faz que a mesma seja realizada por um conjunto de pesquisadores e que não fique na solidão de
trabalhos isolados que se proponham discutir o assunto.
Entendendo que as questões e algumas respostas sugeridas aqui tem caráter provisório e
certamente sofrerão alterações à medida que novas pesquisas e reflexões acerca do assunto forem
realizadas. É por este motivo que somente aqui na conclusão se apresenta uma tentativa de
conceituar (provisoriamente) o crime como profissão. O crime como profissão pode ser
compreendido como atividades ou ações consideradas ilegais, praticadas com a finalidade de
obtenção de ganho financeiro, realizadas com certa regularidade, em tempo parcial ou integral e
que se assentam em motivações objetivas e subjetivas.
A apresentação e utilização de alguns conceitos dos autores clássicos da Sociologia e dos
autores que tratam especificamente do crime como profissão não tem como finalidade criar uma
teoria que resulte da combinação das ideias destes autores a fim de se chegar a um conceito acabado
do crime como profissão. O que se buscou com este texto foi apresentar algumas possibilidades de
análise deste fenômeno social a partir da leitura dos textos da Sociologia clássica e de introduzir as
ideias de alguns sociólogos que já discutiram e que vem discutindo esta temática. Outro objetivo
perseguido com este texto foi o de problematizar as limitações de utilização da teoria sociológica
clássica que por vezes os próprios sociólogos se impõem devido à valorização hierárquica de certos
16
objetos de pesquisa que acaba por impossibilitar o olhar sociológico de vislumbrar novos horizontes
de pesquisa.
Ressalto que este texto não esgotou o tema, tampouco outras considerações sobre o assunto
que merecem ser apresentadas e discutidas mas que serão contempladas nos trabalhos que
continuarei realizando sobre este assunto. Por ora, se tiver sido possível despertar a reflexão e
mobilizar o interesse de outros pesquisadores para o crime como profissão terei atingido meu
principal objetivo.
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