A CONTRIBUIÇÃO (POSSÍVEL) DA FILOSOFIA E DO PENSAMENTO NA REALIZAÇÃO DA POLÍTICA: APROXIMAÇÕES ENTRE A CARTA VII DE PLATÃO E A VIDA DO ESPÍRITO DE ARENDT Iltomar Siviero* Resumo: O presente texto desenvolve a ref lexão acerca da contribuição (possível) da filosofia e do pensamento na realização da política a partir do estudo da Carta VII de Platão e do livro A Vida do Espírito de Hannah Arendt. Mesmo que em contextos distantes, um no período clássico, era da filosofia antiga, outra no século XX, era da filosofia contemporânea, ambos pensadores tematizam os modos que levam a política à fruição e perda de sentido, ao mesmo tempo em que acenam possibilidades da sua realização por intermédio do papel extraordinário da filosofia (Platão) e do papel reflexivo do pensamento (Arendt), diante do exercício do poder de Dionísio em Siracusa e Eichmann no Regime Totalitário Nazista, respectivamente. Palavras-Chave: Política. Filosofia. Pensamento. Platão. Arendt. O adentrar na leitura e discussão da Carta VII, escrita entre os 30 e 40 anos de Platão, considerada por estudiosos como sendo autêntica, * Doutorando em Filosofia Unisinos e professor do IFIBE. As discussões que nos propomos a desenvolver no presente texto foram tematizadas em parte e não no todo da disciplina Fenomenologia e Hermenêutica, ministrada pelo professor Luis Rohden, durante o segundo período letivo 2011 no Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Unisinos. Revista Filosofazer. Passo Fundo, n. 43, jul./dez. 2013 143 fez notar dois movimentos teóricos: digressão e excursus. O primeiro é uma volta à questão existencial, onde Platão remonta às práticas tirânicas de Dionísio, mostrando quão maléfico pode ser um governante “apartado” da filosofia. Já o segundo movimento trata de mostrar a especificidade, constituição e modo de exposição do saber filosófico.1 Mesmo que seja difícil estabelecer uma separação entre ambos, nossa abordagem remete ao primeiro movimento, onde se fará ver que Dionísio não foi um bom governante porque não foi verdadeiro amante da sabedoria presente no cultivo da filosofia. Disso resultou um governo tirânico. Semelhante à situação do estudo de Platão pode ser evidenciada em Hannah Arendt a partir da sua análise e reflexão sobre o caso Eichmann realizado em duas obras: Eichmann em Jesusalém: um relato sobre a banalidade do mal e, sobretudo, em A Vida do Espírito. A primeira foi escrita em 1963 e remonta ao julgamento de Eichmann em Jerusalém no ano de 1962. Arendt acompanhou o julgamento e, posteriormente, de posse dos autos do processo, debruçou-se na reconstrução fenomenológica do ocorrido. Todavia, longe de ser uma reconstrução ipsis litteris, neste livro Arendt assevera que os atos cometidos por Eichmann, oficial do alto escalão do exército de Hitler, revelam a ausência do pensamento e da moral, temas fundamentais da vida do espírito. O mal aparece como um problema consequente da ausência do pensamento, considerando que Eichmann atuava violentamente com a naturalidade de cumprir atos de ofício deliberados pelo grande führer. A expressão metafórica utilizada por Arendt e que melhor acentua o traço de obediência cega e incondi1 Trabattoni destaca que, na parte que contém o excursus filosófico, Platão “[...] se concentra nos problemas relativos à natureza do saber filosófico como tal, às dificuldades que criam obstáculo, seja para sua constituição, seja para sua exposição. Desse modo, explica ele [Platão], algumas das coisas que diz poderão adquirir maior segurança. Há, de fato, um raciocínio verdadeiro ‘contrário a quem arrisca a escrever mesmo uma qualquer das coisas de que falamos’ que ele já expôs muitas outras vezes, mas que vale a pena repetir aqui (342a). A cada coisa pertencem três características, por meio das quais é possível conhecê-la: o nome, o lógos (que neste caso poderemos traduzir, aristotelicamente, como discurso definidor) e a imagem. Em quarto lugar, vem o conhecimento (ou ciência), enquanto, no quinto, convém pôr o objeto do conhecimento que existe realmente” (TRABATTONI, 2003, p. 183, acréscimo nosso). 144 Revista Filosofazer. Passo Fundo, n. 43, jul./dez. 2013 cional de Eichmann é a do Cão de Pavlov.2 Portanto, Eichmann retrata a banalidade do mal, a sua recusa em pensar e a incapacidade de julgar atos cruéis e violentos como foram as experiências dos campos de concentração. É desse ambiente e dessa problematização que Arendt se inclina ao estudo das atividades da vida do espírito que resultaram na publicação da obra A Vida do Espírito, iniciada em 1970, mas não concluída em virtude de sua morte, em 1975. Nesta obra Arendt se propunha a enfrentar o tema do Pensar, do Querer e do Julgar. As derivações que decorrem do caso Eichmann, em aproximação com o caso Dionísio, serão objeto de investigação deste estudo, conforme demonstraremos a seguir. 1. Dionísio e a importância da filosofia no exercício do poder As discussões realizadas acerca da relação entre Dionísio e a filosofia remetem para narração dos relatos de Platão sobre as duas viagens à Siracusa, cidade-estado da Sicília, em atenção aos pedidos de Dião e Dionísio, a fim de que ele pudesse propagar a filosofia no meio político, em vista de introduzir um novo sistema de governo baseado nas leis. Tudo começa com um convite de Dião3 a Platão: “Cheio de boas intenções, Dião convenceu Dionísio a me [Platão] mandar buscar, ao mesmo tempo em que me [Platão] concitava por carta a partir o mais depressa possível, de qualquer jeito, antes que outras influências desviassem Dionísio do ideal de vida perfeita” (PLATÃO, 327e, 1975, p. 140, acréscimo nosso).4 Dião diz que Platão tinha essa habilidade de ensinar o que de melhor, perfeito e mais belo pode haver 2 A referência ao Cão de Pavlov já esteve presente em As Origens do Totalitalitarismo, obra escrita entre os anos de 1940 a 1950, publicada em 1951. Numa passagem, Arendt diz: “O Cão de Pavlov, o espécime humano reduzido às reações mais elementares, o feixe de reações que sempre pode ser liquidado e substituído por outros feixes de reações de comportamento exatamente igual, é o ‘cidadão’ modelo do Estado totalitário; e esse cidadão não pode ser reduzido de maneira perfeita a não ser nos campos de concentração” (1989, p. 507). Na passagem acima, a expressão é aplicada aquele que era o próprio mandante das pessoas aos campos de concentração. 3 Em 367 a.C., Dion chama Platão de volta à Siracusa: Dionísio I havia morrido e seria sucedido por Dionísio II. Platão vê nessa situação a chance de mudar os rumos políticos da cidade, ou seja, preparar o novo tirano para expulsar os cartagineses da Sicília. Conferir www.historiadomundo.com.br/artigos/platao.htm 4 Doravante referiremos sempre a mesma edição do texto de Platão (1975), informando apenas a numeração da edição crítica. Revista Filosofazer. Passo Fundo, n. 43, jul./dez. 2013 145 na vida, por isso ele deveria ir o mais depressa possível à Siracusa (PLATÃO, 327d). Este ambiente antevia ocasião ímpar para ver se concretizar de fato a união entre a filosofia e o governo da cidade, pois não faltava a Dião hoplitas e cavaleiros para defendê-lo diante dos adversários. O que lhe faltava se completava em Platão. Diz: “[...] faltavam-me, sim, aqueles discursos persuasivos com que conseguirias, tenho certeza, orientar os jovens para a justiça e a virtude, e uni-los para sempre os laços inquebrantáveis da amizade e da camaradagem” (PLATÃO, 328d). Diante disso, Platão decide partir , pois, na sua avaliação, os motivos que o levaram a tal eram razoáveis e justos. Todavia, ao chegar a Siracusa, depara-se com uma situação nada parecida com o que lhe fora informado. Diz: “Ao chegar – precisarei resumir – só encontrei discórdias junto à corte de Dionísio, e Dião caluniado junto ao tirano. Defendi-o o mais que pude, mas podia muito pouco” (PLATÃO, 329c). Sem ter como enfrentar o tirano, Dião foi banido e Platão foi tratado de forma diplomática por Dionísio, considerando a necessidade de tê-lo como aliado aos seus trabalhos. Com certa esperança, Platão cria que Dionísio um dia ainda passaria a enamorar-se da vida filosófica. Mas, isso não se consolidou e Platão teve que partir. A Carta VII faz registros de alguns conselhos que tanto Platão quanto Dião tentaram dar a Dionísio. Foram muitos e com diferentes temas. Sumariamente, destacamos: sobre domínio de si próprio (PLATÃO, 331e), da virtude e do vício como marcos dos homens (PLATÃO, 332c), amparo na reflexão e na prudência e nas leis e constituições como meio para reconstrução das cidades (PLATÃO, 332e), respeito e temor às leis (PLATÃO, 337a), condutas despóticas que não servem ao exercício do governo (PLATÃO, 334d). Dião foi morto e Platão não teve êxito nas suas investidas de convencimento. A situação do fracasso de Platão e Dião não decorreu da falta deles no esforço argumentativo em vista do convencimento de Dionísio. Outrossim, resultou do próprio Dionísio que desenvolveu práticas incompatíveis com o exercício do bom governo. Entre alguns problemas, podem ser elencados os seguintes: por seu apego ao poder, por seu modo interesseiro, por escrever e repetir fórmulas filosóficas vazias, por falar e não viver filosoficamente, por seu apego excessivo às riquezas.5 Além disso, “[...] era pobre de amigos e de correligionários fiéis. Ora, o mais seguro sinal da virtude ou de vício é a penúria ou a abundância de homens desse tipo” (PLATÃO, 332c). 5 Para aprofundamento detalhado de cada ponto destacado e, inclusive, comparado com outras posições filosóficas, sobretudo Erasmo de Rotterdam, Arthur Schopenhauer e Oswaldo Porchat, sugere-se a leitura do texto de Rohden (2011). 146 Revista Filosofazer. Passo Fundo, n. 43, jul./dez. 2013 Frente a tais práticas, Platão foi enfático em afirmar que tudo o que se passou com Dionísio poderia ter sido evitado. Diz: Se tudo isso houvesse sido levado a cabo por um homem justo, corajoso, temperante e filósofo, então a maior parte dos homens teria feito da virtude a mesma ideia, que viria a prevalecer, pode-se afirmar, sendo certo que ela os teria salvo. Porém agora um demônio ou divindade vingadora desencadeou sobre todos vós um franco desprezo das leis e dos deuses e, principalmente, a audácia que só a ignorância confere e que é o terreno onde todos os males da humanidade deitam suas raízes, engrossam e, com o tempo, produzem frutos amaríssimos para os próprios semeadores. Foi essa ignorância que pela segunda vez tudo arruinou e pôs a perder (PLATÃO, 336b). Lamentavelmente, Platão constata que Dionísio não lhe deu ouvidos e, vivia sob a condição da ignomínia, ao passo que Dião, embora morto, mas, pelo fato de ter acreditado nas suas palavras, é uma pessoa que merece honras. E assim foram desfeitos os caminhos da primeira viagem de Platão. Custosamente Platão conseguiu convencer Dionísio a deixá-lo partir de volta a Atenas. Conseguiu, porém, com a condição de que, tão logo tivesse se restabelecido a paz na Sicília, Dionísio investiria novos contatos a fim de trazê-lo de volta. Passado um ano, a promessa veio à tona, todavia sem o convite a Dião e sim a Platão. O que levava Platão a dar atenção ao pedido era de que chegavam notícias afirmativas sobre o gosto extraordinário que Dionísio nutria pela filosofia. Entre idas e vindas de mensageiros, contação de histórias que destacavam ser realmente admirável o progresso de Dionísio no terreno da filosofia e manifestações de apreço a Dião para tocar os sentimentos de Platão em função da amizade entre ambos, e, por fim, uma longa carta na qual Dionísio declara que os desejos de Platão poderiam ser realizados se ele aceitasse o convite. Tudo isso fez com que Platão decidisse voltar, embora ainda estivesse bastante apreensivo. Em seu relato, destaca que: “Ao chegar, meu primeiro cuidado foi certificar-me se Dionísio era mesmo de unha e carne com a filosofia, ou se não passava de boato sem fundamento o que se falava dele em Atenas” (PLATÃO, 340b). Na sequência, Platão fez longa reflexão sobre os elementos fundamentais que sustentam a natureza extraordinária da filosofia e notou que o que em nada se pareciam com Dionísio. Mais do que dizer o nome, a definição, a imagem do que são as coisas, o conhecimento Revista Filosofazer. Passo Fundo, n. 43, jul./dez. 2013 147 inscreve-se na alma de cada sujeito, revelando a experiência fundante que acontece em cada um, livrando-os das obscuridades das incertezas. Esta é a condição para que se alcance o grau mais elevado, designado por Platão como sendo a coisa mesma, o objeto que não acontece ao modo de um tempo cronológico, mas sim kairológico e processual, isto é, numa luz que advém instantaneamente e/ou que implica momentos de ascendência e descendência no poder de determinar o conhecimento certo. Mencionamos duas passagens que referem estas questões, respectivamente. O que estou em condições de afirmar de quantos escreveram e ainda virão a escrever com a pretensão de conhecer as questões com que me ocupo, quer as tenham ouvido de mim mesmo ou de outras pessoas, quer as descobrissem por esforço próprio, é que, no meu modo de pensar, eles não entendem nada de nada de todas essas questões. De mim, pelo menos, nunca houve nem haverá nenhum escrito sobre semelhante matéria. Não é possível encontrar a expressão adequada para problemas dessa natureza, como acontece com outros conhecimentos. Como consequência de um comércio prolongado e de uma existência dedicada à meditação de tais problemas é que a verdade brota na alma com a luz nascida de uma faísca instantânea, para depois crescer sozinha [...] (PLATÃO, 341c). Porém, quando em nossa resposta, somos obrigados a nos referir ao quinto elemento, quem conhecer a arte de refutar basta querer levar para si melhor e convencer a maioria dos ouvintes que quem expõe sua doutrina por meio de discursos, de escritos ou de respostas, nada entende do que propõe falar ou escrever. Mas, o que eles não sabem é que não é o espírito do escritor ou do orador que se refuta, senão a natureza de cada um dos quatro elementos, essencialmente defeituosa. É a força de considerá-los subindo e descendo de um para o outro, que se gera com muito trabalho o espírito naturalmente capaz, o conhecimento do que por natureza é certo. [...] Porque é da necessidade forçosa aprender os dois ao mesmo tempo, a respeito do ser em universal: o falso e o verdadeiro, o que demanda tempo e trabalho, conforme disse no começo. Só depois de esfregarmos, por assim dizer, uns nos outros, e compararmos nomes, definições, visões, sensações, e de discuti-los nesses colóquios amistosos em que perguntas e respostas sem o menor ressaibo de inveja, é que brilham sobre cada objeto a sabedoria e o entendimento, com a tensão máxima de que for capaz a inteligência humana. Eis a razão de todo homem, de senso abster-se de escrever sobre esses temas sérios e de expô-los á inveja e à incompreensão do público (PLATÃO, 343d-e; 345b). 148 Revista Filosofazer. Passo Fundo, n. 43, jul./dez. 2013 Este foi o grande problema de Dionísio evidenciado por Platão. Diante de suas disposições corrompidas e da falta de afinidade com o objeto, não teria mesmo como realizar seu governo à luz da filosofia. Mais do que dizer ou escrever para convencer o público ou para ajudar a memória de algo ou para que outros possam decorar raciocínios, a afinidade com o objeto remete a uma experiência que contém verdades que não se esquecem, considerando que elas foram compreendidas e, por isso, ficaram registradas na alma dos sujeitos. Mesmo que se esqueça de algumas palavras precisas, tais escritos não perdem a sua substância, condição fundamental para iluminar as ações humanas.6 2. E ichmann e a importância do pensar frente às práticas administrativas do regime totalitário nazista Semelhante ao caso Dionísio, o exercício fenomenológico na abordagem deste tema remete a um fato, a um acontecimento – o julgamento de Eichmann em Jerusalém, um membro do regime político totalitário-nazista. Arendt acompanhou o julgamento e surpreendeu a muitos pelos escritos daí resultantes. Esteve lá na condição de jornalista, meio através do qual lhe foi possivel o acesso e o acompanhamento do julgamento. Mas suas palavras a Jaspers7 revelam que seu grande objetivo não era simplesmente o de relatar os autos do processo e sim de retomar os compromisso consigo mesma diante dos acontecimentos do regime 6 A este respeito indicamos belíssimos textos sobre este tema: TRABATTONI, 2003, p.183-216; PALMER, 1997; entre outros. 7 O registro dessas palavras está na Carta n° 267, de 14 de outubro de 1960. Nela anuncia a Jaspers sua intenção de se deslocar para Jerusalém para acompanhar o processo de Eichmann, para semanário New Iorker, ao qual ela mesma se tinha oferecido. O filósofo alemão manifestou seus receios, temendo, por um lado, que o processo não fosse prazeroso para ela, que corresse mal e receando as suas infalíveis críticas. Arendt retrucou-lhe que não se outorgaria o “prazer” de seguir o processo, que continuava a não saber quando devia começar, em nenhum caso mais de um mês, e que não se perdoaria por não ir lá, considerando que, tendo abandonado a Alemanha muito cedo, tinha vivido muito pouco os acontecimentos da Alemanha nazi (COURTINE-DENAMY, 1994, p. 100). Revista Filosofazer. Passo Fundo, n. 43, jul./dez. 2013 149 nazista. Da sua presença, acompanhamento e leitura dos autos do processo de Eichmann, Arendt elaborou a obra Eichmann em Jesusalém: um relato sobre a banalidade do mal, através da qual demarcou uma nova e decisiva inflexão teórica na compreensão das bases nas quais o regime político totalitário foi acentuado: na ausência do pensar. Trata-se de um esforço teórico que reivindica a reconsideração da vita contemplativa, mudando, mas não abandonando, o legado da vita activa na consolidação dos modos de efetivação da política.8 O livro Eichmann em Jerusalém é composto de três questões: uma que trata de mostrar o retrato do homem Eichmann; outra que trata das notas sobre os Conselhos Judaicos e seu papel na “solução final” nazista e; por fim, o desenvolvimento do processo, as discussões e as questões jurídicas levantadas e suscitadas durante o julgamento. A obra é carregada de um espírito crítico e de um tom irônico, que suscitou o ódio de muitos judeus sobre as afirmações levantadas por Arendt. Ela começa o texto descrevendo a corte do Tribunal de Jerusalém, destacando, ousadamente, que servia mais aos ditames do Estado de Israel que à própria justiça. Os juízes não conseguiram compreender que o julgamento estava para além dos assuntos de uma Nação e além de atos voltados aos crimes cometidos por um homem. A indignação de Arendt suscitou um esforço teórico para mostrar que os juízes, embora estivessem diante de um homem comum, perderam uma ocasião única de esclarecer o funcionamento do sistema nazista, a significação dos fatos cometidos e de tomar parte da condição de historiadores, uma vez que poderiam ter aprofundado mais os diversos elementos implicados, inclusive, acerca do papel de colaboração e resistências das vítimas. A outra questão abordada por Arendt e que suscitou uma perseguição e afronta direta às suas posições foi sobre os Conselhos Judaicos, ponto mais nevrálgico do livro. Nas páginas nas quais trata disso, Arendt remete à estranha docilidade com que os Conselhos Judaicos atuaram diante do extermínio do seu próprio povo. Pareciam mais afeitos à condição de cooperadores com as autoridades nazistas do que a uma posição de liderança, resistência e contraposição ao sistema ge8 Para maior aprofundamento desta questão indicamos o texto no qual analisamos o pensamento de Arendt a partir de dois movimentos, sendo que o primeiro é marcado pela reconsideração da vita activa e o segundo pela reconsideração da vita contemplativa ou do espírito, termo preferido por ela (SIVIERO, 2011, p. 106-124). 150 Revista Filosofazer. Passo Fundo, n. 43, jul./dez. 2013 nocida. Esse posicionamento causou uma grande celeuma e ataques de judeus a Arendt, a ponto de afirmarem que ela teria perdido o amor por seu povo. Por fim, o tema do homem Eichmann, que chocou a multidão de leitores. Além de acompanhar o julgamento, Arendt leu as 3.600 páginas do interrogatório feito pelos policiais e notou que Eichmann não tinha nada de extraordinário. Era um homem comum, normal, preocupado com sua família. Os relatos dos atos por ele cometidos em favor da “solução final” mostravam que cumpria o perfeito papel de instrumento de um sistema, de um sujeito que via apenas o lado do cumprimento da ordem em nome da ascensão na sua carreira, a ponto de se limitar ao papel de reivindicação da autoridade de assinar relatórios das deportações que conduziam ao extermínio e a comandar uma organização terrorista atrás de uma mesa. O que o levou a fazer isso, segundo Arendt, “[...] não foi a estupidez, mas irreflexão” (2009, p. 18), uma curiosa e bastante autêntica incapacidade de pensar. Diz Arendt: “Quanto mais se o ouvia falar, mais claro se tornava que sua inabilidade de falar estava intimamente relacionada a sua inabilidade de pensar, especialmente de pensar em relação ao ponto de vista de outras pessoas” (1983, p. 65). Era um sujeito sem consistência, pois mostrou não dominar a arte da percepção da contradição quando afirmava: “Eu pularei, rindo, para dentro da minha cova, se souber que consegui mandar para a morte quatro milhões de judeus” e “Eu me enforcarei alegremente, em público, como advertência para todos os anti-semitas desta terra” (ARENDT, 1983, p. 69). Ele não tinha consistência naquilo que dizia e revelava a banalidade do mal e a falta de consciência daquilo que estava acontecendo. O que melhor o caracteriza é a noção do homem massa, paradigma do sujeito ideal do totalitarismo e do próprio homem contemporâneo que demonstra a sua prisão no universo das necessidades. “Foi essa ausência de pensamento – uma experiência tão comum em nossa vida cotidiana, em que dificilmente temos tempo e muito menos desejo de parar e pensar – que despertou meu interesse” (ARENDT, 2009, p. 19). Frente a este chocante cenário Arendt faz esforços na reflexão das atividades do Espírito, preparando o terreno para a publicação de sua última obra A Vida do Espírito, iniciada em 1970, mas não concluída em virtude de sua morte, em 1975. Nesta obra, Arendt se propunha a enfrentar e reivindicar a reconsideração das atividades do Espírito: Revista Filosofazer. Passo Fundo, n. 43, jul./dez. 2013 151 Pensar, Querer e Julgar. A última ficou incompleta, embora tenha uma edição póstuma sobre Kant, resultante de um curso na New School for Social Research, ministrado em 1970 e publicado em 1982, que remete a esta questão. A abordagem das três atividades consiste em demarcar o caráter de não (des)ocupação com os negócios humanos, mas, o seu contrário, dado que as atividades do Espírito podem ser a expressão da resistência, da opinião e do confronto crítico com a realidade. A atividade do pensar é, para Arendt, distintamente da tradição e com base na distinção kantiana entre pensar e conhecer, a retirada do mundo a fim de re-pensar os acontecimentos e atribuir-lhes significado. Trata-se de uma retirada momentânea do mundo que não gera passividade, mas movimento e compreensão da lacuna entre o passado e o futuro. Portanto, não está em questão a busca pela verdade com fins de estabelecer os fundamentos universais e absolutos do que é isso ou aquilo. Está em questão a investigação crítica dos acontecimentos e experiências vividas, confrontadas com a “solidão ativa” que gerará uma opinião, a exemplo de Sócrates, concebido por Arendt como o modelo do pensador. Sócrates inaugura e reivindica à filosofia a arte de pensar sem resultados, sem começo e nem fim, paralisa e exerce efeito na vida interior, pondo-a em movimento e exigindo um novo começo. Neste sentido, o pensamento lança para o mundo, no confronto com o presente. Neste sentido, o pensamento exige coragem, mas não é prerrogativa de alguns, pode estar presente em todos. A sua falta ou o vazio de pensamento não é natural, mas decorre de uma situação forjada pelas contingências que aprisionam a certos modelos ideológicos à indiferença e aos acontecimentos, conduzindo à destruição do sentido da realidade, o que gera a condição para o surgimento das massas. Em tal situação, significa que tudo vale, tudo pode, predominando a irreflexão, a superficialidade, a ausência de pensamento. Daí a compreensão da banalidade do mal como resultante desta falta de pensamento, desta falta do confronto consigo mesmo, uma espécie de um outro que está em mim (dois-em-um), dito de outro modo, como se remetesse ao acompanhamento e questionamento do ponto de vista de outras pessoas. Em As Origens do Totalitarismo isso já estava presente quando Arendt retomava a afirmação de Catão: “[...] ‘nunca ele esteve menos só do que quando estava sozinho’, ou, antes, ‘nunca ele esteve menos solitário do que quando estava a sós’” (ARENDT, 1989, p. 528). 152 Revista Filosofazer. Passo Fundo, n. 43, jul./dez. 2013 A atividade do julgar tem, em grande medida, uma relação direta com a atividade de pensar, uma vez que implica um processo de exame crítico acerca do que aconteceu, sem, necessariamente, estar atrelada a uma posição universal. Também, na esteira kantiana, de modo particular na reflexão que o filósofo de Königsberg fez da faculdade do julgar na terceira crítica, a do juízo, reivindicando que o pensamento pudesse estabelecer uma relação com os acontecimentos do mundo, emitindo uma opinião sobre seu modo de revelação. Neste sentido, a capacidade de julgar implica em dois movimentos reflexivos: um, que se completa nesta relação com os acontecimentos do mundo e, outro, que exige um acordo consigo mesmo, condição para poder entrar em acordo com os demais. “O julgar é a atividade do espírito mais propriamente afim à política, capacidade fundamental do homem como ser político, lida com particulares de modo que possa compreendê-los mais amplamente possível em sua singularidade, operando assim como órgão de orientação no mundo” (CORREIA, 2002, p. 154). A faculdade do julgar “[...] permite-nos de algum modo, sentirmo-nos em casa em um mundo que precede a minha existência individual e que possivelmente sobreviverá a ela” (CORREIA, 2002, p. 155). Nota-se que, em grande medida, há uma interelação entre julgar e pensar, embora o primeiro lide com representações de objetos que estão ausentes e generalizações e o segundo com situações particulares e que estão “em nossas mãos”. Nas palavras de Arendt: Se o pensamento – o dois-em-um do diálogo sem som – realiza a diferença inerente à nossa identidade, tal como é dada à consciência, resultando, assim, na consciência moral como seu derivado, então, juízo, o derivado efeito liberador do pensamento, realiza o próprio pensamento, tornando-o manifesto no mundo das aparências, onde eu nunca estou só e estou sempre muito ocupado para poder pensar. A manifestação do vento do pensamento não é o conhecimento, é a habilidade de distinguir o certo do errado, o belo do feio. E isso, nos raros momentos em que as cartas estão postas sobre a mesa, podem sem dúvida prevenir catástrofes, ao menos para eu (ARENDT, 2009, p. 216). Ambos, pensamento e juízo, funcionam como meio através do qual se podem barrar as práticas do mal, instaurar a fundação de novas ações e revelar as mazelas sufocadas nas máximas de sucesso e feitos de grandeza que podem agradar aos deuses, mas não aos poRevista Filosofazer. Passo Fundo, n. 43, jul./dez. 2013 153 bres mortais.9 A atividade do querer remonta ao contexto medieval, sobretudo, à menção de dois ícones do cristianismo: Paulo e Agostinho. Em ambos aparecem duas noções contundentes, respectivamente: Eu-quero-e-não-posso e Eu-quero-e-não-quero. Ali Arendt localiza o problema da liberdade, entrelaçando: “a capacidade de iniciar algo novo, de pura espontaneidade, e a capacidade de decidir, o poder da livre escolha. A clave da noção de liberdade em ambos os predicados tem sua raison d’être no fato de que ‘apenas a vontade é a causa total da volição da vontade’” (ASSY apud CORREIA, 2002, p. 37). O que isto significa? Isto significa que “Eu Posso decidir contra o conselho deliberado da razão, bem como contra a mera atração do meu apetite aos objetos. E, de fato, é a vontade, e não a razão ou o apetite, que decide o desfecho da minha ação. A vontade é o árbitro entre a razão e o desejo, e apenas deste modo a vontade é livre” (ARENDT, 1994, p. 82). A noção de liberdade perpassa o tema do querer, que, independentemente da necessidade ou da coação, pode dizer sim ou não, concordar ou discordar. Nisso reside a dimensão da escolha, a potência da vontade, cuja capacidade supera o aprisionamento das circunstâncias da vida cotidiana, do sacrifício de si, em vista da afirmação da liberdade. 3. A contribuição da filosofia e do pensar para a realização da política Frente às obras e aos temas discutidos tanto por Platão quanto por Arendt, nota-se que a política e a filosofia podem e devem ser compreendidas como atividades que se complementam. O percurso das obras e reflexões construídas por ambos estão embasadas nos eventos e acontecimentos políticos dos séculos IV (a.C) e XX, respectivamente. É do seu ambiente histórico e político que ambos partem e, ao mesmo tempo, retornam, todavia, com novo olhar. Retomam os fatos, os acontecimentos, e os narram com uma capacidade singular, o que lhes credita o testemunho de uma memória que permite às gerações do (seu) presente um acerto de contas com o passado e com novas perspectivas para o futuro. 9 A expressão utilizada por Arendt e que melhor se adéqua a essa passagem é: “[...] a causa dos vencedores agrada os deuses, a dos vencidos agrada a Catão” (Epígrafe deixada por Arendt na máquina de escrever antes de sua morte) 154 Revista Filosofazer. Passo Fundo, n. 43, jul./dez. 2013 Platão, embora tivesse sido tratado como conselheiro pela sua capacidade de poder refletir e sugerir iniciativas frente às situações da época, tece considerações que o colocam num posto mais elevado. Sem temer, conclui que “[...] as cidades do nosso [seu] tempo são mal governadas, por ser quase incurável sua legislação, a menos que se tomassem medidas enérgicas e as circunstâncias se modificassem para melhor” (PLATÃO, 326a, acréscimo nosso). E, frente a tal situação, fala do lugar fundamental que poderia ser ocupado pela filosofia ou pelo filósofo. Diz: Daí, ter sido levado a fazer o elogio da verdadeira filosofia, com[o] proclamar que é por meio dela que se pode reconhecer as diferentes formas da justiça política ou individual. Não cessarão os males para o gênero humano antes de alcançar o poder a raça dos verdadeiros e autênticos filósofos ou de começarem seriamente a filosofar por algum favor divino, os dirigentes das cidades (PLATÃO, 326a-b, acréscimo nosso). O espírito que movia Platão radicava-se nisso. Em vários momentos antevia essa possibilidade se tornar realidade. Relata: “Aguentei [Platão] tudo, sempre fiel ao propósito que me levara até ali e com a esperança de que ele [Dionísio] se enamorasse da vida filosófica. Porém sua renitência anulou todos os meus esforços” (PLATÃO, 330b, 1975, p. 143, acréscimo nosso). Dionísio se negou a ingressar no caminho indicado por Platão, cuja exigência se pautava no exercício de uma vida guiada pela reflexão e pela prudência, meios pelos quais se poderiam reconstruir as cidades arruinadas e elaborar leis e constituições de interesse comum. Dito de outro modo, Se a filosofia e o poder se tivessem reunido em sua pessoa, ele [Dionísio] faria luzir aos olhos dos helenos e dos bárbaros e gravar no espírito dos homens a noção verdadeira de que não podem ser felizes nem as cidades nem os indivíduos, se todos não viverem sabiamente sob o amparo da justiça, ou por lhe serem inatas essas virtudes, ou por eles terem sido criados e instruídos por maneira justa sob a direção de governantes piedosos. Foi esse o dano causado por Dionísio, em comparação com o qual tudo o mais carece de importância (PLATÃO, 335d, acréscimo nosso). Revista Filosofazer. Passo Fundo, n. 43, jul./dez. 2013 155 Arendt revigora a história a partir do tempo em que as coisas estão acontecendo, isto é, do instante, da facticidade, possibilitando a emergência das suas fraturas, das suas feridas que, por sua vez, interrompem a noção de uma história da continuidade e se abrem para as narrativas das histórias singulares, da história que é resultado das deliberações humanas.10 Neste sentido, o passado nunca será acabado, mas contínuo presente a movimentar o pensamento. O que isso significa? Isso significa o marco de um pensamento que tem um núcleo de problematização voltado a um novo olhar da história e da construção da política, desarticulado da lógica do progresso e da história dos heróis. Arendt empreende um esforço de compreensão a fim de des-vendar as experiências vividas e desviadas, dos fatos e acontecimentos que ficam esquecidos nos porões da história, resultando numa nova história, a história dos perdedores, a história que abre as suas fendas, seus incômodos e possibilita a escuta das vozes emudecidas. Por que faz isso? O faz não simplesmente para lamentar ou legar a posteridade sobre o que aconteceu, mas por que aconteceu? Como aconteceu? O que significa isso que aconteceu? Essas são as grandes questões que a filósofa judia levanta e marcam o início de uma filosofia política da desconstrução, em que pensamento e ação são movimentos que andam juntos, “de mãos dadas”, enamorados da reflexão, do conflito, na lacuna entre o passado e o futuro, tecendo os fios rompidos da tradição. O marco decisivo desta nova leitura histórica refere-se ao fenômeno do totalitarismo, através do qual Arendt procura recuperar o papel ativo do pensamento, da contemplação, sem a contraposição entre vita 10 “Hannah Arendt ao analisar os fatos históricos não se envolve [meramente] no discurso desconstrutivo dos mesmos. Ou seja: os fatos ocorreram de tal maneira, tal como são descritos e há, pois uma verdade factual, que não é evidente, nem necessária, o evento foi esse. As circunstâncias temporais a partir do manejo dos humanos registram tal acontecimento. Poderia não ter ocorrido a morte de Sócrates, mas não foi assim que o fato se deu. As vontades individuais e coletivas interferem no processo da história e podem até manipular os fatos, mas esses resultam dessas deliberações dos humanos. Esses registros é que compõem a memória e o descaso com a memória pode ter uma repercussão ética de grandes proporções. Os totalitarismos são eventos que atestam toda essa circunstancialidade e traduzem o afastamento da liberdade e da política, na esfera pública, lugar próprio do surgimento da liberdade. [...] A história registra, pois, se houve em tal tempo e tal circunstância a liberdade na esfera pública ou não, pois é aí o lugar onde a pluralidade acontece e pode ser verificada, factualmente” (PIRES, 2006, p. 229, acréscimo da autora). 156 Revista Filosofazer. Passo Fundo, n. 43, jul./dez. 2013 activa e vita contemplativa. A partir da sua participação no julgamento de Eichmann em Jerusalém, Arendt apresentou um relatório que des-dobra a compreensão do totalitarismo, a partir da banalidade do mal, cujo problema remonta a um acerto de contas com os modos de ação do homem contemporâneo. A surpreendente constatação nos depoimentos de Eichmann conduziram as reflexões de Arendt na compreensão da banalidade do mal relacionada à ausência do pensar, isto é, do confronto consigo mesmo, recuperando a dignidade do pensamento no mundo contemporâneo e suas implicações no universo da realização e da dignidade da política. Dito de outro modo, Arendt quer-nos mostrar que o pensamento não vem separar os seres humanos do mundo, mas despertar neles a condição da finitude, da pluralidade, da singularidade, do discurso e da ação, em vista da recuperação da dignidade humana. É um pensar que re-visita a história e seus acontecimentos a fim de compreender o significado, a promoção da ação e abertura permanente da história, em contraposição à mudez da contemplação. Sócrates é o exemplo, o modelo dessa condição, guiando os passos de Arendt na demonstração do pensamento ativo, que carece do discurso, que busca significados, que no diálogo consigo mesmo impõe limites à sua ação, enfim, do pensamento que não nos tira do mundo para nos lançar num corpo de dogmas e doutrinas universais que estabelecem em suas máximas o modelo do progresso e da história que começa e já tem seus resultados finais antecipados, determinados. Deste modo, “A Vida do Espírito poderia ser interpretado como a Vida do Espírito Público” (CAMPOS, 2009, p. 170), de um pensar que re-pensa o mundo e as ações humanas no seu agora, com o amparo e testamento de figuras que legaram à humanidade com seus escritos e ações merecedoras do alcance da imortalidade pelos seus belos e grandes feitos. Neste sentido, o pensamento de Arendt advoga a novidade e visibilidade de cada ser humano e da coisa pública contra os acontecimentos e tempos sombrios do mundo contemporâneo. Considerações finais As discussões realizadas no presente estudo levam a crer que, independente do tempo e do lugar, a filosofia se mostra como conhecimento essencial e presente. Velhos temas refletidos à luz de novos proRevista Filosofazer. Passo Fundo, n. 43, jul./dez. 2013 157 blemas, ou velhos problemas refletidos à luz de novos temas. Tanto a primeira quanto a segunda assertiva podem ter validade. É fato que a filosofia contribuiu e continua a contribuir significativamente com os modos da ação humana em geral e com a realização da política em específico, cuja contribuição procuramos demonstrar nesta investigação norteada por textos tão distantes e tão próximos, ao mesmo tempo. Tanto Platão quanto Arendt revelam que são pensadores que partem da reconstrução fenomenológica e refletem sobre as consequências que dela resultam. A base motivadora dos dois temas é a mesma. Na Carta VII, Platão reconstrói o modo de condução da política pelo tirano Dionísio e, diante disso, “[...] não só nos brindou com uma fenomenologia da prática filosófica, mas nos legou um belíssimo elogio da verdadeira filosofia” (ROHDEN, 2011, p. 87). Na análise do caso Eichmann e na reflexão das atividades que compõem a vida do Espírito, Arendt não cai numa filosofia do lamento e da mera descrição analítica, mas na acertada afirmação da ausência do pensamento, cujo resultado fez notar a banalidade do mal, experienciada nas práticas perversas dos governos totalitários, brutais, violentos e desumanos e que tragicamente marcaram a paradoxalidade do século XX, o século dos grandes avanços, em todos os sentidos e num ritmo acelerado, mas, por outro lado, de práticas que mancharam a história com acontecimentos sem precedentes. A este respeito é oportuna a afirmação da Maria de Fátima Simões Francisco: Do pensamento depende a ativação de duas funções preventivas cruciais à vida prática do homem: uma ética e outra política. Para nossa autora [Arendt], o pensamento tem nada menos que o poder de regulação ética da conduta, de prevenção do mal na esfera dos assuntos humanos. A segunda função é igualmente preventiva. Trata-se agora de prevenir a possibilidade de regimes políticos capazes de subverter radicalmente e, de um momento a outro, os mais caros valores e princípios conquistados pelos homens em sua vida comum no decorrer da história (2011, p. 34). Em suma, destacamos que as reflexões resultantes de Platão e Arendt permitem a aproximação entre filosofia e política. Muito ao contrário do que Platão dissera em outros textos, Na Carta VII, a aproximação entre filosofia e política é condição fundamental para o exercício de um governo baseado na justiça e nas boas leis. Nosso intento guiou os passos deste texto com todo cuidado para a reflexão resultan158 Revista Filosofazer. Passo Fundo, n. 43, jul./dez. 2013 te do estudo da Carta VII e de A Vida do Espírito, nos quais, filosofia e política ou pensamento e ação sustentam as bases da realização da política, abrindo caminhos alternativos ante a tirania e o terror dos séculos IV a.C. e XX da nossa história. Nisso reside o grande mérito de ambos os pensadores e que serve de iluminação para os passos da política na atualidade, pois, em grande medida, lidar com sujeitos apegados ao dinheiro, ao poder, a oradores de fórmulas vazias, ao modo do tirano Dionísio, e lidar com pessoas tipo do homem massa, prisioneiro das necessidades, desligado da noção, pertinência e amor ao mundo, ao modo de Eichmann, são tarefas, lamentavelmente, do nosso tempo. Referências bibliográficas ARENDT, Hannah. As origens do totalitarismo. Trad. Roberto Raposo. São Paulo: Cia. das Letras, 1989. ARENDT, Hannah. 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