REGULAÇÃO FISIOLÓGICA DA SEDE IMPACTO DO AÇÚCAR E OSMOLARIDADE Conselho Científico do Instituto de Hidratação e Saúde Resumo A sede constitui-se como uma resposta a um desequilíbrio hídrico para a qual concorrem vários estímulos de índole fisiológica como variações dos níveis de osmolaridade, volume sanguíneo, pressão arterial e de hormonas como a vasopressina e a angiotensina. A osmolaridade enquanto gradiente regulador do movimento da água no organismo, induz variações na sensação de sede com vista à conservação ou excreção de água, sendo apenas necessárias variações de 1 a 2% da pressão osmótica do plasma para que tal ocorra. O sódio constitui-se como o maior regulador dos níveis de osmolaridade plasmática sendo a concentração de glicose outro dos determinantes nas variações deste gradiente. A investigação efectuada até à data relacionando a ingestão de bebidas açucaradas e a sensação de sede não é conclusiva quanto a um papel estimulador do açúcar na sede, sendo esta igualmente regulada por factores sociais e sensoriais e pelas características da própria bebida (acidez, temperatura, doçura, gaseificação, etc.). Não existe então uma relação directa entre a quantidade de açúcar da bebida e a sensação de sede nem são observáveis diferenças significativas nos níveis de osmolaridade plasmática entre bebidas com diferentes concentrações de açúcar. Palavras-chave Sede, osmolaridade, açúcar, sódio, refrigerantes -1- Introdução A definição daquilo que entendemos como “sede” pode ser descrita como o conjunto de sensações que promovem a ingestão de fluidos com vista à satisfação das nossas necessidades hídricas. Ainda assim será necessário reconhecer que o ato de beber poderá ocorrer na ausência desta necessidade e em resposta a outros estímulos (sociais, sensoriais, etc.), daí que, pelo conjunto de todas estas condições e sensações seja mais correto falar em desejo de beber [1]. Do ponto de vista estritamente fisiológico, a ingestão de água como resposta a um défice hídrico é um comportamento essencial para a sobrevivência, daí que seja expectável que um conjunto de processos de âmbito neural e hormonal estejam envolvidos para assegurar a eficácia do mecanismo da sede [2]. Neste complexo mecanismo, a variação da osmolaridade dos nossos fluidos intra e extracelulares assume um papel regulatório decisivo uma vez que em situações fisiológicas ideais, a osmolaridade de todos os compartimentos seria a mesma e a água seria distribuída proporcionalmente (2/3 intracelular e 1/3 extracelular)[3]. A este nível, sendo a glicose um soluto osmoticamente activo, é recorrente a associação do açúcar, mais propriamente as bebidas açucaradas a um aumento da sensação de sede pela sua hiperosmolaridade face à água e ao próprio plasma. Assim, o objectivo deste documento passa por descrever o impacto da variação da osmolaridade plasmática na sensação de sede, tal como rever sumariamente a investigação efectuada no âmbito da relação entre a ingestão de bebidas açucaradas e a sede. Osmolaridade e sede A osmolaridade plasmática é o gradiente que regula o movimento da água no nosso organismo [3]. Mesmo variações muito pequenas neste gradiente estimulam mecanismos quer de conservação quer de excreção de água [4]. O aumento da sensação de sede é um dos mecanismos de conservação de água induzidos pelo aumento da osmolaridade plasmática bastando uma variação de 1 a 2% da pressão osmótica do plasma para que tal ocorra [5]. A este nível, variações na osmolaridade intra ou extracelular induzem diferentes respostas no que toca ao aumento ou diminuição da sensação de sede, sendo as concentrações de potássio e sódio (respectivamente) as principais determinantes nesta variação. Um aumento da osmolaridade do compartimento extracelular (p. ex. aumento da concentração de sódio originada por refeição hipersalina) conduz a uma transferência de água -2- do espaço intracelular de modo a restabelecer o equilíbrio osmótico entre os dois espaços, ocorrendo assim uma desidratação intracelular [3]. Existem no entanto neurónios no sistema nervoso central (e possivelmente na periferia) que detectam este aumento da osmolaridade – os osmoreceptores [6-8]. Uma vez estimulados, os osmoreceptores alertam outras zonas do cérebro para iniciarem a procura de água (ou um alimento com grande percentagem de água) que levará ao acto de beber. A água ingerida é rapidamente absorvida e deverá reduzir a osmolaridade para o set point fisiológico (entre 280 e 300 mOsm/L) [3]. Simultaneamente ao início desta procura de água e provavelmente mais importante no caso de a água não ser rapidamente encontrada, os osmoreceptores estimulam neurónios nos núcleos supraóptico e paraventricular do hipotálamo de modo a ser libertada ADH (hormona antidiurética) pelos terminais axónicos da neurohipófise para a corrente sanguínea [9, 10]. O limiar osmótico para o aumento da sede e para a libertação de ADH é muito similar ou mesmo idêntico, sendo esta hormona posteriormente responsável a nível renal por uma acumulação de aquaporinas na membrana exterior do ducto colector facilitando a passagem de água para o interior da medula renal e integração na corrente sanguínea originando assim uma menor perda urinária de água [3]. A sensação de sede pode igualmente ter uma “origem” extracelular, ou seja, a desidratação que lhe está subjacente ocorre devido a uma perda de fluidos vasculares (p.ex. hemorragia) e consequente diminuição do volume sanguíneo. À medida que estas perdas se tornam mais acentuadas, existe um movimento de fluidos do espaço intersticial para o espaço vascular de modo a restabelecer a homeostasia. Concomitantemente, os barorreceptores do arco aórtico e seio carotídeo detectam a diminuição de volume sanguíneo e sinalizam o centro da sede no cérebro de modo a iniciar a procura de água e a libertação de ADH. Para além destes processos em tudo idênticos à “sede intracelular”, os barorreceptores do aparelho justaglomerular renal estimulam a produção de renina em resposta a esta diminuição da pressão arterial. A renina converte o angiotensinogénio produzido pelo fígado em angiotensina I, dando esta origem a angiotensina II nos pulmões através da enzima conversora da angiotensina. Este octapeptídeo promove a vasoconstrição reduzindo o diâmetro da vasculatura e estimula igualmente a sede e a libertação da aldosterona pelas glândulas suprarrenais. A aldosterona possui duas grandes acções ao nível do aumento da reabsorção renal de sódio através da ATPase sódio/potássio e também na sensibilização do hipotálamo para os níveis circulantes de angiotensina II, sendo esta acção conjunta a responsável pelo aumento da procura simultânea de água e sódio de modo a restaurar os níveis iniciais de volume sanguíneo [3]. -3- Açúcar e sede A concentração de glicose no plasma é um dos determinantes dos valores da osmolaridade plasmática. Em todo o caso, os estudos que investigaram a relação entre a ingestão de bebidas açucaradas e a sensação de sede revelaram uma grande inconsistência. No estudo de AlmironRoig et al [11] não foram encontradas diferenças na sensação de sede após a ingestão de 591 ml de sumo de laranja, leite magro, refrigerante de cola e água gaseificada. No entanto, após análise estratificada por género, o sumo de laranja foi mais eficaz do que o refrigerante de cola na satisfação da sede nas mulheres. Neste estudo, ainda que o sumo de laranja apresentasse um menor teor de açúcar que a cola (55g vs 76g por porção de 591 ml), as duas bebidas com menos açúcar (água gaseificada e leite magro) não levaram a uma menor pontuação nas escalas subjetivas de sede do que as outras duas bebidas. Um outro estudo [12] apresentou conclusões contraditórias ao descrever uma menor sensação de sede após a ingestão de 360 ml de cola light (0g açúcar) do que sumo de laranja (38g açúcar) e leite magro (18g açúcar), mas já não se observaram diferenças relativamente à bebida mais açucarada do estudo (“regular” cola, com 40g açúcar na porção de 360ml). Todavia, este estudo apresentou um importante viés no que toca à avaliação da ingestão das bebidas açucaradas na sensação de sede, uma vez que estas foram ingeridas no decorrer de um almoço com carácter ad libitum, daí que seja difícil retirar ilações acerca do efeito isolado da bebida com este protocolo. A falta de evidência científica entre a ingestão de bebidas açucaradas e a sensação de sede foi consubstanciada por dois outros estudos [13, 14]. No primeiro foram registados menores ratings de sede com a ingestão de sumo de fruta e bebida láctea de fruta face a iogurte líquidos e semissólidos que apesar das diferenças óbvias na viscosidade e textura apresentavam uma menor quantidade de açúcar na sua composição. No segundo não foram observadas diferenças na sensação de sede após a ingestão de leite, cola light e três colas com diferentes fontes edulcorantes (sacarose, xarope de milho rico em frutose com 42% frutose e xarope de milho rico em frutose com 55% frutose), sendo que os teores de açúcar nestas bebidas variaram desde 0g (cola light) até 57,7g por porção. Em relação aos estudos citados deverá ser mencionado que em todos eles o principal objetivo foi sempre investigar o papel das bebidas açucaradas na saciedade e ingestão energética subsequente e como tal o desenho dos mesmos não foi o ideal para uma correta avaliação da sensação de sede. A título de exemplo, a quantidade de fluidos ingerida no decorrer da refeição (um método indireto de avaliação da sensação de sede) foi sempre registada com refeições de caráter ad libitum (à exceção do trabalho que serviu as bebidas-teste durante a -4- refeição e não durante a manhã) e nenhum parâmetro fisiológico como a glicemia, osmolaridade e sódio plasmático foram registados. Os resultados da investigação sobre este tópico, que mereceu uma bolsa da investigação por parte do IHS, vão no sentido dos trabalhos descritos [dados não publicados]. Assim, não se verificaram diferenças na sensação de sede após a ingestão de 500ml de água, e 500 ml de dois refrigerantes de ananás não gaseificados na versão original (55g açúcar/porção) e light (5,5g açúcar/porção). Ainda assim, neste estudo foi observada uma tendência (sem significado estatístico) para uma maior ingestão de água na refeição subsequente com o refrigerante de ananás, que se poderá dever ao facto desta bebida possuir menos peso de água comparativamente às outras duas bebidas. Foi igualmente avaliada a variação dos níveis de osmolaridade e glicemia registando-se em todas as bebidas uma diminuição dos valores de glicose sanguínea mas que foi no entanto mais acentuada no refrigerante de ananás. Nos valores de osmolaridade plasmática não se registaram diferenças entre bebidas tendo todas elas diminuído a osmolaridade, mesmo no refrigerante de ananás que se constituía à partida como uma bebida hiperosmótica (409 mOsm/kg H2O) face ao sangue que possuía neste grupo uma osmolaridade inicial de 311 mOsm/ kg H2O. Como já foi acima referido, os valores de osmolaridade são particularmente sensíveis a variações da concentração plasmática de sódio devido ao facto deste ser o principal catião do compartimento extracelular [3] e como tal o maior determinante deste gradiente [4]. Neste contexto, o refrigerante de ananás possuía uma concentração de sódio muito inferior (27mg/L <-> 1.18mEq/L) à existente no plasma (135-145 mEq/L), daí que, um possível aumento da concentração de sódio extracelular que pudesse levar a um incremento dos níveis de osmolaridade (sendo assim um estímulo para a sede) não foi observado, mesmo com uma bebida hiperosmótica relativamente ao plasma. Conclusões Apesar da concentração de glicose plasmática ser um dos determinantes da osmolaridade, estando as subidas deste gradiente associadas a um aumento da sensação de sede, não existe evidência científica que comprove que a ingestão de bebidas açucaradas conduza a um incremento da osmolaridade plasmática e a níveis aumentados de sede. -5- Bibliografia [1] Mattes, R. D. Hunger and thirst: issues in measurement and prediction of eating and drinking. Physiol Behav. 2010,100:22-32. [2] McKinley, M. J., Cairns, M. J., Denton, D. A., Egan, G., Mathai, M. L., Uschakov, A., et al. Physiological and pathophysiological influences on thirst. Physiol Behav. 2004,81:795-803. [3] Thornton, S. N. Thirst and hydration: physiology and consequences of dysfunction. Physiol Behav. 2010,100:15-21. [4] Benelam, B., Wyness, L. Hydration and health: a review. Nutrition Bulletin,: British Nutrition Foundation; 2010. p. 3-25. [5] McKinley, M. J., Denton, D. A., Weisinger, R. S. 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