Decifra-me ou te Devoro: A Representação Social no Mundo Virtual

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Decifra-me ou te Devoro: A Representação Social no Mundo Virtual
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Decifra-me ou te Devoro:
A Representação Social no Mundo Virtual
• Prof. Dr. João Gilberto S. Carvalho *
com Carolina F. Ramos**, Munyck A. Borges***,
Angela P. Passidomo****, Patrick B. Gomes*****
Resumo:
O artigo propõe uma discussão teórica acerca do conceito de esfera pública e
de sua inserção na Teoria das Representações Sociais, ramo da Psicologia Social
que, grosso modo, se ocupa com “o quê” e “como” as pessoas pensam. Trata-se da
fase inicial de uma pesquisa mais ampla que objetiva caracterizar a atividade de
representação no contexto virtual (ou cibercultura). O conceito de esfera pública
foi revisitado e considerado defasado em sua formulação original, constatandose a necessidade de reno-vação de seus fundamentos básicos, ou mesmo de sua
substituição, face às demandas de um mundo em que as novas tecnologias fazem
parte do cotidiano.
Palavras-chave: esfera pública, representação social, mundo virtual.
Abstract:
The paper proposes a theoretical discussion about the concept of public sphere
and its insertion into the Social Representations Theory, a branch of Social Psychology that broadly deals with “what” and “how” people think. This is the initial
stage of a larger study that aims at characterizing the activity of representation in
the virtual context (or cyber culture). The concept of public sphere was revisited
and considered outdated in its original formulation, confirming the need for a
renewal of its basic foundations, or even their replacement, face to the demands
of a world in which new technologies are part of everyday life.
Keywords: public sphere, social representation, world virtual.
*
Prof. Dr. João Gilberto S. Carvalho, Doutor em Psicologia (UFRJ), Mestre em Educação (UCP).
Professor do IFRJ e da Universidade Veiga de Almeida;
**
Carolina F. Ramos (Psicologia, UVA); *** Munyck A. Borges (Psicologia, UVA);
****
Angela P. Passidomo (Psicologia, UVA); *****Patrick B. Gomes (Especialização, UFF)
• Artigo
Decipher me or I will eat you:
The social representation in the virtual world
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ÁQUILA • REVISTA INTERDISCIPLINAR UVA • RIO DE JANEIRO/2013 • ANO IV (N 8) 57-72
Introdução
Este artigo compõe uma pesquisa
mais ampla, que investiga as características predominantes da atividade repre­
sentacional no chamado “mundo virtual”. A expressão é uma dentre as muitas
denominações utilizadas para caracterizar um tempo de transformações que
tem, como elemento central, as novas
tecnologias de informação e comunicação. Trata-se de uma discussão teórica
sobre os conceitos básicos que norteiam
a Psicologia calcada nas representações
sociais. A pesquisa está em andamento,
mas a análise teórica apresenta resultados que podem ser compartilhados
para receber subsídios da comunidade
acadêmica envolvida na temática.
Admite-se, aqui, o papel fundamental da esfera pública na manutenção e
criação de representações sociais – o
conjunto de saberes e conhecimentos
que permeiam a vida social. Mas, como
pretendemos demonstrar, a formulação
original, de inspiração habermasiana,
requer um trabalho de atualização, pelo
menos para sua utilização de forma
ade­quada pela TRS (Teoria das Representações Sociais).
1. Representações sociais:
unidade de pensamento (social)
Existem muitas definições para o
conceito de representação, como a que
segue:
A representação é um processo fundamental da vida humana; ela subjaz o desenvolvimento da mente,
do Eu, da sociedade e da cultura.
Representar, isto é, tornar presente
o que está de fato ausente por meio
do uso de símbolos, é fundamental para o desenvolvimento ontogenético da criança, está na base
da construção da linguagem e da
aquisição da fala, é crucial para o
estabelecimento das inter-relações
que constituem a ordem social e é
o material que forma e transforma
as culturas, no tempo e no espaço (JOVCHELOVITCH, 2008,
p. 33).
A metáfora do teatro é utilizada por
Chartier (1990) para caracterizar o trabalho de representação, na mesma linha
de raciocínio da citação: tornar presente
o ausente, representar. Em uma peça, os
espectadores sabem que o ator tem uma
vida que não se confunde com a da personagem, é apenas uma interpretação,
por melhor que venha a ser. O sentido
vago e misterioso deste “ausente” tem
sido o calcanhar de Aquiles das teorias
que têm, em sua base, a representação –
ou pelo menos assim enxergam os seus
críticos. Tais críticas são destacadas por
Leme (1995) e Castro (2002) e servem
de guia para entendermos a evolução
do conceito na teorização de seu criador, Moscovici, ao longo de suas quatro
décadas de existência.
É preciso distinguir o significado
usual da palavra representação e o conceito de representação social, pois, nesse
como em outros casos, a polissemia não
contribui para a compreensão do conceito. Por representação social entendemos a base simbólica que dá organização, significado e inteligibilidade à
existência humana; criada e mantida por
meio de interações diversas – econômicas, comunicativas, políticas, culturais
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ou, simplesmente, relações sociais. Em
termos psicossociais, expressa a síntese cognitiva que ocorre entre pessoas
e seu mundo, considerado em termos
históricos e culturais; utiliza a bagagem simbólica das gerações, nutre e se
alimenta da memória, da história e do
imaginário social. Assim, ao contrário
das abordagens citadas anteriormente,
acreditamos que esteja sempre presente
e seja real para todos que a compartilham no cotidiano. Um mundo oculto,
do qual a representação seja apenas um
epifenônemo, existe apenas nas filosofias de cunho idealista ou religioso, que
não deixam de gerar, paradoxalmente,
representações sociais.
A representação social é um conceito
sobre o qual foi erigida uma teoria que
embasa pesquisas e análises em diversas
áreas do conhecimento humano. Um
objeto amplo, pois as pessoas precisam
explicar, entender, expressar, participar,
crer, compartilhar, sentir, dentre outras
muitas necessidades que podem ser sintetizadas em uma palavra só: viver. E,
é preciso deixar claro, utilizamos convictamente o termo “pessoas”, atentos às
recomendações de Maffesoli quanto ao
significado de “indivíduos”. Em suas palavras: “O individualismo é um bunker
obsoleto, e como tal merece ser abandonado (1998, p. 14)”.
O conjunto de saberes ou conhecimentos necessários à vida em sociedade, eis a representação social: “Todas
as interações humanas, surjam elas entre duas pessoas ou entre dois grupos,
pressupõem representações” (MOSCOVICI, 2003, p.40). É, portanto, o
amálgama que confere normalidade às
relações e sentido às comunicações en-
tre as pessoas. Ao assumir o postulado
durkheimiano de que a sociedade tem
autonomia em relação aos seus componentes, aos quais precede e sucede,
Moscovici atribui à representação social o papel de ambiente de pensamento (ibid., p. 53) e conclui: a sociedade
pensa.
Pois bem, se já era difícil para os
cientistas que consideram a sociedade
meramente o somatório de indivíduos
aceitarem a existência autônoma dos
fatos sociais, imaginemos sua repulsa
diante da premissa de uma sociedade
pensante! No extremo desta abordagem,
Maffesoli (1998) utilizou a expressão
“divino social” para caracterizar o modo
como a sociedade se sustenta e se reproduz: um poder demiúrgico derivado
da exterioridade que possui em relação
aos seus membros. Virou praxe dizer “o
todo não se confunde com as partes, a
molécula da água não tem as mesmas
propriedades que o hidrogênio e o oxi­
gênio possuem separadamente” e assim
por diante. A sociedade tem, portanto,
uma lógica própria. Esse é o esforço de
toda a teorização de Durkheim, a ponto
de estabelecer condicionamentos so­ciais
para um fenômeno que seria apenas de
âmbito individual, o suicídio.
Na Psicologia Social, Vala (1993)
sintetizou de forma criativa as diferentes
correntes, divididas a partir de três focos: 1) ênfase no indivíduo; 2) ênfase na
sociedade; 3) tentativa de conciliação ou
superação por meio da síntese das anteriores. Historicamente, a oposição entre
o micro e o macro tem sido um problema fundamental para as Ciências Humanas. Trata-se de uma polêmica que
não se limita ao campo epistemológico,
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pois há outros interesses envolvidos. O
simples fato de constantemente vir à
baila indica que a dicotomia é significativa.
O nosso ponto de vista vai ao encontro daqueles que acreditam que a sociedade está na base de todos os processos
formativos e simbólicos – não poderia ser de outra forma, pois comparti­
lhamos muitos dos princípios epistemológicos da TRS, ancorados em uma
modalidade sociológica de Psicologia
Social. Voltemos ao que nos interessa: a
afirmação de que a sociedade tem sua
dinâmica própria não percebida, direta
ou imediatamente, por seus integrantes.
A tradicional distinção conceitual entre conjuntura e estrutura (BRAUDEL,
1992) vai ser útil para ilustrar a dinâmica, a maturação dos processos sociais
ao longo da história. O tempo impõe
demandas, alimenta utopias, provoca
rompimentos ou abre cicatrizes. A longa duração é a temporalidade das estruturas, a “história lenta”, imperceptível
para os seus agentes diretos, e somos,
aqui, tentados a oferecer, por analogia, a
condição de marionetes às pessoas, sempre movidas por forças praticamente
ocultas. A curta duração é a conjuntura,
o tempo imediato e presente daqueles
que o compartilham. Não nos cabe revisar aqui a controvérsia historiográfica
e sim destacar que, em qualquer temporalidade considerada, os significados da
vida em sociedade não são entendidos
facilmente pelas pessoas comuns.
As pessoas estão imersas em seus
interesses imediatos – o resultado do
exame médico, o traje adequado ao passeio, o pagamento das contas, o destino
do país, a vida do vizinho que mora ao
lado, o que há de novo no cinema – disso se trata, enfim, do cotidiano de bilhões de pessoas. Um número infinito de
situações que não geram manchetes ou
são edificantes e passam, muitas vezes,
longe daquilo que hoje se convencionou
chamar de “politicamente correto”. É na
temporalidade que se produz e reproduz tanto a sabedoria quanto o disparate; a sentença adequada ou a ignorância descabida, submersas e interligadas
à história que estudamos nos bancos
escolares, circunscritas à micro história
ou ao conjunto de fatos que ocorrem em
pequena escala e, de imediato, só interessam ao grupo. Em síntese, o cotidiano
supõe a existência de uma base consensual (senso comum) que viabilize a convivência, não obstante as constantes fissuras provocadas por pontos de vista e
interesses divergentes (MOSCOVICI &
DOISE, 1991). Historicamente, o senso
comum foi associado à ignorância, algo
que os peritos, na acepção crítica de
Giddens (1991, p. 34), precisam combater e o fazem em nome da ciência. A
TRS resgatou o senso comum, demons­
trando tratar-se de um processo psicossociológico fundamental à convivência
em sociedade, ao qual nem os cientistas
estão imunes. Outra teorização interessante a respeito está na proposição de
Goffman (2011) por uma “sociologia da
ocasião”, mas foge ao escopo do artigo
avançar em sua teorização.
Podemos, então, concluir que o cotidiano e o senso comum são os requisitos básicos das representações sociais:
comunicar, orientar, informar e formar.
São o produto da interação diária entre
pessoas que, muitas vezes, entram em
conflitos agudos em períodos de tur-
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bulência. Assim definidas, as representações sociais ganham centralidade em
todo o trabalho de cognição humana,
do mais prosaico ao mais sofisticado
conhecimento socialmente produzido.
Divididas em relação à ordem instituída
em hegemônicas, polêmicas e emancipadas (CASTRO, 2002), revelam “como”
e “no que” as pessoas pensam. Revelam,
em última instância, o pensamento da
própria sociedade.
O cotidiano é a temporalidade do
senso comum; este, o amálgama de
conhecimentos do presente e do que
se aprendeu com as gerações passadas,
a partir das memórias coletiva e social.
Não deixa de ser paradoxal: o presente é
visto com olhos do passado, reflexão que
nos remete mais uma vez à Moscovici
(2003, p.38): “Sob muitos aspectos, o
passado é mais real que o presente.” Ao
elegê-los como seu objeto principal (o
senso comum e o cotidiano), a abordagem de Moscovici colaborou para retirar da Psicologia Social a ênfase no indivíduo, permitindo pesquisas de cunho
genuinamente psicossocial e histórico. É
preciso deixar claro: por psicossocial se
entende a síntese entre as pessoas e o seu
mundo; a dimensão psicológica e socio­
lógica construídas, simultaneamente, a
partir de experiências compartilhadas.
Um bom exemplo é o clássico de Denise
Jodelet, Loucura e Representações Sociais (JODELET, 2005). Em linhas gerais,
nesta obra, a autora discute a representação social da loucura tal como é cons­
truída na pequena cidade francesa de
Ainay-le-Chateau, a partir da ação do
governo de inserir doentes mentais na
comunidade.
Talvez não fosse necessário discutir
aqui, e de forma tão enfática, a representação social, pois existem boas teorizações a respeito. Howath (2006, p. 7),
por exemplo, nos oferece um panorama
do que a representação social “faz”,
tendo como parâmetro as pesquisas de
seus mais conhecidos autores. E não o
fizemos para atender a praxe de apresentar o conceito. A nosso juízo, a TRS
já encontrou o seu espaço e não precisa
mais estar em constante defensiva; a
multiplicação de estudos em diferentes
áreas é um atestado de sua importância
(ARRUDA, 2005, p 60).
Em nossos estudos, observamos o
desdobramento da abordagem inicial
de Moscovici: teorização exaustiva presente em trabalhos caracterizados pelo
rigor científico, resvalando, algumas
vezes, ao excessivo empirismo. É possível discernir, de acordo com a abordagem, pelo menos quatro “chaves” para se
entender o fenômeno da representação
social: “como” – ênfase nos processos
de ancoragem e objetivação; “por que”
– em que se privilegia o núcleo central a
partir de bases quantitativas; “quando”
– abordagem que leva em consideração
a história; e, finalmente, “onde” – o lócus da atividade de representação e que,
a nosso ver, a condiciona.
E foi Sandra Jovchelovitch quem se
preocupou em abordar esse “onde” é
realizada a atividade de representação
– o espaço em que a representação se
torna de fato social. Então, se a ancoragem e a objetivação são processos sócio-cognitivos centrais ao processo de
estabilização face às novidades criadas
pela vida em sociedade, em que espaço
tais fenômenos ocorrem? Em praças,
repartições públicas, bares, teatros, ca-
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fés – e aduzimos: blogs, chats, celulares,
redes sociais, entre tantos outros espaços dedicados à comunicação.
Trata-se de um desdobramento
óbvio: se a sociedade pensa e esse
pensamento produz a representação
social, onde o fenômeno ocorre? Ao
reconhecermos que este “meio” é fundamental, devemos considerá-lo historicamente, o que nos conduz a outra
questão: de que forma a representação
social é condicionada? Em relação ao
pensamento humano, é fácil responder:
o cérebro abriga a intensa atividade dos
neurônios. Ainda que não seja clara a
relação entre mente e cérebro, o pensamento individual ocorre na cabeça, a
partir de conexões neurais (TEIXEIRA,
2000). Tal questão nunca foi problema
para a Psicologia Social centrada no indivíduo (não nesse nível). Mas, a partir
do momento em que a Psicologia Social
assumiu de fato a sua natureza social, a
próxima pergunta seria: Qual é o lócus
da atividade que tem como produto a
representação social? Sandra Jovchelovitch buscou tal resposta.
2. Representações sociais:
conexão de pessoas
A TRS é uma modalidade da Psicologia Social que tem procurado trans­
cender a dicotomia indivíduo e sociedade. Isso é válido mesmo no termos
da abordagem que privilegia o núcleo
central: “o ponto de partida desta teoria
é o abandono da distinção clássica entre
sujeito e objeto” (ABRIC,1998, p. 27).
A intenção é entender como os grupos
pensam, isto é, como lidam, no dia a dia,
com as demandas criadas pela vida em
sociedade. Sandra Jovchelovitch percebeu a importância dos espaços em que
as representações nascem e circulam,
achando no conceito de “esfera pública”
a base de sua teorização, a ponto de ter
um livro exclusivo sobre o assunto (JOVCHELOVITCH, 2000).
Coube a Habermas (1984) uma
longa reflexão sobre a esfera pública e
sua gênese. Ele demonstrou como o
crescimento dos locais destinados aos
encontros públicos foi proporcional à
ascensão dos mercados e à transformação das artes, letras e espetáculos em
mercadorias – foi, acrescentemos por
nossa conta, um processo que correu
paralelamente à consolidação dos Estados Nacionais. A preocupação de Ha­
bermas com a esfera pública faz parte de
um projeto mais amplo e ambicioso: a
fundamentação do “agir comunicativo”
(HABERMAS, 1989). Coerente com seu
trabalho de superação da razão instrumental, o filósofo alarga os horizontes
de seu marxismo dos tempos iniciais
da Escola de Frankfurt e teoriza acerca
das possibilidades de emancipação social, diga-se, do capitalismo, a partir de
processos comunicativos e racionais. O
projeto da modernidade, a seu ver, não
estaria esgotado e, assim, Habermas
utiliza a racionalidade weberiana associada às condições da vida urbana –
eis a esfera pública. Em síntese: a esfera
pública é a expressão da racionalidade
iluminista, em que o debate e a troca de
ideias permitem o esclarecimento – o
que, no pensamento liberal, se chama
democracia.
Em apoio ao argumento, recorde­mos
o circuito da fofoca no século XVIII, em
torno da árvore da Cracóvia, “um grande
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e frondoso castanheiro que se erguia no
coração de Paris” (DARNTON, 2003,
pp. 41-42), sob o qual se informavam
os súditos sequiosos por escândalos e
histórias picantes, a despeito da ira do
rei. A esfera pública é, assim, herdeira
dos parâmetros de sociabilidade desenvolvidos nas cortes, sendo, por assim
dizer, seu correspondente burguês. Nos
termos habermasianos, são espaços de
reprodução do capitalismo e da divisão
da sociedade em classes, nos quais as
diferenças de status são visíveis.
É nesse conceito que Jovchelovitch
(1994, p. 65) vai buscar a chave de
gestação das representações sociais: “a
esfera pública, enquanto lugar de alteridade, fornece às representações sociais
o terreno sobre o qual elas podem ser
cultivadas e se estabelecerem”. E indica as críticas feitas tanto ao modelo
de Habermas, como as dirigidas por
este ao modelo liberal, concluindo que
a esfera pública transcende o exercício
exclusivo da política. Tal questão foi levantada de outra forma por Moscovici
& Doise (1991, p. 31): “Por que é que os
indivíduos em conjunto são diferentes
daquilo que seriam isoladamente, a
ponto de não ser possível prever as suas
reacções a partir do momento em que
são integrados numa multidão, numa
reunião política, etc.?” É a questão central para uma Psicologia Social centrada
nas representações sociais: a química
que reúne os homens num amálgama
capaz de se sobrepor às individualidades – o campo por excelência do que
se entende por social. Moscovici não
utilizou o conceito de esfera pública em
seu estudo seminal de representações
sociais, mas ele estava, entretanto, im-
plícito na formulação de uma questão
como esta: “[...] de onde extraíram nossos informantes seus conhecimentos
da Psicanálise? Quais são as suas fontes
de informação?” (MOSCOVICI, 1978,
p.92).
A esfera pública é o lócus do senso
comum, o espaço de compartilhamento
no qual é sedimentado o consenso ou
promovido o dissenso; o lugar em que
pessoas se reúnem e conversam sobre
coisas de seu interesse (res pu­blica) ou,
simplesmente, tomam ciência das novidades e do que é adequado aos costumes
– do “politicamente correto”, assim dizemos hoje em dia. Jovchelovitch, assim,
define (2000, p. 82): “A vida pública,
com suas instituições específicas, seus
rituais e significados, é o topos no qual
as representações sociais desenvolvemse e adquirem existência concreta”. O
conceito de esfera pública não é exclusivo ao campo das representações sociais,
pois basta inseri-lo no Google e cons­
tatar a resposta expressiva. É utilizado,
por exemplo, por Lazzarini (2011, p.
15), em rigorosa obra de economia que
trata do que chama de “capitalismo de
laços” no Brasil. Está subjacente às reflexões da historiadora Margareth Rago
sobre os códigos de sexualidade feminina e a prostituição paulista (RAGO,
2008). O debate sobre a esfera pública
ganhou destaque por ser essencial à
compreensão dos temas ligados à cidadania no mundo contemporâneo, isto
é, às demandas da globa­lização: a de­
cadência do homem público nos termos
de Sennett (1988) ou a fragmentação
típica da pós-modernidade de Bauman
(1999).
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3. Mundo virtual: uma nova
esfera pública byte a byte
Não faz muito tempo, discutia-se
a importância da informática para os
diversos segmentos da vida em sociedade. Na educação, por exemplo, a
questão era saber se os computadores
deveriam ser introduzidos na escola e
em que condições. Na época, Valdemar
Setzer (1998) alertava-nos quanto aos
malefícios da informática na educação
infantil. Um pouco antes, a Escola de
Frankfurt se contrapunha ao otimismo
dos teóricos da “cultura de massa.” Entre estes últimos, Fleur, na década de
1960, afirmava: “A sociedade moderna,
urbana e industrial, não poderia existir
como sistema social sem a comunicação
de massa. Ela se tornou uma parte profundamente aceita das principais instituições sociais” (FLEUR, 1976, p. 13).
Os críticos do sistema capitalista associaram a expansão dos meios de comunicação à dinâmica de reprodução
do capital. Também é verdade que há
vozes dissonantes em cada uma das
posições citadas, é bom destacar, porque
generalizações nem sempre são precisas ou justas. Por exemplo, Habermas
(1989) se mostrava “otimista” quanto às
possibilidades de um “agir comunicativo”, como já dissemos acima, enquanto
a preocupação de Merton & Lazarsfeld
(2005) girava em torno dos efeitos “narcotizantes” da mídia.
A controvérsia entre “apocalípticos”
e “integrados”, para utilizar os termos
consagrados por Humberto Eco, que
grosso modo opõe os partidários e os
críticos das mídias (ECO, 1970), agora
tem como ponto central o computa-
dor e a internet. As novidades trazidas
pelo “virtual” estão entre os principais
agentes de mudança do mundo (pós)
mo­derno. Quanto a isso, é importante
estarmos atentos às recomendações
de um de seus mais ilustres analistas,
Pierre Levy. Ele nos previne sobre a ina­
dequação do termo “impacto” para nos
referirmos a ação das novas tecnologias,
como se fossem um fenômeno externo
e não um componente do desenvolvimento da própria sociedade (LEVY,
2007, p. 6). Coerente com essa posição,
não atribui à base material uma função
determinante nesse processo, rompendo, desta forma, com a clássica dicotomia entre técnica/tecnologia e cultura:
“Las relaciones verdaderas no se dan
pues entre ‘la’ tecnología (que sería del
orden de la causa) y ‘la’ cultura (que
sufriría de los efectos), sino entre uma
multitud de actores humanos que inventam, producen utilizan e interpretan
diversamente umas técnicas” – (Id, p.7).
Para os elementos simbólicos digitais,
Levy cunhou o termo “cibercultura”;
enquanto à base material, ao conjunto
de artefatos e infraestrutura que compõem esses meios, chamou de “ciberespaço”. Tais neologismos se incorporaram ao número crescente de palavras
que servem para designar as mudanças
que possuem no computador a alavanca
mestra. E, mesmo que sejam lembrados outros artefatos eletrônicos, como
a câmera digital ou o telefone celular, é
o computador que merece atenção prio­
ritária entre os estudiosos, já que sua
linguagem é o ponto de partida para os
demais equipamentos.
Uma perspectiva mais ampla
enxerga as novas tecnologias dentro
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de um quadro histórico dos processos
comunicativos. Assim, historiadores
como Briggs & Burke (2004) associam
o crescimento do fluxo de comunicação
à expansão do comércio, que demanda
estradas, instalações e equipamentos
voltados ao controle e mensuração.
É fascinante imaginar os laços que
existem entre a indústria, o comércio e
a comunicação, percebendo desta forma
a conexão entre ferrovias, bicicletas,
automóveis, aviões, telégrafos, telefonia,
enfim, a “rede” no sentido empregado
por Castels (1999).
Imprensa, cinema, rádio, televisão
e, agora, computadores, cada qual a seu
tempo e modo, foram apontados como
pontos de ruptura, agentes de mudanças
sociais significativas e causadores de alvoroço entre apocalípticos e integrados.
Segundo Lull (1992), por exemplo, a
televisão foi o grande polo de mudanças
que transformou a burocrática China
no gigante econômico da atualidade,
embora seja possível encontrar outro
agente revolucionário, como o transistor, dependendo da ótica de quem ana­
lisa (BRIGGS & BURKE, 2004).
O mundo estaria de “pernas para
o ar”. Discute-se: o papel do Estado e
seu futuro; a família e suas novas composições; a fragmentação identitária; a
ascensão de nações antes consideradas
exóticas, como a China e o nosso Brasil; enfim, o tipo de sociedade criado ao
longo da modernidade estaria em vias
de transformação. Com efeito:
As discussões sobre modernidade
e pós-modernidade ganharam
destaque nos últimos anos por
conta das transformações que assistimos em praticamente todos os
segmentos da vida em sociedade.
A consolidação de um padrão de
vida civilizado representou, na
prática, a criação de um “outro”
não-civilizado – exótico, bárbaro,
primitivo, atrasado – não importa
o termo, pois na prática este “ou­
tro” podia ser dominado, eliminado ou escravizado. As cruzadas
que se realizaram em nome da
Cruz se transformaram nas muitas guerras travadas em nome dos
ideais de civilização e progresso.
A sofisticação dos discursos, das
mercado­rias ou ainda a potência
das armas tornaram o referido
padrão um modelo a ser copiado
e seguido, quando não, imposto.
No limite entre a argumentação
ideológica e o cinismo, aqueles
que foram exterminados ou escravizados deveriam ser gratos aos
seus opressores. Na atualidade, a
emergência do “outro” é visível na
nova configuração de poder mundial, que enseja abordagens e pesquisas ins­tigantes e demolidoras de
velhos preconceitos (CARVALHO,
2011, p. 101).
A longa citação faz parte de outro
trabalho de nossa autoria em que são
discutidas as possibilidades abertas
no campo das pesquisas em Ciências
Humanas face às transformações em
curso. Há a impressão de que os conceitos não mais correspondem à realidade, não obstante sua profusão, para
não dizer emaranhado, superposição,
confusão. Algumas coisas mudaram visivelmente, outras não; sem contar que
novas tradições são criadas dentro da
dinâmica da globalização (GIDDENS,
2003), outro termo usual que tenta
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dar conta do que está acontecendo. A
máquina de escrever e o computador, a
máquina fotográfica que utiliza filmes
e a digital, o velho e o novo coexistem
– mas os primeiros estão destinados ao
fim, ainda que não se saiba exatamente
quando, pouco importa, pois, do ponto
de vista da lógica baseada no consumo,
há espaço para todas as gerações de
mercadorias.
Segundo Lipovetsky, o consumo
se transformou em hiperconsumo – a
característica de um tempo baseado
na customização e na superficialidade.
Aliás, a leitura de sua obra nos sugere
outro neologismo, “sociedade hiperbólica”, por conta dos muitos exageros
que marcam o que o filósofo citado denomina a terceira fase do consumo. Na
civilização do desejo, os novos atores
são o acionista e o consumidor (LIPOVETSKY, 2006, p. 7), sendo o consumo elevado à condição de núcleo das
formações identitárias no espaço antes
ocupado pela religião e pela política (id,
p.38) . Autores como Lipovetsky, Bauman (1998) e Giddens (1997) estudam
exaustivamente a chamada sociedade
pós-moderna e, tanto o consumo, como
a modernidade líquida ou a sociedade
reflexiva têm na comunicação um multiplicador comum. Em sentido amplo, a
comunicação é vital à existência das sociedades baseadas em fluxos, sejam eles
mercadoria, ideias ou informações.
Desde o século XIX, a noção de totalidade está presente no trabalho de
diferentes pensadores. A ligação entre os
interesses econômicos, políticos, religiosos e sociais tornou comum os conceitos
de modo de produção, sistema social,
sociedade em rede, entre outros, mas
que se apresentam ocultos ao homem
comum, semelhante ao que o marxismo
denomina fetichismo da mercadoria. A
comunicação tornou transparente a natureza holística da relação social desde
que McLuhan (2005) consagrou a expressão “aldeia global”.
As mídias visual, auditiva e digital
compôem o palco da “sociedade do espetáculo” (DEBORD, 1997): da “cultura
de massa” ao “ciberespaço”, algumas décadas apenas criaram transformações
tão profundas nos processos comunicativos que tornaram ultrapassadas algumas das antevisões consagradas nos
filmes de ficção científica do passado.
Os recursos digitais trouxeram a concepção de um mundo virtual em que a
ilusão e a realidade – hiper-realidade (ECO, 1984) convivem ou há destruição
(e sobreposição) do real (BAUDRILLARD, 2001)?
É evidente que o computador alterou não apenas as rotinas do dia-a-dia,
como pagar uma conta ou se comunicar com alguém distante, mas também
alterou os mecanismos de produção de
pensamento social e suas representações. Os espaços de discussão coletiva,
característicos do século XIX, foram
transformados radicalmente no mundo
contemporâneo, face às novas tecnologias. Multiplicaram-se os meios de
manifestação e troca de ideias, sejam
elas consideradas positivas (“politicamente corretas”) ou não pelos “especialistas”. O mundo virtual estreitou os
relacionamentos a tal ponto que “aldeia
global” tornou-se uma expressão modesta.
Na atualidade, pessoas desco­
nhecidas tornam-se celebridades ins­
Decifra-me ou te Devoro: A Representação Social no Mundo Virtual
tan­tâneas no Youtube, enquanto opi­
niões circulam nos blogs e celebridades
se misturam aos “reles mortais” nas redes sociais. Propomos um exercício de
imaginação, pensar nas consequências
em setores dominados antes pela figura
do “especialista”: pacientes que chegam
aos consultórios já informados previamente sobre seus problemas e, até, sobre possíveis soluções por meio de uma
simples consulta ao Google; alunos que
se antecipam aos conteúdos ministrados
pelo professor – exemplos rápidos para
situações desconcertantes que ocorrem
no dia a dia.
4. Esfera pública: ressignifcação
ou abandono?
Em relação à esfera pública, nossa
premissa é clara: o conceito teve vitalidade para a compreensão das representações sociais, mas está defasado porque
o mundo passou por grandes transformações. Além de praças, esquinas,
feiras, escolas, igrejas, enfim, espaços
tradicionais de reunião entre pessoas,
há também novas possibilidades de trocas e encontros no mundo virtual.
Mas, o que é mundo virtual? Não
se trata de uma estratégia capitalista
de alienação das massas – se é que alguém já acreditou sinceramente nisso
um dia. Pierre Levy procurou analisar
os muitos significados do termo “virtual”, refutando a ideia comum que o
associa à irreal­idade e nos ensina que o
digital é sua expressão técnica (LEVY,
2007, p.32). Assim, concluímos que, tal
como nos espaços tradicionais, abriga
e põe em circulação valores e crenças
compartilhadas, sendo um campo au-
têntico de representação social.
Hoje, é possível aprender, conversar
e se divertir pelo computador com gente
do mundo inteiro – e também praticar
sexo, reverenciar os mortos, participar
de grupos diversos, entre muitas outras
formas de sociabilidade pouco convencionais. Assim, a palavra de ordem atual
é conexão; televisão e rádio estimulam
a participação online de seus espectadores, que passam a fazer parte da equipe
de jornalismo por meio de denúncias,
fotos, registros de fatos relevantes ou
simples comentários a respeito de uma
partida de futebol. A queda do ditador
egípcio foi promovida, em grande parte,
por uma população árabe usuária de
Facebook e do Twitter.
Nem mesmo o mais ferrenho tradicionalista pode fugir completamente às
novas tecnologias digitais, ainda que em
suas modalidades mais simples – algo
como passar um e-mail ou enviar uma
mensagem pelo celular, por exemplo.
Na verdade, o computador integra um
sistema dinâmico que inclui celulares,
tocadores de música, câmeras fotográficas e aparelhos baseados na conexão.
Mas é preciso levar em consideração
que, em países de grande desigualdade
social, como é o caso do Brasil, não há
acesso à internet ou às tecnologias para
todos. Como falar de compras online a
milhões de habitantes que recebem um
salário mínimo? Em relação ao proble­
ma, foi criado um termo alentador: “inclusão digital” – estratégia educacional para acabar com o “analfabetismo
digital” – uma demanda prioritária
do mercado de trabalho na “era do
co­nhecimento”. Os destaques em negrito expressam o tripé sobre o qual o
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capita­lismo pós-moderno é assentado:
tecnologia, conhecimento e inovação.
Belos termos que podem receber, na
teorização de Bauman (2010), o nome
de capitalismo parasitário. Independen­
temente dos adjetivos e da veia crítica
de seus analistas, a sociedade está em
transformação e a “esfera pública digital” tornou-se tão importante quanto os
processos tradicionais.
Não há mais como se pensar a esfera pública exclusivamente nos termos
do século XIX. As tecnologias criaram
novos tipos de sociabilidade que influenciam, decisivamente, o trabalho de
representação em todos os níveis (individual e coletivo) e a mídia, hoje, nas
palavras de Guareschi (2009, p. 81), “é
como o ar que respiramos, como a água
para o peixe. É a alma da nossa sociedade”. Jovchelovitch (1994, 2000, 2008)
utilizou o conceito de esfera pública
para caracterizar os ambientes em que
a representação social se torna presente
– e o fez em sentido “físico”. Fiel ao postulado habermasiano, ela destacou os
espaços nos quais pessoas se encontram
tête-à-tête e dialogam, pensam sobre
o que ouvem, negociam o que podem
dizer. Mas o conceito de esfera pública
precisa levar em conta o novo contexto
criado pelos recursos multimídias.
Historicamente, o advento da televisão e do rádio não se contrapôs ao enfoque clássico da esfera pública, uma vez
que a interatividade entre telespectadores e ouvintes não era tão visível, ainda
que tais mídias tenham se firmado como
importantes veículos de comunicação
social. Hoje, o computador promove a
interatividade em todos os níveis, pois a
Web é bidirecional. Do cidadão que faz
uma foto de um acidente e o põe, imediatamente, nas redes sociais a agressão
ocorrida em um canto qualquer do pla­
neta e que gera milhares de visualizações e comentários no Youtube: o que
era anônimo é, agora, publicizado e retocado para ser exposto “em tempo real”,
para colher elogios e críticas, veladas ou
expressas publicamente. A sociedade
do espetáculo transformou-se na sociedade da computação gráfica, o que leva
a antropóloga e comunicóloga Paula
Sibilia a se perguntar como, em tempos
de Web 2.0, a intimidade é transformada em “extimidade”, outro neologismo
para dar conta do que a autora caracteriza como “mutação na produção de
subjetividades” (SIBILIA, 2008, p. 79).
Em termos sintéticos: o que leva alguém
a se expor em uma rede social?
Segundo Nicholas Carr, o que está
acontecendo na atualidade é muito
mais inquietante do que a simples mudança de comportamentos. O tipo de
interação realizada na Internet favorece
a fragmentação dos estados de atenção e fortalece um grupo de neurônios
diferente daqueles que são acionados
pela leitura tradicional, profunda e li­
near (CARR, 2011). O autor nos alerta
quanto às consequências decorrentes da
substituição do livro pelo computador
e sua conclusão é sombria: “Dúzias de
estudos de psicólogos, neurobiólogos,
educadores e web designers indicam a
mesma conclusão: quando estamos online entramos em um ambiente que promove a leitura descuidada, o pensamento apressado e distraído e o aprendizado
superficial” (ibid., p. 162). Por outro
lado, entre os que acreditam serem positivas as mudanças, destacam-se os as-
Decifra-me ou te Devoro: A Representação Social no Mundo Virtual
pectos lúdicos e interativos do mundo
virtual. Mas não podemos nos esquecer
daqueles que se beneficiam financeiramente de um mercado que movimenta
cifras expressivas e seus “especialistas”
– defensores ardorosos de sua profissão. Um exemplo notório: a velocidade
geométrica com que a geração de iPho­
nes foi comercializada, a despeito da
propalada crise econômica atual. As
vendas de notebooks, netbooks, tablets
e celulares de última geração, entre ou­
tros engenhos digitais, não são guiadas
pelos debates entre “especialistas” e, assim, invadem, cada vez mais, o nosso
cotidiano, pois, como diz Gitlin (2003,
p. 54), “viver é estar conectado”.
A esfera pública, enquanto espaço
de negociação simbólica, teve valor
heurístico para a psicologia centrada na
representação social. Porém, é preciso
incorporar as transformações causadas pelas tecnologias de informação ou
simplesmente abandonar o conceito. O
mundo não é mais o mesmo e a “cultura
da virtualidade real”, para utilizarmos os
termos de Castels (1999, p. 415), está na
base de estruturas sociais organizadas
em “rede”. A sociedade informacional
(e não de informação) se utiliza de um
“novo sistema de comunicação que fala
cada vez mais uma língua universal digital” (CASTELLS, 1999, p. 40). Assim,
de um lado a globalização subverte os
interesses nacionais e a territorialidade
dos processos de produção, de outro as
comunidades virtuais ampliam, igualmente, as possibilidades de formação
de laços de pertencimento.
O crescimento do ciberespaço, segundo Pierre Levy, é a expressão de uma
inteligência coletiva (LEVY, 2007, p. 96)
e, de nossa parte, é tentador estabelecer
uma ponte entre essa vontade de saber
– do que faço agora pelo Twitter, Instagram e outros aplicativos – e os mecanismos de controle social. Como pensar a
esfera pública sem levar em conta que:
Se é muito provável que os poderes
sociais, nas democracias do século
XXI, não venham a cair de novo
nas ruas, como sucedeu na Europa
e na América durante as fases cruciais em que foram constituídos
os espaços públicos burgueses, dificilmente se negará que estes não
deixarão de andar muito pela Web
(ou pela Grid) [...] (ROSAS, 2010,
p. 118).
Paralelamente à fragmentação identitária das comunidades virtuais, a esfera pública se estilhaça em microespaços caracterizados por uma pluralidade
de manifestações descentralizadas.
Um bom exemplo é a democratização trazida pela “blogosfera”, capaz de
romper com o unilateralismo dos peritos e expressar, de fato, os interesses da
sociedade, principalmente aqueles que
jaziam sob a pressão do que é consi­
derado “politicamente correto”. Na verdade, como aponta Rodrigues (2006),
as novas mídias têm reagrupado as
identidades fragmentadas. Então, se a
modernidade foi o tempo da exclusão,
na atualidade, todos os que não tinham
voz e vez podem se manifestar, nem que
seja em uma lan house. As novas mídias
derrubaram fronteiras e encurtaram o
tempo de comunicação. O que nos leva
a crer que, em relação a TRS, a dinâmica de ancoragem e objetivação já não é
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mais a mesma que ao tempo de sua formulação original.
5. Considerações finais
Ao longo do artigo, procuramos
problematizar o conceito de esfera
pública a partir de seu uso na TRS e,
como dissemos logo de início, trata-se
de uma discussão teórica que faz parte
de um projeto de investigação empírica.
Assim, o que aqui chamamos de considerações finais são apenas reflexões
iniciais de uma caminhada longa. A
“Esfinge” que nos motivou a pesquisar
a relação entre as novas tecnologias de
informação e comunicação e as representações sociais vai aguardar mais um
pouco.
A esfera pública é uma dimensão vital
para os saberes forjados no senso comum
– a modalidade de conhecimento que se
tornou predominante na modernidade.
Ou seja, os espaços onde possam
circular crenças, valores, ideias, afetos e
informações são essenciais à Psicologia
centrada na representação social. Não
se trata apenas da mera ampliação de
espaços – de incluir, entre cafés, teatros
e bares, os chats, blogs, redes sociais,
entre outros recursos das mídias
digitais. A hipótese aqui defendida
é a de que os novos espaços criados
pela Web influenciam diretamente
a representação social. O virtual e o
real estão imbricados de tal forma que
inclusão digital e cidadania digital, por
exemplo, figuram entre as prioridades
de estudiosos e autoridades públicas em
geral. Então, no estudo dos processos
de formação de subjetividades há que
se considerar este novo ambiente de
pensamento no qual o virtual é uma das
facetas da realidade.
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