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ANA PAULA DUARTE FERREIRA MAIDANA
A SELETIVIDADE E A NÃO-CUMULATIVIDADE TRIBUTÁRIA
COMO INSTRUMENTOS DE UMA POLÍTICA DE INCENTIVO À
RECICLAGEM DE RESÍDUOS SÓLIDOS
MARÍLIA
2010
ANA PAULA DUARTE FERREIRA MAIDANA
A SELETIVIDADE E A NÃO-CUMULATIVIDADE TRIBUTÁRIA
COMO INSTRUMENTOS DE UMA POLÍTICA DE INCENTIVO À
RECICLAGEM DE RESÍDUOS SÓLIDOS
Dissertação Apresentada ao Programa de Mestrado
em Direito da Universidade de Marília, como
exigência parcial para a obtenção do grau de Mestre
em Direito, sob orientação da Profa. Dra. Maria de
Fátima Ribeiro.
MARÍLIA
2010
Autora: ANA PAULA DUARTE FERREIRA MAIDANA
Título: A SELETIVIDADE E A NÃO-CUMULATIVIDADE TRIBUTÁRIA COMO
INSTRUMENTOS DE UMA POLÍTICA DE INCENTIVO À RECICLAGEM DE
RESÍDUOS SÓLIDOS
Dissertação apresentada ao Programa de Mestrado em Direito da Universidade de Marília,
área de concentração Empreendimentos Econômicos, Desenvolvimento e Mudança Social,
sob a orientação da Profa. Dra. Maria de Fátima Ribeiro.
Aprovado pela Banca Examinadora em ____/____/____
_______________________________________
Profa. Dra. Maria de Fátima Ribeiro
Orientadora
_______________________________________
Prof.(a) Dr.(a)
_______________________________________
Prof.(a) Dr.(a)
Dedico este trabalho a minhas amadas filhas,
Marina, Letícia e Amanda – razão por que
tudo vale a pena.
Uma jornada como esta não se empreende sem ajuda, razão pela qual
é chegado o momento de agradecer:
a Deus: pelo dom da vida, pela força e serenidade concedidas cada
qual no momento oportuno, pela vontade de crescer e, sobretudo, por
me permitir acreditar sempre em um futuro melhor;
a meus pais, Lindolfo e Célia: pelo amor incondicional, por me terem
educado para o caminho certo; por acreditarem em mim;
a meus irmãos, Ricardo, Ana Cláudia e Luiz Francisco e à Hilda: pela
amizade e certeza de estarem sempre lá;
a meu amado esposo, Sérgio: por ter empreendido uma jornada que
não era sua, aceitando responsabilidades extras em casa, percorrendo
livrarias e sebos em São Paulo por conta da dissertação, sendo
companheiro de viagem quando o fardo pesava demais;
a minhas filhas: pelo tempo que lhes foi roubado, por compreenderem
a grandeza do desafio e por oferecerem estímulo, sempre;
a minha Orientadora, professora Dra. Maria de Fátima Ribeiro: em
primeiro lugar, por ser exemplo; pelo tempo dedicado e observações
sempre sábias e oportunas; pelo apoio e amizade;
aos professores do Programa de Mestrado da Unimar: pelas valiosas
lições de Direito e de vida;
a todos os meus colegas do Mestrado: pelo acolhimento e pelo
estímulo; pelo ombro amigo que apenas quem passa pelos mesmos
percalços tem condições de oferecer;
aos professores e alunos da Universidade Católica Dom Bosco, pelo
apoio e estímulo oferecidos; em especial, à sempre amiga, professora
Mestra Márcia Aleixo, inesquecível companheira de viagem;
aos colegas da Secretaria de Estado de Fazenda do Estado de Mato
Grosso do Sul, pelo apoio; em especial, à FR Izabel R. Gonçalves,
por permitir a compensação de faltas e a flexibilização de horários,
sem as quais seria impossível cumprir os créditos do Mestrado;
à Senadora Marisa Serrano, sua assessoria e a Raimundo J. Chaves
Junior, pelo inestimável auxílio na pesquisa de projetos legislativos
em tramitação, relacionados ao tema deste trabalho.
“Cada um de nós compõe a sua história e
cada ser em si carrega o dom de ser capaz,
e ser feliz” (Renato Teixeira)
A SELETIVIDADE E A NÃO-CUMULATIVIDADE TRIBUTÁRIA
COMO INSTRUMENTOS DE UMA POLÍTICA DE INCENTIVO À
RECICLAGEM DE RESÍDUOS SÓLIDOS
Resumo: A reciclagem de resíduos ganhou impulso, no Brasil, a partir da década de 1980 e
desde então a atividade desponta como solução economicamente viável para questões de
ordem social, econômica e ambiental, na medida em que alia preservação ambiental e
desenvolvimento econômico. A Constituição brasileira afirma ser o desenvolvimento nacional
objetivo fundamental da República Federativa do Brasil. O desenvolvimento pretendido pelo
legislador constituinte não é outro senão o desenvolvimento sustentável, pois a Constituição
estabelece como princípios da ordem econômica, dentre outros, a defesa do meio ambiente, a
redução das desigualdades sociais, a busca do pleno emprego, a defesa do consumidor e o
consumo responsável e a função social da propriedade, cujo desdobramento é a função social
da empresa. Considerando as potencialidades da indústria da reciclagem para a realização
desses princípios, que por sua vez se fundamentam na livre iniciativa, na valorização do
trabalho humano, na dignidade da pessoa humana e na justiça social, conclui-se que cabe ao
Estado, como agente regulador da economia, criar e implementar políticas públicas voltadas à
promoção do desenvolvimento sustentável. Para tanto, pode e deve se valer do exercício de
suas competências tributárias, em especial da tributação extrafiscal, como instrumento de
estímulo a atividades econômicas que, por sua natureza, potencializam o atingimento dos
objetivos constitucionalmente estabelecidos. A pesquisa busca, assim, analisar a realidade
fática da atuação da indústria da reciclagem no país e o impacto, no setor, da legislação
tributária vigente, verificando de que modo as normas tributárias aplicáveis a esta atividade
econômica se compatibilizam com aquelas de que trata o subsistema constitucional da ordem
econômica. Tendo em conta o impacto econômico que exercem os tributos indiretos sobre a
atividade empresarial, em razão de refletirem diretamente nos preços das mercadorias e
serviços, o trabalho aborda de modo particularizado a incidência, na cadeia produtiva da
reciclagem, do IPI, do ICMS e das contribuições incidentes sobre a receita bruta das
empresas, PIS e COFINS. Segundo a Constituição brasileira, aplica-se ao IPI e ao ICMS o
princípio da seletividade, segundo o qual os produtos mais essenciais devem ser menos
onerados pela tributação em comparação com os produtos supérfluos. A pesquisa analisa
então a aplicação do referido princípio a insumos e produtos finais reciclados. Também é
abordado o princípio da não-cumulatividade tributária, que por determinação constitucional
aplica-se aos quatro tributos mencionados. Busca-se verificar de que maneira a legislação
infraconstitucional positivou a sistemática da não-cumulatividade em relação a cada um dos
tributos a que se aplica o referido princípio. Constata-se que a imposição de restrições à nãocumulatividade provoca distorções no mercado. Deste modo, a efetivação do princípio é
condição essencial para que eventuais incentivos à atividade produtiva surtam o efeito
desejado. A partir da análise realizada, e com suporte no exame dos subsistemas
constitucional tributário e econômico, o trabalho aponta a conveniência de uma evolução
legislativa que garanta tratamento diferenciado para o setor, tendo em vista os pressupostos
constitucionais da função social da atividade econômica.
Palavras-chave: Reciclagem. Tributação. Desenvolvimento Sustentável.
TAX SELECTIVITY AND NON-CUMULATIVITY AS AN
INSTRUMENT TO ENCOURAGE THE RECYCLING OF SOLID
WASTE
Abstract: Waste recycling gained impulse in Brazil in the 1980s and since then the activity
has emerged as an economically viable solution to social, economic and environmental issues,
as it allies environmental preservation and economic development. The Brazilian Constitution
states that national development is a fundamental objective of the Federative Republic of
Brazil. The development which is intended by the constitutional legislator is no other than
sustainable development, once the Constitution establishes, as principles to the economic
order, the environment defense, the reduction of social inequalities, the search of plain
employment, the consumers defense, the principle of responsible consumption and the social
function of property, whose unfolding is the social function of companies. Considering the
potentialities of the recycling industry to the fulfillment of those principles, which for their
turn find support on the free enterprise, the value of human labor, human dignity and social
justice, it is possible to conclude that it is the State’s responsibility, as a regulator of the
economy, to create and implement public policies aimed at promoting sustainable
development. With that purpose, the State must use its taxing power, especially extrafiscal
taxation, as an instrument of stimulation to those economic activities which, because of their
nature, potentiate the achievement of the objectives established in the Constitution. The
research aims at analyzing the factual reality of the recycling industry in the country and the
impact of tax legislation in the sector, verifying how taxation rules applicable to this
economic activity match the rules contained in the constitutional subsystem of the economic
order. Considering the economic impact of indirect taxes on business activity, due to the fact
that they reflect directly on the price of goods and services, this research addresses
particularly the incidence of IPI, ICMS and the contributions on gross income, PIS and
COFINS, on the recycling business. According to the Brazilian Constitution, IPI and ICMS
are subject to the principle of selectivity, which means that products that are more essential
must be less burdened by taxation in comparison with luxury items. The research examines
the application of this principle to recyclable inputs and final products. The constitutional
principle of tax non-cumulativity, applicable to the four above-mentioned taxes, is also
discussed. It is verified how the ordinary legislation deals with the scheme of noncumulativity in relation to each of the taxes it applies to. It is concluded that imposing
restrictions to the above-mentioned principle distorts the market. For that reason, the
realization of the principle is an essential condition for the effectiveness of possible incentives
to the recycling industry. From this analysis, and supported in the review of the constitutional
tax and economic subsystems, this work shows the desirability of legislative developments
that ensure special treatment for the sector, in view of the constitutional assumptions related
to the social function of the economic activity.
Keywords: Recycling. Taxation. Sustainable development.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO .................................................................................................................. 10
1 DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL E A RECICLAGEM DE RESÍDUOS
SÓLIDOS .......................................................................................................................... 17
1.1 DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL: DIMENSÕES AMBIENTAL, SOCIAL E
ECONÔMICA ..................................................................................................................... 20
1.1.1 Desenvolvimento sustentável e globalização ............................................................... 24
1.1.2 O desenvolvimento sustentável como direito fundamental na Constituição brasileira... 33
1.2 A RECICLAGEM DE RESÍDUOS SÓLIDOS E O DESENVOLVIMENTO
SUSTENTÁVEL ................................................................................................................ 41
1.3 A ORDEM ECONÔMICA CONSTITUCIONAL E A RECICLAGEM ........................ 44
1.4 O TRATAMENTO CONFERIDO À RECICLAGEM PELA LEI Nº 12.305/2010, QUE
ESTABELECE A POLÍTICA NACIONAL DE RESÍDUOS SÓLIDOS ............................. 70
2 A TRIBUTAÇÃO COMO INSTRUMENTO DE INTERVENÇÃO ESTATAL NO
DOMÍNIO ECONÔMICO COM VISTAS AO DESENVOLVIMENTO
SUSTENTÁVEL ................................................................................................................ 75
2.1 ESTADO E DESENVOLVIMENTO: A INTERVENÇÃO ESTATAL SOBRE O
DOMÍNIO ECONÔMICO ................................................................................................... 80
2.2 FUNÇÃO SOCIAL DOS TRIBUTOS E SUA INSTRUMENTALIDADE PARA A
ATUAÇÃO ESTATAL ...................................................................................................... 87
2.3 EXTRAFISCALIDADE: A INTERVENÇÃO ESTATAL POR MEIO DE NORMAS
TRIBUTÁRIAS INDUTORAS ........................................................................................... 92
2.4 OS PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS RELACIONADOS À INTERVENÇÃO
ESTATAL POR MEIO DE NORMAS TRIBUTÁRIAS INDUTORAS ........................... 100
3 O INCENTIVO À RECICLAGEM POR MEIO DA TRIBUTAÇÃO INCIDENTE
SOBRE O CONSUMO .................................................................................................. 118
3.1 A SELETIVIDADE E A NÃO-CUMULATIVIDADE TRIBUTÁRIA ...................... 121
3.2 A TRIBUTAÇÃO SOBRE O SETOR DA RECICLAGEM NA ATUALIDADE ....... 130
9
3.2.1 O imposto sobre produtos industrializados (IPI) ........................................................ 133
3.2.2 O imposto sobre a circulação de mercadorias (ICM).................................................. 139
3.2.3 As contribuições para o financiamento da seguridade social (COFINS) e para o
programa de integração social (PIS) .................................................................................. 148
3.3 O ESTÍMULO À RECICLAGEM POR MEIO DA TRIBUTAÇÃO: ANÁLISE DE
PROPOSIÇÕES LEGISLATIVAS JÁ APRESENTADAS ............................................... 153
3.4 A SELETIVIDADE E A NÃO-CUMULATIVIDADE TRIBUTÁRIA COMO
MECANISMOS DE FOMENTO À RECICLAGEM ......................................................... 160
CONSIDERAÇÕES FINAIS .......................................................................................... 175
REFERÊNCIAS .............................................................................................................. 184
ANEXOS ......................................................................................................................... 194
INTRODUÇÃO
O objetivo deste estudo consiste em demonstrar a utilidade e pertinência jurídica da
adoção de uma política tributária especificamente voltada à reciclagem de resíduos sólidos,
com o intuito de viabilizar economicamente esta atividade econômica que, por sua relevância
ambiental e social, é potencialmente realizadora do desenvolvimento sustentável.
O marco temporal da pesquisa é a contemporaneidade, com início no ano de 1988,
data em que foi promulgada a atual Constituição brasileira. Os métodos utilizados são o
hipotético-dedutivo e o dissertativo-argumentativo.
O tema desenvolvido envolve aspectos jurídicos, econômicos e sociais, o que torna
seu estudo ao mesmo tempo instigante e complexo. A abordagem, entretanto, será feita sob
enfoque eminentemente jurídico, sendo a Constituição utilizada como ponto de partida para a
análise das realidades econômica e social e das normas jurídicas infraconstitucionais.
Duas são as justificativas para a escolha do tema. A primeira delas é acadêmica e
relaciona-se à área de concentração do programa de pós-graduação stricto sensu da
Universidade de Marília: Empreendimentos Econômicos, Desenvolvimento e Mudança
Social. A linha de pesquisa empreendida – Relações Empresariais, Desenvolvimento e
Demandas Sociais – enfatiza a interdependência existente entre o Direito e a Economia,
buscando estabelecer o papel atribuído pelo Direito brasileiro ao Estado, às empresas e à
sociedade, no que se refere ao alcance do desenvolvimento econômico.
A outra justificativa, de caráter social e pragmático, relaciona-se à contribuição
ambiental e social advinda da reciclagem de resíduos sólidos e à necessidade de tornar esta
atividade economicamente viável, o que justifica a intervenção do Estado regulador sobre o
domínio econômico, por meio de políticas públicas.
Dentre os instrumentos de que dispõe o Estado para atuar sobre a atividade
econômica, destaca-se a tributação. Considerando o impacto que a imposição tributária exerce
sobre a economia, será examinada a utilização de normas tributárias indutoras com o objetivo
de fomento à reciclagem de resíduos sólidos, na busca do desenvolvimento sustentável.
Havendo necessidade de demarcar o objeto de estudo, faz-se a opção de examinar
apenas os tributos indiretos que incidem sobre a cadeia produtiva da reciclagem. Nessa
perspectiva, será analisado de que modo os mecanismos da seletividade e da nãocumulatividade tributária podem ser empregados para o estímulo à reciclagem como atividade
11
econômica. Por esta razão, serão abordados apenas os tributos indiretos que se sujeitam ao
princípio da seletividade, da não-cumulatividade ou a ambos.
Ainda no que tange à delimitação do campo de estudo, opta-se por examinar
especificamente a atividade econômica ligada à reciclagem dos seguintes materiais: plástico,
papel e metais não ferrosos.
Inicia-se o trabalho com a abordagem do conceito de desenvolvimento, que foi sendo
modificado ao longo do tempo. Se no passado era comum tomar-se o mero crescimento
econômico, em termos apenas quantitativos, por desenvolvimento, na contemporaneidade o
conceito de desenvolvimento está irremediavelmente ligado à idéia de sustentabilidade. Deste
modo, além do aspecto econômico, o desenvolvimento abrange também as dimensões social e
ambiental.
Em seu Artigo 3º, II, a Constituição brasileira afirma o desenvolvimento nacional
como um dos objetivos da República Federativa do Brasil. Conciliando este objetivo com
outros valores expressos no texto constitucional, como a justiça social (Artigo 3, I), a
erradicação das desigualdades sociais e regionais (Artigo 3º, III) e a defesa do meio ambiente
(Artigo 225), é possível afirmar que o desenvolvimento objetivado pelo legislador constituinte
é o desenvolvimento sustentável.
A reciclagem de resíduos sólidos relaciona-se ao desenvolvimento sustentável na
medida em que contempla suas três dimensões: a econômica, a ambiental e a social. Como
qualquer atividade econômica, a reciclagem está sujeita à observância do regime jurídico
econômico constitucional. Atentando-se a isto, preocupa-se o presente estudo em relacioná-la
aos princípios informadores da ordem econômica, os quais são elencados no Artigo 170 da
Constituição brasileira.
A Constituição de 1988 delineia uma ordem econômica inovadora em relação às
existentes em Constituições anteriores. Busca conciliar a livre iniciativa e a valorização do
trabalho humano. Assume a adoção do sistema capitalista de economia ao mesmo tempo em
que prestigia certos valores que sempre apareceram ligados ao Estado Social. Reconhece o
papel do Estado na condução e regulação dos assuntos econômicos, mas diminui o
intervencionismo estatal, atribuindo também à sociedade e aos agentes econômicos a
responsabilidade pela realização dos valores que prescreve.
Dentre os valores prestigiados pelo texto constitucional, destaca-se a preservação do
meio ambiente, direito fundamental que se relaciona ao direito à vida não só da presente
geração como das futuras. O direito ao meio ambiente sadio e equilibrado é contemplado no
Artigo 225 da Constituição Federal, sendo a defesa do meio ambiente alçada ainda ao status
12
de princípio informador da ordem econômica, em conformidade com o que dispõe o Artigo
170, VI da Constituição.
Originalmente, o referido dispositivo constitucional afirmava apenas que a ordem
econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, cujo fim é
assegurar a existência digna, em conformidade com os ditames da justiça social, sujeitava-se à
observância do princípio da defesa do meio ambiente. Com a Emenda Constitucional nº 42,
de 19 de dezembro de 2003, o inciso VI do Artigo 170 ganhou nova redação, que ampliou o
alcance do princípio em comento a fim de conferir-lhe maior efetividade.
Na redação atual, o dispositivo prevê que, para a defesa do meio ambiente, pode ser
concedido tratamento diferenciado às empresas, conforme o impacto ambiental de seus
produtos e serviços e de acordo com seus processos de elaboração e prestação. Reafirmada,
assim, a possibilidade de intervenção estatal sobre o domínio econômico mediante a
concessão de incentivos a empresas ambientalmente sustentáveis.
Considerados os benefícios ambientais atrelados à reciclagem de resíduos sólidos,
tem-se no Artigo 170, VI, da Constituição Federal, autorização expressa para a concessão de
tratamento favorecido às empresas que integram sua cadeia produtiva. Conforme será
demonstrado neste estudo, um dos instrumentos mais eficientes de que dispõe o Estado para
este mister é a tributação. Fica patente, assim, a pertinência da adoção de uma política
tributária que contemple as peculiaridades desta atividade econômica, tendo em conta sua
função ambiental.
Para além da questão ambiental, será examinada a relação entre a reciclagem e os
princípios constitucionais da busca do pleno emprego e da valorização do trabalho humano. O
setor é responsável pela geração de um grande número de postos de trabalho, tanto na forma
de emprego como de trabalho autônomo. Mundialmente, alude-se a uma “economia verde”,
em referência a atividades econômicas relacionadas ao meio ambiente, a qual possui grande
impacto no mundo do trabalho.
Ao lado da valorização do trabalho humano, a Constituição brasileira consagra a livre
iniciativa como fundamento da ordem econômica constitucional. À livre iniciativa, que
consiste em assegurar o direito de acesso ao mercado, encontra-se ligado o princípio da livre
concorrência, cujo objetivo é garantir a permanência das empresas no mercado. Ao longo
deste estudo, buscar-se-á examinar se os diversos integrantes da cadeia produtiva da
reciclagem têm hoje assegurada sua permanência no mercado, sobretudo em consideração às
condições sob as quais concorrem com as empresas que utilizam insumos não recicláveis, ou
matéria-prima obtida diretamente da natureza. Será verificada ainda a influência exercida pela
13
atividade tributária do Estado nas condições de acesso e permanência neste mercado.
Dada a estreita relação entre o consumo e a reciclagem, será abordada ainda a questão
do consumo sustentável, que decorre do cotejo entre o princípio que determina a defesa do
meio ambiente com aquele que dispõe sobre a defesa do consumidor e de ambos com o
primado constitucional do desenvolvimento sustentável.
Antes apenas alcançado por meio da interpretação sistemática das normas
constitucionais, o conceito de consumo sustentável foi contemplado pela Lei nº 12.305, de 2
de agosto de 2010, que institui a Política Nacional de Resíduos Sólidos. Absorvendo do texto
constitucional a idéia de que preservação ambiental é responsabilidade não só do Estado,
como também da coletividade e dos agentes econômicos, a referida Lei inova ao estabelecer
que a gestão de resíduos sólidos será feita de maneira integrada.
Na abordagem da Lei nº 12.305, buscar-se-á identificar a relevância da reciclagem
para a gestão integrada de resíduos sólidos. Serão verificados ainda os instrumentos
estabelecidos em lei para a viabilização da Política Nacional de Resíduos Sólidos. Dentre os
referidos instrumentos, destacar-se-á a intervenção do Estado sobre o domínio econômico por
meio da concessão de incentivos tributários.
A tratativa do tema não prescinde da análise do papel atribuído pela Constituição
econômica ao Estado brasileiro, no que tange à preservação do regime jurídico econômico e à
obtenção do desenvolvimento sustentável. Deste modo, será abordada a determinação
constitucional de intervenção do Estado sobre a ordem econômica como agente normativo e
regulador e a importância das funções de planejamento, fiscalização e incentivo na orientação
das políticas públicas.
Será destacado o papel promocional do Estado Democrático de Direito na
contemporaneidade, que deve intervir sobre o domínio econômico com o fim de promover o
desenvolvimento em todas as suas dimensões. As ações estatais, entretanto, devem ser
realizadas em parceria com a sociedade e com os agentes econômicos, sob a direção do
Estado.
Dentre as diversas modalidades de atuação estatal sobre o domínio econômico com
vistas à promoção do desenvolvimento sustentável, interessa a este estudo a intervenção por
meio de normas tributárias indutoras, que será examinada nos dois últimos capítulos.
Os tributos são a principal fonte de receita do Estado e representam a contribuição da
sociedade e dos agentes econômicos para o financiamento das atividades estatais. Neste
contexto, cumprem uma função social, a qual deve ser analisada não apenas no que diz
respeito ao papel de propiciar recursos financeiros ao Estado, mas que também deve ser
14
relacionada à idéia de justiça fiscal.
Além da função fiscal, é destacada a função extrafiscal dos tributos, consistente no
emprego do instrumental tributário com finalidade regulatória. É no campo da
extrafiscalidade que o Estado se vale da edição de normas tributárias indutoras visando inibir
certas práticas que, embora legalmente permitidas, não se coadunem com valores que se
pretenda alcançar por meio de dada política pública, ou, ainda, visando incentivar
comportamentos que se compatibilizam com o interesse público.
O emprego extrafiscal dos tributos, embora complexo, consiste em importante
instrumento do desenvolvimento. A concessão de incentivos tributários, no entanto, deve ser
conciliada com os princípios informadores da ordem tributária brasileira. Considerando ainda
que a utilização de normas tributárias indutoras é modalidade de intervenção do Estado sobre
o domínio econômico, a legitimidade dos incentivos condiciona-se também à observância da
ordem constitucional econômica.
Por esta razão, serão analisados os princípios constitucionais tributários que mais de
perto dizem respeito à utilização dos tributos com finalidade regulatória. Devem os referidos
princípios ser conciliados com aqueles outros que informam a ordem constitucional
econômica, uma vez que esses subsistemas constitucionais se entrecruzam e se relacionam a
todo momento, possuindo o mesmo fundamento de validade semântica, que é a Constituição
brasileira.
Na referida análise, será enfatizada primeiramente a necessidade de respeito ao
princípio federativo quando da concessão de incentivos tributários. A inobservância das
vedações constitucionais à concessão unilateral de vantagens tributárias por parte de Estados e
Municípios tem provocado o fenômeno comumente designado “Guerra Fiscal”. Neste
contexto, importante verificar de que maneira a concessão de estímulos tributários pode ser
conciliada com a livre concorrência e com o federalismo, assim como as implicações, sobre
aquela, do desrespeito ao princípio federativo, pelos entes políticos constitucionais.
A seguir, relaciona-se a igualdade tributária à livre concorrência e ao princípio que
determina a redução das desigualdades sociais, com ênfase na utilidade do emprego
extrafiscal dos tributos para a realização dos valores veiculados por estes princípios
constitucionais. A igualdade tributária diz respeito ao conceito de justiça fiscal, que, segundo
Paulo Caliendo1, não pode ser obtida sem consideração a outro princípio de igual estrutura, o
da neutralidade da tributação. O conteúdo jurídico e relevância do referido primado
1
CALIENDO, Paulo. Direito Tributário e Análise Econômica do Direito: uma visão crítica. Rio de Janeiro:
Elsevier, 2009, p. 116.
15
constitucional, assim como sua relação com os demais princípios constitucionais tributários e
econômicos, merecem atento exame.
Ainda com o intuito de demonstrar que o exercício das competências tributárias deve
guardar compatibilidade tanto com as determinações contidas no subsistema constitucional
tributário quanto nas constantes do subsistema constitucional econômico, serão abordados os
princípios da capacidade contributiva, da seletividade e da não-cumulatividade tributária, cuja
observância é condicionante do desenvolvimento.
Firmados os pressupostos constitucionais para a intervenção estatal pela via tributária,
passa-se finalmente à análise de como a tributação afeta atualmente a cadeia produtiva da
reciclagem de resíduos sólidos, o que permite formar um juízo acerca das principais variáveis
a serem consideradas para a adoção de uma política tributária de incentivo ao setor.
Para tanto, serão examinados os tributos que maior repercussão econômica possuem
sobre a reciclagem e que, por esta razão, exercem influência direta sobre as decisões tomadas
pelos agentes econômicos ligados ao setor. Este corte metodológico, essencial para que se
chegue ao objetivo pretendido, impõe ainda a consideração apenas às operações realizadas em
âmbito nacional, razão pela qual não será feita referência à importação e exportação de
materiais recicláveis e aos produtos a partir deles fabricados.
Nessa perspectiva, será examinada a incidência dos seguintes tributos, na cadeia
produtiva da reciclagem: Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI), de competência da
União; Imposto sobre a Circulação de Mercadorias e prestação de Serviços de transporte
interestadual e intermunicipal e de comunicação (ICMS), da competência dos Estados;
Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social (COFINS) e Contribuição para o
Programa de Integração Social (PIS), ambas da competência da União.
Passa-se, a seguir, à consideração das poucas normas tributárias vigentes, que de
maneira específica contemplam a reciclagem de resíduos sólidos de maneira diferenciada.
Examina-se também algumas proposições legislativas que tramitam atualmente no Senado
Federal e na Câmara dos Deputados, cujo objetivo é a concessão de estímulos de natureza
tributária ao setor.
Constata-se que as medidas existentes até o momento são pontuais e desarticuladas e
refletem a necessidade de se pensar uma política tributária que favoreça a reciclagem.
Atendendo aos ditames da Política Nacional de Resíduos Sólidos estabelecida pela Lei nº
12.305/2010, esta política deve ser planejada mediante a cooperação e envolvimento de todos
os entes políticos constitucionais.
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Considerando que o emprego de normas tributárias indutoras surtiria maior efeito
quando aplicado em relação aos tributos incidentes sobre o consumo, naturalmente
vocacionados à utilização regulatória, investiga-se de que maneira o instrumental tributário
relacionado a estes tributos pode ser manipulado com a finalidade de incentivo à reciclagem.
Neste intuito, especial ênfase será dada aos princípios constitucionais que dispõem
sobre a seletividade e a não-cumulatividade tributária. Em razão das disposições legais hoje
vigentes, os referidos princípios não têm produzido os efeitos jurídicos que lhes são inerentes
em relação às operações praticadas no âmbito da cadeia produtiva da reciclagem de resíduos,
dadas as suas peculiaridades. Da correta interpretação e aplicação desses princípios,
entretanto, depende o bom êxito de qualquer política tributária voltada ao setor.
1 DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL E A RECICLAGEM DE RESÍDUOS
SÓLIDOS
A expressão desenvolvimento econômico tem sido frequentemente empregada como
sinônimo de crescimento econômico, associada, portanto, ao crescimento quantitativo dos
índices de riqueza em decorrência do aumento nos níveis da atividade econômica.
O crescimento econômico, entretanto, é apenas uma das dimensões do
desenvolvimento, cujo conceito é mais abrangente. Por crescimento econômico entende-se o
aumento quantitativo da produção, que pode ou não gerar desenvolvimento. Já o
desenvolvimento econômico relaciona-se ao progresso tecnológico e social e implica uma
mudança no modo de produção de bens e serviços, e não apenas ao aumento dos índices
econômicos alcançado pela produção em larga escala.
Enquanto o crescimento econômico pode ser mensurado através dos índices de
variação do Produto Interno Bruto (PIB), a medida do desenvolvimento econômico envolve,
além do referido índice, uma variedade de indicadores, tais como os índices de analfabetismo,
expectativa de vida da população e o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH).
Pode-se afirmar, portanto, que o desenvolvimento econômico de um país está ligado
ao desenvolvimento humano de sua população, que engloba, entre outras coisas, saúde,
educação e cidadania. Neste sentido, Luiz Carlos Bresser Pereira afirma que:
Não tem sentido falar-se em desenvolvimento apenas econômico, ou apenas
político, ou apenas social. Na verdade, não existe desenvolvimento dessa
natureza, parcelado, setorializado, a não ser para fins de exposição didática.
Se o desenvolvimento econômico não trouxer consigo modificações de
caráter social e político; se o desenvolvimento social e político não for a um
tempo o resultado e causa de transformações econômicas, será porque de
fato não tivemos desenvolvimento.2
Em retrospectiva histórica do desenvolvimento econômico, Adriana Migliorini
Kieckhöfer3 observa que ao longo dos últimos duzentos anos a questão do crescimento
2
PEREIRA, Luiz Carlos Bresser. Desenvolvimento e Crise no Brasil 1930-1983. 14. ed. atual. São Paulo:
Brasiliense, 1985, p. 20.
3
KIECKHÖFER, Adriana Migliorini. Do crescimento econômico ao desenvolvimento sustentável: uma
retrospectiva histórica. In FERREIRA, Jussara Suzi Assis Borges Nasser e RIBEIRO, Maria de Fátima.
Empreendimentos Econômicos e Desenvolvimento Sustentável. São Paulo: Arte & Ciência; Marília: Unimar,
2008, p. 17-19.
18
econômico constituiu o foco da atenção de governos e estudiosos da economia. As mudanças
tecnológicas trazidas pela Revolução Industrial e o surgimento do capitalismo como sistema
econômico predominante são fatores inerentes à concepção de crescimento econômico, uma
vez que trazem consigo fatores como o aumento dos níveis da atividade econômica, o
populacional e a urbanização, decorrente do êxodo rural em direção às cidades.
O crescimento econômico experimentado na fase inicial da economia industrial, no
entanto, não se refletiu em melhoria dos padrões de vida da população. Ao contrário, o
aumento dos níveis de atividade econômica em alguns casos agravou os problemas sociais já
existentes e fez surgir grandes bolsões de pobreza, conseqüência do rápido e desordenado
crescimento dos centros urbanos. Nesse cenário, ganha relevo a questão do papel do Estado
frente à atividade econômica.
Para os economistas clássicos – também ditos liberais – que têm como principal
expoente Adam Smith, é pelo incremento da atividade econômica que se chega à justiça
social. Para que haja desenvolvimento econômico, é necessário que o mercado opere
livremente, com intervenção estatal mínima, uma vez que a mão forte do Estado
obstaculizaria o desenvolvimento, por influenciar nos mecanismos de livre iniciativa e livre
concorrência. Segundo os liberais, a riqueza é alcançada a partir do trabalho e uma lei natural
de oferta e procura seria suficiente para corrigir eventuais distorções econômicas e sociais
surgidas.
Partindo da constatação de que o crescimento verificado em um ambiente de
liberalismo econômico era fator de enriquecimento apenas para os detentores do capital, o que
é considerado injusto quando se tem em conta que a riqueza produzida advinha
principalmente da exploração do trabalho humano, surge a ideologia socialista, construída a
partir do pensamento de Hegel, Marx e Engels.
Para os socialistas, o modelo capitalista de produção cria uma sociedade desigual, ao
passo que a justiça social somente pode ser alcançada mediante uma melhor repartição da
riqueza, cujo critério deve se basear no valor do trabalho. Para tanto, é necessário um Estado
fortemente intervencionista, condutor ele mesmo do processo de desenvolvimento econômico
e social.
Em razão da impossibilidade de conciliar os postulados socialistas com progresso no
campo econômico, verificada após as frustradas tentativas de países como a extinta União
Soviética, a Alemanha Oriental e mesmo a China, e tendo em conta, por outro lado, as fortes
crises econômicas advindas da não-regulação estatal da economia, em especial a crise de
1929, torna-se imperiosa uma definição de qual é – ou deve ser – o papel do Estado na
19
condução do desenvolvimento econômico, aqui entendido em toda a amplitude de sua
significação.
As questões acima levantadas não são puramente econômicas, mas dizem respeito,
também, ao direito. Fica patente neste ponto a estreita relação entre a economia e o direito,
pois quando se fala em grau de intervenção do Estado na ordem econômica é necessário
lembrar que é mediante a expedição de normas jurídicas pelo poder estatal que se dá a
referida atuação do Estado.
Assim, direito e economia estão irremediavelmente entrelaçados, uma vez que, como
afirma Dimitri Dimoulis4, a atividade econômica há que ser, necessariamente, regulada pelo
direito. Segundo o autor, até mesmo em um Estado liberal haverá a ordenação da economia,
que deve necessariamente ser feita em âmbito constitucional, por envolver restrições a direitos
fundamentais.
Esta normatização, pela Constituição, da realidade econômica, corresponde ao que
diversos doutrinadores denominam Constituição econômica, que pode ser conceituada como o
conjunto de normas de direito econômico contidas na Constituição.
Gilberto Bercovici5 aponta a presença de uma Constituição econômica em todas as
Constituições, inclusive as liberais. Afirma a existência de uma Constituição econômica até
mesmo na Constituição norte-americana de 1787, que, ao positivar a garantia da liberdade
contratual, permitiu o desenvolvimento do capitalismo nos Estados Unidos.
Dada a relevância da regulamentação jurídica da ordem econômica, torna-se
imperativo identificar o conteúdo de uma Constituição econômica, o que permite determinar
os limites da intervenção estatal na economia e o papel do Estado como propulsor do
desenvolvimento.
Indo além, Gilberto Bercovici6 propõe que a reflexão sobre a política de
desenvolvimento exige uma reflexão profunda sobre o Estado, cuja restauração e
fortalecimento se tornam condição essencial para que se promova a transformação das
estruturas sociais, sem a qual não é possível falar em desenvolvimento.
Retoma-se, assim, a afirmação de que o verdadeiro desenvolvimento compreende as
dimensões econômica, política e social. A esta formulação há que se acrescer, ainda, a
dimensão ambiental, na medida em que não mais se concebe que a atividade econômica
4
DIMOULIS, Dimitri. Fundamentação constitucional dos processos econômicos. In Direito social, regulação
econômica e crise do Estado. Renavan, 2006, p. 117.
5
BERCOVICI, Gilberto. Constituição Econômica e Desenvolvimento: uma leitura a partir da Constituição de
1988. São Paulo: Malheiros, 2005, p. 32.
6
Op. Cit., p. 55 e 65.
20
agrida o meio ambiente, essencial à vida digna das presentes e futuras gerações. A partir da
consideração dessas dimensões, surge o conceito de desenvolvimento sustentável, que será
abordado a seguir.
1.1 DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL: DIMENSÕES AMBIENTAL, SOCIAL E
ECONÔMICA
O paradigma de desenvolvimento vigente na atualidade ainda se sustenta fortemente
no pilar do crescimento econômico, com conseqüências por vezes desastrosas ao meio
ambiente e sem grande preocupação com as questões sociais.
Este modelo frequentemente implica na exploração descontrolada dos recursos
naturais, no uso de tecnologias para a produção em larga escala e no consumo desenfreado,
cujo resultado é ecologicamente predatório, socialmente perverso e politicamente injusto.7
Torna-se evidente a necessidade de mudança do paradigma até então adotado para um
novo modelo de desenvolvimento que, ao mesmo tempo em que revigore as economias
mundiais, permita que se alcance maior justiça social. Reconhece-se ainda que nenhum
esforço desenvolvimentista poderá lograr êxito se não houver uma preocupação com a correta
utilização dos recursos naturais disponíveis, uma vez que são finitos.
Em 1983 é criada, pela Assembléia Geral das Nações Unidas, a Comissão Mundial
sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, que, identificando os diversos aspectos a serem
considerados na questão do desenvolvimento, edita o Relatório Brundtland, publicado em
1987. O documento adota pela primeira vez a expressão “desenvolvimento sustentável”, o
qual é conceituado como aquele que atende às necessidades do presente sem comprometer a
possibilidade de as gerações futuras atenderem as suas próprias necessidades.8
De acordo com o Relatório, o principal objetivo do desenvolvimento é a satisfação das
necessidades e das aspirações humanas, as quais não são atendidas em sua plenitude,
especialmente nos países subdesenvolvidos. A situação de pobreza e desigualdade vivenciada
por grande parte da população mundial, por sua vez, agrava a crise ambiental já existente.
Assim, um dos desafios do desenvolvimento sustentável é estender a todos a oportunidade de
7
REIS, Lineu Bélico dos; FADIGAS, Eliane A. Amaral; CARVALHO, Cláudio Elias. Energia, Recursos
Naturais e a Prática do Desenvolvimento Sustentável. Barueri, SP: Manole, 2005, p. 7.
8
UNITED NATIONS. Report of the World Commission on Environment and Development: Our Common
Future. Disponível em http://www.un-documents.net/wced-ocf.htm Acesso em 19 fev 2010. Tradução livre.
21
verem satisfeitas suas necessidades mais básicas e seu desejo por um padrão de vida melhor.
Se considerado o número de habitantes do planeta, o atendimento às necessidades
básicas de toda a população não pode ser obtido sem que haja crescimento econômico. Deste
modo, o desenvolvimento sustentável exige o aumento na produção de riquezas, desde que
isto não se faça à custa da exploração do trabalho humano ou da exploração de um país pelo
outro. Assim, além do aumento da riqueza, é necessária uma melhor distribuição da riqueza
produzida.
A expansão econômica, por sua vez, pode gerar grande pressão sobre os recursos
naturais, comprometendo sua capacidade de atender as necessidades das gerações futuras. As
técnicas agrícolas utilizadas, o desvio do curso das águas, a extração de minerais e a emissão
de gases na atmosfera são apenas exemplos da intervenção humana no meio ambiente. Até
pouco tempo atrás os efeitos da ação humana na natureza eram subestimados, mas a cada dia
a ameaça à vida no planeta se torna mais dramática. Deste modo, o desenvolvimento
sustentável requer a adoção de medidas de proteção à vida: à atmosfera, à água, ao solo e aos
seres vivos.
Embora a causa ambiental já fosse pauta obrigatória na comunidade internacional,
especialmente a partir da Conferencia de Estocolmo, realizada em 1972; e embora a questão
da desigualdade social sempre tenha estado atrelada à discussão sobre o desenvolvimento
econômico, é a partir da noção de sustentabilidade que essas três dimensões passam a ser
consideradas indissociáveis.
No que tange à questão ambiental, historicamente, é possível constatar que o
progresso econômico tem se dado à custa da destruição dos recursos naturais. Na tentativa de
viabilizar a economia, o homem produziu um crescimento econômico predatório, sem
consideração ao fato de que os recursos naturais utilizados como matéria-prima ou fonte
energética eram finitos e sem se preocupar com os resíduos gerados pelas indústrias ou com o
descarte dos bens de consumo fabricados. Em poucos anos de economia industrializada o
homem conseguiu poluir o ar das regiões mais povoadas, tornou imprópria para o consumo
grande parte da água potável existente e provocou mudanças climáticas que podem
inviabilizar a vida no planeta, caso atitudes drásticas não sejam tomadas imediatamente.9
Surge então um impasse: não há estabilidade – e nem justiça social – sem que haja
desenvolvimento econômico. Sem a movimentação da economia não há trabalho para todos e
9
MAIDANA, Ana Paula Duarte Ferreira e RIBEIRO, Maria de Fátima. O exercício das competências
tributárias como instrumento de atuação estatal voltada à defesa do meio ambiente e à promoção do
desenvolvimento sustentável. In Anais do XVIII CONPEDI. Disponível em
http://www.publicadireito.com.br/conpedi/manaus/arquivos/Anais/sao_paulo/2340.pdf Acesso em 28 ago 2010.
22
o trabalho é pressuposto essencial para a existência digna. O crescimento econômico, no
entanto, seria fator de degradação ambiental o que, em última análise, atenta contra o direito à
vida. Estar-se-ia, então, diante de um conflito entre o direito fundamental à vida e o direito
fundamental à vida com dignidade?
A contradição acima esboçada é falsa e a dicotomia entre desenvolvimento econômico
e preservação ambiental apenas aparente. Nem a atividade produtiva é necessariamente
nociva ao meio ambiente e nem a proteção a este deve ser vista como óbice ao crescimento da
economia. Se ambos os fatores desta equação são imprescindíveis à vida digna, há que se
compatibilizar o direito ao desenvolvimento com o direito ao meio ambiente saudável e
equilibrado.
A retórica, como de costume, tem se mostrado mais fácil que a práxis. Para que haja
uma mudança no paradigma do desenvolvimento, necessário o envolvimento de governos,
agentes econômicos e sociedade. Em razão de interesses imediatos, nem sempre esses agentes
se dispõem a abrir mão das práticas adotadas ao longo da história. Grande parte das empresas
ainda vê a utilização racional dos recursos naturais como custo de produção, o qual nem
sempre se dispõem a suportar; as populações carentes estão demais ocupadas com a própria
sobrevivência para se preocupar com a qualidade de vida das futuras gerações; e os governos
temem os custos políticos da adoção de uma política voltada ao desenvolvimento sustentável.
Neste contexto, ganha relevo a atuação de organismos internacionais, que vêm
desempenhando importante papel junto aos Estados nacionais, aos agentes econômicos e no
envolvimento da sociedade, na tentativa de chamar a atenção para os ganhos a serem obtidos
na adoção de um novo modelo de desenvolvimento. De acordo com o Secretário-Geral da
Organização das Nações Unidas:
Longe de ser um peso, o desenvolvimento sustentável é uma oportunidade
excepcional – economicamente falando, para construir mercados e criar
empregos; socialmente, para tirar as pessoas da marginalidade; e
politicamente, para dar a cada homem e a cada mulher a oportunidade de
decidir seu próprio futuro.10
A atuação de organismos internacionais tem levado os Estados nacionais a se
movimentar de alguma maneira no sentido de comprometer-se com a causa ambiental e com a
redução das desigualdades sociais. Tratados internacionais são firmados e compromissos
assumidos, sendo que alguns Estados nacionais já modificam seu direito interno para adotar
10
KOFI ANNAN. Secretário Geral da Organização das Nações Unidas. Disponível em
http://www.un.org/esa/desa/aboutus/dsd.html Acesso em 19 fev 2010.
23
uma legislação mais voltada às práticas sustentáveis.
A simples edição de leis, no entanto, não é capaz de assegurar o atendimento ao
interesse público. É necessário o conhecimento e apoio da comunidade, que garantem maior
participação popular nas decisões que afetam o meio ambiente. É essencial também o
incentivo às iniciativas populares, dando mais força às organizações sociais e à democracia.
E, finalmente, é necessário que os agentes econômicos exerçam a atividade empresarial de
maneira sustentável.
Nesta perspectiva, a sustentabilidade relaciona-se à ética, que, para Adela Cortina,
pode ser conceituada como “un tipo de saber de los que pretende orientar la acción humana
em um sentido racional; es decir, pretende que obremos racionalmente [...] es esencialmente
um saber para actuar de un modo racional”.11
A relação com a ética torna-se clara quando se tem em conta que a atuação dos
agentes do desenvolvimento sustentável deve ir além do simples agir em conformidade com o
direito. É necessária uma integração entre os valores eficiência econômica e dignidade
humana; entre a geração de riqueza e sua distribuição; entre o atendimento às necessidades
materiais da sociedade e a preservação ambiental.
Segundo José Carlos Barbieri e Jorge Emanuel Reis Cajazeira12, a questão do
desenvolvimento sustentável impõe-se em âmbito mundial, especialmente se levada em conta
a globalização econômica, representada pela intensificação dos fluxos de produtos, serviços,
divisas e conhecimento. Esta realidade reforça a importância de se pensar o desenvolvimento
sob a ótica de uma ética universal. Segundo os autores:
Não cabe aqui discutir as causas que fazem o mundo ficar cada vez mais
globalizado, mas assinalar a importância para o desenvolvimento de uma
nova maneira de pensar a respeito do comportamento moral das pessoas, das
organizações e dos grupos sociais frente a esse processo.13
Tem-se assim a base material para uma ética que atenda aos interesses de todos os
habitantes do planeta e que engloba a preocupação com os direitos humanos, a proteção das
minorias, o fortalecimento da democracia e o cuidado com o meio ambiente.
Pode-se argumentar que a consideração a todos esses aspectos tende a inviabilizar a
atividade empresarial, uma vez que sua racionalidade baseia-se na eficiência econômica.
11
CORTINA, Adela. Ética de La empresa. Madri: Editorial Trotta, 8. ed., 2008, p. 17.
BARBIERI, José Carlos e CAJAZEIRA, Jorge Emanuel Reis. Responsabilidade Social Empresarial e
Empresa Sustentável: Da teoria à prática. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 131.
13
Op. Cit., p. 132.
12
24
Contestando o argumento, Paulo Roberto Pereira de Souza assim se posiciona:
Alguém já disse que onde começa a economia termina a ética. Pode-se
dizer, sem dúvida alguma, que esta afirmação não tem que ser verdadeira
para que a atividade econômica se dê com lucro e eficiência.
A nova economia, denominada de economia ecológica ou economia
ambiental, pressupõe a incorporação dos custos ambientais nos fatores de
produção.14 [grifos do autor]
Retomando a idéia de que o desenvolvimento econômico, a preservação ambiental e a
busca pela justiça social não cabem exclusivamente ao Estado, mas, também, à sociedade e
aos agentes econômicos, destaca-se o papel da empresa como agente do desenvolvimento
sustentável. Ganha relevo aqui a questão da responsabilidade social empresarial, vinculada ao
agir de maneira ética e transparente, de forma comprometida com as questões sociais e
ambientais e com a preservação do direito das gerações presentes e, também, com a garantia
de um mundo mais viável para as futuras gerações.
No conceito de responsabilidade social está implícita a idéia de que as empresas
podem agir melhor do que simplesmente lhes impõe a lei. Às empresas cabe uma função
social a cumprir, que consiste em agir em conformidade com o que lhes determina o direito.
Podem, no entanto, ir além, e exercer o papel de verdadeiros agentes do desenvolvimento
sustentável. Neste caso, é correto falar em responsabilidade social da empresa.
Cumpre ao Estado ser mais presente na vida das empresas. Esta presença não significa
que o Estado deva atuar diretamente em todos os setores da economia, mas que deve agir
como parceiro que tem o poder de alavancar o desenvolvimento sustentável, seja por meio da
normatização e da fiscalização, seja pela concessão de incentivo aos agentes econômicos.
1.1.1 Desenvolvimento sustentável e globalização
O mundo vive hoje a era da informação instantânea, de avanços tecnológicos tão
rápidos quanto inimagináveis. Tais avanços tecnológicos, sobretudo os relacionados à
comunicação e ao transporte, tornaram possível, fácil e rápido o intercâmbio de idéias,
14
SOUZA, Paulo Roberto Pereira de. Resíduos sólidos industriais: passivo e responsabilidade civil ambiental. In
FERREIRA, Jussara Suzi Assis Borges Nasser e RIBEIRO, Maria de Fátima. Empreendimentos Econômicos e
Desenvolvimento Sustentável. São Paulo: Arte & Ciência; Marília: Unimar, 2008, p. 136.
25
informação, conhecimento, produtos e dinheiro entre pessoas, empresas e governos de todos
os cantos do planeta. Este fenômeno, tratado de maneira genérica como “globalização”, faz
surgir uma nova configuração mundial da economia e do trabalho.
Configura-se o mundo como um sistema global, o que, segundo Gilmar Antonio
Bedin, “é o mais significativo acontecimento político, econômico e social das duas últimas
décadas [...], um marco simbólico-referencial indicativo da emergência de um novo século na
história da humanidade e, coincidentemente, de uma nova etapa de seu desenvolvimento.”15
Embora não haja uma definição exata de globalização, uma vez que a mesma abrange
diversos aspectos, pode-se afirmar que ela consiste em um processo de integração – não só de
economias e mercados – como também entre países e pessoas, assim como empresas e
governos.
Por um lado a globalização pode ser vista como positiva, pois cria canais de
comunicação entre os setores produtivos e a sociedade dos mais diversos países,
possibilitando o intercâmbio de conhecimento, avanços tecnológicos e o crescimento
econômico, que se dá pela abertura de novos mercados consumidores e de novas alternativas
de financiamento da produção, na medida em que à globalização é inerente a
internacionalização do capital.
Sob outro enfoque, no entanto, a globalização traz consigo questões emblemáticas
com as quais é preciso lidar: i) no âmbito estatal, a globalização relaciona-se à diminuição do
poder dos Estados nacionais para ditar as regras de suas economias, o que pode culminar na
relativização do conceito de soberania nacional; ii) no setor produtivo, os agentes econômicos
passam a enfrentar o grande desafio da concorrência cada vez mais acirrada; iii) no campo
social e do trabalho, a globalização traz o risco da degradação das condições de trabalho em
âmbito mundial e de agravamento das desigualdades sociais já existentes; iv) no âmbito
ambiental, relaciona-se ao desafio de preservação das condições de vida no planeta.
As questões acima ressaltadas revelam a estreita relação existente entre globalização e
desenvolvimento sustentável. Isto se deve ao fato de que a perspectiva mais relevante da
dissipação das barreiras entre os países do mundo é a econômica. Neste sentido as lições de
André Ramos Tavares, para quem “a globalização, como fenômeno de nítida conotação
15
BEDIN, Gilmar Antonio. Estado, Cidadania e Globalização do Mundo: algumas reflexões e possíveis
desdobramentos. In OLIVEIRA, Odete Maria de (coord.), Relações Internacionais e Globalização: Grandes
Desafios. Ijuí, RS: Unijuí, 1999, p. 134.
26
econômica (e comercial, além da cultural), implica, em parte, no reconhecimento da
importância da economia internacional para a saúde dos países.”16
Sob a perspectiva econômica pode-se dizer que, em um primeiro momento, a
globalização foi vista pelas empresas apenas como uma atrativa possibilidade de ampliação de
mercados. Não demorou, no entanto, para que vislumbrassem, também, imperdíveis
oportunidades de barateamento dos custos de produção, quer seja pela rápida disseminação de
recursos tecnológicos, quer pela utilização de mão-de-obra barata de países subdesenvolvidos,
quer pela vasta gama de produtos e serviços oferecidos nos antes impensáveis cantos do
mundo.
Como forma de se tornar mais eficientes (lucrativas) e competitivas, as empresas
passaram a se organizar em grandes conglomerados, que significam a concentração de capital
e de marcas, numa tentativa de, através de uma dominação do mercado, impor seus preços,
atrair investimento e obter a tão almejada fatia de participação na economia mundial, que é
chave para o crescimento.
Ao trilhar este caminho cujo foco é apenas o crescimento, no entanto, as empresas
parecem cada vez mais próximas de um ponto em que não haverá mais para onde ir: a ânsia
de baratear os custos faz com que se utilize mão-de-obra cada vez mais barata, gerando
multidões de desempregados em países cuja população era o grande mercado consumidor dos
produtos das próprias empresas; já a nova legião de subempregados ou quase escravos não
tem condições de consumir, pelo menos não nas proporções que seriam necessárias para
manter o padrão de crescimento empresarial desejado. Diminuem, então, as margens de lucro,
o que implica o risco de que o investimento nos setores produtivos deixe de ser interessante,
levando grande parte do capital para o setor financeiro e aumentando a especulação.
Com margens cada vez mais estreitas de lucratividade e buscando praticar preços
menores que a enorme concorrência, as empresas adotam atitudes prejudiciais ao meio
ambiente, cuja preservação tende a ser vista como “custo” empresarial. Chega-se ao absurdo
de se considerar a preocupação ambiental como um obstáculo ao desenvolvimento da
economia.
Insta investigar, portanto, de que maneira a globalização da economia contribui para
ou obsta o desenvolvimento com sustentabilidade, e qual deve ser o papel daqueles Estados
nacionais que, como o Brasil, fizeram a opção por este modelo de desenvolvimento.
16
TAVARES, André Ramos. Direito Constitucional Econômico. São Paulo: Método, 2003, p. 147.
27
Se, por um lado, com a globalização, o homem tem hoje fácil acesso ao conhecimento
de que precisa para progredir – ou para promover o desenvolvimento – é certo admitir que
este acesso ao conhecimento não é democrático, pois que muitos dele não se beneficiam. Do
mesmo modo, muitas pessoas – e países – não têm condições de adquirir os bens de consumo
produzidos em larga escala numa sociedade industrializada. Outros há ainda que sequer
conseguem o suficiente para se alimentar. Este, então, o primeiro grande desafio das
sociedades globalizadas: a diminuição das desigualdades sociais e regionais.
A garantia da sobrevivência e das condições de vida das populações depende, no
entanto, do desenvolvimento econômico: somente a produção de riquezas e de bens de
consumo pode garantir trabalho a todos os que dele precisam para sobreviver de maneira
digna. Neste contexto, ressalta-se o papel dos Estados nacionais e dos agentes econômicos no
que tange ao que se considera o segundo grande desafio que enfrentam as sociedades
contemporâneas: o de encontrar fórmulas de se aprimorar, gerando mais riquezas e,
consequentemente, o desenvolvimento da economia.
O terceiro grande desafio que enfrentam as sociedades do século XXI é talvez o mais
importante de todos: o de preservar o planeta para que a vida continue sendo possível. Por
muito tempo o homem não se deu conta de que os recursos naturais de que sempre se valeu
eram finitos, nem as empresas se atentaram ao fato de que o seu modo de produção
comprometia irremediavelmente o meio ambiente. Como resultado, o mundo enfrenta hoje
problemas gravíssimos como o aquecimento global, a extinção de inúmeras espécies de
plantas e animais, a poluição dos mananciais de que mais tarde o homem certamente
dependerá. O comprometimento do meio ambiente chegou a um ponto tal que não há como
adiar a reversão dos abusos até hoje cometidos.
É possível constatar, assim, que os maiores desafios associados à globalização são
aqueles ligados à justiça social, à viabilização da economia e à preservação ambiental – em
outras palavras, à sustentabilidade. Há que se promover o desenvolvimento sustentável, que
consiste justamente em aliar a economia à preservação ambiental, garantindo oportunidades a
todos e que, em certa medida, a todos seja possibilitado acesso ao mínimo existencial.
Diante da globalização, não parece mais suficiente o tratamento dessas questões
apenas no âmbito interno de cada Estado, uma vez que os governos nacionais não conseguem
lidar sozinhos com os problemas ambientais, de esgotamento dos recursos energéticos, ou
com as questões ligadas à saúde e ao desenvolvimento humano, entre tantas outras. Constatase, então, na sociedade global do conhecimento, o surgimento de um espaço público
28
transnacional, para a defesa de questões planetárias.17
Não é nova a preocupação dos Estados nacionais e de organismos internacionais com
as diversas dimensões do desenvolvimento sustentável, isoladamente. No âmbito da
Organização das Nações Unidas (ONU), existem órgãos voltados especificamente ao
tratamento das questões econômica, ambiental e social, em separado. O Conselho Econômico
e Social da ONU, por exemplo, destinado ao tratamento das questões econômicas e sociais,
abriga uma comissão para tratar do desenvolvimento social, assim como comissões regionais
para o tratamento das questões econômicas.
No âmbito da proteção social do trabalho, cita-se a Organização Internacional do
Trabalho (OIT), que é organismo internacional associado à ONU. Seu principal foco é o
trabalho humano digno e sua proteção em nível mundial. Princípio contido no preâmbulo da
Constituição da OIT retrata a relevância do enfrentamento das questões sociais e do trabalho
para além das fronteiras do Estado nacional. Segundo o referido documento “a não adoção por
qualquer nação de um regime de trabalho realmente humano cria obstáculos aos esforços das
outras nações desejosas de melhorar a sorte dos trabalhadores nos seus próprios territórios.”18
O mesmo raciocínio vale para a questão ambiental, que não pode ser circunscrita a
fronteiras de um ou outro país. Tomando consciência da importância de proteger os recursos
naturais, que passaram a ser percebidos como finitos, a comunidade internacional passa a se
mobilizar, a partir do início da década de setenta, no sentido de detectar problemas e encontrar
soluções. Em 1972, logo após a Conferência de Estocolmo, a ONU cria o Programa das
Nações Unidas para o Meio Ambiente (PNUMA), cuja missão é “liderar e encorajar parcerias
ambientais, inspirando, informando e preparando os povos e as nações para melhorar sua
qualidade de vida sem prejudicar a das gerações futuras.”19
Do tratamento isolado das principais dimensões da sustentabilidade evoluiu-se para
uma abordagem integrada, com a criação, em 1992, da Comissão de Desenvolvimento
Sustentável da ONU, que faz parte do Departamento de Assuntos Econômicos e Sociais das
Nações Unidas. Criada com o intuito de dar prosseguimento à Conferência das Nações Unidas
para Meio Ambiente e Desenvolvimento (Rio-92), seu propósito é promover o
desenvolvimento com sustentabilidade. Dentre as competências da Comissão, destacam-se o
acompanhamento e monitoramento da implementação da Agenda 21, do Programa de
17
KLAES, Mariana Isabel Medeiros. O Fenômeno da Globalização e seus Reflexos no Campo Jurídico. In
OLIVEIRA, Odete Maria de. Relações Internacionais & Globalização: Grandes Desafios. Ijuí, RS: Unijuí,
1999, p. 185.
18
OIT. Constituição da Organização Internacional do Trabalho (OIT) e seu Anexo (Declaração de Filadélfia).
Disponível em http://www.oitbrasil.org.br/info/download/constituicao_oit.pdf Acesso em 19 abr 2010.
19
PNUMA. Disponível em http://www.brasilpnuma.org.br/pnuma/index.html Acesso em 19 abr 2010
29
Barbados e do Plano de Joanesburgo, nos âmbitos nacional, regional e internacional.
A Agenda 21 é um documento de quarenta capítulos, para o qual contribuíram e se
comprometeram governos e organizações não-governamentais de cento e setenta e nove
países, que culminou na Conferência da ONU sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento
Sustentável, realizada no Rio de Janeiro, em 1992 (Rio-92). Mais que um documento, é um
programa de ação que representa a tentativa de promover, em escala mundial, um novo
modelo de desenvolvimento, que concilia a proteção ambiental, a justiça social e a eficiência
econômica.20
Dez anos após a Rio-92, realizou-se, em Joanesburgo, a Cúpula Mundial sobre
Desenvolvimento Sustentável (World Summit on Sustainable Development), também
conhecida como Rio 10+, cujo objetivo foi avaliar a implementação dos objetivos fixados na
Agenda 21 e outros acordos internacionais relativos ao desenvolvimento sustentável. No
evento foram firmados dois importantes acordos internacionais: a Declaração de Joanesburgo
e o Plano de Implementação.
O conteúdo desses acordos e o comprometimento da Comissão de Desenvolvimento
Sustentável da ONU para com eles revela que, para a Comissão, o desenvolvimento
sustentável só pode ser atingido se houver a integração, em todos os níveis, de seus
componentes econômico, ambiental e social. Esta integração, por sua vez, requer diálogo
contínuo e ações em parceria global, com foco nas dimensões-chave da sustentabilidade.21
É certo que em um mundo globalizado as questões econômicas, assim como as sociais
e as ambientais, extrapolam as fronteiras dos países e não podem ser resolvidas internamente.
Para Cristiane Derani:
Todo planejamento da atividade econômica implica na consideração
irrefutável dos efeitos das normas da atividade econômica sobre as
estratégias de política econômica internacional. A verdadeira
macroeconomia tem sua base na reprodução da estrutura internacional.
Fatores como produção agrária e divisão de terra, emprego e capacitação
profissional, investimento tecnológico e direcionamento da tecnologia,
desenvolvimento da indústria nacional e finalidade da mesma, objetivo da
produção e estabilidade da moeda jamais serão resolvidos circunscritos,
exclusivamente, à estrutura da economia interna.22
Examinando especificamente a perspectiva ambiental do desenvolvimento, a autora
20
ECOL NEWS. Agenda 21: Apresentação. Disponível em http://www.ecolnews.com.br/agenda21/ Acesso em
19 abr 2010.
21
UN Department of Economic and Social Affairs. Division for Sustainable Development. Disponível em
http://www.un.org/esa/dsd/index.shtml Acesso em 19 abr 2010.
22
DERANI, Cristiane. Direito Ambiental Econômico. São Paulo: Max Limonad, 1997, p. 121.
30
ressalta que “a conservação da natureza integra uma perspectiva mundial, não só pelos efeitos
da destruição ambiental que desconhece fronteiras, mas sobretudo pela sua vinculação à
dinâmica do mercado internacional.”23
O tratamento do desenvolvimento sustentável no âmbito internacional, no entanto,
leva ao repensar da noção de soberania, uma vez que, ao assumir compromissos relacionados
a direitos humanos perante a comunidade internacional, os Estados nacionais vinculam-se a
sua observância. Como consequência, “a soberania estatal não pode ser ungida à condição de
ilimitada. Em termos práticos, isso vem a significar que o estado não pode tratar seus cidadãos
da forma que quiser, sem vir a sofrer responsabilização no âmbito internacional.”24
Haveria, assim, uma relativização do conceito de soberania, o que, para muitos, é
juridicamente inviável, pelo menos no Brasil, uma vez que a soberania é um dos fundamentos
da República Federativa do Brasil, ex vi do que dispõe o Artigo 1º, I da Constituição Federal
de 1988.
Manoel Jorge e Silva Neto25 rejeita a idéia de que, em face da globalização, relativizase o conceito de soberania pois, ao contrário do que se prega, a globalização não é fenômeno
recente, muito menos irreversível e, muito embora reflita no Direito Econômico interno dos
países, em nada afeta sua soberania. Segundo o autor:
[...] deve ser cotejada a edição de normas econômicas pelo Poder Executivo
em servil reverência aos órgãos financeiros internacionais ao que prescreve a
Constituição de 1988: se existente o antagonismo, deve ser redirecionada a
política econômica do Estado para, elevando a soberania ao verdadeiro
patamar de fundamento da sociedade política brasileira, fazer com que as
diretrizes traçadas para a economia estejam associadas aos desígnios do
elemento constituinte originário.
[...]
Filiamo-nos à corrente dos que defendem estar a soberania exclusivamente
contida pela soberania dos demais Estados integrantes da comunidade
internacional, procedimento que torna viável o relacionamento harmônico e
pacífico dos diversos países no cotnexto dos direitos das gentes.
E, destarte, respondida está a segunda pergunta: a relativização do conceito
de soberania em face do relacionamento dos países em sistema econômico
mundializado é a própria negação do conceito de soberania.26
É forçoso reconhecer, no entanto, que em época de globalização econômica, o aspecto
territorial deixou de ser importante, uma vez que aos agentes da economia é dado escolher
23
DERANI, Cristiane. Direito Ambiental Econômico. São Paulo: Max Limonad, 1997, p. 122.
LIMA JÚNIOR, Jayme Benvenuto. Os direitos humanos econômicos, sociais e culturais. Rio de Janeiro:
Renovar, 2001, p. 26.
25
SILVA NETO, Manoel Jorge e. Direito constitucional econômico. São Paulo, LTr, 2001, p. 90.
26
Op. Cit., p. 92
24
31
para onde dirigirão seus investimentos, sendo a produção de um bem ou serviço pulverizada
entre diversos países. Torna-se difícil definir a exata localização de uma empresa e a que
regras a mesma deve submeter-se.
Neste sentido, Edvaldo Pereira de Brito aponta a existência de uma crise em torno da
noção de soberania, especialmente se exposta pelo seu perfil tradicional. Vale-se então o autor
do magistério de Kelsen para chegar ao que, para ele, é o exato conteúdo da soberania:
Melhor será dar espaço à noção que deflui do magistério de Kelsen quando,
ao tomar partido na discussão mantida pelas teorias dualista e a da unidade
das ordens jurídicas nacional e internacional, expôs a teoria da igualdade de
soberania, que se compatibiliza com a existência de um direito internacional
que impõe deveres e confere direitos aos Estados, daí que a soberania deles,
como sujeitos de direito internacional, é a autoridade jurídica sob a
autoridade do direito internacional. Isto equivale a que a autoridade jurídica
do Estado é suprema enquanto não está sujeita à autoridade jurídica de
qualquer outro Estado. Logo, o Estado é soberano desde que está sujeito
somente ao direito internacional e não ao direito nacional de qualquer outro
Estado. 27 [grifos do autor]
Parece ser esta a noção de soberania que mais se coaduna com o desafio que os
tempos atuais impõem às sociedades contemporâneas, em especial aquelas que se pretendem
democráticas. Do Estado contemporâneo não mais pode se esperar que cumpra o papel antes
atribuído ao Estado-moderno, pré-globalização. Deve, é claro, o Estado, assegurar e promover
o desenvolvimento sustentável, como querem as constituições vigentes hoje em grande parte
dos países. Não o fará, entretanto, sozinho: deverá aliar-se a outros Estados-nacionais e, mais
que isto, valer-se da co-participação da sociedade e dos agentes econômicos.
O conceito de soberania, neste contexto, estaria relacionado a um pensamento
universal democrático, que parte da lógica humanitária, ou seja, da noção de direitos
humanos, como querem Lenio Luiz Streck e José Luis Bolzan de Moraes28. Para os autores,
há hoje um processo conjunto de desterritorialização e reterritorialização próprios das relações
contemporâneas e, em razão disto, o espaço da democracia se multiplica e não mais se
restringe aos limites geográficos dos Estados nacionais. Ao contrário, inclui o espaço
internacional, o comunitário e experiências locais, como os projetos de democracia
participativa.
Merece retomada, neste ponto, o conceito de globalização que vai além de sua faceta
27
BRITO, Edvaldo Pereira de. A atuação do Estado no domínio econômico. In MARTINS, Ives Gandra
(coord). Desafios do Século XXI. São Paulo: Pioneira, p. 268 – 261-277
28
STRECK, Lenio Luiz e MORAIS, José Luis Bolzan de. Ciência Política & Teoria do Estado. 6. ed., Porto
Alegre: Livraria do Advogado, 2008, p. 131
32
mais comumente salientada, a econômica. A globalização deve ser vista também como um
intercâmbio cultural, ideológico e de informações, que permite que pessoas e instituições de
todo o mundo se envolvam com a questão do desenvolvimento sustentável e, mediante a troca
de experiências e realizações integradas, sejam sujeitos promotores da defesa do meio
ambiente e da luta contra as desigualdades sociais.
Verifica-se a existência, em âmbito mundial, de outros atores do desenvolvimento
além dos Estados: instituições de ensino e grupos de pesquisa científica envolvidos com as
diversas facetas do desenvolvimento sustentável; organizações não-governamentais que se
ocupam da luta pela proteção do meio ambiente em escala internacional; empresas que
inovam seu processo de produção, com a finalidade de tornar-se sustentáveis; consumidores
que, em diversos países do mundo, já se tornam conscientes e buscam o consumo
responsável, preferindo bens e serviços cujo processo de produção seja sustentável.
Ressalta-se o papel que vem sendo crescentemente desempenhado pelo terceiro setor,
que engloba as ONGs (organizações não-governamentais), fundações, associações e outras
organizações da sociedade civil. Voltadas à assistência social, à defesa do meio ambiente, à
promoção da cultura, da pesquisa tecnológica, entre outros, essas organizações privadas
exercem ações públicas que extrapolam o domínio estatal e representam a ação da sociedade
na defesa de seus direitos fundamentais. Apenas a título de exemplo, cita-se: o WWF (World
Wildlife Fund), o Greenpeace, o Worldwatch Institute e, no Brasil, o Vitae Civilis, o Instituto
Ayrton Senna e o Instituto Ethos.
A fim de promover as transformações a que se propõem, essas organizações do
terceiro setor reúnem-se no plano internacional, tendo já havido aprovação de importantes
documentos nos quais as partes assumem compromissos e elaboram estratégias para a
promoção do desenvolvimento sustentável. Por sua pertinência com o tema deste trabalho,
destaca-se a aprovação, pelo Fórum Internacional de ONGs e Movimentos Sociais
Compromissos para o Futuro, realizado no Rio de Janeiro, em 1992, do Tratado sobre
Resíduos, no qual as organizações signatárias reconhecem a relevância de uma política
universal relacionada aos resíduos gerados pela atividade humana.29
No documento, são abordados os riscos ambientais envolvidos com a geração de
resíduos, os danos à saúde a eles relacionados e a necessidade de sua correta destinação.
Dentre os compromissos firmados no documento, diversos relacionam-se à reciclagem de
29
Fórum Internacional de ONGs e Movimentos Sociais “Compromissos para o Futuro”. Tratado sobre Resíduos.
Rio de Janeiro, 1992. Disponível em http://www.vitaecivilis.org.br/anexos/RESIDUOS_23.PDF Acesso em 23
abr 2010.
33
resíduos, como a pressão a organismos governamentais para que estabeleçam planos de
administração de resíduos, campanhas de coleta seletiva, marketing voltado à reciclagem,
entre outros.
Há, assim, o reconhecimento, por organizações de defesa do meio ambiente em âmbito
internacional, de que a reciclagem do lixo é um passo importante da comunidade
internacional rumo ao desenvolvimento sustentável.
1.1.2 O desenvolvimento sustentável como direito fundamental na Constituição brasileira
O conceito de desenvolvimento, na atualidade, está intimamente ligado à idéia de
bem-estar social e de preservação ambiental. No dizer de Gilberto Bercovici, “o
desenvolvimento é [mesmo] condição necessária para a realização do bem-estar social e o
Estado é, através do planejamento, o principal promotor do desenvolvimento.”30
Fica patente, assim, que o desenvolvimento é uma questão de Estado. Por esta razão,
há que se investigar de que maneira foi ele tratado na Constituição, já que é a Constituição
que institui o Estado e que traça o seu perfil, determinando as formas de sua atuação em
relação ao processo econômico, para que se atinja o desenvolvimento como almejado pelo
legislador constituinte.
Não há como falar de desenvolvimento sem consideração ao sistema econômico
adotado pelo Estado, que, no caso brasileiro, tem sido o capitalista. Retoma-se, aqui, a
interdependência, anteriormente afirmada, existente entre o Direito e a Economia, pois que a
sobrevivência de um dado regime de economia – seja ele capitalista ou socialista – se
assentará sempre em um sistema jurídico que lhe dê sustentação.
Em estudo analítico dos textos de Max Weber, David Trubek31 demonstra que, para
Weber, o desenvolvimento capitalista depende do direito, na medida em que o legalismo é a
única forma de se obter o grau de certeza necessário para a operação do sistema capitalista,
que requer previsibilidade. Também a coação de que se vale o Direito é essencial nas
economias capitalistas, que, não fosse a existência de regras impositivas, ruiriam em razão da
competitividade e egoísmo inerentes à racionalidade econômica.
30
BERCOVICI, Gilberto. Constituição Econômica e Desenvolvimento. São Paulo: Malheiros, 2005, p. 51
TRUBEK, David M. Max Weber sobre direito e ascenção do capitalismo, trad. José Rafael Zullo, revisão José
Rodrigo Rodriguez. In RODRIGUEZ, José Rodrigo (org.) O novo Direito e Desenvolvimento: presente, passado
e futuro: textos selecionados de David M. Trubek. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 31-34.
31
34
À mesma conclusão chega Cristiane Derani, quando afirma que a manutenção do
modo de produção capitalista depende da manutenção das estruturas política e econômica
existentes. Segundo a autora:
[...] o Estado – produtor de normas – e o mercado – âmbito das relações
econômicas – necessitaram sempre estar juntos. O direito é a instituição e o
instrumento através do qual Estado e mercado servem-se mutuamente para a
reprodução do sistema em que estão inseridos.32
Feitas estas considerações, fica clara a importância da regulação das questões ligadas
ao desenvolvimento econômico pelo Direito, que, como já se disse anteriormente, é feita em
âmbito constitucional. Torna-se imperativo, assim, identificar o conteúdo da Constituição
econômica, que é a normatização, pela Constituição, da realidade econômica. É a
Constituição econômica que se preocupa com a normatização e instituição de princípios
relacionados ao desenvolvimento econômico e social.
É possível identificar uma Constituição econômica na Constituição brasileira
promulgada em 1988. Seu conteúdo vai muito além do texto contido no título “Da Ordem
Econômica”, e abrange normas constantes em todo o texto constitucional, destinadas a regular
o papel do Estado e dos agentes econômicos, assim como da sociedade, no que se refere ao
desenvolvimento econômico e social.
O traço característico desta Constituição econômica, segundo Gilberto Bercovici33, é
seu caráter diretivo ou dirigente. O conceito de constituição dirigente foi inicialmente
idealizado por Canotilho e se refere à Constituição que traça metas e determina a direção que
os governos que sob sua égide se constituam devem tomar.
Ainda segundo Bercovici, a Constituição econômica é “voltada para a transformação
das estruturas sociais”.34 A importância da constituição econômica e social consiste no fato de
que elas não se contentam em receber as estruturas pré-existentes; ao contrário, “positivam
tarefas e políticas a serem realizadas no domínio econômico e social para atingir certos
objetivos”.35
Para Manoel Gonçalves Ferreira Filho, “as definições gerais e os princípios gerais têm
nessa Constituição uma importância maior do que em uma Constituição-garantia, porque são
32
DERANI, Cristiane. Direito Ambiental Econômico. São Paulo: Max Limonad, 1997, p. 92.
BERCOVICI, Gilberto. Constituição econômica e desenvolvimento: uma leitura a partir da Constituição de
1988. São Paulo: Malheiros, 2007, p. 36.
34
Op. Cit., p. 30.
35
Op. cit., p. 33.
33
35
toda a predeterminação da orientação que os governos devem seguir.”36
A Constituição econômica brasileira contém um grande número de normas
programáticas: princípios de conteúdo aberto, de caráter eminentemente promocional. Estas
normas devem nortear a atuação do legislador infraconstitucional. Seu grande desafio,
entretanto, consiste na concretização dos valores sociais, econômicos e culturais por ela
veiculados.
Feitas estas considerações, imperioso retornar à questão central do presente tópico,
cujo objetivo é delinear o modelo de desenvolvimento determinado pelo legislador
constituinte para o Estado brasileiro.
A Constituição Federal de 1988 aponta o desenvolvimento nacional como um dos
objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil, conforme se verifica do disposto
no Artigo 3º, II. Ao lado do desenvolvimento, figuram ainda outros objetivos a ele
intrinsecamente ligados, como a justiça social, a liberdade e a solidariedade (Artigo 3º, I); a
erradicação das desigualdades sociais e regionais (Artigo 3º, III); a promoção do bem de todos
e o repúdio a qualquer forma de discriminação (Artigo 3º, IV).
Já a partir dos objetivos fundamentais afirmados pela Constituição brasileira é
possível constatar o enaltecimento de valores como a justiça e a dignidade da pessoa humana,
presentes em grande parte das Constituições da atualidade. A menção a estes valores ao lado
do desenvolvimento revela a opção constitucional pela promoção do desenvolvimento não
apenas no sentido econômico, mas também humano e social.
Poder-se-ia julgar, a partir dos princípios fundamentais acima explicitados, que a
Constituição brasileira fosse instituidora de um Estado Social. A análise de outros
dispositivos da Constituição econômica, entretanto, revela que a mesma trata do
desenvolvimento em um ambiente de economia capitalista, o que nem por isto faz dela uma
Constituição liberal. Pode, então, a Constituição Federal de 1988, ser considerada liberalsocial, pois que fundada no valor social do trabalho e na livre iniciativa.
Esta dualidade de valores está expressa em toda a Constituição econômica brasileira: a
Constituição garante o direito de propriedade (Artigo 5º, XXII), o que é característico de uma
Constituição liberal, desde que a propriedade atenda a uma função social (Artigo 5º XXIII e
Artigo 170, III), nota típica de uma Constituição Social; adota a livre iniciativa, ao lado da
valorização do trabalho humano, como fundamento da ordem econômica constitucional
(Artigo 170, caput); dipõe que a atividade econômica será regida pelo princípio da livre
36
FILHO, Manoel Gonçalves Ferreira. Direito Constitucional Econômico. São Paulo: Saraiva, 1990, p. 75
36
concorrência (Artigo 170, IV), ao mesmo tempo em que determina a redução das
desigualdades regionais e sociais e a busca do pleno emprego (Artigo 170, VII e VIII).
A estas duas dimensões do desenvolvimento, acrescenta-se ainda a dimensão
ambiental, que foi pela primeira vez tratada em âmbito constitucional, no Brasil, com a
promulgação da Constituição Federal de 1988.
Em estudo publicado nos Anais do XVIII CONPEDI37, realizado em parceria com
Maria de Fátima Ribeiro, esta autora apontava a importância da disciplina do meio ambiente
na ordem constitucional, principalmente se considerada a propriedade com que a matéria
ambiental é abordada na Constituição brasileira que, conforme afirma José Afonso da Silva,
“assumiu o tratamento da matéria em termos amplos e modernos”.38
A constitucionalização do Direito Ambiental, por si só, não é garantia de que o meio
ambiente será recuperado e conservado, uma vez que “fatores psicossociais e econômicos irão
ter um peso considerável na implementação das normas constitucionais.”39 Mesmo assim, o
tratamento constitucional da matéria pode ser considerado um grande avanço, pois representa
“mais do que um abstrato impacto político e moral [...] e traz consigo benefícios variados e de
diversas ordens, bem palpáveis, pelo impacto real que podem ter na (re)organização do
relacionamento do ser humano com a natureza.”40
O Artigo 225 da Constituição Federal estabelece que o meio ambiente ecologicamente
equilibrado é direito de todos e essencial à sadia qualidade de vida, cabendo sua defesa ao
Poder Público e à coletividade, a quem incumbe conservá-lo para as presentes e futuras
gerações. É tratado, pois, o meio ambiente, como um bem jurídico a ser preservado e,
relacionado que está ao direito à sadia qualidade de vida, tem reconhecido o status de direito
fundamental.
Na medida em que a Constituição estabelece a relação entre o meio ambiente e o
direito à vida das presentes e futuras gerações, de titularidade, portanto, da coletividade como
um todo e de cada pessoa individualmente, tem-se o meio ambiente como bem
transindividual, caracterizando-se como direito fundamental de terceira dimensão.
O Artigo 170, VI, da Constituição Federal também reporta-se ao meio ambiente,
incluindo sua defesa entre os princípios que regem a atividade econômica e condicionando o
37
MAIDANA, Ana Paula Duarte Ferreira e RIBEIRO, Maria de Fátima. O exercício das competências
tributárias como instrumento de atuação estatal voltada à defesa do meio ambiente e à promoção do
desenvolvimento sustentável. In Anais do XVIII CONPEDI. Disponível em
http://www.publicadireito.com.br/conpedi/manaus/arquivos/Anais/sao_paulo/2340.pdf Acesso em 28 ago 2010.
38
SILVA, José Afonso da. Direito Ambiental Constitucional. 7. ed., São Paulo: Malheiros, 2009, p. 46.
39
MACHADO, Paulo Affonso Leme. Estudos de Direito Ambiental. São Paulo: Malheiros Editores, 1994, p. 29.
40
CANOTILHO, José Joaquim Gomes; LEITE, José Rubens Morato. Direito constitucional ambiental
brasileiro. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 69
37
desenvolvimento de qualquer atividade econômica à preservação ambiental. Este
condicionamento, é natural, uma vez que “estando a ordem econômica voltada para a
concretização da existência digna e da justiça social, não pode a atividade produtiva trilhar
caminhos que impliquem a diminuição da qualidade de vida da população atingida.”41
Fica claro que o desenvolvimento é objetivo da República Federativa do Brasil (Artigo
3º, II da Constituição Federal de 1988); mas que o desenvolvimento almejado pelo legislador
constituinte deve ser considerado em todas as dimensões postas na Constituição: econômica,
social e ambiental. Conclui-se, assim, que a Constituição pretende seja o desenvolvimento
sustentável.
Neste sentido a lição de Eros Grau, para quem a implicação jurídica de ter sido o
princípio da defesa do meio ambiente inserido na ordem econômica é que ele passa a informar
substancialmente os princípios da garantia do desenvolvimento e do pleno emprego, sendo
instrumento que assegura a existência digna e a justiça social.42 Em outras palavras, a
Constituição determina que o desenvolvimento econômico seja sustentável.
Cristiane Derani sintetiza a idéia do desenvolvimento sustentável:
A aceitação de que a qualidade de vida corresponde tanto a um objetivo do
processo econômico como a uma preocupação da política ambiental afasta a
visão parcial de que as normas de proteção do meio ambiente seriam servas
da obstrução de processos econômicos e tecnológicos. A partir desse
enfoque, tais normas buscam uma compatibilidade desses processos com as
novas e sempre crescentes exigências do meio ambiente.43
A juridicização da sustentabilidade em patamar constitucional faz com que a doutrina
comece a reconhecer o desenvolvimento sustentável como princípio informador da ordem
constitucional ambiental. Segundo Celso Antonio Pacheco Fiorillo e Thaís Maria do Carmo:
[...] o princípio do desenvolvimento sustentável encontra total respaldo no
caput do art. 225 da Constituição, no momento em que o legislador
transcreve que é dever do Poder Público e da coletividade defender e
preservar o meio ambiente ecologicamente equilibrado para as presentes e
futuras gerações.44
41
PETTER, Lafayete Josué. Princípios Constitucionais da Ordem Econômica. São Paulo: Editora Revista dos
Tribunais, 2005, p. 247.
42
GRAU, Eros Roberto. A Ordem Econômica na Constituição de 1988: Interpretação e crítica. 10. ed. revista e
atualizada. São Paulo: Malheiros Editores, 2005, p.251.
43
DERANI, Cristiane. Direito ambiental econômico. São Paulo: Max Limonad, 1997, p. 78.
44
FIORILLO, Celso Antonio Pacheco e CARMO, Thaís Maria Leonel do. Desenvolvimento Sustentável: a
Ordem Econômica do Capitalismo e a Questão do Meio Ambiente na Constituição Federal de 1988 – Art. 170,
VI. In MARQUES, José Roberto (org.), Sustentabilidade e temas fundamentais de Direito Ambiental. Campinas,
SP: Millenium Editora, 2009, p. 56.
38
O Supremo Tribunal Federal já reconheceu a existência do princípio do
desenvolvimento sustentável como aquele que visa à obtenção do justo equilíbrio entre as
exigências da economia e as da ecologia:
A QUESTÃO DO DESENVOLVIMENTO NACIONAL (CF, ART. 3º, II)
E A NECESSIDADE DE PRESERVAÇÃO DA INTEGRIDADE DO
MEIO AMBIENTE (CF, ART. 225): O PRINCÍPIO DO
DESENVOLVIMENTO
SUSTENTÁVEL
COMO
FATOR
DE
OBTENÇÃO DO JUSTO EQUILÍBRIO ENTRE AS EXIGÊNCIAS DA
ECONOMIA E AS DA ECOLOGIA.
O princípio do desenvolvimento sustentável, além de impregnado de caráter
eminentemente constitucional, encontra suporte legitimador em
compromissos internacionais assumidos pelo Estado brasileiro e representa
fator de obtenção do justo equilíbrio entre as exigências da economia e as da
ecologia, subordinada, no entanto, a invocação desse postulado, quando
ocorrente situação de conflito entre valores constitucionais relevantes, a uma
condição inafastável, cuja observância não comprometa nem esvazie o
conteúdo essencial de um dos mais significativos direitos fundamentais: o
direito à preservação do meio ambiente, que traduz bem de uso comum da
generalidade das pessoas, a ser resguardado em favor das presentes e futuras
gerações.45
É certo, assim, que o Judiciário reconhece o desenvolvimento sustentável como
princípio constitucional ambiental e, neste sentido, informador da ordem econômica. A
abordagem do referido princípio, entretanto, ainda é feita de maneira tímida, uma vez que
apenas destaca uma das dimensões da sustentabilidade.
Considerando que a Constituição brasileira se ocupa também das dimensões
econômica e social do desenvolvimento, além, é claro, da dimensão ambiental, é possível
afirmar que a densidade do princípio em comento é ainda maior, pois que seu conteúdo
engloba valores de grande prestígio no texto constitucional, verdadeiros direitos fundamentais
que se combinam e compatibilizam num contexto mais abrangente, que corresponde ao
conteúdo do desenvolvimento sustentável.
É indubitável a grande generalidade do princípio, que, por abranger as esferas
econômica, social e ambiental, irradia sua influência para um grande número de normas
constitucionais e infraconstitucionais. Resta indagar, no entanto, se o fato de o
desenvolvimento sustentável compreender dimensões que são tratadas na Constituição
brasileira como direitos fundamentais faz dele um direito fundamental, com todas as
decorrências jurídicas que isto implica.
45
BRASIL, STF, Tribunal Pleno, ADI-MC 3540/DF, Rel. Min. Celso de Mello, DJ 03.02.2006, p. 14.
Disponível em http://www.stf.jus.br/portal/inteiroTeor/obterInteiroTeor.asp?classe=ADI-MC&numero=3540
Acesso em 30 mai 2010.
39
Jean Carlos Dias46 aponta a existência de normas internacionais que reconhecem o
desenvolvimento como um direito humano, como a declaração sobre o direito de
desenvolvimento editada pela ONU em 1986, e salienta que seu tratamento pelos
instrumentos internacionais lhe confere fundamento jurídico.
A preocupação do autor em afirmar a juridicidade do desenvolvimento certamente
resulta da distinção apontada pela doutrina entre direitos humanos e direitos fundamentais,
que é explicada por Vidal Serrano Nunes Junior:
[...] o traço diacrítico entre os institutos citados não é tão preciso. Tais
direitos, a toda evidência, comungam do mesmo conteúdo, vale dizer, a
proteção do ser humano em todas as suas dimensões. Como, então,
diferenciá-los?
Uma forte tendência doutrinária caminha no sentido de adstringir a
expressão direitos fundamentais à designação daqueles direitos positivados
em nível interno, deixando a expressão direitos humanos para a identificação
dos direitos constantes das delclarações e tratados internacionais, bem como
para identificar os direitos que, voltados à proteção da liberdade, da
igualdade e da fraternidade, não tenham granjeado incorporação pelo
sistema jurídico de um país.47 (grifos do autor)
Em seu desígnio de conferir ao desenvolvimento o status de direito humano, Jean
Carlos Dias48 reconhece que nenhum dispositivo constitucional o afirma como um direito
fundamental. Mesmo assim, considerando que a Constituição Federal de 1988 positivou
alguns efeitos decorrentes do desenvolvimento, o autor conclui ser ele direito consagrado no
ordenamento constitucional.
Gilberto Bercovici49 defende que o Artigo 3º da Constituição Federal fundamenta um
direito subjetivo à realização de políticas públicas para a concretização daqueles princípios
fundamentais, uma vez que sua realização é obrigatória para os órgãos e agentes estatais. Para
o autor, “formam esses princípios o quadro das cláusulas implicitamente intangíveis do
ordenamento constitucional, providas da mesma densidade e da mesma rigidez da matéria
declinada no parágrafo 4º do art. 60 da CF.”50 É possível afirmar, assim, que o
desenvolvimento – em seu sentido econômico e social – é direito fundamental.
46
DIAS, Jean Carlos. O direito humano ao desenvolvimento e o princípio tributário da capacidade contributiva.
In SCAFF, Fernando F. (org.) Constitucionalismo, Tributação e Direitos Humanos. Rio de Janeiro: Renovar,
2007, p. 173
47
NUNES JUNIOR, Vidal Serrano. A Cidadania Social na Constituição de 1988 – Estratégias de Positivação e
Exigibilidade Judicial dos Direitos Sociais. São Paulo: Verbatim, 2009, p. 23
48
DIAS, Jean Carlos, op. cit., p. 173
49
BERCOVICI, Gilberto. Constituição Econômica e Desenvolvimento: uma leitura a partir da Constituição de
1988. São Paulo: Malheiros, 2005, p. 108-110
50
Op. cit., p. 113
40
A favor deste entendimento, ainda, o comando expresso no parágrafo 2º do Artigo 5º
da Constituição Federal, segundo o qual os direitos e garantias fundamentais podem ser
encontrados em todo o texto constitucional, e não apenas entre aqueles direitos e garantias
contidos no Título II da Constituição, pois que decorrentes dos princípios por ela adotados e
dos tratados internacionais em que o Brasil seja parte.
Este desenvolvimento, que se afirma direito fundamental, não é outro senão o
sustentável, única modalidade de desenvolvimento admitida pela ordem constitucional
brasileira. Compreende, portanto, as dimensões econômica, social e ambiental, as quais
englobam direitos que se entende fundamentais. A este respeito ensina Paulo Bonavides:
Os direitos de segunda geração [...] dominam o século XX do mesmo modo
como os direitos da primeira geração dominaram o século passado [XIX].
São os direitos sociais, culturais e econômicos bem como os direitos
coletivos ou de coletividades, introduzidos no constitucionalismo das
distintas formas de Estado social, depois que germinaram por obra da
ideologia e da reflexão anti-liberal do século XX. Nasceram abraçados ao
princípio da igualdade, do qual não se podem separar, pois fazê-lo
equivaleria a desmembrá-los da razão de ser que os ampara e estimula.51
No mesmo sentido, Vidal Serrano Nunes Junior52 esclarece que os direitos sociais
podem ser considerados fundamentais tanto sob o prisma formal quanto sob o prisma
material. São formalmente fundamentais por estarem retratados no Título II da Constituição
Federal, que, ao dispor sobre os Direitos e Garantias Fundamentais abrange cinco capítulos,
entre eles o capítulo II, intitulado Dos Direitos Sociais. Sob o prisma material, devem os
direitos sociais serem considerados fundamentais porquanto seu conteúdo consubstancia
valores que, para o autor, são caudatários da dignidade humana, quer seja, a liberdade, a
democracia política e a democracia econômica e social.
Já a dimensão ambiental da sustentabilidade, como já explicitado anteriormente,
caracteriza-se como direito fundamental de terceira dimensão. Este o entendimento de J. J.
Canotilho e José Rubens Morato Leite, que, tratando dos benefícios da constitucionalização
do Direito Ambiental, afirmam: “pela via da norma constitucional, o meio ambiente é alçado
ao ponto máximo do ordenamento, privilégio que outros valores sociais relevantes só depois
de décadas, ou mesmo séculos, lograram conquistar.”53
51
BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. São Paulo: Malheiros, 2004, p. 564
NUNES JUNIOR, Vidal Serrano. A Cidadania Social na Constituição de 1988 – Estratégias de Positivação e
Exigibilidade Judicial dos Direitos Sociais. São Paulo: Verbatim, 2009, p. 31-35
53
CANOTILHO, José Joaquim Gomes e LEITE, José Rubens Morato. Direito Constitucional Ambiental
Brasileiro. 1. ed., 2. tir. São Paulo: Saraiva, 2007
52
41
Conclui-se que o desenvolvimento sustentável figura, na Constituição Federal de
1988, como direito fundamental e como princípio informador da atividade econômica.
Cumpre ao Estado, à sociedade e aos agentes econômicos, buscar alternativas aos modelos de
exploração da atividade econômica empregados, de modo a conciliar preservação ambiental e
desenvolvimento econômico e social.
1.2 A RECICLAGEM DE RESÍDUOS SÓLIDOS E O DESENVOLVIMENTO
SUSTENTÁVEL
Diante dos relevantes problemas sociais e ambientais vivenciados nos diversos países
do mundo, a comunidade internacional aposta no desenvolvimento sustentável como a
solução economicamente viável para o planeta.
Neste contexto, ganham relevância certas atividades econômicas que, por sua natureza
e características, são potencialmente realizadoras daqueles valores consagrados pela
Constituição Federal como diretrizes da ordem econômica. Uma dessas atividades é a
reciclagem, cuja relevância ambiental, social e econômica se passa a demonstrar.
Um dos grandes problemas da atualidade é o lixo, que pode ser conceituado como os
restos ou resíduos das atividades humanas, considerados inservíveis ou indesejáveis por
aqueles que o produziram. Até pouco tempo, e em alguns casos ainda hoje, o lixo era visto
como um problema individual, o qual era resolvido pelas pessoas com o simples ato de se
livrar dos resíduos produzidos, colocando-os para fora de suas portas (e esperando que o
Estado deles se ocupasse), ou jogando-os em terrenos baldios, nas ruas, rios e oceanos.
A destinação normalmente dada aos resíduos da atividade humana e econômica tem se
mostrado devastadora do ponto de vista ambiental, além de gerar riscos importantes para a
saúde das pessoas. Grande quantidade de lixo é hoje despejada nos chamados lixões: grandes
terrenos ou áreas alagadas a céu aberto, responsáveis pela contaminação das águas, do solo e
do ar, sem contar o lixo diretamente atirado na natureza.
Com o surgimento de problemas ligados ao meio ambiente e aumento da consciência
ambiental, no entanto, o lixo é apontado como uma questão que interessa a toda a coletividade
e também ao Estado.
Significativa parte dos resíduos produzidos não é realmente inservível ou imprestável
e pode ser economicamente aproveitada. A coleta seletiva do lixo, com a separação do
42
material orgânico do inorgânico, possibilita seu aproveitamento por meio da compostagem e
da reciclagem de materiais, sendo esta última de interesse para o presente estudo.
O termo reciclar significa transformar objetos materiais usados em novos produtos
para o consumo. Em outras palavras, por meio da reciclagem o que antes era lixo – portanto
inservível – passa a ser reaproveitado como matéria prima para a fabricação de novos
produtos.
A partir do conceito de reciclagem, o lixo passa a ter interesse econômico, o que leva
os agentes econômicos a dele se ocupar. Surge então uma nova cadeia produtiva, que produz a
partir da reciclagem de resíduos, destacando-se a reciclagem de papel, de metais ferrosos e
não ferrosos e de plástico.
Representa, assim, a reciclagem de resíduos, uma valiosa oportunidade de aliar-se
desenvolvimento econômico a proteção ambiental, representada principalmente pela retirada,
da natureza, de milhares de toneladas de rejeitos produzidos pela atividade humana. Além
disso, pode o lixo ser de grande valia no que se refere à questão energética, quer seja mediante
a geração de energia a partir dos próprios resíduos, quer seja em razão da economia de energia
proporcionada pela utilização de reciclados em substituição à matéria-prima extraída da
natureza.
A reutilização de materiais, seja por meio do reaproveitamento ou da reciclagem, é
mais antiga do que comumente se imagina e pode ser relacionada à necessidade de não
desperdiçar recursos diante da escassez dos mesmos. Assim, em tempos de guerra ou grandes
crises é possível constatar um maior esforço das sociedades no sentido de reutilizar ou reciclar
materiais.
Também a reciclagem resultante de processo de industrialização de sucatas já data de
mais de um século. O papel, por exemplo, já era reciclado no início do século XX, quando
houve o incremento da indústria gráfica. Àquela época os papéis usados passavam por
processos industriais sucessivos que possibilitavam a sua reutilização. No Brasil há notícia da
reciclagem do papel após a década de 1920, tendo sido este o primeiro tipo de material a ser
reciclado no país.54
No que concerne à reciclagem de metais, pode-se falar na reciclagem dos ferrosos,
como o ferro e o aço e dos metais não ferrosos, mais nobres, como o alumínio e o cobre. A
reciclagem dos primeiros remonta à própria história de utilização do metal, uma vez que o
54
GRIPPI, Sidney. Lixo: reciclagem e sua história: guia para prefeituras brasileiras. 2. ed., Rio de Janeiro:
Interciência, 2006, p. 3
43
processo é bastante simples e o produto reciclado mantém as mesmas propriedades, como
resistência e versatilidade.
Foi a grande crise energética mundial ocorrida na década de setenta, entretanto, que
alertou o mundo para a necessidade de economia de energia, mostrando a importância do
aproveitamento de fontes energéticas renováveis e da reciclagem de resíduos de
processamento e sucatas.55
No Brasil, que desenvolveu métodos próprios para incrementar a reciclagem, a
atividade está diretamente ligada aos benefícios econômicos advindos da utilização de
resíduos como matéria prima industrial, uma vez que a consciência ambiental ainda engatinha
no país. Assim, é possível constatar que os índices de reciclagem estão relacionados à
viabilidade econômica do aproveitamento deste ou daquele material.
Segundo dados do IBGE, em 2006 os materiais mais reciclados no país foram as latas
de alumínio. Em razão do alto valor de mercado deste tipo de sucata, que se associa aos altos
custos de energia envolvidos com o processo de produção de alumínio a partir de matériaprima virgem, foram recicladas naquele ano 94,4% das latas de alumínio circulantes no país.
Este índice é praticamente o dobro dos cinqüenta por cento registrados no ano de 199356 e o
maior entre todos os países do mundo.
O índice da reciclagem de papel e de plástico – principalmente embalagens do tipo
57
PET – ficou em torno de quarenta e cinco e cinqüenta por cento, assim como do vidro e de
latas de aço.58 Embora crescentes, estes números revelam a necessidade de maior viabilização
econômica da reciclagem desses materiais, assim como de tantos outros como a borracha, as
embalagens longa vida, cuja reciclagem é ainda recente, e os resíduos da construção civil.
Ao contrário do que ocorre em países desenvolvidos, onde a reciclagem assenta-se
fortemente na coleta seletiva promovida geralmente pelo poder público, que se responsabiliza
pela destinação final dos resíduos, no Brasil a cadeia produtiva da reciclagem tem
características peculiares. O comércio de sucatas, aqui, apresenta um perfil semelhante para os
55
MANO, Eloisa Biasotto, PACHECO, Élen B. A. V. e BONELLI, Cláudia M. C. Meio ambiente, poluição e
reciclagem. São Paulo: Edgard Blucher, 2005, p. 101
56
BRASIL,
Instituto
Brasileiro
de
Geografia
e
Estatística.
Disponível
em
http://www.ibge.gov.br/home/presidencia/noticias/noticia_visualiza.php?id_noticia=1156&id_pagina=1 Acesso
em 13 mai 2010.
57
Polietileno terftalato de etileno – é um tipo de termoplástico que se funde por aquecimento e solidifica por
resfriamento, reversivelmente. Utilizado comumente em embalagens de água e refrigerante, tem ótimo potencial
para a reciclagem.
58
BRASIL, Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Disponível em
http://www.ibge.gov.br/home/presidencia/noticias/noticia_visualiza.php?id_noticia=1156&id_pagina=1 Acesso
em 13 mai 2010.
44
diferentes tipos de materiais e baseia-se na realidade de que, para o sucateiro, a reciclagem
representa um negócio importante.
Há basicamente quatro níveis de atividade envolvidos no negócio da reciclagem. No
primeiro nível encontram-se os catadores de sucata, que coletam os materiais recicláveis nas
ruas, condomínios, escritórios, associações de bairro, escolas e, em alguns casos, nos lixões
das grandes cidades. Neste patamar encontram-se geralmente pessoas humildes, que têm na
sucata o próprio sustento.59
O segundo nível é representado por pequenos sucateiros ou ferros-velhos, que já
possuem alguma organização empresarial. São normalmente micro e pequenas empresas que,
embora nem sempre formalmente constituídas, detêm uma área coberta onde é feita a triagem
do material adquirido dos pequenos sucateiros ou coletado pelas próprias empresas.
No terceiro nível encontram-se os grandes sucateiros, aparistas ou ferros-velhos
maiores, detentores de estrutura suficiente para depositar grandes quantidades de material e
processar sua triagem, limpeza, prensagem e enfardamento. Dotados de maior organização
empresarial, são geralmente os grandes depósitos que negociam com o reciclador
propriamente dito, que opera com a transformação da sucata em matéria-prima. Este (o
reciclador) ocupa o quarto nível da cadeia produtiva da reciclagem.
Considerados os benefícios ambientais atrelados à reciclagem, assim como o potencial
econômico do setor, constata-se sua estreita vinculação com o desenvolvimento sustentável.
Se bem direcionada, a atividade pode contribuir para a realização dos princípios da ordem
econômica constitucional. Neste ponto, necessário destacar-se o papel do Estado interventor
sobre a economia e do próprio Direito, como será visto adiante.
1. A ORDEM ECONÔMICA CONSTITUCIONAL E A RECICLAGEM
A economia sempre esteve presente na vida dos povos, afetando as sociedades em
diferentes estágios de sua evolução. Todavia, por muito tempo a ciência econômica caminhou
paralelamente à ciência jurídica, sem que seus caminhos jamais se cruzassem.
As questões econômicas, entretanto, estão intimamente ligadas ao Direito, uma vez
que cabe a este regular condutas e fatos, entre estes os fatos econômicos. Na medida em que
59
GRIPPI, Sidney. Lixo: reciclagem e sua história: guia para as prefeituras brasileiras. 2. ed., Rio de Janeiro:
Interciência, 2006, p. 55.
45
um fato torna-se relevante, ou seja, adquire valor, surge a necessidade de que seja
contemplado pelo Direito, o que ocorreu em relação a situações ligadas à economia que
envolvem as relações de trabalho, o combate à pobreza e à fome, a geração de riquezas, a
compra e venda de bens e mercadorias, as transferências de recursos, os tributos.
Tão essenciais são as questões econômicas para o Direito que ocupam, nas
Constituições modernas, espaço de destaque, o que ocorre também na Constituição do Brasil,
que reserva título próprio para tratar da ordem econômica e financeira.
Para falar sobre a ordem econômica constitucional brasileira, é necessário,
primeiramente, firmar-se os sentidos em que a expressão pode ser empregada e a significação
que assumirá neste estudo. Afinal, se direito é linguagem, e de fato o é, insta cuidar que a
linguagem se faça acurada e compreensível.
O termo “ordem econômica” pode ser utilizado em três diferentes acepções: i) a ordem
das coisas na economia, assim entendidos os fatos econômicos ocorridos na realidade; ii) um
conjunto de regras – jurídicas, morais, religiosas, sociológicas, etc. – que regem o
comportamento dos sujeitos econômicos e as relações entre estes e os fatos econômicos; e,
finalmente, iii) a ordem jurídica da economia.
Este estudo se ocupará da ordem econômica na última designação acima apontada: a
ordem jurídica econômica, em especial, a ordem econômica posta na Constituição brasileira.
Salienta-se, no entanto, que nem sempre a expressão “ordem econômica” aparece na
Constituição Federal de 1988 com a conotação jurídica. Esta advertência é feita por Eros
Grau, que chama a atenção para o emprego da expressão já no Artigo 170 da Constituição de
1988, que inaugura o título denominado “Da Ordem Econômica e Financeira”. Segundo o
autor:
[...] é natural que o leitor da Constituição nutra a expectativa de, ao tomar
conhecimento do seu Título VII, nele encontrar, desde logo, no preceito que
o encabeça, enunciado no qual compareça a expressão para conotar – ela, a
expressão – porção da ordem jurídica, isto é, do mundo do dever ser.
A leitura do art. 170, que introduz aquele Título VII, o deixará, entretanto –
se tiver ele o cuidado de refletir a propósito do que lê – , no mínimo
perplexo. E isso porque neste art. 170 a expressão é usada não para conotar o
sentido que supunha nele divisar (isto é, sentido normativo), mas sim para
indicar o modo de ser da economia brasileira, a articulação do econômico,
como fato, entre nós (isto é, ‘ordem econômica” como conjunto das relações
econômicas).60
60
GRAU, Eros Roberto. A ordem econômica na Constituição de 1988: Interpretação e crítica. 10. ed., rev. e
atual., São Paulo: Malheiros, 2005, p. 67-68.
46
Tomada a expressão como relativa ao mundo do dever ser, pode-se entender por
ordem econômica a regulação jurídica da economia, ou o conjunto de normas jurídicas que
regulam as condutas e fatos econômicos da sociedade.
Como visto, no Brasil a ordem econômica é tratada em âmbito constitucional. Dela se
ocupa o Título VII da Constituição, ao lado da ordem financeira. A ordem econômica,
entretanto, não se exaure nas normas contidas naquele capítulo; ao contrário, espraia-se por
todo o texto constitucional, eis que relacionada intimamente a princípios outros que também
possuem repercussão econômica e, consequentemente, social.
Neste contexto, e dada a relevância do tema na ordem constitucional brasileira, é
possível afirmar a existência de uma constituição econômica, como já dito em momento
anterior deste estudo, em alusão à preocupação da Constituição com a normatização e
instituição de princípios relacionados ao desenvolvimento econômico e social.
Adota-se, neste estudo, a concepção da constituição econômica dirigente. Assim
sendo, entende-se que cabe à Constituição brasileira muito mais do que simplesmente
exteriorizar os elementos essenciais do Estado, regular a divisão e exercício do poder e
garantir as liberdades individuais.61
A Constituição dirigente traça metas e positiva a imposição, aos governos, do dever de
implementar políticas públicas voltadas a certos objetivos econômicos e sociais por ela
definidos. Possui, por esta razão, um grande número de normas diretivas de conteúdo aberto
cuja concretização, por vezes difícil, gera grande polêmica no meio jurídico.
Existe
hoje
uma
tendência
constitucionalista
forte,
conhecida
como
neoconstitucionalismo, que se assenta na efetividade da Constituição, conseguida por meio de
uma jurisdição constitucional vigorosa que, por vezes, independe da positivação
infraconstitucional dos direitos elencados na Constituição.
Baseada sobretudo na aplicabilidade imediata dos direitos fundamentais, a qual é
expressa no próprio texto constitucional, a doutrina neoconstitucionalista toma a Constituição
como norma. Considerando a existência da vasta gama de direitos fundamentais expressos ou
implícitos na Constituição, assevera esta postura constitucionalista que as normas
constitucionais podem servir de referência imediata para a solução das questões levadas ao
Poder Judiciário.
Discorrendo sobre o assunto, Gilmar Ferreira Mendes, Inocêncio Coelho e Paulo
61
TAVARES, André Ramos. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 56.
47
Branco62 afirmam não ser possível reconhecer-se aplicabilidade imediata a todas as normas
constitucionais que dispõem sobre os direitos fundamentais. Mesmo assim, valendo-se das
lições de Jorge Miranda63, os autores ressaltam a força jurídica das normas programáticas,
uma vez que proíbem a edição de normas infraconstitucionais que com elas não se
compatibilizem e invalidam (por não-recepção) as normas pré-existentes que não lhes sejam
conformes. Apontam ainda a relevância das normas constitucionais programáticas no que
tange a dirigir a atuação do legislador infraconstitucional, fixando-lhe critérios e, finalmente,
uma eficácia sistemática integradora dos demais elementos da Constituição.
Independentemente da postura jusfilosófica que se adote, reconhece-se a magnitude do
desafio lançado pelo legislador constituinte brasileiro, que propôs, na Constituição de 1988,
uma ordem econômica inovadora em relação às existentes em Constituições anteriores. Busca
conciliar a livre iniciativa e a valorização do trabalho humano. Assume a adoção do sistema
capitalista de economia ao mesmo tempo em que prestigia certos valores que sempre
apareceram ligados ao Estado Social. Reconhece o papel do Estado na condução e regulação
dos assuntos econômicos, mas diminui o intervencionismo estatal, atribuindo também à
sociedade e aos agentes econômicos a responsabilidade pela realização dos valores que
prescreve.
O Artigo 170 da Constituição brasileira delineia o perfil pretendido pelo legislador
constituinte para a ordem econômica brasileira. No caput do referido dispositivo
constitucional são encontrados os fundamentos, a base sobre a qual se erigirá a atividade
econômica. São eles: a livre iniciativa e a valorização do trabalho humano.
Estabelece ainda o caput do Artigo 170 da Constituição brasileira que a ordem
econômica tem como finalidade, ou objetivo, assegurar a todos existência digna, conforme os
ditames da justiça social.
A seguir são enumerados, nos incisos do Artigo 170, os princípios que nortearão a
atividade econômica, erigida sobre os fundamentos apontados na parte inicial: a soberania
nacional, a propriedade privada; a função social da propriedade; a livre concorrência; a defesa
do consumidor; a defesa do meio ambiente; a redução das desigualdades regionais e sociais; a
busca do pleno emprego; o tratamento favorecido para empresas de pequeno porte.
Antes de abordar os princípios informadores da ordem constitucional econômica que
mais de perto se relacionam à reciclagem de resíduos sólidos, faz-se necessário compreender
62
MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Hermenêutica
Constitucional e Direitos Fundamentais. Brasília: Brasília Jurídica, 2000, p. 42
63
MIRANDA, Jorge, apud MENDES, Gilmar Ferreira; Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet
Hermenêutica Constitucional e Direitos Fundamentais. Brasília: Brasília Jurídica, 2000, p. 43
48
o significado dos termos princípio e fundamento no contexto constitucional, assim como
estabelecer o papel dos princípios constitucionais econômicos no sistema jurídico pátrio.
Para Luís Roberto Barroso, os fundamentos da ordem econômica são verdadeiros
princípios, que “correspondem a decisões políticas fundamentais do constituinte originário e,
por essa razão, subordinam toda a ação no âmbito do Estado, bem como a interpretação das
normas constitucionais e infraconstitucionais.”64 Neste sentido, é possível entender os
fundamentos da ordem econômica como princípios que servem de alicerce aos demais
princípios e regras que compõem esta mesma ordem.
Há que se considerar, ainda, que quando o legislador constituinte dispõe sobre as
finalidades da ordem econômica, está a estabelecer verdadeiros nortes para a atividade
econômica, o que permite concluir, conforme lição de André Ramos Tavares, que “podem [os
fins da ordem econômica] ser considerados princípios na medida em que apresenta [sic] a
mesma estrutura normativa própria dos princípios (no caso, programáticos).”65
Em se tratando de princípio jurídico, não há consenso doutrinário quanto à sua
conceituação, sua abrangência ou sua normatividade. Para alguns doutrinadores, princípio é
norma; para outros, é valor. Em que pesem as divergências, é possível extrair algumas
premissas consensuais em relação aos princípios: possuem relevância no ordenamento
jurídico; são dotados de alto grau de abstração e generalidade; e, ainda, são verdadeiros
pilares de sustentação do ordenamento jurídico.
Para grande parte dos doutrinadores brasileiros, o estudo dos princípios pressupõe a
compreensão da noção de sistema e, consequentemente, de hierarquia entre as normas
jurídicas: as normas de nível hierárquico superior dando fundamento de validade às inferiores
que, por sua vez, devem ser compatíveis com aquelas. No ápice da pirâmide encontra-se a
Constituição, com as normas que ela veicula.
Roque Carrazza adverte que “as normas constitucionais não possuem todas a mesma
relevância, já que algumas veiculam simples regras, ao passo que outras, verdadeiros
princípios”.66 O autor, para quem o princípio jurídico será necessariamente encontrado na
Constituição, o conceitua como:
64
BARROSO, Luís Roberto. A Ordem Econômica Constitucional e os Limites à Atuação Estatal no Controle de
Preços. Revista Diálogo Jurídico. Salvador: CAJ – Centro de Atualização Jurídica, n. 14, jun/ago, 2002.
Disponível em <http://www.direitopublico.com.br> Acesso em 15 set 2009.
65
TAVARES, André Ramos. Direito Constitucional Econômico. 2. ed. São Paulo: Método, 2006, p. 126.
66
CARRAZZA, Roque Antonio. Curso de Direito Constitucional Tributário. 21. ed., rev., ampl. e atual., São
Paulo: Malheiros, 2005, p. 36.
49
[...] um enunciado lógico, implícito ou explícito, que, por sua grande
generalidade, ocupa posição de preeminência nos vastos quadrantes do
Direito e, por isso mesmo, vincula, de modo inexorável, o entendimento e a
aplicação das normas jurídicas que com ele se conectam.67
A concepção acima apontada não trata dos princípios como sendo, necessariamente, o
mesmo que normas jurídicas, questão esta que divide os doutrinadores, de acordo com a
postura jusfilosófica de cada um. Abordando esta temática, Hugo de Brito Machado afirma
que, embora todos concordem que os princípios são fundamentos, para os jusnaturalistas eles
estariam no campo do Direito Natural, pois que seriam valores a fundamentar a criação do
Direito Positivo. Para os positivistas, o princípio jurídico nada mais seria do que uma norma
jurídica, dotada, porém, de maior importância no sistema jurídico, por sua maior
abrangência.68
Para Estevão Horvath69 princípios jurídicos são o mesmo que normas. As normas, no
entanto, podem ser divididas em regras e princípios, sendo a diferença entre estas: a) o grau
de abstração; b) o grau de determinabilidade na aplicação do caso concreto (os princípios na
condição de normas mais vagas e indeterminadas); c) o caráter de fundamentalidade no
sistema das fontes do direito; d) a “proximidade” da idéia de direito (os princípios são
radicados na idéia de “justiça” e de “direito”); e e) a natureza normogenética (os princípios
vistos como fundamentos das regras).
Paulo de Barros Carvalho70 adverte que o termo “princípio”, em Direito, pode ser
utilizado em diferentes acepções: princípio como norma e princípio como valor. Aponta, a
partir desta constatação, os quatro principais significados que os princípios assumem no
sistema de direito positivo brasileiro: a) norma jurídica de posição privilegiada e portadora de
valor expressivo; b) norma jurídica de posição privilegiada que estipula limites objetivos; c)
valor inserto em regra jurídica de posição privilegiada, mas considerado independentemente
da estrutura normativa; e d) limite objetivo estipulado em regra de forte hierarquia, tomado,
porém, sem levar em conta a estrutura da norma.
De qualquer modo, afirma o autor, “os princípios aparecem como linhas diretivas que
iluminam a compreensão de setores normativos, imprimindo-lhes caráter de unidade relativa e
67
CARRAZZA, Roque Antonio. Curso de Direito Constitucional Tributário. 21. ed., rev., ampl. e atual., São
Paulo: Malheiros, 2005, p. 39.
68
MACHADO, Hugo de Brito. Os princípios jurídicos da tributação na Constituição de 1988. 3. ed., rev., ampl.
e atual. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1994, p. 13.
69
HORVATH, Estevão. O princípio do não-confisco no direito tributário. São Paulo: Dialética, 2002, p. 22-23.
70
CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de direito tributário. 18. ed., rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2007, p.
151
50
servindo de fator de agregação num dado feixe de normas.”71 Nesta esteira, seria possível
afirmar que, como valores ou normas, os princípios sempre vinculam a produção e
interpretação das regras jurídicas, servindo de parâmetro para sua exata compreensão e para a
determinação de sua validade.
Também Luís Roberto Barroso reconhece aos princípios os importantes papéis de “a)
condensar valores; b) dar unidade ao sistema; c) condicionar a atividade do intérprete”.72 O
doutrinador, no entanto, não põe em dúvida o caráter normativo dos princípios é veemente ao
afirmar que “na trajetória que os conduziu ao centro do sistema, os princípios tiveram de
conquistar o status de norma jurídica, superando a crença de que teriam uma dimensão
puramente axiológica, ética, sem eficácia jurídica ou aplicabilidade direta e imediata”.73
É, pois, como norma e como valor que serão tratados os princípios constitucionais
econômicos no presente trabalho, com vistas a determinar de que maneira regem e vinculam a
atuação dos agentes econômicos e as atividades que exercem, em especial a reciclagem de
resíduos sólidos.
Saliente-se, por oportuno, que quando se fala em princípios da ordem econômica não
se quer significar apenas aqueles princípios insertos no Título VII da Constituição brasileira,
pois, como adverte André Ramos Tavares:
[...] sem cair no exagero de considerar que tudo é econômico, que o único
objeto do Direito é a economia, ou de que o Direito é um produto da
economia, deve-se admitir que não apenas os princípios elencados no art.
170 são princípios constitucionais da vida econômica, mas igualmente
outros não alocados naquele espaço.74
Podem, portanto, ser considerados econômicos em sentido amplo certos princípios
fundamentais, como o princípio da erradicação da pobreza e da marginalização, inserto no
Artigo 3º, inciso III da Constituição Federal, o princípio do desenvolvimento sustentável, que
resulta da combinação do que dispõem os Artigos 3º, II; 170, VI e 225; assim como o
princípio da dignidade da pessoa humana.
71
CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de direito tributário. 18. ed., rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2007, p.
156.
72
BARROSO, Luís Roberto. Fundamentos teóricos e filosóficos do novo direito constitucional brasileiro (Pósmodernidade, teoria crítica e pós-positivismo). Revista Diálogo Jurídico, Salvador, CAJ - Centro de Atualização
Jurídica, v. I, nº. 6, setembro, 2001. Disponível em: <http://www.direitopublico.com.br>. Acesso em: 15 set
2009
73
Op. cit.
74
TAVARES, André Ramos. Direito Constitucional Econômico. 2. ed. São Paulo: Método, 2006, p. 126.
51
Assentados estes pressupostos, resta analisar de que maneira a atividade econômica da
reciclagem de resíduos sólidos se relaciona aos princípios constitucionais norteadores da
economia.
A reciclagem guarda estreita ligação a valorização do trabalho humano e com o
princípio constitucional que determina a redução das desigualdades sociais. A Constituição
brasileira alçou o trabalho a direito social, conforme se verifica das disposições contidas no
Artigo 6º da Constituição, e erigiu a valorização do trabalho humano a fundamento da ordem
econômica, a qual tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da
justiça social, observado, dentre outros princípios, o da busca do pleno emprego (Artigo 170,
caput, e VIII).
Se por um lado a Constituição Federal assegura a livre iniciativa, afirmando a
economia de mercado, por outro viés não a coloca como valor absoluto, pois que condiciona
esta livre iniciativa à observância do valor do trabalho humano. Com isto, tem-se que a
economia deve estar a serviço do ser humano e não é este que tem de ser sacrificado em nome
da competitividade, da produtividade ou de qualquer outro conceito dominante de mercado.
A valorização do trabalho encontra-se, assim, posta na Constituição como instrumento
de realização do princípio da dignidade humana, sendo certo concluir que sem o direito ao
trabalho e a valorização deste não há dignidade.
Para a concretização deste princípio fundamental, é necessário que haja trabalho para
todos, o que, para muitos, é uma condição inatingível, quer em virtude do constante
surgimento de novas tecnologias, que leva ao desemprego estrutural, quer em razão da
globalização ou das constantes crises econômicas.
Neste contexto, ganha relevo o princípio econômico da busca do pleno emprego, que,
segundo Lafayete Josué Petter, “[...] significa um movimento no sentido de propiciar trabalho
a todos quantos estejam em condições de exercer uma atividade produtiva.” 75
Para André Ramos Tavares, o princípio da busca do pleno emprego tem caráter
programático, já que “não se pode considerar o direito ao trabalho como uma obrigação
dirigida ao Estado para atender imediatamente a todos quantos solicitam empregos.”76
Nem por isto se pode afirmar que o referido princípio é desprovido de normatividade,
devendo ser entendido como diretriz constitucional que determina a adoção, pelo Estado, de
políticas públicas que favoreçam a criação de postos de trabalho e a geração de renda para o
75
PETTER, Lafayete Josué. Princípios Constitucionais da Ordem Econômica: o significado e o alcance do art.
170 da Constituição Federal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005, p. 261.
76
TAVARES, André Ramos. Direito Constitucional Econômico. 2. ed. São Paulo: Método, 2006, p. 210.
52
maior número possível de pessoas. Sobretudo, devem estas políticas públicas direcionar-se à
dignificação do trabalho, sem a qual não há como atingir os fins da ordem econômica:
existência digna e justiça social.
É fácil perceber que a atividade econômica ligada à reciclagem relaciona-se
intimamente com os princípios da busca do pleno emprego e da valorização do trabalho
humano. O setor é responsável pela geração de um grande número de postos de trabalho, tanto
na forma de emprego quanto de trabalho autônomo. Mais que isto, a reciclagem do lixo vem
incluindo no mercado de trabalho pessoas que se encontravam à margem dele.
Em relatório divulgado em setembro de 2008, a Organização Internacional do
Trabalho (OIT)77 salienta a importância da reciclagem na criação de postos de trabalho em
todo o mundo. Segundo o documento, existem hoje mais de doze milhões de trabalhadores no
setor, dados relativos aos três países pesquisados: Brasil, China e Estados Unidos. Comparado
à China, que emprega dez milhões de pessoas, o Brasil aparece ainda com um pequeno
número de postos de trabalho abertos pela reciclagem: apenas quinhentos mil.
O relatório aborda a questão da “economia verde”, denominação que designa as
atividades econômicas relacionadas à tecnologia ambiental e seu impacto no mundo do
trabalho. Afirma o estudo que a atividade ligada à preservação ambiental e ao combate às
mudanças climáticas pode levar à criação de milhões de “empregos verdes” nos próximos
anos.
Apesar de o relatório ser otimista quanto à criação de novos postos de trabalho ligados
à preservação ambiental, também alerta que muitos destes postos podem ser “sujos, perigosos
e difíceis”. Destaca, entre as áreas de maior preocupação, sobretudo nas economias em
desenvolvimento, a agricultura e a reciclagem.
Ressaltando a importância da reciclagem para a preservação ambiental, o Ministério
do Meio Ambiente reconhece os catadores de materiais recicláveis como parceiros, uma vez
que, ao atuar com a coleta, classificação e destinação dos resíduos, promovem o seu retorno à
cadeia produtiva, o que diminui a demanda por recursos naturais, aumenta a vida útil dos
aterros e reduz os gastos públicos com a limpeza urbana, além de fomentar a cadeia produtiva
das indústrias de reciclagem, que geram mais postos de trabalho.78
77
OIT - Organização Internacional do Trabalho. Green Jobs: Towards Decent Work in a Sustainable, LowCarbon Word (Empregos Verdes: Trabalho Decente em um mundo sustentável e com baixas emissões de
carbono). Set., 2008. Disponível em < http://www.oitbrasil.org.br/download/green_joobs.pdf> Acesso em 22
set. 2009.
78
BRASIL, Ministério do Meio Ambiente. Disponível em
<http://www.mma.gov.br/sitio/index.php?ido=conteudo.monta&idEstrutura=125&idConteudo=8046> Acesso
em 08 mai 2010.
53
Por esta razão, o Ministério do Meio Ambiente noticia que pretende desenvolver, em
parceria com o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), um programa de
pagamento aos catadores de recicláveis pelos serviços ambientais urbanos prestados. Destaca
ainda a alteração já promovida no Artigo 57 da Lei n. 8.666/93, por meio da Lei n. 11.445, de
5 de janeiro de 2007, que prevê a dispensa de licitação para a contratação de associações ou
cooperativas formadas exclusivamente por pessoas de baixa renda, desde que reconhecidas
pelo poder público como catadores de recicláveis.79
A preocupação é legítima se considerado que, sobretudo nos dois primeiros níveis da
cadeia produtiva da reciclagem, é possível encontrar um grande número de trabalhadores na
informalidade, assim como subempregados. Esta questão, por óbvio, interfere diretamente na
valorização do trabalho humano e, portanto, deve o Estado dela se ocupar.
Se implementado, o programa idealizado pelo Ministério do Meio Ambiente e pelo
IPEA contemplará o disposto no Artigo 174, parágrafo 2º da Constituição Federal, que
determina que o Estado, ao intervir na atividade econômica, apoiará e estimulará o
cooperativismo e outras formas de associativismo.
No mesmo sentido, a recém editada Lei nº 12.305, de 2 de agosto de 2010, que
estabelece a Política Nacional de Resíduos Sólidos, determina a integração dos catadores de
materiais recicláveis e reutilizáveis nas ações que envolvam a responsabilidade pelo ciclo de
vida dos produtos, que é compartilhada entre o Estado, agentes econômicos e a sociedade.
Dispõe ainda sobre o estímulo às cooperativas e associações de catadores de resíduos sólidos.
No que tange à reciclagem, podem ser estas duas modalidades de organização do trabalho o
modo de realização do princípio que determina a valorização do trabalho.
Destaca-se que, ao prestigiar o trabalho humano, a Constituição vai além do trabalho
realizado mediante vínculo empregatício, o que inclui, necessariamente, a possibilidade de
outras organizações do trabalho – entre elas as associações de trabalhadores autônomos e as
cooperativas. Na proteção do cooperativismo e associativismo conciliam-se os princípios da
valorização do trabalho humano e da livre iniciativa, uma vez que, no dizer de Eros Grau, “a
livre iniciativa é expressão de liberdade titulada não apenas pela empresa, mas também pelo
trabalho.”80
Retorna-se, neste ponto, à necessária relação entre busca do pleno emprego,
79
BRASIL, Ministério do Meio Ambiente. Disponível em
<http://www.mma.gov.br/sitio/index.php?ido=conteudo.monta&idEstrutura=125&idConteudo=8046> Acesso
em 08 mai 2010.
80
GRAU, Eros Roberto. A Ordem Econômica na Constituição de 1988: Interpretação e crítica. 10. ed. revista e
atualizada. São Paulo: Malheiros Editores, 2005, p. 241.
54
valorização do trabalho humano e dignidade da pessoa humana. Se, por um lado, é certo que
não há dignidade sem trabalho, eis que maior condição indigna não há que ser incapaz de
prover o próprio sustento, há também, o próprio trabalho, que ser digno, na medida em que
valorizado.
Se por um lado o trabalho ligado à reciclagem do lixo tem tirado da marginalidade
milhares de brasileiros, há, por outro lado, dentre estes, muitos que exercem suas atividades
em condições perigosas, extremamente insalubres, sujeitos a remuneração indigna.
É, pois, papel do Estado, mediante intervenção sobre o domínio econômico, corrigir as
distorções eventualmente existentes, regulando a atuação dos agentes econômicos, a fim de
garantir que o valor do trabalho humano seja observado. Mais importante, deve o Estado
fiscalizar o cumprimento das normas postas, sob pena de ser o Direito letra morta, sem
qualquer aplicabilidade prática.
Outro aspecto que relaciona a reciclagem aos valores consagrados pela Constituição
econômica brasileira diz respeito a sua relevância ambiental. Dispõe a Constituição, em seu
Artigo 225, sobre o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, que visa assegurar
a todas as pessoas, no presente e no futuro, o direito à vida com qualidade. O mesmo
dispositivo constitucional impõe não só ao Poder Público, como também à coletividade, o
dever de defender e preservar o meio ambiente para as presentes e futuras gerações.
A proteção ambiental relaciona-se ao direito à vida, razão pela qual o direito ao meio
ambiente saudável e equilibrado é considerado um direito fundamental. Neste sentido as
lições de José Joaquim Gomes Canotilho e José Rubens Morato Leite:
[...] a proteção ambiental deixa, definitivamente, de ser um interesse menor
ou acidental no ordenamento, afastando-se dos tempos em que, quando
muito, era objeto de acaloradas, mas juridicamente estéreis, discussões no
terreno não jurígeno das ciências naturais ou da literatura. Pela via da norma
constitucional, o meio ambiente é alçado ao ponto máximo do ordenamento,
privilégio que outros valores sociais relevantes só depois de décadas, ou
mesmo séculos, lograram conquistar.81
Por sua transindividualidade e indivisibilidade, o direito ao meio ambiente saudável e
equilibrado é um direito difuso. Os direitos difusos são também denominados de terceira
dimensão e surgiram, no contexto do Estado Democrático de Direito, como evolução dos
direitos fundamentais. São ditos de terceira dimensão por representarem a superação da
81
CANOTILHO, José Joaquim Gomes e LEITE, José Rubens Morato. Direito constitucional ambiental
brasileiro. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 73.
55
dicotomia entre o público e o privado, de que se ocupam os direitos fundamentais de primeira
e segunda dimensão.
Pode-se falar, assim, na existência de um bem ambiental protegido pela Constituição
brasileira. Este bem ambiental é transindividual, o que significa que todos têm o direito sobre
ele, mas também todos – Estado, sociedade e agentes econômicos – têm o dever de assegurar
sua preservação.
Como não poderia deixar de ser, dada a sistematicidade das normas constitucionais, a
questão ambiental é também tratada no Artigo 170, VI da Constituição, que coloca a defesa
do meio ambiente como princípio informador da atividade econômica. Implícito, no
mandamento, que “a exploração dos recursos ambientais necessários ao desenvolvimento do
país deve ser pautada pelas diretrizes do chamado desenvolvimento sustentável, opondo-se à
devastação ambiental inconseqüente e desmedida.”82 (grifos do autor)
Para Eros Grau, “a Constituição [...] dá vigorosa resposta às correntes que propõem a
exploração predatória dos recursos naturais”83. A consequência desta postura constitucional,
no campo econômico, relaciona-se à feição de diretriz do princípio constitucional impositivo
atinente à proteção ambiental. Isto porque o referido princípio assume a feição de “normaobjetivo – dotada de caráter constitucional conformador, justificando a reivindicação pela
realização de políticas públicas.”84
Originalmente, o inciso VI do Artigo 170 previa simplesmente que o princípio da
defesa do meio ambiente informaria a ordem econômica. Com a Emenda Constitucional nº
42, de 19 de dezembro de 2003, o referido dispositivo constitucional ganhou nova redação,
que ampliou o alcance do princípio em comento a fim de assegurar-lhe maior efetividade.
Na redação atual, é prevista a possibilidade da concessão de tratamento diferenciado
às empresas, conforme o impacto ambiental de seus produtos e serviços e de acordo com seus
processos de elaboração e prestação. Com a alteração, reafirma-se a intervenção estatal sobre
o domínio econômico, mediante a concessão de incentivos, a fim de assegurar que a atividade
econômica seja ambientalmente sustentável.
A preocupação constitucional com a defesa do meio ambiente não é só legítima, como
necessária. No último século e no presente, a sociedade passou a enfrentar questões
ambientais alarmantes, que não eram antes pensadas. Dentre os inúmeros problemas
ambientais vivenciados na atualidade, pode-se citar: a poluição do ar e das águas, atribuída
82
TAVARES, André Ramos. Direito Constitucional Econômico Brasileiro. São Paulo: Método, 2003, p. 196.
GRAU, Eros Roberto. A Ordem Econômica na Constituição de 1988: Interpretação e crítica. 10. ed. revista e
atualizada. São Paulo: Malheiros Editores, 2005, p. 275
84
Op. cit., p. 275
83
56
principalmente ao vertiginoso desenvolvimento industrial e ao contínuo aumento da
população; o efeito estufa, decorrente do desmatamento e da emissão de poluentes, sobretudo
advindos da queima excessiva de combustíveis fósseis; e o buraco na camada de ozônio,
atribuído à liberação de certos gases na atmosfera.
A ecologia, no entanto, demonstra que a vida na terra depende da riqueza e
diversidade ambiental, do relacionamento entre os seres vivos, que colaboram mutuamente
para a sobrevivência dos ecossistemas. Com a devastação causada pelo homem, o planeta tem
sido exaurido. A cada vinte minutos desaparece uma espécie de planta ou animal. Cerca de
quarenta por cento da população mundial já sofre com a falta de água. Doenças respiratórias
advindas da poluição causam, anualmente, a morte de mais de três milhões de pessoas.85
Neste contexto, torna-se imprescindível que a atividade econômica seja reorientada,
como quer a Constituição e como exige o planeta. Se, por um lado, é certo que o
desenvolvimento é meta nacional afirmada no Artigo 3º da Constituição, deve este ser
compatibilizado com a defesa do meio ambiente.
A reciclagem de materiais tem o condão de aliar preservação ambiental e
desenvolvimento econômico: é atividade economicamente viável; diminui o impacto
ambiental causado pelo grande consumo e descarte dos bens produzidos por outras empresas;
e, na medida em que gera matéria-prima a partir dos restos, evita que os recursos naturais
sejam exauridos.
O maior benefício ambiental da reciclagem relaciona-se à problemática do lixo.
Segundo Sidney Grippi:
O lixo é um problema crônico em nossa sociedade e muitas vezes seu mau
gerenciamento acaba propiciando verdadeiras mazelas ambientais dentro dos
municípios brasileiros, além de comprometer a qualidade de vida da
população. É um grande desafio hoje em dia para as prefeituras lidarem com
este problema sanitário e de saúde pública. Outro agravante é que parte dos
municípios brasileiros não operam adequadamente com aterros sanitários, e
saem em vazadouros e lixões a céu-aberto, em sua maioria.86
Sem a destinação correta, o lixo é obviamente prejudicial não só ao meio ambiente
como à saúde. Uma boa idéia do dano ao meio ambiente pode ser conseguida a partir da
observação do tempo estimado para a biodegradação de alguns materiais, que se menciona a
85
MANO, Eloisa Biasotto, PACHECO, Élen B. A. V. e BONELLI, Cláudia M. C. Meio ambiente, poluição e
reciclagem. São Paulo: Edgard Blucher, 2005, p. 48.
86
GRIPPI, Sidney. Lixo: reciclagem e sua história: guia para as prefeituras brasileiras. Rio de Janeiro:
Interciência, 2006, p. 91.
57
título de ilustração: jornal – de duas a seis semanas; embalagens de papel – de um a quatro
meses; palito de fósforo – 2 anos; chiclete – cinco anos; casca de frutas – três meses; copo
plástico – de duzentos a quatrocentos e cinqüenta anos; latinha de alumínio – de cem a
quinhentos anos; pilhas e baterias – de cem a quinhentos anos; garrafas de vidro ou plástico –
mais de quinhentos anos.87
Considerando que grande parte do que é comumente atirado ao lixo presta-se à
reciclagem, além de uma considerável porção que pode ser compostada, fica clara a redução
dos danos ao meio ambiente, diretamente proporcional à redução do volume de lixo atirado na
natureza, em lixões ou mesmo em aterros sanitários, que são escassos e problemáticos. Com
isto, diminui-se a degradação do solo, a poluição dos rios e oceanos e a morte de grande
número de animais.
Outro ganho ambiental trazido pela reciclagem é a preservação dos recursos naturais e
economia de matérias-primas virgens, além, ainda, de grande economia no consumo de
energia, quando se compara a produção de bens a partir de recicláveis com a produção dos
mesmos itens a partir de matéria-prima extraída da natureza.
A produção de alumínio a partir da reciclagem talvez seja o melhor exemplo de
economia de energia gerada pelo processo de reciclagem: enquanto seriam necessários
dezessete mil e seiscentos kilowatts/hora para a produção de uma tonelada do metal primário,
o gasto seria de apenas seiscentos kilowatts/hora para a produção da mesma quantidade do
metal secundário, gerando, portanto, uma economia da ordem de noventa e seis por cento.88
Além disso, para cada mil quilos de alumínio reciclado deixa-se de extrair cinco mil quilos do
mineral bauxita.
A produção de papel a partir de matéria-prima reciclada é também benéfica ao meio
ambiente, uma vez que o papel é obtido a partir de fibras de celulose, que, na natureza, são
obtidas principalmente a partir da madeira. Embora, no Brasil, não se possa falar em
desmatamento para a produção de papel, a indústria brasileira de papel e celulose tem
plantado infindáveis extensões de terra de eucalipto e pinus para a garantia de seu
abastecimento. A maior utilização de papel de segunda mão e aparas significaria redução da
área plantada, que poderia ser utilizada para outras finalidades. Além disso, o gasto de energia
e de água para a produção do papel reciclado é inferior àquele incorrido para a fabricação de
87
GRIPPI, Sidney. Lixo: reciclagem e sua história: guia para as prefeituras brasileiras. Rio de Janeiro:
Interciência, 2006, p. 23.
88
MANO, Eloisa Biasotto, PACHECO, Élen B. A. V. e BONELLI, Cláudia M. C. Meio ambiente, poluição e
reciclagem. São Paulo: Edgard Blucher, 2005, p. 103.
58
papel novo.89
Considerando-se a larga utilização do plástico, sobretudo na forma de embalagens, e
tendo em conta ainda o dano que grandes volumes deste material podem causar à natureza,
em razão do enorme lapso temporal para sua biodegradação, a reciclagem do plástico seja
talvez aquela que, na atualidade, maiores benefícios traz ao meio ambiente. Embora os
especialistas apontem que a solução ideal para a despoluição do meio ambiente seria a
desintegração dos produtos descartados em partículas, incorporáveis ao solo, a versão
tecnológica desta solução é bastante difícil, ou por envolver tecnologia inacessível, ou por
causar poluição do ar e danos à saúde.
Por esta razão, em relação ao plástico a reciclagem tem sido vista como a forma mais
importante e eficaz de proteção ao meio ambiente. Isto se deve aos seguintes benefícios
associados à reciclagem do plástico: redução do volume descartado na natureza, lixões e
aterros sanitários, preservação dos recursos naturais e economia de energia.90
É certo, no entanto, que a reciclagem nem sempre será benéfica ao meio ambiente. A
má-segregação dos resíduos em qualquer fase da cadeia produtiva, por exemplo, pode gerar
impacto ambiental maior que o que se teria caso os rejeitos fossem simplesmente descartados.
Ainda, em relação à etapa de industrialização, na qual o resíduo antes inservível é
transformado em matéria-prima, deve haver o devido cuidado com os restos da atividade
industrial, que também podem gerar contaminação do solo e da água.
Embora de vital importância na questão ambiental, a reciclagem não pode ser vista
como a única solução para o problema do lixo. Deve ser entendida como uma atividade
econômica consistente em um dos elementos que compõe um conjunto de soluções
ambientais. Os outros elementos deste conjunto de soluções seriam: a redução do consumo e a
reutilização de materiais.
Do ponto de vista ambiental, a questão do lixo pressupõe a redução dos resíduos, a
reutilização dos mesmos e a reciclagem de materiais. A abordagem dessas práticas deve
orientar qualquer política pública relacionada a resíduos sólidos, conforme já orienta a Lei nº
12.305/2010, que dispõe sobre a Política Nacional de Resíduos Sólidos. A viabilização de
uma política pública, entretanto, dependerá de conscientização da sociedade e pressupõe a
realização de investimento em educação ambiental e comprometimento tanto do setor público
quanto do privado.
89
GRIPPI, Sidney. Lixo: reciclagem e sua história: guia para as prefeituras brasileiras. Rio de Janeiro:
Interciência, 2006, p. 44-46
90
MANO, Eloisa Biasotto, PACHECO, Élen B. A. V. e BONELLI, Cláudia M. C. Meio ambiente, poluição e
reciclagem. São Paulo: Edgard Blucher, 2005, p. 167.
59
Tendo em conta a relevância da reciclagem enquanto atividade econômica, está ela
relacionada aos princípios constitucionais econômicos que dispõem sobre a liberdade de
iniciativa e a livre concorrência. A Constituição do Brasil consagra a livre iniciativa, ao lado
da valorização do trabalho humano, como fundamento da ordem econômica constitucional,
conforme se constata do que prescreve o caput do Artigo 170. Assegura ainda, no parágrafo
único do mesmo Artigo, o livre exercício de qualquer atividade econômica, salientando que
este independe de autorização prévia dos órgãos públicos, salvo expressa previsão legal.
Mais que princípio fundamental da ordem econômica, a livre iniciativa aparece –
novamente atrelada ao valor social do trabalho – como fundamento da República Federativa
do Brasil, conforme prescrito no Artigo 1º, IV da Constituição brasileira.
A referência constitucional à livre iniciativa, intimamente atrelada à livre
concorrência, que também é posta no Artigo 170, IV da Constituição brasileira como
princípio informador da ordem econômica, revela a opção pelo desenvolvimento num
ambiente de economia de mercado, ou seja: revela a adoção do modo de produção capitalista.
Para a Constituição econômica, o mercado é patrimônio nacional, conforme se
depreende do disposto no Artigo 219 da Constituição Federal. Esta a razão da inclusão, na
ordem econômica constitucional, de diversos mecanismos destinados a assegurar a liberdade
de iniciativa e de concorrência, que, em síntese, dizem respeito ao direito de acesso e
permanência no mercado.
A permanência de um agente econômico no mercado só é garantida se houver a livre
concorrência. Isto porque qualquer conduta ou forma de organização empresarial que possa
fazer com que uma empresa tenha que sair do mercado atenta contra a livre iniciativa e, por
isto, a necessidade da proteção assegurada pela livre concorrência.
Partindo do pressuposto de que para o capitalismo o trabalho não representa mais que
um fator de produção, alguns autores apontam uma aparente contradição entre os dois
princípios nucleares da ordem econômica constitucional.
Na tentativa de compatibilizar a liberdade de iniciativa com a valorização do trabalho
humano, José Afonso da Silva91 defende uma hierarquização entre estes princípios, atribuindo
prioridade aos valores sociais do trabalho humano. Já André Ramos Tavares92 afirma que não
se pode concluir pela existência de hierarquia entre eles.
91
SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 16. ed. rev. e atual. São Paulo: Malheiros,
1999, p. 766.
92
TAVARES, André Ramos. Direito Constitucional Econômico. 2. ed. São Paulo: Método, 2006, p. 126.
60
Melhor razão parece assistir, neste ponto, a Eros Grau93, para quem o fato de constar a
livre iniciativa como fundamento da República Federativa do Brasil, ao lado da soberania, da
cidadania, do valor social do trabalho e do pluralismo político, significa que a atividade
econômica deve ser orientada em função da existência digna da pessoa humana.
Para o autor, liberdade de iniciativa e valorização do trabalho se complementam, na
medida em que a livre iniciativa não expressa simplesmente a liberdade da empresa, como
também a liberdade do trabalho, abrangendo todas as formas de produção, individuais ou
coletivas.94
Nesta linha de raciocínio, a livre iniciativa relaciona-se ao desenvolvimento
econômico e à viabilização da economia, que não cabe apenas às empresas, tanto as grandes
corporações quanto as pequenas empresas, mas também às cooperativas, empreendedores
individuais e até mesmo – nos casos expressos na Constituição – ao setor público. Como
princípio norteador da ordem econômica, a livre iniciativa vem a significar que o Estado não
deverá opor empecilhos ao desenvolvimento por meio de exigências desproporcionais,
burocratização excessiva ou tributação confiscatória.95
O princípio em comento está relacionado à reciclagem, que tem atraído os agentes
econômicos com a promessa de um novo mercado. O país assiste ao nascimento de uma nova
cadeia produtiva, a partir do que antes era considerado lixo. Pessoas sem qualificação
profissional, que se encontravam fora do mercado de trabalho, tornam-se empreendedores
individuais: catadores de material reciclável; estes, em alguns municípios brasileiros, já
começam a se organizar em cooperativas que coletam e revendem o material reciclável;
empresas de pequeno e médio porte procedem à triagem e acondicionamento (prensagem) do
material e indústrias transformam o que antes era resíduo sólido inservível em matéria-prima
a ser utilizada como insumo em outras indústrias.
Exatamente nisto consiste a liberdade de iniciativa econômica: em permitir que os
particulares organizem a atividade produtiva, possibilitando, em conseqüência, o processo de
desenvolvimento da economia. Neste contexto, a livre iniciativa pressupõe a liberdade de
acesso ao mercado e a possibilidade de permanência no referido mercado.
É de relevo a inclusão, na Constituição econômica brasileira, do Artigo 170, IX, que
prevê a concessão de tratamento diferenciado e preferencial a microempresas e empresas de
93
GRAU, Eros Roberto. A Ordem Econômica na Constituição de 1988: Interpretação e crítica. 6. ed., rev. e
atual., São Paulo: Malheiros, 2005, p. 231.
94
Op. cit., p. 233.
95
PETTER, Lafayete Josué. Princípios Constitucionais da Ordem Econômica: o significado e o alcance do art.
170 da Constituição Federal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005, p. 166.
61
pequeno porte. Trata-se de um princípio informador da atividade econômica, cujo conteúdo é
reforçado pela norma constante do Artigo 179 da Constituição Federal, o qual estabelece a
obrigatoriedade de conceder-se tratamento jurídico diferenciado, consistente em uma
simplificação,
redução
ou
eliminação
das
obrigações
administrativas,
tributárias,
previdenciárias e creditícias das micro e pequenas empresas.
Uma análise superficial dos dispositivos mencionados poderia levar à errônea
conclusão de que o tratamento mais benéfico, previsto na Constituição para as pequenas
empresas, seria uma mitigação do princípio da livre concorrência, que afetaria, por
conseqüência, a liberdade de iniciativa. O favorecimento às micro e pequenas empresas, no
entanto, nada mais representa do que a reafirmação do sobreprincípio constitucional da
igualdade, neste caso aplicado a empresas que, por diferentes, não podem receber da ordem
jurídica tratamento idêntico.
A concessão de tratamento privilegiado a empresas menores faz-se necessária para que
se cumpram os princípios da livre concorrência e da liberdade de iniciativa. Neste sentido as
lições de André Ramos Tavares:
o tratamento favorecido para esse conjunto de empresas revela [...] a
necessidade de se proteger os organismos que possuem menores condições
de competitividade em relação às grandes empresas e conglomerados, para
que dessa forma efetivamente ocorra a liberdade de concorrência (e de
iniciativa). É uma medida tendente a assegurar a concorrência em condições
justas entre micro e pequenos empresários, de uma parte, e de outra, os
grandes empresários.96
A diretriz constitucional em comento foi positivada, infraconstitucionalmente, pela Lei
Complementar nº 123, de 14 de dezembro de 2006. A referida lei, que institui o Estatuto
Nacional da Microempresa e da Empresa de Pequeno Porte, introduziu um regime de
tributação simplificado para as micro e pequenas empresas, assim como cria a figura do
microeempreendedor individual, que recebe um tratamento ainda mais especial.
Embora a abordagem mais detalhada do regime de tributação instituído pela Lei
Complementar nº 123/2006 fuja do campo de investigação pretendido neste trabalho, apenas a
título de conclusão da idéia iniciada menciona-se que a referida Lei Complementar:
estabelece um sistema de pagamento unificado de tributos federais, estaduais e municipais
que, em princípio, é mais benéfico que a tributação comum; institui um regime de tributação
progressiva, com alíquotas crescentes em razão da receita bruta aferida pelas empresas; e
96
TAVARES, André Ramos. Direito Constitucional Econômico. 2. ed. São Paulo: Método, 2006, p. 222.
62
prevê a simplificação do cumprimento dos deveres instrumentais por parte das micro e
pequenas empresas que optarem pelo regime simplificado, que é de adoção facultativa.
No que tange à cadeia produtiva da reciclagem, entende-se que a proteção aos
pequenos é primordial para que estes permaneçam no mercado, o que se relaciona à própria
sobrevivência da atividade como um todo. Catadores de produtos recicláveis e pequenos
depósitos de sucata dificilmente teriam condições de concorrer com empresas maiores, com
melhor capacidade de organização. A legislação brasileira – em especial a tributária e a
trabalhista – impõem aos agentes econômicos uma burocracia para a qual necessitam contar
com profissionais especializados, algo intangível para as micro e pequenas empresas.
Deste modo, é certo dizer que o tratamento preferencial concedido aos
microempreendedores, às microempresas e às empresas de pequeno porte não só decorre do
princípio da livre iniciativa como é a garantia de realização deste princípio. Na Constituição
brasileira, a liberdade de iniciativa vai além da permissão dada aos particulares para
desenvolver uma atividade econômica, para abranger a possibilidade e o dever que tem o
Estado de intervir na ordem econômica para assegurar este viés econômico do direito à
liberdade.
Cumpre ao Estado, como agente regulador, intervir na ordem econômica para impedir
que o poder econômico, concentrado nas mãos de poucos, inviabilize o direito de os pequenos
permanecerem no mercado e para evitar a exploração do trabalho humano pelo capital. No
caso da reciclagem, para normatizar, fiscalizar e incentivar uma atividade econômica que, por
sua relevância social e ambiental, não pode visar apenas à eficiência econômica.
A intervenção do Estado sobre o domínio econômico é legítima para assegurar que a
atividade econômica se desenvolva em conformidade com o regime jurídico econômico
constitucional. Deste modo, é pertinente a intervenção estatal que vise garantir que as
empresas cumpram sua função social, uma vez que, para a Constituição brasileira, a
propriedade dos meios de produção e a livre iniciativa não se justificam pela mera realização
de interesses individuais, mas quando voltados à realização dos interesses da coletividade.
Tendo adotado o sistema capitalista de economia, a Constituição brasileira consagra o
princípio do respeito à propriedade privada. Compatibiliza-se a propriedade privada com o
ideário constitucional por servir o direito de propriedade “à segurança da existência material
do indivíduo, que por sua vez é pressuposto da liberdade humana”.97
97
PETTER, Lafayete Josué. Princípios Constitucionais da Ordem Econômica. São Paulo: Editora Revista dos
Tribunais, 2005, p. 204.
63
A regulação do direito de propriedade tem, no entanto, na Constituição Federal de
1988, feições bem diferentes daquela que vigorava no Brasil desde o início do século XX. É
que a propriedade era regulada, em nosso país, pelo Código Civil de 1916, elaborado sob forte
influência de conceitos liberais. Até 1988, a propriedade tinha no ordenamento jurídico
brasileiro um caráter individualista e quase absoluto, consistente no direito de livremente usar,
gozar e dispor de um bem. Girava em torno de um eixo só: o indivíduo.
Com a promulgação da Constituição Federal de 1988, o direito de propriedade afastase de seu aspecto absoluto para ganhar uma conotação também social. A Constituição
brasileira, que admite a propriedade privada, determina que esta deverá cumprir uma função
social, como se depreende do disposto nos Artigos 5º, XXII e XXIII e 170, II e III da
Constituição Federal.
Passa, pois, o direito de propriedade, a sustentar-se não mais apenas na liberdade
individual, mas também no valor e utilidade que a propriedade tem para a coletividade.
Comentando a evolução do direito de propriedade, André Ramos Tavares98 ensina que, em
tempos mais remotos, a propriedade já teve uma concepção coletiva. Adquiriu então, sob
influência do Estado Liberal clássico, a feição anteriormente explicitada, de direito individual
absoluto, até alcançar a concepção atual, em que o direito de propriedade é relativizado, o que
ocorre paralelamente ao deslocamento do instituto do Direito privado para o Direito público.
Esta relativização do conceito de propriedade, que compreende o vínculo do indivíduo
com os bens materiais, é assim entendida por Gilberto Bercovici:
A propriedade é a relação histórica que um ordenamento dá ao problema do
vínculo jurídico mais intenso entre uma pessoa e um bem. A relativização da
propriedade – isto é, a retirada do indivíduo enquanto eixo da noção de
propriedade – a exclui de sua ‘sacralidade’ e a coloca no mundo profano das
coisas, sujeita aos fatos naturais e econômicos. [...]
A evolução do Direito moderno, a partir de 1918, evidencia uma série de
traços comuns. O principal diz respeito à relativização dos direitos privados
pela sua função social.99
O direito de propriedade, por sua vez, compreende a propriedade dos bens de
produção, uma vez que sobre esta se funda o capitalismo. 100 Assim, do mesmo modo que a
propriedade tem uma função social a cumprir, no regime constitucional econômico brasileiro
a livre iniciativa – permissão para que o proprietário explore economicamente seus bens –
98
TAVARES, André Ramos. Direito Constitucional Econômico. 2. ed. São Paulo: Método, 2006, p. 156.
BERCOVICI, Gilberto. Constituição Econômica e Desenvolvimento: uma leitura a partir da Constituição de
1988. São Paulo: Malheiros, 2005, p. 142.
100
TAVARES, André Ramos. Op. cit., p. 156.
99
64
condiciona-se ao cumprimento, pela empresa, de sua função social. Em outras palavras, não
basta para a ordem econômica constitucional que a atividade a ser exercida pela empresa, com
vistas ao lucro, seja lícita. Necessário se faz que a exploração econômica atinja um fim social.
O Estado brasileiro tem como um de seus objetivos o desenvolvimento nacional que,
como visto, deve ser o desenvolvimento sustentável. Este desenvolvimento deve ser buscado
pelo Estado, agentes econômicos e a sociedade, em co-participação. Assim, a Constituição
atribui à empresa um papel que vai além de simplesmente promover o crescimento da
economia. Se na modernidade os valores centrais que regiam a atividade empresarial se
relacionavam ao individualismo e à propriedade privada, impõe hoje a Constituição
Econômica que aqueles valores sejam compatibilizados com o ideal social.
É certo que do mesmo modo em que na ordem jurídica atual a propriedade privada só
se justifica na medida em que cumpre sua função social, também a empresa tem uma
funcionalidade, sendo seu objetivo muito maior do que a mera obtenção de lucro: a empresa
deixa de existir apenas em função do empresário e volta-se também para o Estado e para a
sociedade.
Referindo-se à função social da empresa, Eros Grau101 afirma que a inclusão da
garantia da propriedade privada dos bens de produção entre os princípios da ordem econômica
não só afeta os referidos bens de produção a uma função social como, também, subordinam o
exercício da atividade empresarial aos ditames da justiça social. A atividade da empresa é
vista como instrumento de realização da finalidade de assegurar a todos existência digna.
Importante salientar que quando se fala em função social empresarial não se pretende
negar a racionalidade dos agentes econômicos, que é a eficiência econômica. O lucro não é
visto, pela Constituição, como algo ruim ou indesejável. Ao contrário, é permitido e
encorajado, uma vez que a Constituição adota o regime capitalista. Este, no entanto, é
temperado pela necessária observância da função social da empresa, que recebeu da
Constituição a incumbência de, ao lado do Estado e da sociedade, assegurar que a atividade
econômica se realize em consonância com o regime jurídico econômico constitucional.
Para atuar em conformidade com a ordem constitucional, deve a empresa cumprir uma
função social, que consiste em adotar práticas ambientais saudáveis, buscar o equilíbrio entre
os interesses empresariais e os da sociedade de consumo, praticar a concorrência leal e
promover o trabalho humano digno, atendendo os interesses de todos os envolvidos na cadeia
produtiva e de consumo, o que equivale a atender os interesses sociais.
101
GRAU, Eros Roberto. A Ordem Econômica na Constituição de 1988: Interpretação e crítica. 6. ed., rev. e
atual., São Paulo: Malheiros, 2005, p. 271.
65
Em tese, pela simples natureza de suas atividades, as empresas que operam no ramo da
reciclagem cumprem importante função social. À atividade econômica por elas exercida
associa-se a preservação do meio ambiente, a criação de postos de trabalho, a redução da
pobreza e a consciência ambiental.
Pelo desempenho de atividade que transcende os interesses individuais dos
empresários, as empresas ligadas à reciclagem de resíduos devem ser incentivadas pelo
Estado. Presta-se o incentivo a garantir o acesso e permanência dessas empresas no mercado,
com os conseqüentes benefícios que o exercício desta peculiar atividade empresarial traz à
coletividade. Merece atenção, no entanto, a advertência de Jussara Suzi Assis Borges Nasser
Ferreira:
Ao próspero ambiente teórico deve reunir-se a prática dos fins, superadora
dos limites ditados pela baixa eficácia, oportunizando a concretização,
repita-se, do equilíbrio entre liberdade e igualdade. A nova empresa para
além dos fins próprios e intrínsecos da atividade empresarial visa atender, de
forma coerente e consistente, os propósitos da materialização, indispensáveis
à função social.102
Assim, há que se cuidar para que a empresa de reciclagem, inobstante a relevância de
sua atividade, não seja ela mesma poluidora; que cuide da disposição do material com que
trabalha, sob pena de causar danos ambientais talvez maiores que os benefícios advindos de
sua obra. Há que se observar de que maneira esta empresa relaciona-se com seus fornecedores
(catadores de resíduos autônomos, cooperativas ou pequenas empresas), se existe lealdade em
suas relações comerciais, se o trabalho humano é devidamente valorizado.
Entre os princípios constitucionais informadores da ordem econômica que de alguma
maneira se relacionam à reciclagem de resíduos sólidos e ao desenvolvimento sustentável,
encontra-se o princípio da defesa do consumidor, contido no inciso V do Artigo 170 da
Constituição Federal. O mandamento consta também entre os direitos e deveres fundamentais
e coletivos, no Artigo 5º, XXXII, que determina a promoção da defesa do consumidor, pelo
Estado, na forma da lei.
A proteção constitucional conferida ao consumidor demonstra a preocupação da
Constituição econômica brasileira com os direitos básicos do indivíduo, em face da sua
condição de vulnerabilidade diante do poder econômico das grandes empresas. No dizer de
102
FERREIRA, Jussara Suzi Assis Borges Nasser. Funcionalização do Direito Privado e Função Social. In
FERREIRA, Jussara Suzi Assis Borges Nasser e RIBEIRO, Maria de Fátima. Direito Empresarial
Contemporâneo. São Paulo: Arte & Ciência e Marília: Unimar, 2008, p. 98.
66
André Ramos Tavares103, a proteção do consumidor revela-se crucial para a cidadania e
mesmo à dignidade da pessoa humana, dadas as características da sociedade do consumo em
massa.
Para entender a sociedade de consumo em massa, ou sociedade consumista, é
necessário ter em mente que, no modo de produção capitalista, a sobrevivência do mercado e
das empresas depende de um mercado consumidor para os produtos e serviços
disponibilizados pelos agentes econômicos. O aumento da eficiência econômica relaciona-se à
produção cada vez maior de bens e serviços, a um custo cada vez menor.
A produção em larga escala, ou em massa, pressupõe a ampliação do número de
consumidores, e do consumo em maior escala feito por cada consumidor. A fim de aumentar a
demanda consumista são criadas na sociedade, artificialmente, as mais diversas necessidades
e utilidades. Para tanto, são usadas técnicas de publicidade, que ingressa na vida e na
intimidade das pessoas, levando-as a acreditar que o consumo de bens e serviços é um fim em
si próprio, e não um meio para se atingir certos fins.
Para André Ramos Tavares104, são banalizados os valores e esvaziado o sentido das
coisas, colocando-se, em seu lugar, o consumo como valor imprescindível à vida do ser
humano, um objetivo final a ser perseguido, em função do qual se justificaria a existência
humana. Cria-se, assim, uma mentalidade de consumismo que atende plenamente aos
objetivos das empresas produtoras de mercadorias.
Tércio Sampaio Ferraz Junior aponta uma mudança das pessoas – e do próprio
mercado – na sociedade de consumo:
Quando a sociedade vira uma grande cadeia circular, em que consumimos
para aumentar a nossa capacidade de produzir bens de consumo, que
alimenta o produtor/trabalhador para produzir mais e assim sucessivamente,
não temos mais propriamente uma relação finalística. [...]
Até o pensar está aprisionado nessa dinâmica. Hoje em dia o pensamento
nos dá a impressão de ter sido capturado pela informática e pela computação
e, dessa forma, torna-se também um bem de consumo, ou seja, não
pensamos mais. Consumimos pensamentos. 105
Esta fragilização do ser humano, por si, já justificaria a proteção constitucional
conferida às relações de consumo. Para além desta razão, no entanto, outras existem a
103
TAVARES, André Ramos. Direito Constitucional Econômico. São Paulo: Método, 2003, p. 184-185.
Op. cit., p. 183-184.
105
FERRAZ JUNIOR, Tércio Sampaio. Poder econômico e gestão orgânica. In FERRAZ JUNIOR, Tércio
Sampaio, SALOMÃO FILHO, Calixto e NUSDEO, Fabio (org.). Poder econômico: direito, pobreza, violência,
corrupção. Barueri, SP: Manole, 2009, p. 23.
104
67
demandar a proteção do direito ao consumidor, destacando-se a vulnerabilidade deste perante
o fornecedor, nas relações contratuais de compra e venda de bens e serviços.
Como bem lembra Lafayete Josué Petter, “a adoção da defesa do consumidor como
princípio constitucional da atividade econômica impõe o desenvolvimento de uma política
nacional
de
relações
de
consumo”.106
Esta,
por
sua
vez,
foi
positivada
infraconstitucionalmente por meio da Lei nº 8.078, de 1990 (Código de Defesa do
Consumidor).
Em seu Artigo 4º, a referida lei estabelece os objetivos da política nacional das
relações de consumo, sendo estes: o atendimento das necessidades dos consumidores; o
respeito à sua dignidade, saúde e segurança; a proteção de seus interesses econômicos; a
melhoria de sua qualidade de vida; a transparência e harmonia das relações de consumo. Do
mencionado dispositivo legal, que estabelece ainda os princípios aplicáveis às relações de
consumo, é possível extrair a amplitude da defesa do consumidor no ordenamento jurídico
brasileiro.
Por fugir ao objetivo deste trabalho tratar do extenso campo da proteção consumerista,
buscar-se-á abordar apenas o aspecto desta que mais de perto diz respeito ao desenvolvimento
sustentável, à preservação ambiental e à reciclagem. O citado Artigo 4º do Código de Defesa
do Consumidor determina, em seu inciso III, a compatibilização da defesa do consumidor
com o desenvolvimento econômico e tecnológico, de modo a viabilizar os princípios
constitucionais econômicos.
Do cotejo entre a proteção do consumidor, o princípio constitucional de defesa do
meio ambiente e o princípio fundamental do desenvolvimento sustentável, surge a idéia de
consumo sustentável, que pode ser assim explicada:
Como a qualidade de vida é mesmo um bem da atual e das futuras gerações,
é de se perquirir qual o impacto que as práticas econômicas estabelecidas
nas relações fornecedores x consumidores impõem ao meio ambiente e de
que modo se podem implementar políticas de defesa do meio ambiente ao se
tratar de políticas econômicas que afetem diretamente o consumidor. Certo,
entretanto, é que aos consumidores são atribuíveis mais responsabilidades na
proteção do meio ambiente. Como pondera a doutrina, a livre escolha do
consumidor pode ser legitimamente limitada em nome do meio ambiente. Os
consumidores, a cada dia, precisam tornar-se conscientes da dimensão
ecológica do processo de consumo em geral e de seu comportamento em
particular.107
106
PETTER, Lafayete Josué. Princípios Constitucionais da Ordem Econômica. São Paulo: Editora Revista dos
Tribunais, 2005, p. 234.
107
BOURGOIGNIE, Thierry. A política de proteção do consumidor: desafios à frente. apud PETTER, Lafayete
Josué. Princípios Constitucionais da Ordem Econômica. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2005, p. 241.
68
O consumo sustentável pode ser compreendido como a possibilidade de se atender as
necessidades básicas dos seres humanos sem comprometer a capacidade que tem o meio
ambiente de satisfazer as necessidades das gerações futuras. Deste modo, o consumo
sustentável e o desenvolvimento sustentável devem ser considerados faces da mesma moeda.
Isto se explica porque o que tem causado a exaustão dos recursos naturais é, principalmente, o
crescimento econômico, consubstanciado na produção em larga escala, em desconsideração
ao meio ambiente. Estes bens precisam ser consumidos, razão pela qual a destruição do meio
ambiente está menos ligada ao número de habitantes do planeta e mais relacionada ao número
de consumidores de bens e serviços. 108
Além da poluição e depredação ambiental ocorridas no processo produtivo, o consumo
em larga escala gera uma enorme quantidade de lixo: embalagens dos produtos, sacolas
descartáveis que acondicionam as compras, os próprios bens adquiridos que, por serem cada
vez menos duráveis, são descartados muito pouco tempo após sua aquisição.
Considerando que a defesa do meio ambiente é não só papel do Estado, mas também
dos agentes econômicos e da sociedade, não restam dúvidas de que ao consumidor deve
também ser atribuída a responsabilidade pelo lixo que produz. É imperativa, portanto, uma
modificação no comportamento do consumidor-cidadão. Esta mudança de comportamento, no
entanto, pressupõe conscientização, que só pode ser conseguida por meio da educação
ambiental.
Neste sentido o disposto no Artigo 5º da Lei nº 12.305, de 2 de agosto de 2010, que
determina a necessária integração da Política Nacional de Resíduos Sólidos com a Política
Nacional de Educação Ambiental, a qual é regulada pela Lei nº 9.795, de 27 de abril de 1999.
Ambas integram a Política Nacional do Meio Ambiente.
Cabe ao Estado desenvolver e implementar políticas públicas de educação ambiental
que alertem o consumidor sobre sua responsabilidade para com o meio ambiente e ao mesmo
tempo conscientizem o consumidor de que só ele tem em mãos o principal instrumento para
forçar os agentes econômicos a adotar um modo de produção mais sustentável: o poder da
escolha.
É o consumidor, em última instância, que decidirá que produtos adquirir. Um
consumidor ambientalmente responsável levará em conta, no momento de escolher o produto
108
FILOMENO, José Geraldo Brito. Consumo, Sustentabilidade e o Código de Defesa do Consumidor. In
MARQUES, José Roberto (org.) Sustentabilidade e Temas Fundamentais de Direito Ambiental. Campinas, SP:
Millenium, 2009, p. 266.
69
a ser adquirido, além dos fatores custo e qualidade, questões como: a embalagem do produto é
reciclável? De que maneira o processo produtivo impactou o meio ambiente? A utilização
deste produto causa poluição ambiental? Existe produto similar que cause menor impacto no
meio ambiente?
A fim de bem avaliar o impacto ambiental dos produtos, o consumidor, além de
consciente, precisa contar com informações precisas sobre os produtos e serviços disponíveis
no mercado.109 Em relação a isto, o Código de Defesa do Consumidor já estabelece regras
claras sobre que dados devem ser obrigatoriamente divulgados nos rótulos dos produtos,
assim como sobre a publicidade dos mesmos produtos.
Também a Lei º 12.305/2010 estabelece, em seu Artigo 6º, X, o direito da sociedade à
informação, a qual possibilita o controle social. Tal direito é princípio informador da Política
Nacional de Resíduos Sólidos, que prevê ainda a responsabilidade do consumidor pelo ciclo
de vida dos produtos, responsabilidade esta que é compartilhada, ainda de acordo com a
referida lei, com o Estado e com os agentes econômicos.
A partir do momento em que o consumo se torna mais sustentável, passa a ser cada
vez mais interessante para as empresas, no âmbito de sua racionalidade, que é a eficiência
econômica, investir na diminuição dos impactos ambientais que sua atividade provoca. Isto
porque o consumidor passa a considerar que a empresa que ele sustenta quando adquire seus
produtos deve à sociedade uma retribuição, ou seja, tem uma função social a cumprir.
Na medida em que cresce a consciência ambiental do consumidor ele passa a desejar
que as empresas façam ainda melhor: que ajam com responsabilidade social, que consiste em
dar à sociedade uma contribuição real, além daquela que já é devida em razão do que impõe a
legislação. Passa o consumidor então a preferir empresas que desenvolvam programas de
recuperação ambiental, de educação ambiental, que promovam a coleta seletiva de lixo, que
incentivem a cultura ou que, por meio de alguma ação concreta, se mostrem comprometidas
para com a sociedade.
O consumo sustentável, no entanto, pressupõe mais que o simples poder de decisão
do consumidor, pois envolve a responsabilidade deste pelo descarte daquilo que consome. De
nada adianta, no momento da compra, optar por um produto cuja embalagem seja reciclável,
109
Outro aliado importante do consumidor, no momento da escolha do bem ou serviço a ser adquirido, é a
verificação da existência do selo de certificação, que poderá dizer não só sobre a qualidade do produto ou
serviço, mas, também, sobre a sustentabilidade do processo de produção. No âmbito da certificação, ressalta-se
os seguintes instrumentos gerenciais: a ISO 9001, ISO 14001, a NBR 16001 e a ISO 26000, ainda em fase de
conclusão.
70
para depois atirá-la no lixo, juntamente com resíduos orgânicos, sem qualquer preocupação
com o destino que será dado às toneladas de lixo produzidas diariamente.
O problema do impacto ambiental causado pelo lixo pode ser mitigado pela
reciclagem, que, para ser ambientalmente eficiente, pressupõe a coleta seletiva. Para que esta
se torne realidade, no entanto, deve haver não só campanhas de educação ambiental que
insiram as pessoas no contexto ambiental e envolvam-nas na solução dos problemas, como,
também, uma política pública clara de destinação dos resíduos separados. Afinal, de que
adianta que todos separem seu lixo se, no final, for tudo descartado no mesmo aterro?
Neste ponto, destaca-se o envolvimento das empresas, sobretudo aquelas que
produzem bens cujo descarte é problemático, como, por exemplo, pilhas, baterias e
embalagens de agrotóxicos. Devem ser as empresas produtoras responsáveis por recolher
estes produtos após a utilização, pelo consumidor. Deve o consumidor conscientizar-se da
importância de devolver os produtos. Deve o poder público fiscalizar a ação das empresas e
responsabilizar-se por exigir que a destinação dos resíduos seja feita com o menor impacto
ambiental possível.
1.4 O TRATAMENTO CONFERIDO À RECICLAGEM PELA LEI Nº 12.305/2010, QUE
ESTABELECE A POLÍTICA NACIONAL DE RESÍDUOS SÓLIDOS
A Constituição Federal atribui ao Estado brasileiro o papel de promotor do
desenvolvimento sustentável. Para o desempenho deste papel, deve o Estado intervir sobre o
domínio econômico como agente regulador e fiscalizador, planejando e implementando
políticas públicas que viabilizem o desenvolvimento.
No campo das políticas ambientais, deve ser lembrado que, em conformidade com o
que dispõe o Artigo 225 da Constituição, a responsabilidade pela defesa do meio ambiente é
compartilhada entre o Estado, a sociedade e os agentes econômicos. Mesmo sendo a
responsabilidade compartilhada, cumpre ao Estado a função de regular a atividade econômica,
seja mediante a edição de normas de direção ou de indução, seja por meio da concessão de
incentivos ou mediante ação fiscalizadora .
Existe fundamento constitucional para a adoção, pelo Estado brasileiro, de uma
política pública para os resíduos sólidos, tema que guarda estreita relação com a questão
ambiental. Afinal, a ação estatal por meio das políticas públicas compatibiliza-se
71
perfeitamente com o ideário de democracia, descentralização e participação social a todo
tempo exaltados na Constituição Federal, pois “essa forma de atuação estatal, que relaciona o
aspecto político e exige a participação popular, propicia o exercício efetivo da cidadania.”110
No sistema jurídico brasileiro, a positivação desta política se deu em 2 de agosto de
2010, com a edição da Lei nº 12.305, que institui a Política Nacional de Resíduos Sólidos.
Absorvendo do texto constitucional a idéia de que preservação ambiental é responsabilidade
não só do Estado, como também da coletividade, a referida Lei inova ao estabelecer que a
gestão de resíduos sólidos será feita de maneira integrada.
A gestão integrada de resíduos sólidos é conceituada pelo Artigo 3º, XI da Lei nº
12.305/2010 como sendo o “conjunto de ações voltadas para a busca de soluções para os
resíduos sólidos, de forma a considerar as dimensões política, econômica, ambiental, cultural
e social, com controle social e sob a premissa do desenvolvimento sustentável.”111 A gestão
dos resíduos sólidos, portanto, implica o envolvimento e participação de todos os entes
políticos constitucionais, assim como da sociedade e dos agentes econômicos.
Neste sentido, é possível afirmar que a gestão e o gerenciamento dos resíduos sólidos
deverão ser feitos de maneira democrática, uma vez que, ao determinar a integração entre as
ações governamentais em todos os âmbitos e aquelas da sociedade, a Lei nº 12.305/2010 os
vincula à observância do princípio de cooperação entre as diferentes esferas do poder público,
o setor empresarial e os diversos segmentos da sociedade (Artigo 6º, VI).
Preocupando-se em assegurar a participação de todos os sujeitos da gestão de resíduos,
a Lei dispõe ainda sobre os instrumentos de que se valerão as partes envolvidas para o
desenvolvimento de suas ações, como o incentivo às cooperativas de catadores de resíduos, a
educação ambiental e a cooperação técnica e financeira entre as esferas pública e privada
(Artigo 8º, IV, VI e VIII).
Com isto, garante-se a participação social não só nas decisões relativas ao
gerenciamento de resíduos em âmbito municipal, estadual e federal, como também em todo o
processo de planejamento das políticas públicas a serem desenvolvidas. Considerando ainda
que o bem jurídico ambiental não é apenas um direito, mas também um dever fundamental, o
Artigo 6º, VII da Lei nº 12.305/2010 afirma o princípio da responsabilidade compartilhada
pelo ciclo de vida dos produtos. Ao lado deste dever, encontra-se a afirmação do direito da
110
BREUS, Thiago Lima. Políticas públicas no Estado Constitucional: problemática da concretização dos
Direitos Fundamentais pela Administração Pública brasileira contemporânea. Belo Horizonte: Editora Fórum,
2007, p. 206.
111
BRASIL. Lei n. 12.305, de 2 de agosto de 2010. Disponível em
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2007-2010/2010/Lei/L12305.htm> Acesso em 11 ago 2010.
72
sociedade à informação e ao controle social (Artigo 6º, X).
Parece cumprir-se, assim, o papel promocional atribuído ao Estado Democrático de
Direito na contemporaneidade, que se relaciona à relevância da participação da sociedade para
que seja possível a transformação da realidade. O Estado contemporâneo não mais se contenta
com a simples função de assegurar as liberdades individuais, muito menos cumpre a este
Estado realizar por si todas as mudanças necessárias.
Em razão de seu caráter democrático, deve o Estado assegurar a possibilidade de
participação popular nas decisões e ações de interesse público. Neste sentido é que se diz que
cabe ao Estado o papel de promover o desenvolvimento, de modo a garantir a superação das
desigualdades e a assegurar os direitos fundamentais. Este papel, como visto, só pode ser bem
desempenhado em parceria com a sociedade e com os agentes econômicos, sob o
direcionamento do Estado.
Pela relevância que tem esta participação dos agentes econômicos e da coletividade
para a gestão dos resíduos sólidos, a Lei nº 12.305/2010 demonstra especial na reciclagem e a
define como princípio norteador da Política Nacional de Resíduos Sólidos, como se verifica a
seguir:
Artigo 6º São princípios da Política Nacional de Resíduos Sólidos:
[...]
VIII – o reconhecimento do resíduo sólido reutilizável e reciclável como um
bem jurídico econômico e de valor social, gerador de trabalho e renda e
promotor de cidadania;
[...]112
Necessário esclarecer a diferença entre o resíduo reutilizável e o reciclável. A
reutilização diz respeito ao uso do mesmo material por mais de uma vez, para a mesma
finalidade ou para fim distinto, sem que isto implique modificação da natureza do material
reutilizado. Na reciclagem ocorre o aproveitamento de um material como insumo para a
produção de material diverso, havendo, neste caso, a alteração de suas propriedades físicas,
físico-químicas ou biológicas.
Ambientalmente, a reutilização dos resíduos pode ser considerada preferível à
reciclagem dos mesmos, uma vez que a reutilização não envolve processo industrial, que
acaba sempre por produzir algum tipo de impacto ambiental. Talvez por isto a Lei nº 12.305
112
BRASIL. Lei n. 12.305, de 2 de agosto de 2010. Disponível em
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2007-2010/2010/Lei/L12305.htm> Acesso em 11 ago 2010.
73
estabeleça como objetivos da Política Nacional de Resíduos Sólidos a não-geração, a redução,
a reutilização, a reciclagem e tratamento dos resíduos, nesta ordem (Artigo 7º, II).
É certo que por mais que se reduza a geração de resíduos, ou por mais que os mesmos
sejam reutilizados, haverá ainda enormes quantidades de embalagens, papéis usados e aparas,
restos de diversos processos de industrialização e produtos que perderam a utilidade que serão
descartados e cuja destinação precisa ser viabilizada. Neste contexto é que se pensa a
reciclagem como a solução ambiental, social e economicamente viável para os resíduos
sólidos, o que a vincula irremediavelmente ao desenvolvimento sustentável, este também
informador da política pública de resíduos.
Tendo em conta a estreita relação entre a reciclagem enquanto atividade econômica e
o desenvolvimento sustentável é que o legislador infraconstitucional que cuidou da instituição
da Política Nacional de Resíduos Sólidos concedeu à atividade tratamento especialíssimo.
Além de tratá-la como princípio informador da política pública de resíduos, estabeleceu como
objetivo desta política o incentivo à indústria da reciclagem, com vistas ao fomento do uso de
matérias-primas e insumos derivados de materiais recicláveis e reciclados (Artigo 7º, VI da
Lei nº 12.305/2010).
Ao lado do incentivo à empresa, cuidou o legislador de assegurar a proteção do
trabalho humano ligado à reciclagem, firmando também como objetivo da política pública
nacional a integração dos catadores de materiais recicláveis nas ações que envolvam a
responsabilidade compartilhada pelo ciclo de vida dos produtos (Artigo 7º, XII da Lei nº
12.305/2010).
Figuram ainda, entre os objetivos da política nacional, a prioridade nas aquisições e
contratações governamentais para produtos reciclados e recicláveis (Artigo 7º, XI, “a”) e o
estímulo à rotulagem ambiental e ao consumo sustentável (Artigo 7º, XV).
Em todos os dispositivos legais acima citados fica clara a intenção que teve o
legislador de compatibilizar a gestão dos resíduos sólidos com aqueles valores expressos na
Constituição Econômica: a defesa do meio ambiente, a livre iniciativa, a valorização do
trabalho humano e o consumo sustentável. A reciclagem constitui atividade econômica apta à
realização daqueles valores.
Não se contentou, entretanto, o legislador infraconstitucional, em fixar objetivos e
princípios norteadores da gestão de resíduos. Estabeleceu também instrumentos que
viabilizem as políticas públicas que, a partir da política nacional, deverão ser implementadas.
Dentre os referidos instrumentos, destaca-se a coleta seletiva, a educação ambiental e a
concessão de incentivos fiscais, financeiros e creditícios.
74
De especial para o presente estudo são os incentivos à atividade econômica ligada à
reciclagem, disciplinados nos Artigos 42 e 44 da Lei nº 12.305/2010. Cuida o Artigo 42 de
autorizar o poder público a instituir medidas indutoras e linhas de financiamento que atendam
certas iniciativas dos agentes econômicos. A merecer este tipo de incentivo estão previstas as
seguintes atividades ligadas à reciclagem: implantação de infraestrutura e aquisição de
equipamentos destinados a atender cooperativas ou associações de catadores de recicláveis;
estruturação de sistemas de coleta seletiva; e desenvolvimento de projetos de gestão de
resíduos sólidos de caráter intermunicipal.
O Artigo 44 da Lei nº 12.305/2010 trata da concessão de incentivos tributários,
financeiros e creditícios como instrumento de políticas públicas em âmbito federal, estadual,
distrital e municipal. Como destinatários destes incentivos estão indicados, no inciso I do
referido Artigo 44, as indústrias e entidades dedicadas à reutilização, ao tratamento e à
reciclagem de resíduos sólidos produzidos no território nacional.
A partir da edição da Lei nº 12.305/2010 não há como pensar a gestão de resíduos no
país sem consideração à temática da reciclagem. Por sua relevância no contexto de qualquer
política pública relacionada a resíduos sólidos, fica patente a pertinência da adoção de uma
política tributária voltada ao estímulo desta atividade econômica, com vistas à promoção do
desenvolvimento sustentável.
2
A TRIBUTAÇÃO COMO INSTRUMENTO DE INTERVENÇÃO DO ESTADO
SOBRE O DOMÍNIO ECONÔMICO COM VISTAS AO DESENVOLVIMENTO
SUSTENTÁVEL
Aceita a premissa de que a questão do desenvolvimento está intrinsecamente ligada ao
Estado, faz-se necessário estabelecer o modelo de Estado instituído pela Constituição
brasileira de 1988 e o papel a ele atribuído na promoção do desenvolvimento sustentável.
Antes disso, entretanto, impende compreender o próprio Estado e sua evolução.
Deixando de lado a abordagem histórica que envolve a discussão acerca do
surgimento do Estado, faz-se neste estudo um corte metodológico, para tratar apenas das
versões do Estado na modernidade e contemporaneidade. Em qualquer uma delas, a noção de
Estado liga-se necessariamente à idéia de poder, sobre um povo, em um dado território.
Valendo-se da lição de Jellinek, Paulo Bonavides assim conceitua o Estado: “é a corporação
de um povo, assentada num determinado território e dotada de um poder originário de
mando”.113
Segundo Canotilho114, o Estado caracteriza-se como uma organização jurídica do
poder que se distingue de outras organizações em razão de certas qualidades: o poder
soberano, que se constitui em poder político de comando, cujos destinatários são os cidadãos
nacionais – o povo –, reunidos dentro de um território determinado. No plano interno do
Estado a soberania traduz-se em poder supremo, enquanto que, no plano internacional, em
poder interdependente, na medida em que cada Estado é dotado de soberania.
Para que o Estado soberano possa se afirmar, é imprescindível que o poder seja
unificado e concentrado, o que pressupõe uma clara divisão entre o núcleo do poder unificado
e os meios e finalidades do exercício deste poder. Por esta razão, o Estado Moderno está
fundado na existência de uma dicotomia entre a esfera pública e a esfera privada. No âmbito
da primeira encontra-se o espaço das determinações de governo, enquanto na segunda estão
os interesses da sociedade.115
113
JELLINEK, G. Allegemeine Staatslehre, apud BONAVIDES, Paulo. Ciência Política. São Paulo: Malheiros,
2000, p. 67.
114
CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 6. ed., Coimbra: Almedina,
2002, p. 89-90.
115
MARQUES NETO, Floriano Peixoto de Azevedo. Regulação estatal e interesses públicos. São Paulo:
Malheiros, 2002, p. 41.
76
Neste sentido, a concepção de Estado relaciona-se tanto ao modo como o poder é
exercido quanto às finalidades do exercício deste poder. Segundo Floriano Peixoto de
Azevedo Marques Neto:
[...] emerge com preponderância a noção de Estado enquanto um espaço
onde se adotam decisões voltadas a controlar, coordenar, dirigir ou
incentivar a sociedade. Ou seja, o espaço onde se desenvolveria o poder
decisório no processo de controle político e de efetivação dos fins coletivos
de uma dada sociedade.116
A primeira versão do Estado Moderno é o Estado absolutista, surgido em razão da
necessidade de unificação do poder, que antes se encontrava disperso entre os senhores
feudais. Foi o Estado absolutista fortemente calcado na unidade territorial, que, por assegurar
a soberania, justificava a concentração do poder nas mãos do soberano e mesmo a apropriação
que as monarquias absolutistas fizeram do próprio Estado.
Mesmo assim, apontam Lenio Luiz Streck e José Luis Bolzan de Morais117 que o
Estado Absolutista representou um avanço em relação ao Estado medieval. O Estado
Absolutista ancorava-se na burocracia e no exército, por ser este fundamental para a
manutenção da soberania territorial. Com isto, aos poucos o modelo de dominação
carismática submerge, cedendo espaço ao modelo legal-racional.
O Estado então se juridiciza ou legaliza, o que possibilita falar em Estado de Direito,
assim entendido o Estado regido pela lei. Inaugurado em 1215, com a Magna Carta de João
Sem Terra, da Inglaterra, em um primeiro momento o sistema do Rule of Law referiu-se à
obrigatoriedade de respeito a um processo legalmente regulado quando do julgamento e
punição aos cidadãos, atribuindo-se certas garantias à liberdade e à propriedade.
O governo do Estado pela lei, no entanto, evoluiu para abranger outros significados,
como a proeminência das leis sobre a discricionariedade do poder real; a sujeição do poder
executivo às regras editadas pelo poder legislativo; e, finalmente, a possibilidade de acesso
aos tribunais por parte do povo, o que possibilita a defesa dos direitos individuais violados por
qualquer indivíduo ou mesmo pelo poder público.118
Embora o Estado de Direito pressuponha a existência de uma forma jurídica que se
assenta na supremacia da lei, ele não se limita apenas à formalidade da ordem jurídica. Caso
116
MARQUES NETO, Floriano Peixoto de Azevedo. Regulação estatal e interesses públicos. São Paulo:
Malheiros, 2002, p. 27.
117
STRECK, Lenio Luiz e MORAIS, José Luis Bolzan de. Ciência Política e Teoria do Estado. 6. ed., Porto
Alegre: Livraria do Advogado, 2008, p. 46.
118
CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 6. ed., Coimbra: Almedina,
2002, p. 94.
77
assim fosse, teríamos apenas o Estado Legal. No Estado de Direito, a lei exerce papel muito
maior: o de legitimar o Estado e o exercício do poder, uma vez que cabe à lei definir o
conjunto de direitos da sociedade perante o próprio Estado, estabelecendo o papel deste no
que tange à garantia dos referidos direitos.
Dizer que o Estado é regido por leis não é suficiente para determinar seu ideário. É o
conteúdo das leis que regem o Estado que possibilitará a identificação dos valores que o
inspiram. Neste sentido é que se pode falar em Estado Liberal de Direito, Estado Social de
Direito e Estado Democrático de Direito.
O Estado Liberal de Direito, surgido como conseqüência dos ideais iluministas e da
Revolução Francesa, tem como nota característica uma forte separação entre o Estado e a
sociedade civil (dicotomia público x privado). Cabe ao Estado garantir as liberdades
individuais e o direito de propriedade, devendo servir de mediador das relações entre os
indivíduos e entre estes e o Estado.
Tem este Estado um papel reduzido, configurando-se como Estado mínimo. No dizer
de Lenio Luiz Streck e José Luis Bolzan de Morais:
A nota central deste Estado Liberal de Direito apresenta-se como uma
limitação jurídico-legal negativa, ou seja, como garantia dos indivíduoscidadãos frente à eventual atuação do Estado, impeditiva ou constrangedora
de sua atuação cotidiana. Ou seja: a este cabia o estabelecimento de
instrumentos jurídicos que assegurassem o livre desenvolvimento das
pretensões individuais, ao lado das restrições impostas à sua atuação
positiva.119
Regido pelos ideais de liberdade, igualdade e fraternidade, o modelo liberal de Estado
mostrou sérias imperfeições. A liberdade foi sendo aos poucos suprimida em razão da
concentração de poder econômico, que se converte em um título de domínio do
hipossuficiente pelo detentor de riquezas. A igualdade alcançada no liberalismo foi
meramente a igualdade perante a lei, ou seja, a igualdade formal. A fraternidade, por sua vez,
“à toda evidência não poderia ser lograda no seio de uma sociedade na qual compareciam o
egoísmo e a competição como motores da atividade econômica.”120
Surge, então, o Estado Social de Direito, cuja pretensão é corrigir o individualismo
liberal por meio do direito, que passa a dispor sobre garantias coletivas de cunho social. No
119
STRECK, Lenio Luiz e MORAIS, José Luis Bolzan de. Ciência Política e Teoria do Estado. 6. ed., Porto
Alegre: Livraria do Advogado, 2008, p. 96.
120
GRAU, Eros Roberto. A Ordem Econômica na Constituição de 1988: Interpretação e crítica. 10. ed. revista e
atualizada. São Paulo: Malheiros Editores, 2005, P. 18
78
modelo social de Estado, deve o ente público buscar o bem-estar e o desenvolvimento social.
Por esta razão, a adoção do modelo social de Estado não deixa de representar uma
democratização do mesmo, como ensina Bobbio:
Quando os proprietários eram os únicos que tinham direito de voto, era
natural que pedissem ao poder público o exercício de apenas uma função
primária: a proteção da propriedade. Daqui nasceu a doutrina do Estado
limitado, do Estado carabiniere ou, como se diz hoje, do Estado mínimo, e
configurou-se o Estado como associação dos proprietários para defesa
daquele direito natural supremo que era exatamente, para Locke, o direito de
propriedade. [...] Quando o direito de voto foi estendido também aos nãoproprietários, aos que nada tinham, aos que tinham como propriedade tãosomente a força de trabalho, a conseqüência foi que se começou a exigir do
Estado a proteção contra o desemprego e, pouco a pouco, seguros sociais
contra as doenças e a velhice, providências em favor da modernidade, casas
a preços populares, etc. Assim aconteceu que o Estado de serviços, o Estado
social, foi, agrade ou não, a resposta a uma demanda vinda de baixo, a uma
demanda democrática no sentido pleno da palavra.121
Esta democratização atribuída ao Estado Social de Direito, no entanto, mostra-se de
difícil realização. Na prática, em alguns casos, o direito passou a ser instrumento de
dominação de que se valeu o Estado agigantado para reduzir ou mesmo suprimir as liberdades
individuais. Mesmo quando isto não ocorreu, o Estado tornou-se pesado, menos eficiente e
mais burocrático. Segundo Bobbio122, esta burocracia crescente ordenou-se do vértice à base,
o que a torna diametralmente oposta ao sistema de poder democrático, que vai da base ao
vértice.
Na tentativa de conciliar o ideal democrático ao Estado de Direito, surge um novo
conceito: o Estado Democrático de Direito. Nele estão presentes as conquistas democráticas, a
preocupação social e as garantias jurídico-legais. Orienta este novo modelo de Estado a
missão de transformação do status quo, por meio do direito. Aqui a legalidade assume a
forma de efetiva busca de concretização da igualdade, não mais pela generalidade dos
comandos legais, mas por meio de intervenções diretas que permitam alterar a realidade.123
Constitui o Estado Democrático de Direito um avanço em relação aos modelos
anteriores, pois que ultrapassa as formulações do Estado Liberal e do Estado Social. Neste
modelo, é de grande relevo a vinculação do Estado a uma Constituição, à qual incumbe
garantir: a organização democrática da sociedade; os direitos fundamentais; a busca pela
121
BOBBIO, Norberto. O futuro da democracia. Tradução de Marco Aurélio Nogueira. São Paulo: Paz e Terra,
2000, p. 47.
122
Op. cit., p. 47.
123
STRECK, Lenio Luiz e MORAIS, José Luis Bolzan de. Ciência Política e Teoria do Estado. 6. ed., Porto
Alegre: Livraria do Advogado, 2008, p. 97.
79
redução das desigualdades e a justiça social; a divisão de poderes; a segurança e a certeza
jurídica; a legalidade.
Dada a indissociabilidade entre a Constituição e o Estado de Direito, Canotilho124
aponta a existência de um “Estado Constitucional”, no qual foi introduzido o elemento
democrático com a principal finalidade de legitimar o exercício do poder. Segundo o autor, o
princípio da soberania popular, que afirma no povo a origem de todo o poder, empresta não só
legitimidade, mas legitimação à ordem estatal.
Em razão do dirigismo constitucional, o Estado Democrático de Direito tem sua
atuação pautada pela busca da transformação. Segundo Lenio Luiz Streck e José Luis Bolzan
de Morais:
A atuação do Estado passa a ter um conteúdo de transformação do status
quo, a lei aparecendo como um instrumento de transformação por incorporar
um papel simbólico prospectivo de manutenção do espaço vital da
humanidade. Dessa forma, os mecanismos utilizados aprofundam
paroxisticamente seu papel promocional, mutando-o em transformador das
relações comunitárias. O ator principal passa a ser coletividades difusas a
partir da compreensão da partilha comum de destinos.125
Merece destaque, neste ponto, o papel promocional acima atribuído ao Estado
Democrático de Direito na contemporaneidade, assim como a relevância da participação da
sociedade para que seja possível a transformação da realidade. Parece claro que o Estado
contemporâneo não mais se contenta com a simples função de assegurar as liberdades
individuais. Muito menos cumpre a este Estado agigantar-se ao ponto de, sozinho, pretender
ser o realizador de todas as mudanças sociais que se afiguram necessárias.
Em razão de seu caráter democrático, deve o Estado assegurar a possibilidade de
participação popular nas decisões e ações de interesse público. Neste sentido, cabe ao Estado
o papel de promover o desenvolvimento, de modo a garantir a superação das desigualdades e
a assegurar os direitos fundamentais. Este papel, no entanto, só pode ser bem desempenhado
em parceria com a sociedade e com os agentes econômicos, sob o direcionamento do Estado.
Segundo Floriano Peixoto de Azevedo Marques Neto:
124
CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 6. ed., Coimbra: Almedina,
2002, p. 100.
125
STRECK, Lenio Luiz e MORAIS, José Luis Bolzan de. Ciência Política e Teoria do Estado. 6. ed., Porto
Alegre: Livraria do Advogado, 2008, p. 104.
80
Este processo aponta para a superação da separação entre Estado/sociedade
(decorrência direta da superação da dicotomia público/privado) e para o
afastamento da idéia de que ‘público’ corresponderia exclusivamente a
estatal. Embora o Estado tenha de permanecer como o espaço de exercício
do poder decisório, isso não pode excluir o reconhecimento da existência de
outras esferas de poder político, com as quais deva ele (Estado) se articular
sem, contudo, perder de vista a irrenunciabilidade da tutela dos interesses
dos atores sociais hipossuficientes.126
Esta nova perspectiva não significa o enfraquecimento do Estado. Ao contrário,
pressupõe a existência de um Estado forte, com instituições poderosas, capaz de direcionar os
agentes econômicos e a sociedade para o desenvolvimento e apto a intervir sobre a ordem
econômica para assegurar os direitos fundamentais e a observância do regime jurídico
econômico constitucional.
Feitas estas digressões, é possível afirmar que o Estado brasileiro instituído pela
Constituição Federal de 1988 é o Estado Democrático de Direito. A inspirar sua Constituição
econômica estão valores sociais e também liberais, que devem ser compatibilizados. Ao
Estado brasileiro cabe o papel de direcionar a atividade econômica de modo a promover o
desenvolvimento. Deve, contudo, assegurar que o desenvolvimento alcançado seja sustentável
e que atenda aos princípios constitucionais da ordem econômica.
2.1
ESTADO E DESENVOLVIMENTO: A INTERVENÇÃO ESTATAL SOBRE O
DOMÍNIO ECONÔMICO
A questão do desenvolvimento está intrinsecamente associada ao Estado. Como
processo global, o desenvolvimento envolve variáveis econômicas, sociais, ambientais,
tecnológicas e científicas que precisam ser pensadas em conjunto e alinhadas por meio de
uma ação diretiva planejada. Embora a sociedade e os agentes econômicos sejam copartícipes do desenvolvimento, somente o Estado tem condições de direcionar a atividade
econômica de modo a mantê-la afinada com as dimensões da sustentabilidade envolvidas na
questão do desenvolvimento.
Segundo Lourival Vilanova:
126
MARQUES NETO, Floriano Peixoto de Azevedo. Regulação estatal e interesses públicos. São Paulo:
Malheiros, 2002, p. 174.
81
O desenvolvimento requer planejamento, interligação das variáveis sociais
(melhor, sociológicas), recursos financeiros e econômicos, investimentos
que ultrapassam a capacidade econômica dos particulares, ação
racionalizada (planejamento), direção do processo, em vez da
espontaneidade do livre jogo dos fatores econômicos, e vontade ou decisão
de mudança. [...] Na história do mundo atual, é sobretudo o Estado que tem
condições de assumir a empresa do desenvolvimento global, integral,
racionalizado. Pois o desenvolvimento implica numa decisão: tem de haver
uma política do desenvolvimento [...], ou seja, uma política educacional,
uma política econômica, uma política populacional, uma política financeira,
uma política do crédito, uma política tributária, enfim, uma política ou
decisão de investimentos, uma política em termos nacionalistas ou de
cooperação multinacional. E o agente dessa decisão é e não pode ser senão o
Estado.127
Para ser agente do desenvolvimento, o Estado deve ser forte, sob pena de sucumbir a
interesses privados, o que afeta irremediavelmente sua capacidade de atuação. O
desenvolvimento implica sempre transformação das estruturas pré-estabelecidas e alteração
do status quo e estas não prescindem de uma política integradora, proposta pelo Estado. A
dimensão do desafio imposto pela transformação “[...] faz com que o Estado
Desenvolvimentista deva ser um Estado mais capacitado e estruturado do que o Estado Social
tradicional.”128
É este papel promocional que foi atribuído ao Estado brasileiro pela Constituição
Federal de 1988, que, como já salientado, comporta uma Constituição econômica destinada à
disciplina da realidade econômica. Formam a Constituição econômica as normas constantes
em todo o texto constitucional e não apenas no título “Da Ordem Econômica”, destinadas a
regular o papel do Estado e dos agentes econômicos, assim como a sociedade, no que se
refere ao desenvolvimento econômico e social.
Inserida que está na Constituição, a Constituição econômica somente pode ser
interpretada e aplicada como parte do todo constitucional ao qual se integra, sendo seu
conteúdo indissociável das outras partes da Constituição. Deste modo, é certo afirmar que
“a Ordem Econômica e Financeira é indissociável dos princípios fundamentais da República
Federativa e do Estado Democrático de Direito [... assim como ...] a concretização dos
princípios que [... a ...] informam é inseparável dos Direitos e Garantias Fundamentais”.129
Na medida em que a Constituição econômica afeta e é afetada pelas demais normas
127
VILANOVA, Lourival. Proteção Jurisdicional dos Direitos numa Sociedade em Desenvolvimento.
In:.Escritos Jurídicos e Filosóficos, São Paulo: AXUS NVBDU-IBET, v. 2, p. 468-469.
128
BERCOVICI, Gilberto. Constituição Econômica e Desenvolvimento: uma leitura a partir da Constituição de
1988. São Paulo: Malheiros, 2005, p. 67.
129
TAVARES, André Ramos. Direito Constitucional Econômico. São Paulo: Método, 2003, p. 85.
82
constitucionais, sua abordagem deve ser feita com a devida consideração a todo o arcabouço
fornecido pelo constitucionalismo brasileiro. 130 Esta advertência é de grande relevância para
este trabalho, que, pretendendo destacar a necessidade de adoção, pelo Estado brasileiro, de
uma política tributária voltada ao desenvolvimento sustentável, terá que valer-se da
consideração conjunta do subsistema constitucional econômico e do subsistema constitucional
tributário.
Voltando à questão do Estado como promotor do desenvolvimento, impende
investigar o papel a ele reservado pela Constituição econômica, assim como os instrumentos
de que dispõe para o cumprimento desse desiderato. Segundo Daniel Sarmento, há na
Constituição de 1988 um personalismo latente, que se afasta tanto do organicismo e do
utilitarismo, como do individualismo burguês. Localizando-se entre o modelo social e o
modelo liberal, “o personalismo afirma a primazia da pessoa humana sobre o Estado e
qualquer entidade intermediária, e reconhece no indivíduo a capacidade moral de escolher
seus projetos e planos de vida.”131
Sob este enfoque, e considerando ainda o caráter diretivo da Constituição brasileira, o
Estado (o poder público) é visto como responsável não só pela defesa dos direitos
fundamentais, como por sua promoção, tendo em vista as desigualdades entre as pessoas na
sociedade. “Isto justificará uma ingerência estatal muito mais profunda e extensa em questões
que, para o ideário do liberalismo clássico, pertenciam com exclusividade à sociedade
civil.”132
Tem-se, assim, os parâmetros que balizam a atuação estatal com vistas à promoção do
desenvolvimento sustentável, que é direito fundamental. Na contemporaneidade, no entanto,
este dever não incumbe apenas ao Estado, mas também aos agentes econômicos e à
coletividade. Por esta razão, a atuação estatal não deverá ocorrer de forma exclusiva; ao
contrário, deverá o Estado intervir de modo a orientar a atividade econômica, permitindo a
participação da sociedade.
Os Artigos 173 e 174 da Constituição Federal dispõem sobre a intervenção do Estado
na economia e determinam que ela pode ser feita de forma direta (quando o Estado assume
para si a atividade econômica, quer em regime de monopólio, quer em regime de competição
130
TAVARES, André Ramos. Direito Constitucional Econômico. São Paulo: Método, 2003, p. 86.
SARMENTO, Daniel. Colisões entre direitos fundamentais e interesses públicos. In SARLET, Ingo
Wolfgang (org), Jurisdição e Direitos Fundamentais. Vol. 1, tomo I, Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2005,
p. 45
132
SARMENTO, Daniel. Colisões entre direitos fundamentais e interesses públicos. In SARLET, Ingo
Wolfgang (org), Jurisdição e Direitos Fundamentais. Vol. 1, tomo I, Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2005,
p. 45
131
83
com a iniciativa privada) ou de forma indireta, caso em que o Estado agirá como agente
normativo e regulador da atividade econômica.
Digna de nota a distinção apontada por Eros Grau133 entre os vocábulos “atuação” e
“intervenção” estatal. O primeiro tem sentido amplo e pode referir-se tanto ao agir do Estado
em campo que lhe é próprio, ou seja, na esfera do público, quanto, também, à atuação estatal
na esfera privada. Já o termo “intervenção” reserva-se à atuação estatal em área alheia, no
âmbito privado da economia. Da primeira, ocupa-se a Constituição brasileira no Artigo 175,
enquanto que a modalidade interventiva de atuação estatal é disciplinada pelos Artigos 173 e
174.
A intervenção do Estado no domínio econômico pode se dar de maneira direta ou
indireta, o que tem levado grande parte dos doutrinadores brasileiros a falar em intervenção
“no” ou “sobre” o domínio econômico, conforme venha o Estado a agir ele mesmo no campo
da atividade econômica em sentido estrito ou venha a influenciar a atividade econômica por
meio da direção, fiscalização ou indução.
Para Eros Grau134, as modalidades de intervenção estatal são: intervenção por
absorção ou participação; intervenção por direção; e intervenção por indução. Tanto a
absorção quanto a participação são modalidades de intervenção direta na economia. Diferem,
contudo, no grau de assunção, pelo Estado, da atividade: na absorção o Estado atua
exclusivamente, enquanto na participação atua ao lado de outros agentes econômicos, com
eles competindo.
São modalidades de intervenção indireta a direção, que ocorre quando o Estado se vale
da expedição de normas de comportamento que obrigam os agentes econômicos e a indução,
que consiste na utilização, pelo Estado, de instrumentos que repercutem no funcionamento do
mercado, mas que deixam os agentes econômicos livres para seguir ou não na direção
almejada pelo Estado interventor. Nas duas modalidades o Estado age como agente normativo
e regulador da atividade econômica.
No regime constitucional econômico brasileiro a intervenção direta na economia, seja
ela por meio de absorção ou de participação, é exceção e não regra, sendo subsidiária a
atuação estatal em relação aos agentes econômicos. É este o conteúdo normativo que se
depreende da leitura do Artigo 173 da Constituição, que somente permite a exploração direta
de atividade econômica pelo Estado quando necessária aos imperativos da segurança nacional
133
GRAU, Eros Roberto. A Ordem Econômica na Constituição de 1988: Interpretação e crítica. 10. ed. revista e
atualizada. São Paulo: Malheiros Editores, 2005, p. 124.
134
Op. cit., p. 124
84
ou a relevante interesse coletivo, assim definido em lei.
O caráter subsidiário da intervenção direta na economia é decorrência imediata do
princípio constitucional da livre iniciativa e é assim entendido por Celso Ribeiro Bastos:
O Estado não está habilitado a retirar dos particulares, transferindo para a
responsabilidade da comunidade, as atribuições que aqueles estejam em
condições de cumprir por si mesmos. A ação das coletividades públicas no
âmbito da economia só se justifica, pois, onde os particulares não possam ou
não queiram intervir.135
De maior interesse para o presente estudo é a intervenção indireta do Estado sobre o
domínio econômico, na qual o Estado age como agente regulador da atividade econômica,
cumprindo as funções de normatização, fiscalização, incentivo e planejamento.
Faz-se necessário, neste ponto, compreender a figura do Estado regulador, que surgiu
como tentativa de solucionar a problemática do agigantamento do Estado Social. Estando este
em crise, houve a necessidade de transferir muitas das atribuições que eram exclusivas do
Estado Social para a iniciativa privada, passando o Estado a atuar apenas na regulação e
controle das atividades delegadas. Isto não significa a ausência de Estado na economia, mas
uma mudança de papéis: de executor, passa o Estado a interceder normativamente para
regulamentar a atividade econômica.
Como agente regulador da economia, cumpre ao Estado normatizar a atividade
econômica, sem, contudo, assumir a posição de sujeito econômico ativo. Isto se dá por meio
da função fiscalizadora do Estado (no exercício da chamada polícia econômica), mediante o
planejamento (e criação de infra-estruturas) e mediante a concessão de incentivos (fomento).
Neste campo da intervenção estatal sobre o domínio econômico é de grande utilidade o
instrumental tributário, conforme será visto mais adiante. 136
Para bem cumprir o papel que lhe foi atribuído pela Constituição Federal, deverá o
Estado elaborar e implementar políticas públicas, que, segundo ensina Thiago Lima Breus,
são “o principal mecanismo de ação estatal com vistas à realização dos direitos sociais,
econômicos e culturais [...] um veículo privilegiado de realização desses direitos, tendo em
vista serem eles os fins do Estado Constitucional.”137
135
BASTOS, Celso Ribeiro. Direito econômico brasileiro. São Paulo: IBDC, 2000, p. 114.
VINHA, Thiago Degelo. Estado e economia: o intervencionismo estatal no atual cenário jurídicoeconômico
brasileiro. Hórus – Revista de Humanidades e Ciências Sociais Aplicadas, Ourinhos/SP, Nº 03, 2005. Disponível
em <http://www.faeso.edu.br/horus/artigos%20anteriores/2005.pdf> Acesso em: 6 jul. 2009.
137
BREUS, Thiago Lima. Políticas públicas no Estado Constitucional: problemática da concretização dos
Direitos Fundamentais pela Administração Pública brasileira contemporânea. Belo Horizonte: Editora Fórum,
2007, p. 204.
136
85
A ação estatal por meio das políticas públicas compatibiliza-se perfeitamente com o
ideário de democracia, descentralização e participação social a todo tempo exaltados na
Constituição Federal, uma vez que “essa forma de atuação estatal, que relaciona o aspecto
político e exige a participação popular, propicia o exercício efetivo da cidadania.”138
Em regra, as políticas públicas implementadas pelo Poder Executivo. Em matéria de
direitos sociais – e ambiental – no entanto, a Constituição Federal prevê a gestão
compartilhada, que já começa a se tornar realidade por meio da participação dos Conselhos de
Gestão ou mesmo de Organizações Não Governamentais, que podem e devem opinar em
relação às políticas públicas nas diversas áreas.
Destaca-se a relevância da função fiscalizadora do Estado durante a execução de uma
vez que qualquer política pública, uma vez que esta somente atingirá sua finalidade caso seja
implementada conforme planejado. Cabe ao Estado fiscalizar a atuação dos agentes
envolvidos a fim de garantir a eficácia da política pública proposta.
Também de grande utilidade para a intervenção estatal sobre o domínio econômico
são os incentivos, que consistem na concessão de estímulos financeiros para certas atividades.
É comum que os incentivos sejam concedidos mediante a utilização do aparato tributário de
que dispõe o Estado, seja por meio da desoneração tributária para determinados setores ou
atividades, seja por meio da oneração de certas condutas que se deseja desestimular.
Em razão do risco que representa para a livre concorrência a concessão de incentivos,
deve a mesma ser feita após cuidadoso planejamento, em cumprimento a uma política pública
consistente e constitucionalmente válida. Também neste caso ressalta-se a importância do
bom desempenho, pelo Estado, de sua função fiscalizadora, uma vez que de nada adianta, por
exemplo, conceder benefício fiscal destinado a empresas que preservam o meio ambiente
durante seu processo produtivo, se não houver a efetiva verificação de que a contrapartida
empresarial está sendo cumprida.
Fica claro neste ponto que, ao intervir indiretamente sobre a atividade econômica, o
Estado o faz por meio de ações conjuntas de todos os poderes. A Constituição autoriza a
intervenção do Estado como regulador (por meio da lei) para fazer cumprir os princípios da
ordem econômica. Neste caso, é o poder legislativo o agente da intervenção estatal.
Ao Poder Executivo cabe intervir, também como regulador, por meio de atos
administrativos, da fiscalização e da expedição de atos normativos que lhe são próprios.
138
BREUS, Thiago Lima. Políticas públicas no Estado Constitucional: problemática da concretização dos
Direitos Fundamentais pela Administração Pública brasileira contemporânea. Belo Horizonte: Editora Fórum,
2007, p. 204.
86
Ressalta-se que é o Executivo, por excelência, o órgão planejador das políticas públicas que o
Estado pretende implementar. Afirmando a prevalência do Poder Executivo em qualquer
forma de governo, Lourival Vilanova ressalta que isto se deve ao contato mais íntimo deste
com o fato administrativo, o que o torna “mais apto a responder a uma realidade social,
econômica e política em violenta mutação.”139
Cabe ao Poder Judiciário o controle dos atos interventivos praticados pelos demais
poderes. Controla a constitucionalidade e legalidade das normas expedidas pelo Poder
Legislativo, assim como dos atos administrativos praticados pelo Poder Executivo. Embora
no Brasil ainda não se tenha chegado ao ponto de admitir irrestritamente a análise, pelo Poder
Judiciário, do mérito das políticas públicas e dos atos administrativos, acredita-se que a
evolução do Direito virá neste sentido. Os estreitos limites deste trabalho, no entanto, não
permitem o aprofundamento desta questão, tão tormentosa quanto instigante.
Conclui-se que a intervenção estatal sobre a economia se assenta no regime jurídico
econômico constitucional. Este regime jurídico, ao mesmo tempo em que justifica a atuação
estatal, é dela limitador. Pode-se afirmar, portanto, que o fundamento regulatório do Estado é
o regime jurídico econômico. Além disso, é admitida a intervenção estatal para assegurar os
direitos e garantias individuais. Como ensina André Ramos Tavares, ainda que “não haja essa
referência explícita, nem por isso deixa ela de ser uma realidade, imposta pela consideração
sistemática do texto constitucional”140.
Admitida a possibilidade de intervenção estatal na economia para a preservação da
ordem econômica constitucional e dos direitos e garantias fundamentais, resta ainda verificar
se a intervenção é para o Estado uma faculdade ou um dever. Para tal mister necessário
identificar, em todo o texto constitucional, que responsabilidades foram atribuídas ao Estado
e se terá a correta dimensão de qual deve ser o grau de sua atuação, ainda que em campo que
não lhe é próprio.
Em estudo versando sobre a intervenção estatal em prol da segurança humana,
Marlene Kempfer Bassoli141, após identificar na Constituição dispositivos envolvendo os
diversos aspectos da segurança humana, afirma que a avaliação das atribuições
constitucionais conferidas ao Estado brasileiro indica que o mesmo deve atuar tanto por meio
139
VILANOVA, Lourival. Proteção Jurisdicional dos Direitos numa Sociedade em Desenvolvimento.
In:.Escritos Jurídicos e Filosóficos, São Paulo: AXUS NVBDU-IBET, v. 2, p. 479.
140
TAVARES, André Ramos. Direito Constitucional Econômico. São Paulo: Método, 2003, p. 278.
141
BASSOLI, Marlene Kempfer. Intervenção do Estado sobre o domínio econômico em prol da segurança
humana. In: FERREIRA, Jussara Suzi Assis Borges e RIBEIRO, Maria de Fátima. Empreendimentos
Econômicos e Desenvolvimento Sustentável. São Paulo: Arte & Ciência, Marília: Unimar, 2008, p. 123.
87
da implementação de políticas públicas quanto por meio da regulação, fiscalização, incentivo
e planejamento.
Para a autora, a atuação estatal, nestes casos, é obrigatória e não opcional:
A partir desta construção é dispensável enfatizar que diante de norma de
nível constitucional não há opções para os governos em cumpri-la ou não.
Da mesma forma, é possível construir inúmeras outras normas que expõem
deveres jurídicos do Estado e, ao serem reunidas, permitem afirmar que é
obrigatória a participação do Estado para viabilizar a segurança humana.142
Pela mesma razão, é certo afirmar que o Estado tem o dever jurídico de atuar,
diretamente ou por meio de intervenção no domínio econômico, a fim de assegurar os direitos
e garantias fundamentais, assim como o regime jurídico econômico. Para tanto, deve valer-se
de todos os instrumentos e competências que lhe foram concedidos pela Constituição, entre
eles o tributário, que será abordado a seguir.
2.2 FUNÇÃO SOCIAL DOS TRIBUTOS E SUA INSTRUMENTALIDADE PARA A
ATUAÇÃO ESTATAL
Os tributos são a principal fonte de receita do Estado, que necessita de recursos
financeiros para o desenvolvimento de suas atividades. Representam a contribuição da
sociedade e dos agentes econômicos para o financiamento das atividades estatais e são
imprescindíveis à própria existência do Estado.
A imposição tributária, no entanto, tem sido fonte de conflito entre governantes e
governados ao longo da história, uma vez que nem sempre estão os particulares dispostos a
abrir mão de considerável parcela de suas riquezas para entregá-las a governantes que têm
dado todo o tipo de destinação aos tributos arrecadados. Já foi dito que a história dos tributos
é mesmo a história das civilizações, o que permite concluir que também a tentativa de evitar a
tributação remonta à antiguidade.
A concepção de tributo foi profundamente alterada ao longo da história. Se nos
primórdios a tributação, por sua abusividade e natureza por vezes confiscatória, era vista
142
BASSOLI, Marlene Kempfer., Intervenção do Estado sobre o domínio econômico em prol da segurança
humana. In: FERREIRA, Jussara Suzi Assis Borges e RIBEIRO, Maria de Fátima. Empreendimentos
Econômicos e Desenvolvimento Sustentável. São Paulo: Arte & Ciência, Marília: Unimar, 2008, p. 123.
88
como penalização, é certo que nos dias atuais o tributo só pode ser concebido como uma
contribuição da sociedade ao Estado, a fim de que este possa exercer suas funções, que visam
ao interesse da própria coletividade. Este o conceito contemporâneo de tributo: prestação
pecuniária compulsória, instituída por lei e decorrente de atividade lícita. Desta forma,
embora seja o tributo uma imposição legal, não tem ele a natureza de sanção, visto que não
decorre da prática de ato ilícito.
É a partir deste conceito de tributo que se pode aprofundar, na atualidade, o estudo
acerca de sua função social. Em que pese ser este um estudo jurídico, que pretende tratar da
imposição tributária como norma, não há como olvidar a relação dos tributos com a realidade
econômica, que ademais, influencia e é influenciada pelo Direito a todo tempo. É a partir do
substrato fático econômico que o Direito fará a valoração do fato tributável e das necessidades
públicas de ingresso de recursos. A adequada valoração desses fatos pelo Direito dirá sobre o
nível de justiça fiscal existente em um dado ordenamento jurídico e sobre a legitimidade da
tributação.
Segundo Ives Gandra da Silva Martins:
O fato de que a imposição tributária representa apropriação de bens dos
cidadãos para duplo atendimento das necessidades legítimas do Estado,
enquanto representante do povo de uma nação, e daquelas menos legítimas
ou sem nenhuma legitimidade dos detentores do poder, traz elemento de
relevo indiscutível para a concepção de uma adequada teoria tributária.143
Ainda segundo o autor, embora a imposição tributária seja a melhor forma de
atendimento às necessidades públicas, por viabilizar economicamente o Estado, não se pode
esquecer que os governos são sempre exercidos por homens, que não são confiáveis quando
passam a deter o poder. A tendência dos governantes é sempre a de exigir mais da
comunidade do que para esta seria desejável, o que torna a carga tributária maior que o
necessário, uma vez que a arrecadação passa a ter uma dupla função: a de atendimento das
necessidades públicas e dos detentores do poder.144
Por essa razão, a norma tributária é norma de rejeição social, assim entendida a norma
jurídica que, não sendo bem aceita por seus destinatários, só é cumprida em razão de forte
aparato sancionatório. Ao contrário das normas de aceitação social, que em regra são
cumpridas naturalmente pela sociedade, uma vez que seu conteúdo é compatível com as
143
MARTINS, Ives Gandra da Silva. Teoria da Imposição Tributária. In: MARTINS, Ives Gandra da Silva
(coord.), Curso de Direito Tributário. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 16.
144
Op. cit., p. 17-18.
89
crenças e valores da coletividade, à norma tributária está ligado o desejo popular de
descumpri-la.145
Merece comento um aspecto menos nobre da rejeição social aos tributos, que se
relaciona ao individualismo e egocentrismo inerentes ao ser humano. As pessoas são
naturalmente mais rápidas para compreender e exigir seus direitos que para reconhecer seu
correlato dever a cumprir. Assim, ao mesmo tempo em que bradam que têm perante o Estado
o direito subjetivo à educação ou à saúde, recalcitram quando lhes é exigido que abram mão
de parte de sua riqueza individual para financiar as atividades deste mesmo Estado.
A este fenômeno se refere Marciano Buffon146 como “esquecimento dos deveres e
hipertrofia dos direitos”, que o autor relaciona “a um cômodo abandono da idéia de dever
social, estimulada pelo marcante individualismo do tempo contemporâneo.” Afirma, no
entanto, que o dever de pagar tributos está entre os deveres tidos como fundamentais, que são
comportamentos impostos a um sujeito a fim de garantir que o Estado tenha os meios
suficientes para atingir sua finalidade de propiciar o bem comum, em especial a realização dos
direitos fundamentais.
Parece certo, no entanto, que o mais forte fator que determina a rejeição social à
norma tributária relaciona-se à má destinação muitas vezes dada ao produto arrecadado por
meio dos tributos. Assim, a rejeição social ao tributo será diretamente proporcional ao
desequilíbrio entre o que é arrecadado e o que é efetiva e eficientemente utilizado para o
atendimento das necessidades públicas.
É possível inferir, então, que a rejeição social à norma tributária não tenha caráter
irremediável e que a mesma não acontecerá quando não houver antagonismo de interesses
entre o Estado arrecadador do tributo e os indivíduos obrigados ao pagamento do mesmo.
Para que isto ocorra, haverá a tributação que ser percebida como justa e sua utilidade deve
sobressair aos olhos da coletividade que suporta o ônus dos tributos.
Na Constituição encontram-se dispositivos destinados a evitar o abuso do Estado na
tributação, assim como a assegurar os direitos fundamentais ante o poder tributante. Segundo
Maria de Fátima Ribeiro e Thiago Degelo Vinha, os dispositivos constitucionais são
limitadores da atuação estatal e esta se insere no contexto da política tributária, que é “[...] o
145
MARTINS, Ives Gandra da Silva. Teoria da Imposição Tributária. In: MARTINS, Ives Gandra da Silva
(coord.), Curso de Direito Tributário. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 20.
146
BUFFON, Marciano. Tributação e dignidade humana: entre os direitos e deveres fundamentais. Porto
Alegre: Livraria do Advogado, 2009, p. 82-86.
90
processo que deve anteceder a imposição tributária. É, portanto, a verificação da finalidade
pela qual será efetivada ou não a imposição tributária.”147
Assim, para que a tributação atinja sua finalidade deve haver um planejamento que
antecede a imposição tributária. Nesta fase de elaboração da política tributária, deverá o
Estado verificar que objetivos pretende atingir com a tributação, quanto será necessário
arrecadar para que suas finalidades sejam alcançadas e de que maneira a imposição
repercutirá na vida das pessoas e na atividade econômica.
Uma política tributária bem formulada é instrumento valioso de atuação estatal em
prol do desenvolvimento. Impende ressaltar, novamente, a distinção entre crescimento e
desenvolvimento econômico, pois, como bem adverte Hugo de Brito Machado148, se
considerado apenas o aspecto do desenvolvimento atinente à luta pela riqueza, poder-se-ia
entender a tributação como um instrumento de entrave ao crescimento econômico, na medida
em que ao ser retirado do setor privado o recurso financeiro, haveria uma inibição à produção
de novas riquezas.
Considerado o desenvolvimento em todas as suas dimensões, no entanto, é possível
concluir que pode ser mesmo impulsionado por meio de uma política tributária consistente e
coerente com os valores que, segundo a Constituição, devem orientar a atuação estatal, o que
implica a consideração das dimensões econômica, social e ambiental.
As dimensões econômica e social do desenvolvimento sustentável podem ser
contempladas por meio de uma política tributária equitativa e eficiente. Segundo Paulo
Caliendo:
De um lado, o Estado deve implementar suas políticas com o mínimo de
efeitos para a sociedade (minimum loss to society). Minimizar seus efeitos é
uma das exigências da eficiência econômica. Por outro lado, o Estado deve
agir para obter a mais equitativa distribuição de bens na sociedade,
especialmente, perante o fato de vivermos em uma sociedade em que o
mercado é imperfeito e existem motivações decorrentes de vontade de
promoção de políticas públicas de bem-estar social (welfare-motivated
policies). Este pode ser considerado o aspecto da equidade nas políticas de
finanças públicas.149
147
VINHA, Thiago Degelo e RIBEIRO, Maria de Fátima. Efeitos socioeconômicos dos tributos e sua utilização
como instrumento de políticas governamentais. In:PEIXOTO, Marcelo Magalhães e FERNANDES, Edison
Carlos (coord.), Tributação, justiça e liberdade. Curitiba: Juruá, 2005, p. 659.
148
MACHADO, Hugo de Brito. A Função do Tributo nas Ordens Econômica, Social e Política. Revista da
Faculdade de Direito de Fortaleza. Fortaleza, v. 2, n. 28, p. 16.
149
SILVEIRA, Paulo Antônio Caliendo Velloso da. Direito Tributário e Análise Econômica do Direito: uma
visão crítica. Rio de Janeiro, Elsevier, 2009, p. 17-18.
91
Há que se considerar os reflexos sociais da tributação, o que impõe a reflexão sobre o
atendimento, pela tributação, a razões de justiça. Segundo Maria de Fátima Ribeiro e Thiago
Degelo Vinha, “a política tributária é ponto crucial de definição da estrutura da sociedade. Por
isso, deve se examinar o fenômeno da tributação em harmonia com a dimensão social do
homem, sem a qual ele não se realiza integralmente [...]”150.
Sob esse aspecto, o tributo justo tem uma função social que consiste em sua utilização,
pelo Estado, como instrumento de distribuição da riqueza, o que é feito por meio da satisfação
das necessidades essenciais da população, como saúde, educação, moradia, alimentação, entre
outras.
No Estado Democrático de Direito, o dever de pagar tributos está alicerçado no
princípio da solidariedade social, que se vincula à idéia de comunidade, de pertencer e
partilhar obrigações dentro de um grupo ou formação social.151 Por meio do pagamento dos
tributos, a sociedade está cumprindo o dever de solidariedade perante os indivíduos menos
favorecidos do corpo social, uma vez que estará fornecendo ao Estado os recursos necessários
a assegurar um mínimo de dignidade a seus cidadãos.
Para ser justo, também deve o sistema tributário tratar igualmente os contribuintes que
se encontram na mesma situação. Finalmente, deve ser o sistema tributário adequado ao
desenvolvimento da economia, favorecendo a estabilização econômica, o controle da inflação
e o combate ao desemprego.152
Extremamente útil o emprego do instrumental tributário também para a viabilização da
dimensão ambiental do desenvolvimento sustentável. É da arrecadação de tributos que o
poder público retira os recursos necessários a sua atuação na defesa do meio ambiente. Esta
atuação estatal pode ser direta, como a recuperação de áreas degradadas e o investimento em
pesquisa de novas tecnologias, ou pode se dar mediante intervenção indireta sobre a atividade
econômica, como a concessão de subsídios a particulares com alguma finalidade ambiental
específica.
A Constituição brasileira determina que o Estado atue por meio de políticas públicas,
que devem ser planejadas, implementadas e fiscalizadas pelo poder público. Já na fase de
elaboração das políticas públicas ambientais é fácil reconhecer a forte relação entre a
tributação e o planejamento das mesmas, uma vez que não há como planejar algo sem que se
150
VINHA, Thiago Degelo e RIBEIRO, Maria de Fátima. Efeitos socioeconômicos dos tributos e sua utilização
como instrumento de políticas governamentais. In:PEIXOTO, Marcelo Magalhães e FERNANDES, Edison
Carlos (coord.), Tributação, justiça e liberdade. Curitiba: Juruá, 2005, p. 660.
151
BUFFON, Marciano. Tributação e dignidade humana: entre os direitos e deveres fundamentais. Porto
Alegre: Livraria do Advogado, 2009, p. 95.
152
VINHA, Thiago Degelo e RIBEIRO, Maria de Fátima. Op. cit., p. 661.
92
saiba quanto irá custar ou de onde virão os recursos para custear a implementação dos
projetos. Considerando que dentre todas as modalidades de receita pública a tributária é a
mais significativa, fica patente a relevância dos tributos para o planejamento das políticas
públicas que o Estado pretende adotar.
Não é demais lembrar que a questão do planejamento foi prestigiada pelo legislador
constituinte de 1988, que determinou, no capítulo atinente às Finanças Públicas, Artigo 165
da Constituição Federal, a obrigatoriedade de o Poder Executivo estabelecer, por leis, o Plano
Plurianual (PPA), as Diretrizes Orçamentárias (LDO) e o Orçamento Anual, instrumentos a
serem utilizados pela Administração para promover o planejamento, a programação, a
orçamentação e a execução orçamentária. Estes instrumentos devem guardar compatibilidade
entre si, de forma a integrar os planejamentos de longo e de curto prazos.
Também inconteste a relevância dos tributos no que tange à função fiscalizadora do
Estado. A implementação das políticas públicas planejadas terá sua eficácia subordinada à
constante verificação, pelos órgãos competentes, do cumprimento das metas traçadas e da
observância da legislação ambiental infraconstitucional. Dignas de menção, neste ponto, as
taxas de polícia ambiental, que se prestam ao custeio desta atividade de polícia, uma vez que a
atuação estatal pressupõe a existência de recursos orçamentários e financeiros disponíveis.
O instrumental tributário pode ainda ser utilizado com a finalidade de direcionar a
atividade econômica, quer no fomento de certos setores ou atividades, quer como forma de
coibir determinadas práticas que não se compatibilizam com os valores prestigiados pela
ordem constitucional. Esta abordagem da tributação é de extrema utilidade para a atuação do
Estado como promotor do desenvolvimento sustentável.
2.3 EXTRAFISCALIDADE: A INTERVENÇÃO ESTATAL POR MEIO DE NORMAS
TRIBUTÁRIAS INDUTORAS
A concepção dos tributos como fonte de receita para o Estado tem relevo em qualquer
modelo de Estado que se imagine. Os tributos financiam a atuação do Estado Liberal, que se
ocupa prioritariamente com a garantia das liberdades e da segurança. No modelo Social de
Estado, a função arrecadatória dos tributos é talvez ainda mais importante, na medida em que,
com mais funções a cumprir, o Estado necessita de maiores recursos que lhe permitam
desempenhar sua vasta gama de atribuições.
93
Também o Estado Democrático de Direito necessita de recursos para o desempenho de
suas funções. Em razão disto, quando a Constituição autoriza os entes políticos
constitucionais a instituir tributos está garantindo que terão os meios e recursos indispensáveis
para o desempenho de suas atribuições, o que revela a preocupação do legislador constituinte
em viabilizar o Estado.
Quando o Estado exerce sua competência tributária, ou seja, institui um tributo por
meio de lei, a finalidade última almejada, no dizer de Geraldo Ataliba, “é a transferência de
dinheiro das pessoas privadas – submetidas ao poder do estado – para os cofres públicos.”153
Este tipo de utilização do instrumental jurídico-tributário é conhecido como
“fiscalidade [e ocorre] sempre que a organização jurídica do tributo denuncie que os objetivos
que presidiram sua instituição, ou que governam certos aspectos da sua estrutura, estejam
voltados ao fim exclusivo de abastecer os cofres públicos.”154
Tendo em vista o papel atribuído ao Estado Democrático de Direito brasileiro pela
Constituição dirigente de 1988, vê-se o Estado obrigado a intervir no domínio econômico a
fim de assegurar a observância dos direitos fundamentais e do regime jurídico econômico.
Considerando as diversas opções de intervenção na atividade econômica de que trata a
Constituição, passam os tributos a ser vistos como instrumentos de que pode se valer o Estado
para atingir suas finalidades.
Segundo Antonio López Diaz:
Em este momento es cuando El tributo empieza a manifestar su doble faceta
como instrumento para el logro de fines públicos. Así al lado de su función
tradicional como recurso financeiro para allegar fondos respondiendo a su
finalidad recaudatoria, aparece la idea de los tributos como médio para el
logro directo de esas mismas finalidades.155
Ainda na vigência da ordem constitucional anterior, que muito menos preocupação
demonstrava para com os direitos fundamentais de segunda e terceira dimensão, Alfredo
Augusto Becker já afirmava que nenhuma das reivindicações pleiteadas sob o título de
Direitos Sociais poderia alcançar seu objetivo a não ser por meio de uma intervenção do
Estado na economia, e arrematava dizendo que o “Direito Tributário é justamente o
153
ATALIBA, Geraldo. Hipótese de Incidência Tributária. 5. ed., 7. tir., São Paulo: Malheiros Editores, 1998, p.
28.
154
CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de Direito Tributário. 18. ed., rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2007, p.
244.
155
DÍAZ, Antonio López. Las modalidades de la fiscalidad ambiental. In: BANDEIRA DE MELLO, Celso
Antônio. (org.) Estudos em homenagem a Geraldo Ataliba. São Paulo: Malheiros, 1997, p. 27.
94
instrumento fundamental para poder realizar sua intervenção”.156
Roque Carrazza afirma que “da concepção do tributo como meio de obtenção de
recursos avançou-se para a idéia de que ele pode e deve ser utilizado para favorecer a
realização dos mais elevados objetivos sociais, econômicos e políticos.”157 Pode-se concluir,
assim, que muitas vezes o fim visado pelo legislador tributário não é a mera arrecadação de
recursos financeiros, mas o direcionamento da atividade econômica.
À utilização dos tributos com finalidade regulatória, extremamente útil em matéria
ambiental, econômica e social, dá-se o nome de extrafiscalidade, cujo objetivo é “conduzir o
comportamento dos contribuintes, incentivando-os a adotar condutas que estejam em sintonia
com a idéia de preservação ambiental.”158
Luís Eduardo Schoueri destaca a importância da extrafiscalidade como instrumento de
intervenção estatal na economia. Ensina o doutrinador que a intervenção do Estado na ordem
econômica pode ocorrer mediante a utilização de normas jurídicas de direção ou de indução.
Na primeira hipótese, a norma estabelece comportamentos impositivos, que devem ser
necessariamente cumpridos pelos agentes econômicos. Já na intervenção por indução, as
normas não deixam o agente econômico sem alternativas, mas, dispondo sobre a concessão de
estímulos e desestímulos, levam-no a se decidir pelo caminho proposto pelo legislador.159
Segundo Shoeuri, a utilização de normas de direção é, em alguns casos, a forma mais
eficiente de intervenção estatal sobre o domínio econômico, o que ocorre quando não é
conveniente deixar para o mercado qualquer liberdade de escolha sobre como atuar. Situações
há, no entanto, em que é preferível o emprego de normas indutoras, uma vez que melhor
conciliam a intervenção estatal com a liberdade de iniciativa.160
É justamente no âmbito das normas de indução que se encaixa a tributação extrafiscal,
que consiste no abrandamento ou agravamento da tributação com o objetivo de incentivar a
adoção de comportamentos compatíveis com o que pretende certa política pública ou de
desestimular condutas que, embora lícitas, não se coadunam com os objetivos ou valores
eleitos como prioritários pela política pública adotada. São, portanto, duas as técnicas de
156
BECKER, Alfredo Augusto. Teoria Geral do Direito Tributário. São Paulo: Saraiva, 1972, p. 541.
CARRAZZA, Roque Antonio. Curso de Direito Constitucional Tributário. 21 ed. rev. ampl. e atual. até a EC
n. 48/2005. São Paulo: Malheiros Editores, 2005, p. 659.
158
RIBEIRO, Maria de Fátima. As concessões de incentivos fiscais ambientais e o princípio da igualdade
tributária. Disponível em
<http://www.conpedi.org/manaus/arquivos/anais/manaus/desenv_econom_maria_de_fatima_ribeiro.pdf> Acesso
em 08 jul. 2009.
159
SCHOUERI, Luís Eduardo. Normas tributárias indutoras e intervenção econômica. Rio de Janeiro: Editora
Forense, 2005, p. 43.
160
Op. cit., p. 49.
157
95
indução por normas tributárias passíveis de serem utilizadas pelo Estado: o agravamento da
tributação ou a concessão de vantagens tributárias.
O agravamento da tributação pode se dar pela instituição de tributo cujo fato gerador
seja um comportamento lícito, porém não desejado, ou pela majoração do tributo que atinja
especificamente aquele comportamento que se pretende desestimular. Segundo Luís Eduardo
Schoueri, no caso de utilização deste tipo de norma tributária indutora o objetivo é justamente
desencorajar a ocorrência do fato gerador, razão pela qual ela “terá, idealmente, efeito não
arrecadatório, já que tanto maior será o sucesso daquela, quanto menor for o universo de
contribuintes dispostos a incorrer no fato gerador agravado”.161
A concessão de vantagens tributárias com o intuito de motivar os contribuintes a
adotar comportamentos desejados pelo legislador é também de grande relevância como
técnica de indução por via tributária. Comumente designadas incentivos fiscais ou tributários,
as vantagens podem assumir a forma de imunidade, isenção, diferimento, concessão de
crédito presumido, reduções de base de cálculo ou mesmo redução de exigências relativas aos
deveres instrumentais a serem cumpridos pelo sujeito passivo tributário.
Valendo-se das lições de Babrowski, Luís Eduardo Schoueri afirma corresponderem
essas modalidades de incentivo a verdadeiras subvenções, que podem assim ser conceituadas:
[...] prestações pecuniárias especiais, por parte de um detentor de meios
públicos, a produtores ou a consumidores, que ultrapassam as garantias do
Estado a seus cidadãos e nas quais surge, no lugar de uma contraprestação
econômica, a obrigação ou disposição do destinatário da adoção de um
comportamento determinado, no interesse público.162
Também André Elali163 afirma serem os incentivos tributários modalidade de
subvenção, embora reconheça que as diferentes figuras relacionadas às ajudas do Estado
(subvenções, subsídios, incentivos financeiros e creditícios, emréstimos, garantias e
incentivos tributários) apresentam possíveis distinções em suas formas. Isto se deve ao fato de
que os incentivos impõem um ônus direto ou indireto ao Estado, ônus este que possui uma
expressão financeira, que deve conciliar-se com os valores expressos na ordem econômica, na
ordem financeira e na ordem tributária.
Deixando de lado a discussão acerca da melhor forma de levar o agente econômico a
161
SCHOUERI, Luís Eduardo. Normas tributárias indutoras e intervenção econômica. Rio de Janeiro: Editora
Forense, 2005, p. 205.
162
BABROWSKI, apud SCHOUERI, Luís Eduardo. Normas tributárias indutoras e intervenção econômica.
Rio de Janeiro: Editora Forense, 2005, p. 56.
163
ELALI, André. Tributação e Regulação Econômica: um exame da tributação como instrumento de regulação
econômica na busca da redução das desigualdades regionais. São Paulo: MP, 2007, p. 119.
96
seguir o caminho desejado pelo legislador – se por meio da concessão de incentivos ou se por
meio do agravamento de tributos, salienta-se a relevância da utilização de mecanismos
extrafiscais como instrumento de intervenção sobre a ordem econômica para estimular a
adoção de comportamentos que se compatibilizam com as diretrizes constitucionais relativas à
defesa do meio ambiente e do desenvolvimento sustentável.
As normas tributárias indutoras são extremamente úteis no campo das políticas
públicas e podem servir de instrumento de promoção do desenvolvimento sustentável, em
todas as suas dimensões. Seu emprego poderá se extender a quase todos os tributos, como
aqueles incidentes sobre o patrimônio, sobre a produção e circulação de bens e serviços, sobre
a renda e sobre as transmissões de bens e direitos.
Os impostos que incidem sobre a propriedade imóvel, por exemplo, são
constitucionalmente vocacionados à defesa do meio ambiente. Tanto o Imposto Territorial
Rural (ITR) quanto o Imposto Predial e Territorial Urbano (IPTU) têm sua incidência
orientada ao cumprimento da função social da propriedade que, por sua vez, só se realiza
plenamente quando se compatibiliza com os desígnios constitucionais de defesa do meio
ambiente, sendo possível falar em uma função ambiental da propriedade.
No que diz respeito ao ITR, é nítido o seu caráter extrafiscal, uma vez que a medida de
sua incidência se relaciona à forma como o direito de propriedade é exercido. Instituído com
vistas ao desestímulo de latifúndios improdutivos, também possui mecanismos de incentivo à
preservação do meio ambiente. Neste sentido, é digna de nota a determinação do Artigo 104,
parágrafo único da Lei n. 8.171/91, que prevê a isenção do ITR relativamente às áreas de
preservação permanente, de reserva legal e de interesse ecológico para a proteção dos
ecossistemas.
Quanto à utilização do IPTU para o atendimento da função social da propriedade,
ressalta-se a permissão constitucional para que sejam suas alíquotas progressivas. Esta
progressividade do imposto pode ser de caráter extrafiscal, como ensina Maria de Fátima
Ribeiro, desde que obedecido o disposto no parágrafo 1º do Artigo 156 e o disposto no Artigo
182, ambos da Constituição Federal.164
A progressividade extrafiscal do IPTU permite que o imposto municipal incida de
forma menos onerosa sobre aquelas propriedades de especial interesse ambiental cuja
preservação seja perpetrada pelo proprietário do imóvel, ou de forma mais gravosa (inclusive
164
RIBEIRO, Maria de Fátima. A progressividade temporal do IPTU no Estatuto da Cidade: reflexos no
desenvolvimento econômico. In: FERREIRA, Jussara Suzi Assis Borges Nasser; RIBEIRO, Maria de Fátima.
(Orgs.). Direito empresarial contemporâneo. Marília: UNIMAR; São Paulo: Arte & Ciência, 2007, p. 195.
97
progressivamente no tempo), quando o imóvel descumprir a função ambiental que lhe tenha
sido traçada no plano diretor do município.
Também no âmbito dos tributos incidentes sobre a produção e circulação de bens e
serviços é profícuo, no Brasil, o emprego de todas as técnicas de indução por via tributária.
Apenas a título de ilustração, pode-se citar:
•
as imunidades das exportações, cujo objetivo é a manutenção do superávit da
balança comercial brasileira. Estas imunidades referem-se ao imposto sobre
produtos industrializados (Artigo 153, parágrafo 3, III da Constituição Federal
de 1988); ao imposto sobre a circulação de mercadorias e serviços de
comunicação e de transporte interestadual e intermunicipal (Artigo 155,
parágrafo 2º, X, “a” da Constituição Federal de 1988); e às contribuições
sociais (Artigo 149, parágrafo 2º, I da Constituição Federal de 1988);
•
a isenção do IPI para os produtos fabricados na Zona Franca de Manaus,
prevista no Regulamento deste imposto, que visa à redução das desigualdades
regionais (Decreto nº 7.212, de 15/06/2010);
•
a concessão de crédito presumido para os empreendimentos industriais
instalados nas áreas de atuação da Superintendência do Desenvolvimento da
Amazônia (SUDAM) e Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste
(SUDENE), cujo objetivo é a promoção do desenvolvimento regional (Lei nº
9.826, de 23/08/99);
•
o agravamento da tributação do cigarro, por meio de imposição de alíquotas
diferenciadas do IPI (Decreto n. 6.006, de 28 de dezembro de 2006);
•
isenção do ICMS incidente sobre a comercialização de pneus usados, ainda
que recuperados de abandono, destinados à reciclagem, tratamento ou
disposição final ambientalmente adequada (Convênio ICMS nº 33/2010);
•
isenção do ICMS incidente sobre a comercialização de produtos vegetais
destinados à produção de biodiesel (Convênio ICMS nº 105/2003).
Ressalva-se que nem sempre a manipulação de um tributo com finalidade extrafiscal
atingirá os efeitos almejados pelo poder público. Isto se deve ao fato de que a técnica da
indução via norma tributária não obriga o contribuinte a seguir o caminho que se pretende
incentivar, sendo-lhe lícito escolher entre arcar com um custo tributário maior ou menor, o
que faz certamente em consideração a outros fatores além do ônus fiscal.
98
Mais grave ainda é a distorção apontada por Hugo de Brito Machado165. Segundo o
autor, um tributo criado para exercer certa função é por vezes utilizado pelo próprio governo
com objetivos muito diversos. É o que ocorre com o Imposto sobre Produtos Industrializados
incidente sobre a industrialização de cigarros, que modernamente tem intuito arrecadatório,
embora tenha inicialmente sido designado a coibir o tabagismo.
Por mais complexo que seja o emprego extrafiscal dos tributos, é certo que a utilização
de normas tributárias indutoras consiste em importante instrumento do desenvolvimento
nacional. Devem os incentivos tributários, no entanto, ser conciliados com os princípios
informadores da ordem tributária e fiscal brasileira. Dada a relevância da intervenção estatal
por meio da tributação com objetivos regulatórios, André Elali ressalta a utilização dos
instrumentos da economia, aliados aos do Direito:
É, vale dizer, indiscutível o papel da tributação na busca do desenvolvimento
econômico, devendo, para tanto, pautar-se pelos princípios constitucionais
econômicos, tributários, sem que se ponha de lado toda a teorização
econômica que pode auxiliar o direito a melhorar o nível de eficiência da
economia nacional.166
A legitimidade dos incentivos fiscais, portanto, condiciona-se a que sua concessão seja
feita na forma do que pretende a Constituição, uma vez que consistem em verdadeiro
instrumento de promoção da igualdade, na medida em que designados a reduzir as
desigualdades e a promover o bem comum, corrigindo as distorções do sistema econômico.167
Deste modo, o emprego de normas tributárias indutoras deve ser feito em estrita
consonância com os limites ao poder de tributar estabelecidos pela Constituição, assim como
com os princípios constitucionais informadores da ordem econômica.
Ressalte-se ainda que a concessão de estímulos fiscais por meio da desoneração
tributária deverá observar as limitações contidas na Lei Complementar nº 101 (Lei de
Responsabilidade Fiscal), que dificulta a concessão de incentivos, pois que estes, na maioria
das vezes, implicam renúncia de receita.
Prevê o Artigo 14 da referida lei que, se o incentivo de natureza tributária resultar em
renúncia de receita, deverá a concessão do benefício ser acompanhada de estimativa do
impacto orçamentário financeiro da renúncia, assim como da demonstração de medidas de
165
MACHADO, Hugo de Brito. A Função do Tributo nas Ordens Econômica, Social e Política. Revista da
Faculdade de Direito de Fortaleza. Fortaleza, v. 2, n. 28, p. 7.
166
ELALI, André. Tributação e Regulação Econômica: um exame da tributação como instrumento de regulação
econômica na busca da redução das desigualdades regionais. São Paulo: MP, 2007, p. 116-117.
99
compensação, ou, se for o caso, da demonstração de que as metas de resultados fiscais não
serão afetadas pela renúncia.
Uma política tributária voltada à promoção do desenvolvimento sustentável deveria
prever, ao lado do incentivo a práticas ambiental e socialmente corretas, o agravamento da
tributação incidente sobre produtos e serviços danosos ao meio ambiente ou produzidos sem a
devida consideração aos valores que informam a ordem constitucional social.
Poder-se-ia, por exemplo, tributar de maneira mais gravosa a industrialização de
plástico com o emprego de matéria-prima bruta e de maneira favorecida a industrialização de
utensílios plásticos com emprego de material reciclado. A receita “renunciada” seria
compensada pela elevação da carga tributária no processo de industrialização que se pretende
desencorajar.
De qualquer modo, é importante frisar que modernamente não se fala mais em tributo
exclusivamente fiscal ou extrafiscal, já que cada vez mais as finalidades da imposição
tributária se fundem, restando impossível sua distinção. Um tributo instituído a princípio com
objetivos meramente arrecadatórios pode repercutir de tal maneira nos preços, por exemplo,
que termina por desestimular a prática que constitui o fato gerador da exação. Assim, pode-se
no máximo dizer que o tributo tem função prevalentemente fiscal ou extrafiscal.
Ricardo Lobo Torres vai além e afirma que a extrafiscalidade encontra-se hoje
acoplada à fiscalidade. Para o autor:
A expansão do Estado Social ou Estado de Bem-Estar Social, até a década de
70 do século XX, levou ao incremento da extrafiscalidade acoplada à
fiscalidade. Os tributos, ao lado de sua função de fornecer os recursos para as
despesas essenciais do Estado, exercem o papel de agentes do
intervencionismo estatal na economia [...] Os tributos já não se apresentam
apenas como fruto do poder de tributar, mas simultaneamente como emanação
do poder de polícia, ou melhor, o poder de tributar absorve o poder de polícia
na tarefa de regular a economia.168
Resta analisar se a utilização de normas tributárias indutoras como instrumento de
promoção do desenvolvimento sustentável constitui uma mera possibilidade ou se existe
impositivo constitucional para o emprego da extrafiscalidade em matéria ambiental, de
desenvolvimento econômico e com vistas à promoção da justiça social.
Parece indubitável que, cabendo ao Estado intervir sobre a ordem econômica a fim de
168
TORRES, Ricardo Lobo. A política industrial da Era Vargas e a Constituição de 1988. In SANTI, Eurico
Marcos Diniz de (coord.). Curso de Direito Tributário e Finanças Públicas: do fato à norma, da realidade ao
conceito jurídico. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 257.
100
garantir direitos fundamentais, deverá ele se valer de todos os instrumentos que lhe foram
conferidos pela Constituição para cumprir o seu papel. Não há dúvidas de que a
extrafiscalidade representa um valioso instrumento para que se atinjam os fins objetivados
pelo legislador constituinte. Neste sentido, afirma Luís Eduardo Schoueri, que “[...] as normas
tributárias indutoras, longe de serem uma exceção, surgem em obediência ao preceito
constitucional da atuação positiva do Estado.”169
Merecem ser lembradas também as palavras de Alfredo Augusto Becker:
Toda a reforma social é efetuada mediante duas tarefas fundamentais:
destruição da antiga ordem econômica social e reconstrução da nova.
O homem elevado à dignidade de artífice de um novo mundo, encontra-se
ante esta alternativa: ou a rebelião da força bruta, ou a revolução humanista
cristã.
Para a segunda, utilizará o instrumental de todo o Direito Positivo
radicalmente renovado e nesta hipótese a tarefa da destruição (da ordem
econômica social vigorante) será simultânea com a da reconstrução.
Nesta segunda hipótese, um dos principais agentes revolucionários será o
Direito Tributário rejuvenescido, que pelo impacto de seus tributos destruirá
a antiga ordem social e, simultaneamente, financiará a reconstrução, esta
última disciplinada pelos demais ramos do Direito Positivo.170
Transpondo o raciocínio do autor para o contexto deste estudo, é possível afirmar que
a degradação do meio ambiente e as desigualdades sociais hoje constatadas representam a
ordem das coisas que precisa ser mudada. A Constituição Federal já oferece instrumentos
jurídicos – aí incluídos os tributários – suficientes para que uma revolução ambiental e de
desenvolvimento se faça pelo Direito. Cumpre aos governos, sociedade e agentes econômicos
serem sujeitos desta revolução.
2.4 OS PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS RELACIONADOS À INTERVENÇÃO
ESTATAL POR MEIO DE NORMAS TRIBUTÁRIAS INDUTORAS
A Constituição brasileira reserva capítulo próprio à disciplina dos tributos.
Inaugurando o Título VI – Da Tributação e do Orçamento, o Capítulo I trata do “Sistema
Tributário Nacional” e dispõe sobre a repartição das competências tributárias entre os entes
169
SCHOUERI, Luís Eduardo. Normas tributárias indutoras e intervenção econômica. Rio de Janeiro: Editora
Forense, 2005, p. 87.
170
BECKER, Alfredo Augusto. Teoria Geral do Direito Tributário. São Paulo: Saraiva, 1972, p. 544.
101
políticos constitucionais, as limitações ao poder de tributar e os princípios constitucionais
aplicáveis à atividade tributária do Estado e, ainda, sobre a repartição do produto arrecadado
entre os entes políticos da Federação.
Para Paulo de Barros Carvalho, é apropriada a utilização do termo “sistema” para
referir-se à ordem jurídica brasileira, uma vez que esta é composta de um conjunto organizado
de normas. Segundo o autor, este sistema de normas “é composto por subsistemas que se
entrecruzam em múltiplas direções, mas que se afunilam na busca de seu fundamento último
de validade semântica, que é a Constituição do Brasil.”171
Dentro da Constituição estão vários subconjuntos ou subclasses de normas, que podem
ser designadas subsistemas. Assim, por exemplo, o subsistema constitucional econômico e o
subsistema constitucional tributário. Todos estes subsistemas estão entrelaçados e “mantêm,
entre si, relações de coordenação horizontal, situadas que estão no mesmo plano da escala
hierárquica, tecendo, com idêntico status de juridicidade, a rede do subsistema.”172
Sacha Calmon Navarro Coêlho173 alude à existência de uma Constituição Tributária e
chama a atenção para a constitucionalização do Direito Tributário no Brasil. Segundo o autor,
a Constituição brasileira é – entre todas as Constituições do mundo – a que possui o maior
número de princípios e regras atinentes ao Direito Tributário e também a que mais
minuciosamente trata do tema da tributação.
Como conseqüência desta constitucionalização do Direito Tributário, tem-se no Brasil
um sistema tributário de alto grau de rigidez e os fundamentos do Direito Tributário, por
estarem enraizados na Constituição, projetam-se sobre as ordens jurídicas parciais da União,
dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios.
Não cabe à Constituição instituir tributos, mas autorizar a União, os Estados, o Distrito
Federal e os Municípios que, por meio de lei, criem as exações que lhe foram
constitucionalmente atribuídas. É a Constituição, ainda, que delineia o perfil das exações
tributárias admitidas no ordenamento jurídico.
Segundo o Artigo 145 da Constituição Federal podem ser instituídas, no Brasil, as
seguintes espécies de tributos: i) impostos; ii) taxas; e iii) contribuições de melhoria. Mais
adiante, é facultada ainda a instituição de: iv) empréstimos compulsórios (Artigo 148); e v)
contribuições sociais, de intervenção no domínio econômico e de interesse das categorias
profissionais e econômicas (Artigo 149).
171
CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de Direito Tributário. 22. ed., São Paulo: Saraiva, 2010, p. 188.
Op. cit., p. 188.
173
COÊLHO, Sacha Calmon Navarro. Curso de Direito Tributário Brasileiro. 4. ed., Rio de Janeiro: Forense,
1999, p. 46.
172
102
Todas as espécies tributárias contempladas no ordenamento constitucional brasileiro
relacionam-se ao desenvolvimento sustentável, na medida em que são os tributos fonte de
custeio da atuação estatal. Assim, as diferentes dimensões do desenvolvimento sustentável
podem ser atendidas mediante atuação estatal custeada por esta ou aquela exação tributária.
As taxas, por exemplo, prestam-se muito bem ao atendimento da dimensão ambiental
do desenvolvimento sustentável, pois podem ser fonte de custeio da atividade estatal voltada à
recuperação e defesa do meio ambiente, como a coleta do lixo urbano ou a coleta e tratamento
de esgoto. Especialmente relevantes do ponto de vista ambiental são as taxas de polícia, que
custeiam ações estatais tendentes a controlar a exploração da atividade econômica e da
propriedade pelo particular, por meio da fiscalização.
Também merecem destaque como fonte de custeio de atividade estatal voltada às
questões ambientais e de desenvolvimento sustentável as contribuições, em especial as de
intervenção no domínio econômico. Como o próprio nome está a indicar, uma contribuição é
dita de intervenção no domínio econômico quando o produto de sua arrecadação se destina a
custear uma atuação estatal interventiva. Considerando então que a intervenção do Estado
com vistas à promoção do desenvolvimento sustentável se justifica em razão de ser este um
direito fundamental, fica afirmada a possibilidade de custeio por meio da contribuição de
intervenção no domínio econômico.
Ainda tendo em conta a função fiscal dos tributos, não se pode deixar de mencionar os
impostos, que ainda hoje são a maior fonte de receita estatal, dentre todas as espécies
tributárias. Por serem tributos não vinculados a uma atuação estatal especificamente voltada
ao contribuinte, são eles a principal fonte de custeio das atividades gerais do Estado, entre as
quais se incluem ações governamentais de cunho ambiental e de caráter social, de modo
especial aqueles serviços públicos inespecíficos e indivisíveis que, por vedação constitucional
expressa, não podem ser remunerados por meio de taxa.
A maior qualidade dos impostos, no entanto, e que se afirma também em relação aos
demais tributos não vinculados, reside na larga possibilidade de sua utilização extrafiscal com
vistas à indução de comportamentos, servindo de instrumento para a atuação estatal
regulatória. Não que sejam os impostos a única espécie tributária a possibilitar o exercício da
extrafiscalidade, uma vez que, como já afirmado anteriormente, a tendência atual é de que
todo tributo traga em seu bojo uma carga de extrafiscalidade, ainda que não tenha sido
inicialmente desenhado com o intuito de incentivar ou desestimular comportamentos. Os
impostos, entretanto, cumprem esta função com mais frequencia e maior desenvoltura.
São, portanto, os tributos não vinculados de especial interesse para este estudo, que se
103
propõe a tratar de uma política tributária voltada à reciclagem, com vistas à promoção do
desenvolvimento sustentável. Para tanto, necessário investigar de que maneira o instrumental
tributário abordado na Constituição Tributária pode ser utilizado para atuação do Estado
regulador, de que se ocupa a Constituição Econômica e que limites encontra o Estado para
neste sentido atuar.
A este respeito, destaca-se a advertência feita por Geraldo Ataliba que, embora feita
em relação à ordem tributária posta na Constituição de 1967, permanece atual:
É imprescindível fixar com clareza e peremptoriamente que, se o
instrumento escolhido para o exercício das faculdades regulatórias da
atividade econômica ou social forem os tributos, o regime jurídico que lhes
é peculiar incidirá plenamente, sem qualquer reserva, exceção ou alteração
– no nosso sistema.
[...]
O uso do instrumento tributário é limitado pelos princípios constitucionais
específicos e genéricos, seja qual for a finalidade para que seja usado. A
competência tributária já é concedida pela Constituição, restritamente. Já
vem inicialmente gravada de ônus limitativos expressos, que devem ser
inapelavelmente observados, pena de nulidade das normas que os
contrariem.174
A partir desta advertência, ganha relevo a análise dos princípios constitucionais
tributários que mais de perto dizem respeito à utilização dos tributos com finalidade
regulatória. Haverão os referidos princípios que ser conciliados com aqueles outros que
informam a ordem constitucional econômica uma vez que, como já afirmado anteriormente,
estes subsistemas constitucionais se entrecruzam e se relacionam a todo momento, possuindo,
no entanto, o mesmo fundamento de validade semântica, que é a Constituição brasileira.
A Constituição de 1988 determina a adoção da forma federativa de Estado, quando
dispõe, em seu Artigo 1º, que a República Federativa do Brasil é formada pela união
indissolúvel dos Estados, Municípios e do Distrito Federal. Mais adiante, em seu Artigo 18,
caput, a Constituição confere também aos municípios o status de entes desta Federação,
quando lhes atribui autonomia política idêntica àquela conferida aos demais entes federados.
Sendo o federalismo princípio sensível da Constituição brasileira, eis que alçado à
condição de cláusula pétrea pelo Artigo 60, parágrafo 4º, I da Constituição, insta investigar
qual o seu conteúdo e de que maneira repercute na ordem constitucional tributária e na
econômica.
174
ATALIBA, Geraldo. Sistema Constitucional Tributário Brasileiro. São Paulo: RT, 1968, pp. 167-168.
104
No Estado federal brasileiro existe uma divisão espacial do poder entre os entes
federados (União, Estados-membros, Distrito Federal e Municípios), cuja união é
indissolúvel.175 Aos entes federados é concedida autonomia, mas não soberania, que é
reservada exclusivamente ao Estado Federal e que foi, ademais, erigida à condição de
fundamento da república Federativa, conforme disposto no Artigo 1º, I da Constituição
brasileira.176
No modelo federal, os entes políticos constitucionais conferem as atribuições da
soberania a um órgão central, que é a União. Os demais membros – assim como a União –
permanecem detentores de autonomia, que haurem diretamente da Constituição. Esta, ao
distribuir as competências entre os entes federados o faz sem estabelecer qualquer hierarquia
entre eles.
Na federação brasileira instituída pela Constituição de 1988, a União, os Estados, o
Distrito Federal e os Municípios são dotados de autonomia administrativa, política e
financeira. Isto significa que cada ente federado elege seus governantes e resolve sobre a
estrutura administrativa que melhor lhe aprouver. Quanto à autonomia financeira, cumpre à
Constituição Federal garantir que cada membro da Federação tenha recursos financeiros
suficientes ao cumprimento de suas funções. No caso brasileiro, isto dá mediante a
distribuição constitucional das competências tributárias e mediante a fixação de regras que
determinam o repasse de dinheiro de um ente federado a outro, por meio dos fundos de
participação.
A rígida discriminação de competências tributárias feita em âmbito constitucional é
que garante aos entes políticos constitucionais autonomia financeira, constituindo importante
instrumento para que uma ordem jurídica parcial não subjugue a outra. É uma forma de
assegurar que cada ente federado possa obter os recursos necessários à consecução dos
encargos que lhe são atribuídos, evitando-se interferências indevidas de uma unidade nos
interesses de outra.177
Dentre as diversas configurações de federalismo reconhecidas pela doutrina
(federalismo centrípeto ou de centralização; federalismo centrífugo; federalismo de equilíbrio,
federalismo dualista e federalismo cooperativo), é possível vislumbrar que o modelo
175
TAVARES, André Ramos. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 730.
ARAÚJO, Luiz Alberto David e NUNES JÚNIOR, Vidal Serrano. Curso de Direito Constitucional. 6. ed.,
rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 212.
177
CHIESA, Clélio. A competência tributária do Estado brasileiro: desonerações nacionais e imunidades
condicionadas. São Paulo: Max Limonad, 2002, p. 28.
176
105
pretendido pela Constituição brasileira é o federalismo de cooperação. A esta conclusão se
chega pela análise do disposto nos Artigos 23 e 170, VII da Constituição Federal de 1988.
O federalismo de cooperação consubstancia-se na necessidade de os entes federados
trabalharem de forma harmônica e conjunta para a resolução dos problemas do país. Neste
tipo de federalismo, está sempre presente a idéia de união, de aliança e de solidariedade entre
os membros da Federação e é freqüente a previsão de auxílios federais aos Estadosmembros.178
No modelo cooperativo de Federação, o conceito de autonomia é relativizado. Por esta
razão, embora tenha a Constituição discriminado as competências tributárias, facultando aos
entes federados a instituição de tributos que lhes garantam receita própria e certo grau de
autonomia financeira, tratou o legislador constituinte de impor certos limites ao exercício
dessas competências, relativamente à possibilidade de desonerar tributos.
A competência para desonerar da tributação não tem exatamente a mesma
configuração da competência para a instituição de tributos, pois como ensina Clélio Chiesa:
No tocante à competência desonerativa, o constituinte também foi bastante
criterioso, pois indicou as pessoas habilitadas para tanto e também
estabeleceu limites à desoneração da tributação. O constituinte não deixou
essa tarefa totalmente ao alvedrio dos legisladores ordinários, fixou regras
destinadas a evitar abusos na concessão de benefícios e a impedir que a
desoneração seja utilizada como instrumento de disputas tributárias entre as
unidades tributantes.179
A questão das desonerações tributárias é bastante complexa em uma Federação como
a brasileira. Por um lado, podem os incentivos tributários ser importante instrumento de
correção das desigualdades existentes, e contribuir para um maior equilíbrio entre os entes
políticos constitucionais. Por outro lado, pode a intervenção estatal que se vale do
instrumental tributário implicar ofensa a princípios constitucionais econômicos importantes,
como a livre concorrência, ou ao próprio princípio federativo.
Parece certo que todos os valores constantes da Constituição precisam ser conciliados.
Afinal, como lembra André Elali, “da mesma forma que a Constituição estabelece o modo de
178
PORFÍRIO JÚNIOR, Nelson de Freitas. Federalismo, tipos de Estado e conceito de Estado Federal. In
CONTI, José Mauricio. Federalismo Fiscal. Barueri, SP: Manole, 2004, p. 9.
179
CHIESA, Clélio. A competência tributária do Estado brasileiro: desonerações nacionais e imunidades
condicionadas. São Paulo: Max Limonad, 2002, p. 32.
106
ser da ordem jurídica [estatal], define como deve ser a ordem econômica, através de
comandos com evidente força normativa.”180
A intervenção do Estado sobre o domínio econômico pela via tributária pode
promover um maior equilíbrio entre os diversos entes federados, o que só vem a fortalecer a
concepção de federalismo adotada pela Constituição brasileira. Há que se ressaltar, entretanto,
que o que justifica a intervenção do Estado sobre a economia – seja ela pela via tributária ou
não – é sempre um valor presente na Constituição.
Os incentivos são políticas cujo objetivo é atrair o interesse dos agentes econômicos
para alguma atividade ou lugar. São úteis instrumentos de intervenção estatal na economia,
lembrando que esta é admitida com o objetivo de garantir o regime jurídico econômico
constitucional. Disto decorre que um incentivo não pode ser concedido para viabilizar certo
princípio constitucional econômico, se isto implicar afronta a outro valor constitucionalmente
prestigiado.
Como exemplo de incentivo fiscal bem-sucedido pode-se citar as desonerações do IPI
para produtos fabricados na zona franca de Manaus. Além de levar o desenvolvimento àquela
região do país, contribuindo para a redução das desigualdades regionais existentes e para a
realização do princípio do pleno emprego, o estímulo tributário assegura também a livre
concorrência, pois uma empresa situada em região de difícil acesso e infra-estrutura deficiente
dificilmente poderia manter-se no mercado e concorrer com aquelas que em muito menos
custo incorrem relativamente a transporte, qualificação de pessoal e logística.
Somente será legítima a utilização de normas tributárias de indução quando as mesmas
forem compatíveis com todos os princípios constitucionais. Esta a razão de ter a Constituição
brasileira fixado limites objetivos para as desonerações tributárias. Dentre estes, destacam-se
as regras atinentes às desonerações relacionadas ao ICMS e, mais recentemente, ao ISSQN,
cuja finalidade não é outra senão a preservação do equilíbrio entre os entes federados e, em
última análise, da própria forma federativa de Estado.
Os impostos incidentes sobre a produção e a circulação de mercadorias e serviços
repercutem diretamente no preço final dos produtos e serviços. Os incentivos governamentais
concedidos em relação a estes impostos possuem, portanto, o efeito imediato de diminuir o
180
ELALI, André. Tributação e Regulação Econômica: um exame da tributação como instrumento de regulação
econômica na busca da redução das desigualdades regionais. São Paulo: MP, 2007, pp.34-35.
107
custo de produção e comercialização, o que torna a atividade econômica mais ou menos
atraente para a iniciativa privada.181
Dentre estes impostos que incidem sobre o consumo, a concessão de estímulos
tributários em relação ao IPI não apresenta grandes dificuldades, em razão de ser este tributo
eminentemente regulador. Também por ser o imposto de competência da União, não há risco
de serem as desonerações tributárias utilizadas como instrumento do que ficou conhecido
como “guerra fiscal”, que pode ser conceituada como a concessão de benefícios fiscais, por
parte dos Estados-membros ou dos Municípios, com a finalidade de atrair para seus territórios
investimentos privados, na tentativa de promover desenvolvimento econômico e geração de
empregos.
Em regra, os incentivos concedidos referem-se ao ICMS, no caso dos Estados, e ao
ISSQN, no caso dos municípios. É comum, ainda, a concessão de estímulos relacionados a
outros tributos, como o IPVA e o IPTU, incidentes sobre o patrimônio ou, ainda, incentivos
financeiros. Estes, no entanto, não possuem a mesma importância econômica dos primeiros,
em especial, dos benefícios fiscais relacionados ao ICMS.
Necessário salientar que, no âmbito da guerra fiscal, os incentivos são concedidos ao
arrepio do que dispõe a Constituição Federal. Esta prevê, em seu Artigo 155, XII, g, que cabe
à Lei Complementar regular a forma como, mediante deliberação dos Estados e do Distrito
Federal serão concedidos quaisquer benefícios fiscais relativos ao ICMS, sejam eles na forma
de isenção, redução de base de cálculo, manipulação de alíquotas, anistia ou remissão.
Regula a matéria a Lei Complementar nº 24/75, que, recepcionada pela Constituição
de 1988, condiciona a concessão de benefícios relacionados ao ICMS a anterior aprovação
pelo CONFAZ, que é um Conselho Fazendário no qual todos os Estados da Federação
possuem representação. Para que seja considerado legítimo o benefício fiscal pretendido por
qualquer Estado, é exigida a aprovação unânime de todos os Estados representados.
Tendo em conta a importância econômica do ICMS e a questão federativa, o Artigo
155, IV da Constituição Federal determina ainda que cabe ao Senado Federal, por meio de
Resolução aprovada pela maioria absoluta de seus membros, fixar as alíquotas aplicáveis às
operações e prestações interestaduais e de exportação182. É também facultado ao Senado
181
LOSS, Giovani R. A Guerra Fiscal e a Concorrência: a análise dos incentivos financeiros. In: Anais do XV
Congresso Brasileiro de Direito Tributário. São Paulo: IDEPE – Instituto Geraldo Ataliba, 2002, p. 138.
182
No que tange às alíquotas relativas à exportação, entende-se que não mais se aplica o dispositivo em questão,
uma vez que, com a edição da Emenda Constitucional nº 42, de 19 de dezembro de 2003, foi modificada a
redação do inciso X, a do Artigo 155 da Constituição Federal, para determinar a imunidade das operações que
destinem quaisquer mercadorias ou serviços ao exterior.
108
Federal estabelecer alíquotas mínimas e fixar alíquotas máximas para as operações internas,
conforme prescreve o Artigo 155, V da Constituição.
No caso do ISSQN, da competência dos Municípios, não existiam regras
constitucionais específicas, que pudessem coibir eventuais disputas entre os Municípios por
meio de desonerações tributárias. Uma vez constatado, no entanto, que também os Municípios
valiam-se do expediente denominado guerra fiscal, a Emenda Constitucional nº 37, de 37 de
junho de 2002, acrescentou o Artigo 88 ao Ato das Disposições Constitucionais Transitórias,
o qual estabelece uma alíquota mínima de dois por cento para o ISSQN, além de determinar
que nenhuma modalidade de isenção ou incentivo poderá resultar em alíquota menor que dois
por cento, a não ser em relação aos serviços ali excepcionados.
No âmbito da guerra fiscal, entretanto, todas as disposições constitucionais e legais
acima explanadas são desconsideradas. Julgando ser seu papel intervir sobre o domínio
econômico para garantir o desenvolvimento – e muitas vezes alegando que estão respaldados
no que dispõe a Constituição Federal em sua Ordem Econômica (Artigo 170) ou na Ordem
Social (Título 8º) – governantes estaduais insistem em reagir às crises, ou a décadas de
nenhum investimento público em infraestrutura, por meio do expediente da guerra fiscal.
O argumento daqueles que defendem a guerra fiscal é que o instrumental tributário é
um dos únicos de que dispõem os Estados menos desenvolvidos para atrair investimentos para
seus territórios, pois, não fosse a concessão de incentivos, os agentes econômicos sempre
optariam por se instalar nas regiões mais desenvolvidas do país, o que agravaria o quadro das
desigualdades regionais.183
Parece certo que a redução de impostos realmente tem o condão de interferir na
decisão da racionalidade econômica, atraindo investimentos para o Estado ou Município que
acene com os incentivos. O problema, no entanto, é que, para fazer frente à competição
lançada por um Estado, os demais entram no jogo da guerra fiscal e esta acaba por se
generalizar. Com isto, perdem os incentivos a eficácia inicialmente prevista, uma vez que as
empresas acabam por se fixar naquele local que lhe é mais conveniente, já que o benefício
viria de qualquer maneira.
Há que se considerar ainda os efeitos perversos da guerra fiscal sobre a concorrência,
que são assim explicados por Giovani R. Loss:
183
CAMARGO, Guilherme Bueno de. A Guerra Fiscal e seus Efeitos: Autonomia X Centralização. In CONTI,
José Mauricio. Federalismo Fiscal. Barueri, SP: Manole, 2004, p. 210.
109
A ‘guerra fiscal’ prejudica a concorrência entre as empresas e tem
conseqüências diretas nos cofres dos Estados brasileiros, resultando em
verdadeiras ‘falhas de mercado’. Nesse particular, os incentivos têm efeitos
deletérios regressivos, configurando vantagens competitivas artificiais e
afetando a prestação de serviços públicos.184
Ainda segundo o autor, em razão das implicações que tem a guerra fiscal na livre
concorrência, permitindo que empresas incentivadas, ainda que auferindo lucros, possam
‘predatoriamente eliminar do mercado suas concorrentes não favorecidas, mesmo que estas
sejam mais eficientes e inovadoras’185, a concessão de estímulos fiscais e financeiros, pelos
Estados, pode sofrer o controle do CADE (Conselho Administrativo de Defesa Econômica).
O fundamento para esta possibilidade seria o Artigo 20, I da Lei nº 8.884, de 11 de junho de
1994.
A questão da guerra fiscal pode fazer crer que a concessão de estímulos tributários por
parte dos entes federativos é indesejável. Este raciocínio, entretanto, é precipitado. A
intervenção do Estado sobre o domínio econômico pela via das subvenções tem máxima
importância e o instrumental tributário é de extrema utilidade para viabilizar a atuação estatal,
sobretudo no que concerne às questões sociais, ambientais e de desenvolvimento econômico.
A guerra fiscal representa a ordem das coisas que não deve ser, “uma demonstração
típica de má utilização da política de beneficiamento, promovida pelos governos estaduais.”186
As políticas públicas que se valem da utilização de normas tributárias indutoras podem e
devem ser positivas, dependendo, unicamente, da forma como forem planejadas e
implementadas. Na Constituição Federal encontram-se todos os parâmetros indicadores do
que pode e deve ser uma política tributária socialmente justa, economicamente eficiente e que
atenda ao princípio da cooperação entre os entes federados.
Outro princípio constitucional cuja observância determina a legitimidade ou não de
uma norma tributária indutora é o da igualdade, afirmada como direito fundamental pela
Constituição Federal de 1988 que dispõe, em seu Artigo 5º, que “todos são iguais perante a
lei, sem distinção de qualquer natureza”187. No campo tributário, a igualdade é afirmada no
Artigo 150, II da Constituição Federal, que veda à União, aos Estados, ao Distrito Federal e
184
LOSS, Giovani R. A Guerra Fiscal e a Concorrência: a análise dos incentivos financeiros. In: Anais do XV
Congresso Brasileiro de Direito Tributário. São Paulo: IDEPE – Instituto Geraldo Ataliba, 2002, p. 163.
185
Resposta do CADE a consulta do PNBE, apud LOSS, Giovane R. A Guerra Fiscal e a Concorrência: a análise
dos incentivos financeiros. In: Anais do XV Congresso Brasileiro de Direito Tributário. São Paulo: IDEPE –
Instituto Geraldo Ataliba, 2002, p. 152.
186
LOSS, Giovani R. Op. cit., p. 139.
187
BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado, 1988.
110
aos Municípios instituir tratamento desigual entre contribuintes que se encontrem em situação
equivalente.
Embora seja o princípio em comento de inegável relevância jurídica e densidade no
sistema jurídico brasileiro, seu conceito constitucional não é de fácil determinação, uma vez
que, como afirma Paulo de Barros Carvalho, “em função de sua plasticidade, amolda-se
diferentemente aos múltiplos campos de incidência material das regras jurídicas, o que torna
penosa a indicação precisa de seu conteúdo”. 188
A igualdade como valor jurídico oponível contra o Estado ganhou força durante o
iluminismo, cujo lema revolucionário liberdade, igualdade e fraternidade revela que os três
princípios estão irremediavelmente atrelados, um não subsistindo na ausência dos demais. A
partir da concepção iluminista, é possível afirmar que não existe igualdade sem fraternidade e
liberdade, valendo o mesmo raciocínio em relação aos valores liberdade e fraternidade: não se
é verdadeiramente livre quando não se goza de igualdade e não se vive em fraternidade, nem é
possível ser fraterno sem que se possa ser livre e quando haja qualquer tipo de opressão.
O papel da lei, no entanto, é fundamental para a que o princípio da igualdade se faça
eficaz. Para Montesquieu, a igualdade, embora inata ao ser humano, não permanece sem a
força do Direito. Segundo o pensador iluminista:
No estado da natureza, os homens nascem na igualdade, porém não podem
permanecer neste estado. A sociedade faz com que eles percam essa
igualdade, a qual somente é reencontrada por intermédio das leis.
Assim como o céu está afastado da terra, assim também o está o espírito de
igualdade do espírito da igualdade extrema. O primeiro não consiste em
fazer de modo que todos comandem ou que ninguém seja mandado, mas
sim em obedecer e comandar seus iguais. Não procura não ter senhores,
mas tão-só ter seus iguais por senhores. 189
O legislador constituinte brasileiro, ao instituir o princípio constitucional da igualdade,
dirigiu-o, num primeiro momento, ao legislador, a quem incumbe, na edição das leis que
governarão uma sociedade, atentar-se à igualdade entre os membros desta sociedade. É isto o
que afirma Celso Antônio Bandeira de Mello, que em obra elucidativa sobre o real significado
da igualdade para o Direito brasileiro, assim leciona:
A Lei não deve ser fonte de privilégios ou perseguições, mas instrumento
regulador da vida social que necessita tratar equitativamente todos os
188
CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de Direito Tributário. 18. ed., rev. e atual., São Paulo: Saraiva, 2007,
p. 159.
189
MONTESQUIEU. O Espírito das Leis. São Paulo: Editora Martin Claret, 2002, p. 126.
111
cidadãos. Este é o conteúdo político-ideológico absorvido pelo princípio da
isonomia e juridicizado pelos textos constitucionais em geral, ou de todo
modo assimilado pelos sistemas normativos vigentes. 190
Ainda segundo o doutrinador, a lei que se conforma ao princípio da igualdade garante
aos cidadãos que, “ao se cumprir uma lei, todos os abrangidos por ela hão de receber
tratamento parificado, sendo certo, ainda, que ao próprio ditame legal é interdito deferir
disciplinas diversas para situações equivalentes”191.
Uma vez estabelecido que o tratamento equinânime de situações equivalentes é
inerente ao princípio da igualdade, resta a questão de como tratar as situações de
desigualdade, o que interessa de perto ao presente estudo, cujo objeto é justamente a
implementação de uma política pública tributária diferenciada para o setor da reciclagem de
resíduos, tendo em conta um valor constitucional relevante, que é o desenvolvimento
sustentável.
Para Roque Antonio Carrazza, o princípio da igualdade tem um conteúdo
eminentemente negativo, consistente na abolição e afastamento dos privilégios.192 O autor
adverte, no entanto, que este é apenas o conteúdo formal do primado da igualdade, restando
estabelecer-se, pois, a sua substância.
Foi Ruy Barbosa quem, em sua famosa Oração aos Moços, mais se aproximou do
conteúdo material da igualdade e, portanto, de sua repercussão tanto na elaboração das leis
brasileiras quanto na sua aplicação. Antes de referir-se ao princípio da igualdade, o ilustre
brasileiro afirma a diversidade inerente a todas as coisas no universo, desde os ramos de uma
só árvore aos traços da polpa de um dedo humano. E é em consideração às diferenças que Ruy
Barbosa assim se refere, apaixonadamente, à igualdade:
A regra da igualdade não consiste senão em aquinhoar desigualmente aos
desiguais, na medida em que se desigualam. Nesta desigualdade social,
proporcionada à desigualdade natural, é que se acha a verdadeira lei da
igualdade. O mais são desvarios da inveja, do orgulho, ou da loucura. Tratar
com desigualdade a iguais, ou a desiguais com igualdade, seria
desigualdade flagrante, e não igualdade real. Os apetites humanos
conceberam inverter a norma universal da criação, pretendendo, não dar a
cada um, na razão do que vale, mas atribuir o mesmo a todos, como se
todos se equivalessem.193
190
BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. O Conteúdo Jurídico do Princípio da Igualdade. 3. ed., 10. tir.,
São Paulo: Malheiros Editores, 2002, p. 10.
191
Op. cit., p. 10.
192
CARRAZZA, Roque Antonio. Curso de Direito Constitucional Tributário. 21. ed., rev., ampl. e atual., São
Paulo: Malheiros Editores, p. 57.
193
RUY BARBOSA, Oração aos Moços. Rio de Janeiro: Ediouro, p. 55.
112
É justamente o tratamento das desigualdades que possibilitará o conhecimento real do
conteúdo jurídico do princípio da isonomia, como quer Celso Antonio Bandeira de Mello.
Segundo o doutrinador, eis a correta indagação a ser feita por aqueles que pretendem conhecer
o princípio em exame: “Quando é vedado à lei estabelecer discriminações? Ou seja: quais os
limites que adversam este exercício normal, inerente à função legal de discriminar?
Respondida a indagação, o problema do conteúdo real da isonomia terá [...] deslinde.”194
Para um jurista, lugar outro não há para a busca da resposta àquelas questões senão
dentro do Direito. Assim, parece claro que há que se investigar, no próprio texto
constitucional, os valores que ali estão ressaltados, assim como os comportamentos que não
são tolerados. É a partir desta análise que se chega ao conteúdo juridicamente protegido pelo
primado da igualdade.
Neste contexto, as desigualdades contempladas pela lei infraconstitucional serão
legítimas caso sejam consideradas a fim de proporcionar aos desiguais um direito garantido
pela Constituição, como, por exemplo, a redução das desigualdades regionais ou das
desigualdades sociais. É o caso de lei federal que concede isenção de tributo para
contribuintes que exerçam suas atividades em região mais pobre do país.
Ao inverso, contrária ao princípio da igualdade seria uma lei que concedesse isenção
de tributo em razão da religião de determinado grupo de contribuintes, eis que o fator
“religião”, assim como os fatores “sexo” e “raça”, não é admitido como fator discriminante
possível no sistema jurídico constitucional brasileiro. A este respeito:
[...] fica sublinhado que não basta a exigência de pressupostos fáticos
diversos para que a lei distinga situações sem ofensa à isonomia, Também
não é suficiente o poder-se argüir fundamento racional, pois não é qualquer
fundamento lógico que autoriza desequiparar, mas tão-só aquele que se
orienta na linha de interesses prestigiados na ordenação jurídica máxima.
Fora daí ocorrerá incompatibilidade com o preceito igualitário.195
O conteúdo do princípio jurídico da igualdade relaciona-se ao próprio conceito de
justiça. Do mesmo modo, a igualdade tributária diz respeito ao conceito de justiça fiscal. E
este princípio, ensina Paulo Caliendo, “não pode ser corretamente aplicado ao tomar em
194
BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. O Conteúdo Jurídico do Princípio da Igualdade. 3. ed., 10. tir.,
São Paulo: Malheiros Editores, 2002, p. 13.
195
Op. cit., p. 43.
113
consideração uma atividade econômica sem levar em conta outro princípio de igual estrutura:
a neutralidade fiscal.”196
Relaciona-se a neutralidade, em um primeiro momento, àquele conteúdo negativo do
princípio da igualdade, consistente no afastamento de privilégios e diferenças de tratamento
entre aqueles que se sujeitam à imposição tributária. Considerando que o tributo sempre tem
por causa (fato gerador) um fato economicamente mensurável, é certo admitir que todo tributo
terá sempre algum efeito (econômico) sobre a sociedade e os agentes econômicos.
Segundo o princípio da neutralidade fiscal, o Estado deve implementar suas políticas
tributárias com o mínimo de efeitos negativos para a sociedade. Do mesmo modo, a influência
exercida pela tributação sobre as decisões econômicas deve causar o menor impacto possível
no sistema de formação de preços. Quando isto ocorre, tem-se um sistema tributário ótimo,
que realiza suas funções com um mínimo de interferências nas decisões econômicas. 197
Para Geraldo Ataliba, entretanto, o ideal da neutralidade econômica da tributação é
inalcançável. Segundo o doutrinador: “é, com efeito, notável que a tributação exerce
influências instigantes ou depressivas, na economia em geral. Não existem e não parece que
possam existir as sonhadas finanças neutras”.198
O cotejo entre os princípios da igualdade tributária e da neutralidade econômica da
tributação leva a concluir que, se a tributação há que interferir de alguma forma sobre a
racionalidade econômica, que o faça da mesma maneira para todos os agentes que exercem
certo ramo da atividade econômica ou que se encontram na mesma situação, vedada a
concessão injustificada de privilégios para uns, em detrimento de outros. Neste ponto,
relacionam-se a igualdade e a neutralidade fiscal a dois outros princípios informadores da
ordem econômica constitucional: a livre iniciativa e a livre concorrência.
A estreita relação entre os referidos princípios pode ser depreendida da leitura do
Artigo 146-A da Constituição Federal, que faculta à Lei Complementar o estabelecimento de
critérios especiais de tributação, com o objetivo de prevenir desequilíbrios da concorrência,
mantida a possibilidade de a União, por meio de lei ordinária, estabelecer normas com o
mesmo objetivo. O mencionado dispositivo constitucional determina a neutralidade dos
tributos em face da atividade econômica, assim como a adoção de mecanismos que assegurem
que a tributação não afetará a livre concorrência.
196
CALIENDO, Paulo. Direito Tributário e Análise Econômica do Direito: uma visão crítica. Rio de Janeiro:
Elsevier, 2009, p. 116.
197
Op. cit., p. 103 e 113.
198
ATALIBA, Geraldo. Sistema Constitucional Tributário Brasileiro. São Paulo: RT, 1968, p. 150.
114
A questão torna-se ainda mais instigante quando se trata de conciliar o princípio que
dispõe sobre a neutralidade econômica do tributo e a livre concorrência com o aspecto
material da igualdade, que determina a adoção de ações afirmativas em relação aos desiguais,
a fim de possibilitar àqueles que se encontram em situação de inferioridade que possam
equiparar-se, em direitos, aos mais privilegiados.
A intervenção sobre o domínio econômico pela via tributária corresponde, em muitos
casos, à adoção de uma ação afirmativa cujo objetivo é justamente o de reagir à desigualdade,
seja ela econômica ou social. Ao contrário de ofender o princípio da livre concorrência,
muitas vezes será o incentivo a maneira de possibilitar a permanência, no mercado, daquele
agente econômico que, por fatores externos à sua atividade, não teria condições de competir
caso não lhe fosse conferido um tratamento tributário mais benéfico. Em caso tal, seria a
política tributária instrumento de realização do primado da isonomia.
Há, no entanto, que se ter o cuidado de não generalizar. Nem todo incentivo se presta à
realização da igualdade. Haverá que ser analisado sempre o caso concreto e a finalidade da
política tributária proposta. Esta, para ser considerada legítima, deverá compatibilizar-se com
todos os princípios constitucionais.
Se a neutralidade da tributação diz respeito à proibição de tratamento desigual entre
contribuintes, razão pela qual se relaciona à igualdade, também integra o seu conteúdo a
exigência de respeito à capacidade contributiva. Afinal, não há como ser economicamente
neutra uma imposição tributária confiscatória, que incida sobre a riqueza do contribuinte
desproporcionalmente à força que tem este para contribuir.
A tributação de agentes econômicos além ou aquém de sua capacidade contributiva
pode ter o condão de afetar a capacidade competitiva dos concorrentes, o que ofende de morte
não só o princípio da livre concorrência, que diz respeito ao direito que tem o agente
econômico de manter-se no mercado, como, também, o primado da isonomia.
Dispõe o Artigo 145, parágrafo 1º da Constituição brasileira que “sempre que
possível, os impostos terão caráter pessoal e serão graduados segundo a capacidade
econômica do contribuinte”.199 No dispositivo citado está expresso o princípio da capacidade
contributiva, ou capacidade econômica, cujo conteúdo é explicitado por Geraldo Ataliba:
Capacidade econômica há de entender-se como a real possibilidade de
diminuir-se patrimonialmente o contribuinte, sem destruir-se e sem perder a
possibilidade de persistir gerando riqueza como lastro à tributação. A
199
BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado, 1988
115
violação dessa – pelos excessos tributários – configura confisco,
constitucionalmente vedado, além de suprema irracionalidade.200
A capacidade contributiva diz respeito aos limites quantitativos dentro dos quais deve
o legislador infraconstitucional se pautar para a configuração do tributo a ser instituído.
Possui estreita relação com o primado constitucional que veda a tributação confiscatória.
Estão os dois princípios superpostos, não sendo possível a existência de um sem o outro.201
Juntos, o princípio da capacidade contributiva e o da vedação ao confisco significam
que, em sua atividade tributária, deverá o Estado respeitar o princípio constitucional que
garante o direito de propriedade e também aquele assecuratório da livre iniciativa. Assim, será
legítima a imposição tributária que, por razoável, não inviabilizar a propriedade ou o acesso
ao mercado, assim como o exercício de atividade econômica.
Esta, no entanto, é apenas uma das facetas do princípio em comento. Uma outra
implicação da capacidade contributiva é a repartição do ônus tributário de maneira equitativa
entre os sujeitos passivos da tributação. A este respeito ensina Paulo de Barros Carvalho:
Da providência contida na escolha de eventos presuntivos de fortuna
econômica decorre a possibilidade de o legislador, subsequentemente,
distribuir a carga tributária de maneira equitativa, estabelecendo,
proporcionalmente às dimensões do acontecimento, o grau de contribuição
dos que dele participaram.202
Sob este prisma, a capacidade contributiva é decorrência imediata do princípio da
igualdade e, segundo Roque Antonio Carrazza, “um dos mecanismos mais eficazes para que
se alcance a tão almejada Justiça Fiscal.”203
Tendo em vista o conteúdo jurídico do princípio da igualdade, a tributação haverá que
incidir na medida das possibilidades demonstradas pelo contribuinte, devendo aqueles que
maior capacidade contributiva possuírem ser chamados a arcar com um ônus tributário
proporcionalmente maior. Assim, “é justo e jurídico que quem, em termos econômicos, tem
muito pague, proporcionalmente, mais imposto do que quem tem pouco. [...] As pessoas, pois,
devem pagar impostos na proporção dos seus haveres, ou seja, dos seus índices de riqueza.”204
200
ATALIBA, Geraldo apud CARRAZZA, Elizabeth Nazar. Progressividade e IPTU. 1. ed., 3. tir., Curitiba:
Juruá, 1999, p. 57.
201
HORVATH, Estevão. O princípio do não-confisco no Direito Tributário. São Paulo: Dialética, 2002, p. 67.
202
CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de Direito Tributário. 22. ed., São Paulo: Saraiva, 2010, p. 213-214.
203
CARRAZZA, Roque Antonio. Curso de Direito Constitucional Tributário. 21. ed., rev., ampl. e atual., São
Paulo: Malheiros, 2005, p. 85.
204
Op. cit., p. 85
116
No caso dos impostos pessoais, assim entendidos aqueles cujo aspecto material da
hipótese de incidência leva em consideração certas qualidades, juridicamente qualificadas,
dos sujeitos passivos, o instrumento de que dispõe o legislador ordinário para adequar a
tributação à capacidade econômica é a progressividade, que consiste em estabelecer
diferenças na alíquota ou na base imponível em função da riqueza demonstrada.205
Autores há que, como Roque Antonio Carrazza e Elizabeth Nazar Carrazza, acreditam
que só é possível a observância do primado da capacidade contributiva mediante aplicação da
progressividade. Não se chega a este extremo, pois o raciocínio implicaria admitir que em
alguns casos, devido à configuração do tributo, a ele não se aplicaria o princípio em comento.
Isto não parece juridicamente exato, pois admiti-lo equivaleria a dizer que em alguns
casos estaria dispensado o legislador instituidor do imposto de atentar-se ao princípio
garantidor do direito de propriedade, à livre iniciativa e à própria igualdade. Ademais, uma
licença para descumprir com estes preceitos constitucionais seria óbice intransponível ao
desenvolvimento, que é objetivo da República Federativa do Brasil.
A relação existente entre o primado da capacidade contributiva e o desenvolvimento
assenta-se na lógica de que a viabilidade econômica de uma atividade qualquer é que atrai a
racionalidade econômica para o seu exercício. Com isto, são gerados investimentos e
empregos, os quais podem determinar o desenvolvimento em suas dimensões econômica e
social. Se a tributação incide de maneira desproporcional sobre a atividade econômica, os
agentes econômicos tendem a dela se afastar.
Interpretada sob o ponto de vista humanista, a capacidade contributiva pode ser
compreendida como uma garantia eficaz à liberdade. Sob este prisma, pode ser dito que ela
determina uma verdadeira proteção ao direito humano ao desenvolvimento, razão pela qual
não se pode restringir sua aplicação a determinados impostos, apenas.206
Entende-se, portanto, que o princípio da capacidade contributiva aplica-se a todos os
impostos, como já reconheceu o Supremo Tribunal Federal, cujo posicionamento pode ser
ilustrado no voto do Relator do Recurso Extraordinário n. 234.105-3, Ministro Carlos
Velloso: “Todos os impostos, entretanto, estão sujeitos ao princípio da capacidade
contributiva, mesmo os que não tenham caráter pessoal.”207
205
ATALIBA, Geraldo, Hipótese de Incidência Tributária, 5. ed., 7, tir., São Paulo: Malheiros, p. 125
DIAS, Jean Carlos. O direito humano ao desenvolvimento e o princípio tributário da capacidade contributiva.
In SCAFF, Fernando F. (org.) Constitucionalismo, Tributação e Direitos Humanos. Rio de Janeiro: Renovar,
2007, p. 180.
207
BRASIL, Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário n. 234.105-3. Tribunal Pleno. Relator: Min.
Carlos Velloso, em 31/03/2000. Disponível em
http://redir.stf.jus.br/paginador/paginador.jsp?docTP=AC&docID=254529 Acesso em 05 set 2010.
206
117
A correta interpretação da cláusula constitucional “sempre que possível os impostos
terão caráter pessoal e serão graduados segundo a capacidade econômica dos contribuintes” é,
pois, no sentido de o princípio da capacidade contributiva informa todas as exações não
vinculadas, uma vez que o legislador infraconstitucional, ao instituir um imposto, deverá
eleger como fato gerador do mesmo um fato de expressão econômica, denotativo de riqueza.
Sempre que a configuração jurídica do imposto permitir, este tributo terá caráter pessoal e,
neste caso, a exação será graduada em conformidade com a capacidade econômica
efetivamente demonstrada.
Nos impostos de caráter pessoal a capacidade contributiva será atendida mediante
aplicação da progressividade. Nas exações em que isto não for possível, nem por isto
dispensa-se a observância ao primado da capacidade contributiva, que será atendida mediante
a utilização de outros mecanismos. É o que ocorre nos impostos que incidem sobre a
produção e a circulação, como o Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI), da
competência da União e o Imposto sobre a Circulação de Mercadorias e sobre a Prestação de
Serviços de Transporte Interestadual e Intermunicipal e de Comunicação (ICMS), da
competência dos Estados e do Distrito Federal.
Nos referidos impostos, cujo contribuinte de direito é a indústria, o comerciante ou o
prestador de serviços, o encargo financeiro do tributo é transferido ao consumidor final, que é
denominado contribuinte de fato. Como esses consumidores finais são muitos e indefinidos,
não é possível atentar-se às características pessoais de cada um, o que inviabilizaria o
atendimento à capacidade contributiva mediante aplicação da progressividade.
Não estando dispensada a observância do referido princípio em relação a qualquer
imposto, houve por bem o legislador constituinte disponibilizar instrumentos que, de algum
modo, permitam dar efetividade à capacidade contributiva no caso dos tributos que gravam o
consumo. Assim, estabeleceu a Constituição os princípios constitucionais da seletividade e da
não-cumulatividade, ambos aplicáveis ao IPI e ao ICMS, sendo o segundo também passível
de aplicação a outras exações não-vinculadas, como a Contribuição para o PIS e a COFINS.
São também a não-cumulatividade e a seletividade tributária mecanismos de
realização da justiça fiscal, uma vez que somente por meio deles é possível atingir a
neutralidade da tributação e a isonomia. Por serem central interesse para a efetividade de
qualquer política tributária direcionada à cadeia produtiva da reciclagem de resíduos sólidos,
o aprofundamento da matéria será feito em capítulo próprio.
3 O INCENTIVO À RECICLAGEM POR MEIO DA TRIBUTAÇÃO INCIDENTE
SOBRE O CONSUMO
Tendo em conta a relevância social, ambiental e econômica da reciclagem, dimensões
estas que a relacionam intimamente ao princípio do desenvolvimento sustentável, afirma-se a
necessidade de políticas públicas específicas para o setor, cujo objetivo seja o fomento desta
atividade econômica.
Considerando que a tributação é importante instrumento para a intervenção do Estado
sobre o domínio econômico pela via da indução, entende-se que deve haver uma política
tributária promocional do desenvolvimento, sendo o incentivo à reciclagem uma parte
integrante desta política. Para traçar esta política tributária, devem ser consideradas as
peculiaridades da reciclagem de resíduos sólidos e o interesse público em estimular este ou
aquele aspecto da atividade econômica, de modo a assegurar que esta seja realmente exercida
de modo a viabilizar o desenvolvimento sustentável.
A fim de verificar de que maneira a indução pela via tributária pode ser empregada
para o incentivo à reciclagem, deve ser feita primeiramente a análise de como a atividade
tributária do Estado afeta o setor na atualidade. Somente a partir das constatações obtidas é
que se poderá concluir sobre eventuais distorções existentes e sobre que instrumentos
tributários melhor se adequariam à política pública pretendida.
Para este trabalho de constatação, serão analisados apenas os tributos que maior
repercussão econômica possuem sobre a reciclagem e que, por esta razão, exercem influência
direta sobre as decisões tomadas pelos agentes econômicos ligados ao setor. Este corte
metodológico, essencial para que se chegue ao objetivo pretendido, impõe ainda a
consideração apenas às operações realizadas em âmbito nacional, razão pela qual não será
feita referência à importação e exportação de materiais recicláveis e aos produtos a partir
deles fabricados.
O planejamento de uma política tributária deve levar em conta a questão do justo
tributário, além, é claro, da eficácia da utilização do instrumental tributário para a obtenção
dos fins pretendidos, quer sejam eles meramente arrecadatórios, quer se relacionem à indução
de comportamentos pela via da extrafiscalidade. Na prática, entretanto, nem sempre é fácil
conciliar-se os valores em questão.
119
Em todo o mundo, a maior dificuldade dos Estados no que tange a sua atividade
tributária tem sido conciliar dois princípios que, segundo Maurin Almeida Falcão208, quando
em equilíbrio, caracterizam um sistema tributário ótimo: o princípio da equidade, que se
baseia na função redistributiva do tributo, e o princípio da eficiência, que estabelece um
sistema tributário simples e transparente.
Prestigia-se a eficiência com tributos que gravam o consumo – mais simples de
arrecadar e fiscalizar, que redundam, porém, em uma tributação mais regressiva, que atinge a
todos da mesma forma. Não sendo possível ao legislador conhecer as condições econômicas
do consumidor, o princípio da capacidade contributiva é relativizado, somente sendo
alcançado pela via indireta da seletividade e da não-cumulatividade.
Já a opção por tributos diretos, em especial os que incidem sobre a renda líquida, tende
a prestigiar o princípio da equidade, uma vez que é possível a tributação mais gravosa sobre
aqueles que detêm maior capacidade contributiva, podendo o tributo ser utilizado como forma
de redistribuição de riquezas.
Para Maurin Almeida Falcão, a arquitetura dos sistemas tributários da atualidade está
intimamente ligada às transformações econômicas e políticas ocorridas em âmbito
internacional. Segundo o autor:
[...] podemos afirmar que os fatores responsáveis pela conexão entre os
sistemas tributários e o nível de desenvolvimento econômico seria a
passagem da economia primária para a economia industrial em razão da
modificação da natureza das atividades econômicas. Essa decolagem
econômica seria, então, responsável pelo processo de desenvolvimento, o
que permitiu a modificação substancial das possibilidades de imposição.
Os circuitos econômicos projetados em escala mundial determinaram uma
nova configuração para os sistemas tributários. A evolução do processo de
industrialização favoreceu, portanto, a formação de renda nas economias
industriais em níveis elevadíssimos, o que permitiu a modernização das
modalidades de tributação sobre a renda e o patrimônio e, anos mais tarde,
sobre o consumo. 209
Nos países desenvolvidos da economia pós-industrial houve, inicialmente, uma opção
pela tributação direta, cujo objetivo maior era a realização da justiça fiscal. Essa era a
tendência verificada nos países mais ricos por volta dos anos sessenta. Havia facilidade de
identificar as principais bases da tributação – patrimônio e renda – e a legislação tributária
208
FALCÃO, Maurin Almeida. A reforma tributária brasileira: um enfoque distorcido? In MORHY, Lauro ... [et
al.] (org.). Reforma tributária em questão. Brasília: Universidade de Brasília, 2003, p. 128.
209
FALCÃO, Maurin Almeida. Desenvolvimento econômico e expansão dos sistemas tributários. Disponível
em: http://www.idtl.com.br/artigos/83.pdf Acesso em 10 set 2010.
120
descomplicada, assim como a eficiência daqueles países na arrecadação de impostos, permitia
que a tributação fosse feita com base nos princípios da equidade e da progressividade. Já os
países em desenvolvimento apoiavam-se em um sistema tributário que privilegiava a
eficiência na arrecadação, cuja base era a produção e o consumo. 210
Com o ressurgimento das idéias liberalistas, por meio da corrente neoliberal, e,
sobretudo, com a dissipação das fronteiras econômicas ocorrida em razão da globalização,
mesmo os países desenvolvidos se viram forçados a alterar as bases de seus sistemas
tributários. Com exceção dos Estados Unidos e do Japão, passaram também os países
desenvolvidas a buscar na tributação indireta a maior parte dos recursos necessários ao custeio
da atuação estatal. Pode-se afirmar, com isto, que a tributação sobre o consumo é hoje a
principal fonte de receita tributária tanto em países desenvolvidos quanto naqueles em
desenvolvimento.211
Os tributos que gravam o consumo são considerados tributos de natureza indireta, uma
vez que não são cobrados diretamente do contribuinte, mas de comerciantes ou indústrias que
os acrescentam ao preço do produto e recolhem o valor devido. Nestes tributos existem duas
figuras relevantes: a do contribuinte de direito, um agente intermediário que possui o dever de
apurar e recolher o tributo, mas não suporta o seu ônus econômico; e a do contribuinte de fato,
que é aquele que suporta o encargo financeiro do tributo: o consumidor final.
Em diversos países do mundo os tributos sobre o consumo são unificados, existindo
apenas um imposto indireto, que geralmente incide sobre o valor agregado dos produtos. No
Brasil, entretanto, são diversos os tributos incidentes sobre o consumo, sendo também a
competência para sua instituição distribuída entre os diversos entes da Federação.
A problemática dos tributos indiretos interessa de perto ao presente estudo em razão
de serem estes tributos os que mais impactam a comercialização de materiais recicláveis,
assim como a produção de bens a partir de insumos reciclados. Por esta razão, é possível
afirmar que qualquer política tributária de incentivo à reciclagem deverá pautar-se pela
consideração aos tributos que gravam o consumo. Dentre eles, destaca-se o IPI, o ICMS, a
Contribuição para o PIS e a COFINS.
Os referidos tributos são cobrados nas operações mercantis e sobre as receitas das
empresas, sendo seu ônus financeiro, como já visto, transferido para o preço cobrado do
consumidor final. Por esta razão, Paulo Caliendo entende que o aspecto central de
210
FALCÃO, Maurin Almeida. Desenvolvimento econômico e expansão dos sistemas tributários. Disponível
em: http://www.idtl.com.br/artigos/83.pdf Acesso em 10 set 2010.
211
Op. cit.
121
preocupação nesses tributos é a busca da neutralidade fiscal nas operações econômicas, a fim
de evitar que ocorra o fenômeno da regressividade. Segundo o autor:
O fenômeno da regressividade dos tributos sobre o consumo se explica pelo
fato de que estes incidem sobre a renda consumida tão-somente. Em geral a
renda total dos agentes econômicos se divide em renda consumida e renda
poupada (acumulada) e a proporção entre os dois tipos de renda varia
conforme a classe social do agente. Desse modo, teoricamente a renda
poupada das pessoas mais abastadas é maior do que a das pessoas de baixa
renda, visto que as necessidades de consumo tendem a diminuir na medida
em que aumenta a riqueza disponível. Assim, a tributação sobre o consumo
é tendencialmente regressiva, na medida em que incide como [sic] mais
vigor sobre as classes sociais mais baixas. [...].212
Dois importantes mecanismos a serem utilizados contra os efeitos regressivos da
tributação direta são a não-cumulatividade e a seletividade. Com a primeira, objetiva-se evitar
o efeito distorcido da incidência tributária em cascata, que gera a concentração econômica.
Com a tributação seletiva, reduz-se a regressividade por meio da aplicação de alíquotas
menores para produtos essenciais.
3.1 A SELETIVIDADE E A NÃO-CUMULATIVIDADE TRIBUTÁRIA
A seletividade consiste na tributação diferenciada dos produtos e mercadorias em
consideração a sua essencialidade, com incidência mais gravosa do imposto sobre os
supérfluos e menor oneração de produtos e mercadorias essenciais. Atua a seletividade sobre
o critério quantitativo do prescritor normativo da regra-matriz de incidência tributária,
elevando ou diminuindo o quantum do tributo em função da essencialidade da mercadoria ou
produto.
Deste modo, pode o princípio da seletividade ser realizado por meio da manipulação
dos dois elementos do critério quantitativo: a base de cálculo ou a alíquota. Em que pese a
possibilidade de alteração da base de cálculo em razão da essencialidade do produto,
mercadoria ou serviço, no Brasil a seletividade tem sido relacionada à manipulação de
alíquotas. Assim, por determinação constitucional, “a tributação sobre operações com
212
CALIENDO, Paulo. Direito Tributário e Análise Econômica do Direito: uma visão crítica. Rio de Janeiro:
Elsevier, 2009, p. 158.
122
produtos industrializados, mercadorias e/ou serviços sujeitos ao IPI e ao ICMS que sejam
essenciais deve ser feita com menor intensidade, ou seja, com alíquotas mais baixas.”213
Inspira a técnica da seletividade o seguinte raciocínio: todas as pessoas – mais ou
menos afortunadas economicamente – consomem produtos de primeira necessidade, por
questão de sobrevivência. Apenas uma classe mais privilegiada economicamente consome
aqueles produtos considerados supérfluos. Com a tributação módica dos essenciais, conseguese garantir que consumidores finais com pequena capacidade econômica não sejam afetados
pela tributação em quantum superior à capacidade por eles demonstrada. A técnica, segundo
Mizabel Derzi, não é perfeita, mas é a possível:
Não podendo conhecer os consumidores, em escala de milhões, o
legislador, olhos postos no princípio da capacidade contributiva, ao utilizar
o princípio da seletividade, grava menos com o IPI os artigos essenciais.
Justiça imperfeita, mas ainda justiça, pois José compra açúcar tanto quanto
Simonsen, pelo mesmo preço, pagando o mesmo IPI agregado ao preço. Em
compensação, José não compra caviar mais tributado.214
Segundo Paulo Caliendo215, o principal objetivo da seletividade é a manutenção da
neutralidade econômica da tributação. Isto não impede que com a tributação seletiva outros
resultados sejam atingidos, como a redistribuição de riquezas e a mudança nas relações
sociais pré-existentes, uma vez que à seletividade pode ser relacionado um aumento no poder
de compra das classes sociais menos privilegiadas, com conseqüente efeito redistributivo
ligado à mudança nas alíquotas de tributos incidentes sobre o consumo.
Necessário ressaltar que, pela letra da Constituição, o princípio da seletividade aplicase obrigatoriamente ao IPI, conforme se depreende do disposto no Artigo 153, parágrafo 3º, I,
mas é de adoção facultativa em relação ao ICMS, pois, segundo dispõe o Artigo 155,
parágrafo 2º, III, o imposto previsto no inciso II (ICMS) poderá ser seletivo, em função da
essencialidade das mercadorias e dos serviços.
Embora a maioria dos doutrinadores brasileiros admita a facultatividade da aplicação
da seletividade em relação ao ICMS, Roque Antonio Carrazza a considera obrigatória, tanto
para o IPI, quanto para o imposto da competência estadual. Segundo o autor:
213
ESTURILIO, Regiane Binhara. A Seletividade no IPI e no ICMS. São Paulo: Quartier Latin, 2008, p. 101
DERZI, Mizabel. Limites da Discricionariedade do Legislador Ordinário e Seletividade na Constituição de
1988. In BALEEIRO, Aliomar. Direito Tributário Brasileiro. 11. ed. atualizada por Misabel Abreu Machado
Derzi. Rio de Janeiro, Forense, 2000, p. 349
215
CALIENDO, Paulo. Direito Tributário e Análise Econômica do Direito: uma visão crítica. Rio de Janeiro:
Elsevier, 2009, p. 159.
214
123
Salientamos que estas normas constitucionais, mandando que tais impostos
sejam seletivos, não estão dando uma mera faculdade ao legislador, mas,
pelo contrário, estão lhe impondo um inarredável dever, de cujo
cumprimento ele não pode se furtar.
[...]
Portanto, a seletividade, no IPI e no ICMS, é obrigatória. Ou, seguindo a
trilha constitucional, estes tributos devem ser seletivos, em função da
essencialidade do produto industrializado (IPI) ou das mercadorias ou
serviços (ICMS).
Estamos confirmando, destarte, que o IPI e o ICMS devem ser utilizados
como instrumentos de ordenação político-econômica, estimulando a prática
de operações (com produtos industrializados ou mercadorias) ou serviços
havidos por necessários, úteis ou convenientes à sociedade e, em
contranota, onerando outros que não atendam tão de perto ao interesse
coletivo.216
Levando em consideração a autonomia estadual e as diversidades regionais, entretanto,
houve por bem o legislador constituinte utilizar a expressão “poderá ser seletivo”, em relação
ao ICMS, no sentido de faculdade. A esta conclusão chega Regiane Binhara Esturilio, após
analisar os registros dos Anais da Constituinte de 1988, que dão conta do histórico da redação
do Artigo 155, parágrafo 2º, inciso III da Constituição. Na proposta inicial, constava do texto
“[...] terá caráter seletivo [...]”. A fim de não limitar a autonomia dos Estados e, deste modo,
preservar os interesses da Federação, foi feita a alteração.217
José Eduardo Soares de Melo218 aponta a seletividade como permitida no caso do
ICMS. O fato de não ser de aplicação compulsória a este tributo não permite que um Estado
legisle contrario sensu do que determina o mandamento constitucional. Não poderia, por
exemplo, estabelecer alíquotas mais elevadas relativamente a produtos essenciais, com o mero
objetivo de incrementar a arrecadação.
Outro importante princípio constitucional que possibilita a realização do primado da
capacidade contributiva e da neutralidade da tributação em relação a tributos que incidem
sobre a produção e a circulação é a não-cumulatividade. Obrigatoriamente aplicável ao IPI e
ao ICMS, conforme disposto nos Artigos 153, parágrafo 3º, II e 155, parágrafo 2º, I da
Constituição, a não-cumulatividade também é extendida a certas contribuições sociais pelo
Artigo 195, parágrafo 10 da Constituição Federal.
Como explica Luciano Amaro, “a não-cumulatividade obriga a que o tributo,
plurifásico, incidente em sucessivas operações, seja apurado sobre o valor agregado em cada
216
CARRAZZA, Roque Antonio. Curso de Direito Constitucional Tributário. 21 ed. rev. ampl. e atual. até a EC
n. 48/2005. São Paulo: Malheiros Editores, 2005, p. 94.
217
ESTURILIO, Regiane Binhara. A Seletividade no IPI e no ICMS. São Paulo: Quartier Latin, 2008, PP. 114115
218
MELO, José Eduardo Soares de. ICMS: teoria e prática. 6. ed., São Paulo: Dialética, 2003, p. 265.
124
uma delas, ou [...] seja compensado com o que tenha incidido nas operações anteriores.”219
Por meio deste princípio buscou o legislador constituinte evitar a denominada tributação em
cascata, extremamente impactante para o consumidor final.
Leciona Aliomar Baleeiro que a técnica da não-cumulatividade começou a ser
aplicada, no Brasil, a partir de 1958, em relação ao imposto de consumo. Tornou-se
obrigatória com a Emenda Constitucional nº 18/65 tanto em relação àquele tributo quanto
para o então ICM. Com a adoção da referida técnica, objetivava-se resolver a questão da
regressividade do imposto, que o tornava odioso para as classes de menor capacidade
econômica.220
Por evitar o duplo pagamento de tributo sobre a mesma base, a não-cumulatividade
tem o efeito econômico de impedir que o preço final de mercadorias, produtos e serviços seja
demasiadamente alto, ou até insuportável, para o consumidor final. Esta a razão pela qual se
relaciona o princípio em comento à capacidade contributiva e mesmo ao desenvolvimento.
Além disso, a aplicação da não-cumulatividade aos tributos plurifásicos que gravam o
consumo consiste em uma forma de se observar a neutralidade fiscal, o que garante que as
decisões dos agentes econômicos não serão tomadas unicamente em função do alto ônus
tributário, e que a tributação não será excessiva e regressiva para o consumidor final.221
Aplicável tanto ao IPI quanto ao ICMS, a sistemática não sofre qualquer limitação ou
exceção na Constituição em relação ao primeiro222, sendo, portanto, de aplicação irrestrita.
Eduardo Domingos Botallo atenta contra possível engano que possa advir da interpretação do
inciso II do parágrafo 3º do Artigo 153 da Constituição Federal, que determina que a
compensação dos débitos de IPI se faça com o montante “cobrado” nas operações anteriores.
Segundo o autor, o direito ao crédito não está preso ao efetivo pagamento do tributo nas
operações anteriores, sendo o abatimento devido “até mesmo nos casos em que as operações
anteriores sejam isentas, sujeitas à alíquota zero, ou de qualquer outro modo, desoneradas da
incidência do tributo.”223
No mesmo sentido as lições de José Eduardo Soares de Melo:
219
AMARO, Luciano. Direito Tributário Brasileiro. 15. ed., São Paulo: Saraiva, 2009, p. 148.
BALEEIRO, Aliomar. Direito Tributário Brasileiro. 11. ed. atualizada por Misabel Abreu Machado Derzi.
Rio de Janeiro, Forense, 2000, p. 353.
221
CALIENDO, Paulo. Direito Tributário e Análise Econômica do Direito: uma visão crítica. Rio de Janeiro:
Elsevier, 2009, p. 324.
222
DERZI, Mizabel. O Princípio da não-cumulatividade do IPI não sofre nenhuma limitação ou exceção na
Constituição. In BALEEIRO, Aliomar. Direito Tributário Brasileiro. 11. ed. atualizada por Misabel Abreu
Machado Derzi. Rio de Janeiro, Forense, 2000, p. 353.
223
BOTALLO, Eduardo Domingos. O Imposto sobre Produtos Industrializados na Constituição e no Código
Tributário Nacional. In: In: SANTI, Eurico Marcos Diniz de (coord.), Curso de Direito Tributário e Finanças
Públicas: do fato à norma, da realidade ao conceito jurídico. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 939.
220
125
A CF (ao contrário do expressamente previsto para o ICMS – art. 155, II e
parágrafo 2º) não estabelece nenhuma restrição para a fruição do crédito do
IPI, ou seja, não vedou a sua manutenção na dependência de ocorrerem
aquisições e/ou saídas com isenção ou não incidência. É pleno o direito ao
crédito do IPI, mesmo nos casos de aquisições de bens isentas, sujeitas à
alíquota zero, imunes, livres de direitos, etc., o que vem sendo
compartilhado na doutrina.224
O tema merece análise cuidadosa em razão de recente posicionamento do Supremo
Tribunal Federal, que admite o direito ao crédito quando as operações anteriores forem
amparadas por isenção, mas não permite a compensação no caso de ser a operação
antecedente tributada a alíquota zero. O entendimento, já afirmado diversas vezes, é ilustrado
no seguinte acórdão:
IPI. INSUMO. ALÍQUOTA ZERO. AUSÊNCIA DE DIREITO AO
CREDITAMENTO.
Conforme disposto no inciso II do parágrafo 3º do artigo 153 da
Constituição Federal, observa-se o princípio da não-cumulatividade
compensando-se o que for devido em cada operação com o montante
cobrado nas anteriores, ante o que não se pode cogitar de direito a crédito
quando o insumo entra na indústria considerada a alíquota zero. [...]225
Antes mesmo de ser proferida a decisão acima transcrita, Hugo de Brito Machado226 já
defendia o posicionamento que passou a ser adotado pelo Supremo Tribunal Federal, por ser
esta, segundo o doutrinador, a única maneira de atender às exigências do princípio da
seletividade tributária. Para o autor, a utilização de alíquotas baixas ou mesmo nulas, como é
o caso da alíquota zero, assim como a indicação NT (não tributado) constante da Tabela do
IPI, é feita tendo em conta a essencialidade do produto. Já as isenções, que não se
confundiriam com alíquota zero e não-tributação, são concedidas com vistas ao alcance de
outros objetivos, como o incentivo ao desenvolvimento regional, não guardando, portanto,
qualquer pertinência com a seletividade.
A fim de ilustrar seu entendimento, o autor cita o exemplo da aplicação de alíquota
zero a certo insumo para fabricação de diferentes produtos, alguns mais essenciais que outros.
224
MELO, José Eduardo Soares de. IPI. In: MARTINS, Ives Gandra da Silva (coord.). Curso de Direito
Tributário. 12. ed., São Paulo: Saraiva, 2010, p. 630.
225
BRASIL, Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário n. 353.657/PR. Tribunal Pleno. Relator: Min.
Marco Aurélio, em 25/06/2007. Disponível em <http://www.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/756625/recursoextraordinario-re-353657-pr-stf> Acesso em 15 set 2010.
226
MACHADO, Hugo de Brito. Crédito IPI: princípio pode ser da não-cumulatividade ou da seletividade. In:
Revista Consultor Jurídico, 27 set 2004. Disponível em http://www.conjur.com.br/2004-set27/principio_nao_cumulatividade_ou_seletividade Acesso em 20 set 2008.
126
A única maneira de preservar o princípio da seletividade seria restringir os créditos do
imposto às operações anteriores efetivamente oneradas, o que permitiria que o ônus do IPI
sobre cada produto fosse efetivamente o resultante da aplicação da respectiva alíquota.
Não foi sempre este o entendimento da Corte Suprema, como se constata de acórdão
proferido em 2002, no qual é admitido o creditamento do IPI tanto nos casos de operações
anteriores isentas quanto sujeitas a alíquotas nulas, indistintamente:
CONSTITUCIONAL. TRIBUTÁRIO. IPI. CREDITAMENTO. INSUMOS
ISENTOS, SUJEITOS À ALÍQUOTA ZERO.
Se o contribuinte do IPI pode creditar o valor dos insumos adquiridos sob o
regime de isenção, inexiste razão para deixar de reconhecer-lhe o mesmo
direito na aquisição de insumos favorecidos pela alíquota zero, pois nada
extrema, na prática, as referidas figuras desonerativas, notadamente quando
se trata de aplicar o princípio da não-cumulatividade. A isenção e a alíquota
zero em um dos elos da cadeia produtiva desapareceriam quando da
operação subseqüente, se não admitido o crédito. Recurso não conhecido.227
Mais acertado parecia ser o posicionamento ilustrado pelo acórdão acima transcrito,
adotado pelo Supremo Tribunal Federal até o ano de 2007. No referido acórdão, a alíquota
zero recebia tratamento idêntico ao que era concedido à isenção, o que se afigura
juridicamente correto, em razão de configurar a alíquota zero verdadeira isenção. Leciona
Paulo de Barros Carvalho228 que a isenção é norma jurídica de estrutura que, aplicada
juntamente com a regra-matriz de incidência tributária, investe contra um dos critérios da
regra-matriz, mutilando-o total ou parcialmente, o que resulta na desoneração tributária.
Segundo o autor, eis o que ocorre quando se fixa em zero a alíquota do IPI aplicável a
determinados produtos:
Como já dissemos, é uma fórmula inibitória da operatividade funcional da
regra-matriz, de tal forma que, mesmo acontecendo o evento tributário, no
nível da concretude real, não pode o fato ser constituído e seus peculiares
efeitos não se irradiam, justamente porque a relação obrigacional não se
poderá instalar à míngua de objeto. Segundo pensamos, é um caso típico de
isenção: guarda-lhe a natureza e mantém-lhe as aparências.229
Considerando que alíquota zero nada mais é que uma isenção, não haveria razão para a
diferença de tratativa. Tendo em conta ainda o dispositivo constitucional que determina seja o
227
BRASIL, Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário n. 350.446/PR. Tribunal Pleno. Relator: Min.
Nelson Jobim, em 18/12/2002. Disponível em
http://redir.stf.jus.br/paginador/paginador.jsp?docTP=AC&docID=261210 Acesso em 15 set 2010.
228
CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de Direito Tributário. 22. ed., São Paulo: Saraiva, 2010, p. 560
229
Op. cit., 2010, p. 565
127
princípio da não-cumulatividade aplicado ao IPI sem ressalvas, entende-se que somente seria
o preceito observado por meio da possibilidade de utilizar os créditos relativos às operações
anteriores, ainda que de qualquer modo isentas.
Enquanto no IPI o direito ao crédito não sofre qualquer restrição, no caso do ICMS há
que ser observado o que dispõe o Artigo 155, parágrafo 2º, II da Constituição Federal, in
verbis:
II – a isenção ou não-incidência, salvo determinação em contrário da
legislação:
a) não implicará crédito para compensação com o montante devido nas
operações ou prestações seguintes;
b) acarretará a anulação do crédito relativo às operações anteriores.
De acordo com o mencionado dispositivo constitucional, não há direito ao crédito
quando a operação ou prestação anterior for isenta ou, ainda, quando não estiver sujeita à
incidência do imposto. Para José Eduardo Soares de Melo, há que se ter cuidado ao interpretar
o dispositivo constitucional em epígrafe, cujo alcance e efeito são restritivos, sob pena de
permitir-se irreparável quebra ao princípio da não-cumulatividade.230
Por esta razão, entende-se que quando o inciso II do parágrafo 2º do Artigo 155 fala
em não-incidência, está se referindo a uma situação estranha à incidência do ICMS, por não se
tratar de um negócio mercantil ou relacionado aos serviços de transporte e de comunicação e
não a qualquer modalidade de benefício. A imunidade, por exemplo, não se adequa a esta
situação, pois “não haveria o mínimo sentido jurídico em a Constituição proibir a incidência
tributária e, ao mesmo tempo, vedar a manutenção dos créditos. Sem dúvida, este estranho
entendimento implicaria na tributação parcial das operações/prestações não tributadas.”231
No mesmo sentido a lição de Roque Antonio Carrazza, que destaca ser a norma posta
no inciso II do parágrafo 2º do Artigo 155 da Constituição a única vedação ao crédito a ser
considerada no caso do ICMS. Segundo o autor, “no mais, o direito ao crédito do ICMS é
amplo e irrestrito.”232
Não se pode olvidar que a Constituição brasileira não só consagrou a nãocumulatividade como dedicou minucioso tratamento ao referido princípio constitucional.
Disto decorre que não só o contribuinte de direito do ICMS tem o direito subjetivo de
compensar o imposto devido com os créditos a que faz jus em razão do tributo pago nas
230
MELO, José Eduardo Soares de. ICMS: teoria e prática. 6. ed., São Paulo: Dialética, 2003, p. 231.
Op. cit., p. 231.
232
CARRAZZA, Roque Antonio. ICMS. 7. ed. rev. e ampl. São Paulo: Malheiros, 2001, p. 237.
231
128
operações anteriores, como também tem o contribuinte de fato o direito subjetivo de não
suportar o ônus da tributação em cascata.
Após a a Emenda Constitucional nº 42, de 19 de dezembro de 2003, que acrescentou o
parágrafo 12 ao Artigo 195 da Constituição Federal, também à Contribuição para o PIS e à
COFINS passou a ser aplicado, de maneira facultativa, o regime da não-cumulatividade. O
propósito da alteração constitucional foi visivelmente buscar a neutralidade fiscal das
referidas contribuições, garantindo um menor impacto sobre a vida empresarial e sobre o ciclo
econômico.233
Segundo Paulo Caliendo, a não-cumulatividade dessas contribuições diverge daquela
constitucionalmente assegurada para o IPI e para o ICMS. No caso desses últimos, o que
pretendeu o legislador constituinte foi evitar a tributação em cascata, ou a incidência de
tributo sobre tributo, garantindo que a tributação não distorça o mercado. No caso do PIS e da
COFINS, é outro o propósito do legislador:
a não-cumulatividade do PIS e da COFINS refere-se à preservação
econômica do faturamento e da pureza da incidência sobre a ‘totalidade das
receitas auferidas’. Diferentemente do IPI e do ICMS, que tentam preservar
a neutralidade da tributação no ciclo econômico do consumo, a nãocumulatividade pretende preservar a neutralidade na tributação de um
agente econômico, que é o contribuinte ‘pessoa jurídica’ que aufere
receitas.234
É possível afirmar que a previsão da não-cumulatividade para o PIS e para a COFINS
consistiu em uma contrapartida estatal aos nocivos efeitos que os mesmos exerciam sobre a
atividade econômica. Se um sistema tributário ótimo é aquele em que existe relativo
equilíbrio entre os princípios da equidade e da eficiência, e considerando que as contribuições
para o PIS e a COFINS desde sua instituição, privilegiavam o aspecto da eficiência na
arrecadação, com a previsão do regime não-cumulativo a esses tributos preocupou-se o
legislador com a equidade.
Este o entendimento esposado por Ricardo Lobo Torres235, que em comentário à minireforma tributária introduzida no sistema constitucional tributário pela Emenda Constitucional
nº 42, afirma que as normas nela contidas podem ser elencadas em quatro blocos principais: i)
o das medidas tendentes à preservação do ajuste fiscal e dos compromissos internacionais
233
CALIENDO, Paulo. Direito Tributário e Análise Econômica do Direito: uma visão crítica. Rio de Janeiro:
Elsevier, 2009, p. 315.
234
Op. cit., p. 316.
235
TORRES, Ricardo Lobo. As Emendas Constitucionais n. 41 e 42. In: MARTINS, Ives Gandra da Silva
(coord.), Curso de Direito Tributário. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 1185.
129
assumidos pelo Brasil; ii) o das normas ligadas à justiça fiscal e aos direitos fundamentais; iii)
o das regras atinentes ao equilíbrio financeiro dos entes da Federação; iv) o dos aumentos de
tributos. Afirma o autor que a previsão de não-cumulatividade, como subprincípio da
capacidade contributiva que é, encontra-se entre as normas ligadas à justiça fiscal.
Paradoxalmente, a não-cumulatividade da COFINS e do PIS também abriu portas para
sensível aumento dos tributos, levado a efeito pela legislação infraconstitucional. A Lei nº
10.637/2002, que dispõe sobre a incidência não-cumulativa do PIS, elevou a alíquota do
tributo de 0,65% para 1,65% e a Lei nº 10.833/2003 elevou a alíquota da COFINS de 3% para
7,6%, quando se lhe aplicar o regime não-cumulativo.
A majoração de alíquotas foi justificada na exposição de motivos da Medida
Provisória nº 66, de 29 de agosto de 2002,236 que mais tarde foi convertida na Lei nº
10.637/2002. De acordo com a mencionada exposição de motivos, a fixação da alíquota do
PIS em 1,65% atende as condições e restrições estabelecidas pelo Artigo 14 da Lei de
Responsabilidade Fiscal, evitando a diminuição da receita arrecadada com o tributo. Assim, a
nova alíquota teria sido projetada para compensar o estreitamento da base de cálculo. As
mesmas razões justificam a majoração da COFINS não-cumulativa de 3% para 7,6%.
Em estudo realizado no ano de 2004, cujo objetivo era dimensionar o acerto das novas
alíquotas no que tange à manutenção da arrecadação, Arilton Carlos Campanharo Teixeira e
Angela Takla de Biase Nogueira concluem que a neutralidade das alterações introduzidas pela
Lei nº 10. 833/2003, no que tange aos níveis de arrecadação, parece ter sido atingida:
Esse resultado indica que a introdução da nova COFINS parece não
interferir na arrecadação total desse tributo e não se pode concluir que a
introdução do novo modelo de arrecadação proporcionou diminuição ou
aumento na arrecadação do mesmo. É provável que a exclusão de vários
setores e várias operações comerciais da obrigação de tributação sob a égide
do novo modelo [...] tenham contribuído para o equilíbrio entre as duas
formas de tributação.237
Os autores, entretanto, chamam a atenção para outra possível causa do equilíbrio
verificado:
236
BRASIL. Presidência da República. Medida Provisória nº 66, de 29 de agosto de 2002. Exposição de motivos.
Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Exm/2002/211-MF-02.htm Acesso em 19 set 2010.
237
TEIXEIRA, Arilton Carlos Campanharo e NOGUEIRA, Angela Takla de Biase. A Nova COFINS NãoCumulativa: Redução ou Aumento Tributário?Disponível em
http://www.congressousp.fipecafi.org/artigos62006/304.pdf Acesso em 19 set 2010.
130
Além disso, pode-se considerar que os aumentos de preços praticados por
grande parte das empresas sujeitas à nova COFINS, como amplamente
noticiado, também podem ter contribuído para o equilíbrio encontrado,
contudo, equilíbrio na arrecadação, pois aumentos de preços impostos pelo
aumento da alíquota marginal dos tributos provocam um novo equilíbrio de
mercado com ofertas e demandas reduzidas pela retração da economia,
aumentando a área de peso morto e ineficiência dos tributos.238
Mesmo admitindo que a instituição do regime não-cumulativo, com a conseqüente
fixação de novas alíquotas, não tenha significado majoração do PIS e da COFINS para todos
os contribuintes, para uma considerável parcela de empresas o impacto das novas alíquotas foi
significativo. Isto se deve à técnica prevista pelo legislador ordinário para a operacionalização
da não-cumulatividade dessas duas contribuições, diferente da aplicável ao IPI e ao ICMS.
Tanto a Lei nº 10.637/2002 quanto a Lei nº 10.833/2003 adotaram a seguinte
sistemática: determinar a incidência do PIS e da COFINS sobre a totalidade da receita
auferida pela pessoa jurídica e permitir o desconto de créditos, mediante aplicação da alíquota
sobre determinados custos, encargos e despesas que as referidas leis estabelecem de modo
taxativo. Assim, a não-cumulatividade destas contribuições restringe-se a certos custos,
encargos e despesas que a lei admite como dedutíveis, não se aplicando em relação aos
demais.239 Dependendo da atividade econômica exercida pelo contribuinte, fica claro que é
ele mais ou menos onerado pelas novas alíquotas.
Em que pese a relevância do princípio constitucional da não-cumulatividade, sua
efetivação tem sido problemática, em razão da complexidade das normas constitucionais e
infraconstitucionais que dispõem sobre a compensação de créditos e débitos. Da incorreta
aplicação da não-cumulatividade tributária decorrem distorções que afetam diversos setores
da economia, dentre eles a cadeia produtiva da reciclagem.
3.2 A TRIBUTAÇÃO SOBRE O SETOR DA RECICLAGEM NA ATUALIDADE
Para compreender de que maneira a tributação incide sobre a reciclagem de resíduos
sólidos, necessário ter em mente a organização da cadeia produtiva que se forma a partir do
238
TEIXEIRA, Arilton Carlos Campanharo e NOGUEIRA, Angela Takla de Biase. A Nova COFINS NãoCumulativa: Redução ou Aumento Tributário?Disponível em
http://www.congressousp.fipecafi.org/artigos62006/304.pdf Acesso em 19 set 2010.
239
CALIENDO, Paulo. Direito Tributário e Análise Econômica do Direito: uma visão crítica. Rio de Janeiro:
Elsevier, 2009, p. 316.
131
“lixo”. Para tanto, serão utilizados os conceitos expostos no capítulo 1 deste estudo, no qual
se demonstrou que o setor se organiza em quatro principais etapas:
1)
os pequenos catadores de sucata, que atuam individualmente nas ruas, junto a
comerciantes, condomínios ou em “lixões”;
2)
os pequenos depósitos de sucata, que adquirem o material coletado dos catadores
individuais e os revendem aos grandes comerciantes;
3)
grandes comerciantes de materiais recicláveis, detentores de estrutura suficiente
para depositar grandes quantidades de material reciclado e, após processar sua
triagem, limpeza, prensagem e enfardamento, revendê-lo;
4)
o reciclador propriamente dito, indústria que promove a transformação da sucata
em matéria-prima.
Na primeira etapa da cadeia produtiva encontram-se os catadores de sucata, pequenos
comerciantes autônomos que coletam e revendem material reciclável. Dotados de
praticamente nenhuma estrutura empresarial, é comum não disporem sequer de espaço físico
para armazenar o material coletado, razão pela qual costumam vendê-lo ao final do dia de
trabalho. São eles o elo mais frágil da cadeia produtiva que se forma a partir do lixo, pois
trabalham em condições insalubres e perigosas. É comum também o trabalho infantil, seja
individualmente, seja como fonte de auxílio a membro da família que exerça a atividade.
Via de regra, os pequenos catadores de sucata atuam na informalidade, mais por
desinformação do que por falta de condições de atuar formalmente. Explica-se: após o
advento da Lei Complementar nº 123/2006, que tratou da figura do microempreendedor
individual, poderiam os referidos comerciantes autônomos de sucata cuja receita bruta anual
não ultrapasse o montante de R$ 36.000,00 (trinta e seis mil reais) optar pela sistemática de
tributação prevista no Artigo 18-A daquela lei. Neste caso, o quantum tributário devido pelo
microempreendedor é mínimo240, tendo em conta sua pequena capacidade contributiva.
Também o número de deveres instrumentais a serem cumpridos pelo microempreendedor
individual é reduzido, tendo em vista seu diminuto grau de organização empresarial.
Na segunda etapa da cadeia produtiva da reciclagem encontram-se os pequenos
depósitos de sucata, que geralmente se enquadram na condição de microempresa ou empresa
de pequeno porte, também amparados pela Lei Complementar nº 123, de 14 de dezembro de
2006. Dotados de pequena estrutura empresarial, podem optar por beneficiar-se do regime
240
Atualmente o valor mensal pago pelo microempreendedor individual comerciante que não tenha empregados,
não promova importações e não contrate serviços de terceiros é de R$ 57,10, sendo R$ 56,10 devidos a título de
Contribuição Previdenciária e R$ 1,00 a título de ICMS.
132
simplificado de tributação estabelecido por aquela lei como microempresas, caso sua receita
bruta anual seja de até R$ 240.000,00 (duzentos e quarenta mil reais), ou como empresas de
pequeno porte, caso a receita bruta anual seja superior a R$ 240.000,00 e menor ou igual a R$
2.400.000,00 (dois milhões e quatrocentos mil reais).
Os grandes comerciantes de material reciclável, componentes da terceira etapa da
cadeia produtiva em questão, por já possuírem maior organização empresarial e grande
volume de negócios, geralmente não se enquadram mais como empresas de pequeno porte,
razão pela qual não fazem jus ao regime de tributação simplificado aplicável aos pequenos
sucateiros. Sujeitam-se, portanto, à tributação normal, que compreende todos os tributos
federais, estaduais e municipais que se lhe aplicarem. Destaca-se, por sua relevância
econômica e complexidade, a incidência do ICMS, de competência dos Estados e do Distrito
Federal, e das contribuições para o PIS e COFINS.
Os recicladores propriamente ditos, assim entendidas as indústrias que transformam o
material reciclável em matéria-prima a ser empregada na industrialização de novos bens de
consumo, estão também geralmente sujeitos ao regime normal de tributação. Além de todos
os tributos aplicáveis aos grandes comerciantes de material reciclável acima referidos,
sujeitam-se ainda à incidência do IPI, cujo fato gerador é justamente a industrialização de
produtos.
Observe-se que nem sempre existirão as quatro etapas acima mencionadas, na cadeia
produtiva da reciclagem. É possível que, em alguns casos, o pequeno catador de sucata venda
seu produto diretamente ao grande comerciante de recicláveis, eliminando-se, assim, a figura
do pequeno depósito. Também ocorre de os pequenos sucateiros, já detentores de alguma
infra-estrutura, trabalharem eles mesmos – com a cooperação de familiares ou associados –
com a coleta do material reciclável. Neste caso não haveria o primeiro integrante da cadeia
produtiva. Pode ainda acontecer de o pequeno sucateiro vender diretamente à indústria, sem a
intermediação dos comerciantes maiores.
De qualquer maneira, é útil a visualização dos quatro componentes da cadeia
produtiva, por permitir uma melhor compreensão de como a incidência dos mencionados
tributos indiretos afeta a reciclagem, globalmente, como atividade econômica.
A partir desta constatação é que se pode verificar de que maneira uma política
tributária específica pode tornar a reciclagem mais atraente do ponto de vista da racionalidade
econômica. Mais importante ainda: a fotografia da realidade permitirá refletir sobre como
utilizar o instrumental tributário para assegurar que as empresas envolvidas adotem práticas
133
ambientalmente corretas e que o desempenho da atividade seja socialmente justo e
humanamente digno, em todas as etapas da cadeia produtiva.
3.2.1 O imposto sobre produtos industrializados (IPI)
A autorização constitucional para a instituição do Imposto sobre Produtos
Industrializados (IPI) consta do Artigo 153, IV da Constituição Federal de 1988, que
determina ser o tributo de competência da União.
Segundo dispõe o Artigo 46 do Código Tributário Nacional, há três fatos geradores
possíveis para o tributo em questão: i) o desembaraço aduaneiro de produto industrializado de
procedência estrangeira; ii) a saída de produtos industrializados do estabelecimento industrial;
iii) a arrematação de produtos industrializados que, tendo sido apreendidos ou abandonados,
tenham sido levados a leilão.241
O comando normativo citado não trata da materialidade do imposto propriamente dita,
eis que não alude à conduta humana que faz surgir a obrigação tributária. Delimita, na
verdade, o momento em que se considera ocorrida a incidência do IPI, dispondo, portanto,
sobre o critério temporal da hipótese de incidência do tributo. Mesmo assim, transparece do
citado dispositivo legal o núcleo da hipótese de incidência tributária. É possível concluir,
portanto, que: i) o IPI incide sobre a industrialização de produtos com a finalidade de venda –
neste caso ocorre a incidência no momento da venda do produto industrializado; ii) o IPI
incide sobre a importação de produtos estrangeiros – neste caso, a incidência ocorre no
momento do desembaraço aduaneiro.
De interesse para o presente estudo a incidência do IPI sobre a industrialização, a qual
foi referida no item “i” acima. Segundo Eduardo Domingos Botallo, para fins de IPI um
produto é considerado industrializado quando, “mercê de uma operação física, química,
mecânica ou técnica, adquire utilidade nova ou, de algum modo, mostre-se mais bem ajustado
para o consumo.”242 Adverte o autor que deverá o produto resultar de elaboração industrial,
não estando abrangidas pelo conceito de industrialização as realizações de cunho artístico,
artesanal ou as resultantes de processos extrativistas.
241
O IPI incidente sobre a arrematação de produtos não chegou a ser instituído pelo legislador ordinário federal.
BOTALLO, Eduardo Domingos. O Imposto sobre Produtos Industrializados na Constituição e no Código
Tributário Nacional. In: In: SANTI, Eurico Marcos Diniz de (coord.), Curso de Direito Tributário e Finanças
Públicas: do fato à norma, da realidade ao conceito jurídico. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 938.
242
134
José Eduardo Soares de Melo243 chama ainda a atenção para o fato de que não basta a
industrialização para que incida o IPI. Esta, inserida apenas no âmbito de “fazer alguma
coisa”, não seria suficiente para fazer surgir o dever de pagar o tributo. À industrialização
deve estar atrelada a “realização de operações”, que é verdadeiramente o que molda a
tipicidade do IPI, em conformidade com o que prevê a Constituição de 1988.
A incidência do IPI sobre a transformação de sucata em produto novo ou em matériaprima a ser utilizada como insumo na fabricação de novos materiais de consumo decorre de
expressa previsão legal. Enquadra-se a atividade no conceito de industrialização, de que trata
o parágrafo único do Artigo 4º da Lei nº 4.502, de 30 de novembro de 1964, que, tendo
instituído o antigo Imposto de Consumo, atualmente trata do Imposto sobre Produtos
Industrializados. A referida lei é hoje regulamentada pelo Decreto nº 7.212, de 15 de junho de
2010, o Regulamento do IPI (RIPI), que dispõe, em seu Artigo 4º, incisos I e V:
Artigo 4º Caracteriza industrialização qualquer operação que modifique a
natureza, o funcionamento, o acabamento, a apresentação ou a finalidade do
produto, ou o aperfeiçoe para consumo, tal como:
I – a que, exercida sobre matéria-prima ou produto intermediário, importe
na obtenção de espécie nova (transformação);
[...]
V – a que exercida sobre produto usado ou parte remanescente de produto
deteriorado ou inutilizado, renove ou restaure o produto para utilização
(renovação ou recondicionamento).244
A questão de que o IPI não incidiria sobre certos processos de reciclagem já foi
levantada perante o Poder Judiciário, sob a alegação de que não haveria “transformação” de
material, em alguns casos. Especificamente em relação ao papel obtido por meio da
reciclagem, no entanto, entendeu o Superior Tribunal de Justiça que “a fabricação de papelão
através de reciclagem de sucata de papel caracteriza industrialização, ensejando o cálculo do
IPI na forma do art. 67 do Decreto n. 87.981/92 (RIPI).”245
O entendimento exarado pela Corte Superior é pacífico e não gerou maiores
controvérsias doutrinárias ou inconformismo entre os recicladores, que são hoje conscientes
da sujeição à incidência do imposto. Entretanto, o modo como incide o IPI sobre a indústria
243
MELO, José Eduardo Soares de. IPI. In: MARTINS, Ives Gandra da Silva (coord.). Curso de Direito
Tributário. 12. ed., São Paulo: Saraiva, 2010, p. 619.
244
BRASIL, Presidência da República. Decreto nº 7.212, de 15 de junho de 2010. Disponível em
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2007-2010/2010/Decreto/D7212.htm#art617 Acesso em 12 set 2010.
245
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial n. 388.046/PR, 2ª Turma. Relator: Ministro João
Otávio Noronha, em 14/02/2006. Disponível em <http://www.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/7167741/recursoespecial-resp-388046-pr-2001-0173956-7-stj/inteiro-teor> Acesso em 12 set 2010
135
da reciclagem, especificamente no que se refere à aplicação que se dá a este imposto dos
princípios da seletividade e da não-cumulatividade, merece reflexão.
O IPI é tributo essencialmente regulatório, cuja instituição, portanto, não visa
simplesmente à arrecadação tributária. Ao contrário, deve o imposto ser utilizado como
instrumento ordinatório, mediante o qual o Estado tem a possibilidade de intervir sobre o
domínio econômico. Esta a razão pela qual não se sujeita o IPI ao princípio da anterioridade
tributária, sendo também o princípio da estrita legalidade de aplicação mitigado para este
tributo, na medida em que é permitida a manipulação de alíquotas do imposto por ato do
Poder Executivo.
A função regulatória do IPI é cumprida por meio da seletividade do tributo em função
da essencialidade dos produtos, em conformidade com o disposto no Artigo 153, parágrafo 3º
da Constituição. O mencionado comando normativo, “longe de outorgar mera opção ao
legislador ordinário, comete-lhe um dever ao qual ele não pode furtar-se no exercício de sua
competência tributária. Trata-se, assim, de verdadeiro ‘poder/dever’.”246
Como afirmado anteriormente, a seletividade consiste na imposição de alíquotas
diferenciadas em função da essencialidade do produto, com tributação mais gravosa para os
produtos supérfluos e menos onerosa para os essenciais. A aplicação do referido princípio à
reciclagem, no entanto, ainda é bastante tímida, o que se pode constatar mediante análise das
alíquotas do IPI atualmente vigentes para os insumos obtidos a partir da reciclagem, assim
como do produto final fabricado a partir de matéria-prima reciclada.
Aparas e desperdícios de papel destinados à reciclagem constam como “não
tributados” na tabela do IPI247, sendo certo presumir que para a legislação federal equiparamse a matéria-prima bruta (não industrializada). No que tange à pasta utilizada como insumo
para a fabricação de papel, produto que já deriva de um processo de transformação, tanto as
pastas obtidas a partir da madeira quanto as obtidas a partir de papel reciclado são tributadas à
alíquota de zero por cento. Não há diferença na tributação do produto final em função da
matéria-prima empregada.
Na cadeia produtiva do plástico, aparentemente não há diferença entre aquele que é
produzido a partir da nafta (derivado de petróleo) e do fabricado a partir de aparas de sucata
de plástico. As aparas são tributadas a alíquotas de zero por cento, enquanto a nafta não é
246
BOTALLO, Eduardo Domingos. O Imposto sobre Produtos Industrializados na Constituição e no Código
Tributário Nacional. In: In: SANTI, Eurico Marcos Diniz de (coord.), Curso de Direito Tributário e Finanças
Públicas: do fato à norma, da realidade ao conceito jurídico. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 944.
247
BRASIL. Decreto n. 6.006, de 28 de dezembro de 2006. Disponível em
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2006/decreto/d6006.htm Acesso em 19 ago 2010.
136
tributada. Um dos produtos resultantes da transformação da nafta, o polímero de etileno, sofre
tributação do IPI à alíquota de cinco por cento. Quando resultante da transformação de aparas,
a tributação do polímero de etileno é idêntica: cinco por cento.248
Já em relação ao alumínio é possível encontrar um tratamento tributário minimamente
diferenciado. Enquanto o alumínio bruto sofre a incidência do IPI à alíquota de quatro por
cento, os resíduos de alumínio utilizados como insumo não são tributados. Como acontece
com o papel e o plástico, no entanto, não há diferença de tratamento quanto ao produto final:
tanto o alumínio resultante da reciclagem quanto o obtido a partir do minério natural recebem
a mesma tributação.249
Há que se ressaltar que a mera imposição de alíquotas nulas nas primeiras etapas da
cadeia produtiva da reciclagem não é suficiente para o fomento do setor, uma vez que não
refletirá necessariamente na tributação do produto final.
Tal ocorre em razão da não-
cumulatividade do IPI, fenômeno que pode ser visualizado abaixo:
Alumínio bruto
- vendido a R$
100,00
4%
4,00
Chapa alumínio –
vendida a R$
200,00
5%
10,00
- 4,00
6,00
Lata de alumínio
– vendida a R$
300,00
10%
30,00
- 10,00
20,00
Total IPI
= 30,00
Em razão da não-cumulatividade do tributo, tem o contribuinte o direito de abater o
imposto incidente nas etapas anteriores da produção. No exemplo acima, o valor total de IPI
incidente na cadeia produtiva será de R$ 30,00 (trinta reais). Os R$ 4,00 pagos por quem
comercializa o alumínio bruto serão abatidos pelo fabricante de chapas de alumínio. Assim,
este pagará a importância de R$ 6,00. O último elo da cadeia produtiva, que teria um imposto
a pagar de R$ 30,00, pode abater os R$ 10,00 que já foram pagos nas etapas anteriores, o que
significa que recolherá R$ 20,00 aos cofres públicos. Assim: R$ 4,00 + R$ 6,00 + R$ 20 = R$
30,00.
Observe-se agora como fica a incidência do IPI no caso da utilização de matéria-prima
reciclada:
248
BRASIL. Decreto n. 6.006, de 28 de dezembro de 2006. Disponível em
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2006/decreto/d6006.htm Acesso em 19 ago 2010.
249
BRASIL. Decreto n. 6.006, de 28 de dezembro de 2006. Disponível em
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2006/decreto/d6006.htm Acesso em 19 ago 2010.
137
Desperdícios de
alumínio – venda
a R$ 100,00
NT
0,00
Chapa alumínio –
vendida a R$
200,00
5%
10,00
Lata de alumínio
– vendida a R$
300,00
10%
30,00
- 10,00
20,00
Total IPI
= 30,00
No exemplo acima a matéria-prima inicial não é tributada, o que poderia levar a crer
que o tratamento concedido aos recicláveis fosse mais benéfico. A repercussão econômica do
IPI no produto final, entretanto, será exatamente a mesma. Isto porque, de acordo com o que
prevê atualmente a legislação, quando o fabricante de chapas de alumínio for comercializar
sua produção, arcará com o imposto à alíquota de cinco por cento, sem direito a qualquer
crédito. Pagará, então, R$ 10,00, que serão abatidos pela indústria de latas de alumínio,
quando do recolhimento do imposto por ela devido. Ao final, a tributação incidente será
também no valor de R$ 30,00.
Deste modo, tem-se que a aplicação de alíquotas seletivas somente será
economicamente benéfica à reciclagem quando pensada em conjunto com a dinâmica da nãocumulatividade, aplicável ao IPI em razão do que dispõe o Artigo 153, parágrafo 3º, II da
Constituição brasileira.
O princípio da não-cumulatividade determina que o valor do imposto devido em cada
operação seja compensado com a quantia incidente sobre as operações anteriores. Por meio do
referido princípio, concretizam-se valores como o da justiça da tributação, uniformidade na
distribuição da carga tributária sobre as diversas etapas da produção e observância da
capacidade contributiva, uma vez que, via de regra, nos tributos não-cumulativos o encargo
financeiro é transferido ao contribuinte de fato, que é o consumidor.250
Poderia parecer que esta temática não diz diretamente respeito à reciclagem, uma vez
que, comumente, a operação em que não ocorre a tributação é a primeira da cadeia produtiva.
Sob esta perspectiva, não haveria crédito a apropriar, uma vez que anteriormente à operação
isenta nada existiria, o que impossibilitaria falar-se em creditamento. Ocorre, entretanto, que a
perspectiva sob a qual a cadeia da reciclagem é tratada pelas autoridades fazendárias é
distorcida. Tome-se como exemplo a indústria de plástico. Abaixo o esquema de tributação,
pelo IPI, das diversas etapas da industrialização do plástico produzido a partir da nafta, que é
subproduto do petróleo:
250
CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de Direito Tributário. 22. ed., São Paulo: Saraiva, 2010, p. 218.
138
Nafta
NT
Polímero
de etileno
Sacos
plásticos
5%
15%
No exemplo acima, o industrializador de polímero de etileno não teria direito a
qualquer crédito, pela sistemática atual, em razão de não haver tributação na operação
anterior. O reconhecimento do direito ao crédito relativamente às operações anteriores à não
tributada nenhuma diferença faria, neste caso, uma vez que não haveria operações anteriores
sujeitas à incidência do IPI. De acordo com o entendimento da Fazenda Nacional, o mesmo
ocorreria caso os insumos fossem recicláveis. Observe-se abaixo:
Sucata de
plástico
0%
Polímero
de etileno
Sacos
plásticos
5%
15%
A demonstração acima, entretanto, não retrata a realidade da cadeia produtiva que se
forma a partir da reciclagem de resíduos sólidos. Os resíduos utilizados como insumos não
provêm do “nada”, nem podem ser encontrados na natureza. São o resultado de processo de
industrialização anterior, no qual já ocorreu a tributação. Deste modo, as operações praticadas
pelos diversos integrantes desta cadeia produtiva são melhor representadas da seguinte
maneira:
Polímero
de etileno
5%
0%
Sucata de
plástico
consumidor
15%
Sacos
plásticos
139
Embora a representação seja singela, vislumbra-se a diferença abismal existente entre
como ocorre a tributação pelo IPI na cadeia produtiva da reciclagem e como deveria incidir o
imposto nas diferentes etapas da produção. Fica clara a relevância da temática do direito ao
crédito mesmo em caso de desoneração das operações anteriores, assim como a necessidade
de se investigar como se conciliam os princípios da seletividade e da não-cumulatividade no
caso da reciclagem, o que certamente determinará as bases de uma política tributária justa
para este setor.
4.1.2 O imposto sobre a circulação de mercadorias (ICM)
A autorização constitucional para a instituição do imposto sobre operações relativas à
circulação de mercadorias (ICM) consta do Artigo 155, II da Constituição Federal de 1988,
que também faculta aos Estados e ao Distrito Federal instituir o imposto sobre prestações de
serviços de transporte interestadual e intermunicipal e de comunicação, razão pela qual o
mencionado tributo é conhecido como ICMS.
O ICMS constitui a maior parte da receita dos Estados e do Distrito Federal, sendo sua
arrecadação fundamental para estes entes federados. Constitui também este tributo a maior
parte da carga tributária incidente sobre o segmento da economia representado pela atividade
comercial.
Instituído no Brasil como Imposto sobre Vendas e Consignações, o imposto foi, até a
Emenda Constitucional nº 18/65 à Constituição de 1946, um tributo cumulativo, o que
propiciava a inflação e a verticalização da atividade econômica. Por suas feições, era
considerado impeditivo do desenvolvimento, razão pela qual foi substituído, por meio da
mencionada Emenda Constitucional, pelo ICM. Este, por ser um tributo não-cumulativo,
aproximava-se mais do modelo dos impostos europeus sobre valores agregados.251
Com a promulgação da Constituição Federal de 1988, o ICM tornou-se ICMS,
passando a abranger também a tributação das prestações de serviço de transporte interestadual
e intermunicipal e de comunicação. Como não poderia deixar de ser, o tributo permaneceu
não-cumulativo, sendo-lhe aplicáveis até hoje muitas normas regedoras do antigo ICM.
251
COÊLHO, Sacha Calmon Navarro. Curso de Direito Tributário Brasileiro. 4. ed., Rio de Janeiro: Forense,
1999, p. 329.
140
A tentativa de utilização de um modelo estrangeiro, entretanto, mostrou-se
problemática no Brasil, principalmente em função da competência para a instituição do
tributo. De regra, os impostos sobre valores agregados – qualquer que seja o nome a eles
atribuído – funcionam melhor quando instituídos e cobrados por Estados unitários, ou quando
sua competência é atribuída ao poder central.
O fato de no Brasil o ICMS ser atribuído aos Estados-Membros gera grandes
dificuldades jurídicas e econômicas para o manejo do tributo. Por esta razão, o perfil jurídico
do imposto não é idêntico – mas apenas semelhante – a impostos incidentes sobre o valor
agregado de mercadorias e produtos em outros países do mundo.
Para alguns doutrinadores, como Souto Maior Borges e Roque Antonio Carrazza252, o
ICMS sequer pode ser juridicamente considerado um tributo incidente sobre o valor
acrescido, uma vez que sua base de cálculo é o valor total da operação. Para estes autores,
muito embora seja admitido o creditamento do tributo incidente nas operações e prestações
anteriores, a não-cumulatividade do tributo é um direito subjetivo do sujeito passivo em face
da Administração Tributária, mas não integra a norma de incidência do ICMS.
Discorda deste entendimento Sacha Calmon Navarro Coelho253, para quem o primado
da não-cumulatividade integra sim a norma jurídico-tributária do ICMS, em seu conseqüente
normativo. Embora a base de cálculo do ICMS não seja apenas o valor acrescido em cada
operação, o autor salienta que o quantum devido a título de ICMS não resulta da simples
multiplicação da alíquota pela base de cálculo, mas depende da dedução do crédito relativo às
operações anteriores. Neste sentido, seria o ICMS verdadeiro tributo sobre o valor agregado,
embora com peculiaridades decorrentes de sua atribuição aos Estados-Membros.
Também merece destaque o fato de não ser o ICMS o único tributo a incidir sobre a
produção e a circulação de mercadorias e serviços, pois com ele coexistem, na ordem jurídica
brasileira, o Imposto sobre Produtos Industrializados, de competência da União, e o Imposto
sobre serviços de qualquer natureza, cuja competência é atribuída aos Municípios.
Comentando esta coexistência dos referidos tributos, Sacha Calmon Navarro Coelho destaca
algumas perversões ocorridas no sistema brasileiro desde a instituição do ICM:
O ICM, por sua própria natureza um imposto global sobre circulação de
mercadorias e serviços de expressão econômica, sobrepõe-se ao IPI federal
(ex-imposto de consumo, tributando indiretamente os produtos
industrializados) e ao ISS municipal (que conservava em sua base tributável
252
CARRAZZA, Roque Antonio. ICMS. 7. ed. rev. e ampl. São Paulo: Malheiros, 2001, p. 239.
COÊLHO, Sacha Calmon Navarro. Curso de Direito Tributário Brasileiro. 4. ed., Rio de Janeiro: Forense,
1999, p. 341.
253
141
parte dos serviços ligados à produção, antes tributados pelo imposto sobre
indústrias e profissões). A realidade de um país federativo com três ordens
de governo impunha-se desafiadora.254
Diversas tentativas já foram feitas no sentido de fundir o ICMS, o IPI e o ISS em um
único imposto, incidente sobre o valor agregado. Até o momento, entretanto,“as necessidades
políticas de um Estado federativo como o nosso impediram [a pretendida fusão], restando a
tríplice divisão básica”255.
Ao dispor sobre o ICMS, a Constituição brasileira permite que o tributo tenha
diferentes hipóteses de incidência, o que leva Antonio Roque Carrazza a concluir que a sigla
alberga pelo menos cinco diferentes impostos:
a) o imposto sobre operações mercantis (operações relativas à circulação
de mercadorias);
b) o imposto sobre serviços de transporte interestadual e intermunicipal;
c) o imposto sobre serviços de comunicação;
d) o imposto sobre produção, importação, circulação, distribuição ou
consumo de lubrificantes e combustíveis líquidos e gasosos e de energia
elétrica; e
e) o imposto sobre a extração, circulação, distribuição ou consumo de
minerais.256
Segundo o autor, estes impostos, embora diversos, possuem um núcleo comum, que é
a sua sujeição ao regime da não-cumulatividade tributária.257 Além disto, aplica-se ao ICMS,
em qualquer de suas feições, embora de modo facultativo, o princípio da seletividade. Sendo o
imposto incidente sobre operações mercantis aquele que mais de perto interessa a este estudo,
sua abordagem será feita sob o enfoque de sua incidência sobre as operações relativas à
circulação de mercadorias.
Importante lembrar que tanto a não-cumulatividade quanto a seletividade têm como
objetivo possibilitar a observância dos princípios da capacidade contributiva e da igualdade
no caso dos impostos indiretos. Como o IPI, também o ICMS não onera o contribuinte de
direito, sendo o encargo financeiro do tributo transferido ao contribuinte de fato, que é o
consumidor final.
254
COÊLHO, Sacha Calmon Navarro. Curso de Direito Tributário Brasileiro. 4. ed., Rio de Janeiro: Forense,
1999, p. 329.
255
DERZI, Mizabel. A transformação da Constituição de 1988. O ICMS. In BALEEIRO, Aliomar. Direito
Tributário Brasileiro. 11. ed. atualizada por Misabel Abreu Machado Derzi. Rio de Janeiro: Forense, 2000, p.
369
256
CARRAZZA, Roque Antonio. ICMS. 7. ed. rev. e ampl. São Paulo: Malheiros, 2001, p. 32-33.
257
Op. cit., p. 33.
142
Não é idêntico, entretanto, o conteúdo jurídico dos princípios em comento para o IPI e
o ICMS, decorrendo as diferenças existentes de ter a competência para instituição do ICMS
sido atribuída aos Estados e ao Distrito Federal. A fim de preservar as autonomias estaduais e,
consequentemente, o equilíbrio federativo, preocupou-se o legislador constituinte em moldar
os princípios da seletividade e da não-cumulatividade ao ICMS, conferindo-lhes certas
peculiaridades.
Analisando o dispositivo constitucional que trata não-cumulatividade do ICMS
(Artigo 150, parágrafo 2º, II), é possível concluir que o princípio é de aplicação mais restrita
ao imposto estadual, se comparado ao IPI, conforme já destacado em tópico anterior. Isto não
implica licença ao legislador ordinário para diminuir o alcance da não-cumulatividade, cujos
contornos estão traçados na Constituição.
Esta observação é de grande relevância em razão da existência de inúmeras regras
infraconstitucionais, produzidas pelos Estados individual ou coletivamente (no caso dos
convênios), atuarem de modo a obstaculizar o direito ao crédito e, desta forma, amesquinhar o
princípio da não-cumulatividade. Como exemplo desse tipo de norma pode-se mencionar a
concessão de diferimento para posterior proibição do creditamento relativo às operações
diferidas, ou, ainda, a determinação de que, em certos casos, a apuração e o pagamento do
imposto se faça a vista da operação, o que muitas vezes restringe – ou no mínimo dificulta – o
aproveitamento dos créditos a que tem direito o contribuinte.
As duas situações interessam a este estudo, em razão de ambas estarem relacionadas
às operações realizadas com materiais recicláveis. Em praticamente todos os Estados
brasileiros é previsto o diferimento das operações internas com sucatas, resíduos e aparas. Em
razão de convênio celebrado pelos Estados no âmbito do CONFAZ, até pouco tempo as
operações interestaduais com sucatas, resíduos e aparas estavam sujeitas à apuração e
recolhimento imediato do tributo.
O diferimento consiste no adiamento da exigência do tributo para momento posterior,
em geral para o momento da incidência do tributo na próxima operação, realizada pelo
adquirente da mercadoria. É uma técnica empregada com freqüência para operações
realizadas por contribuintes sem organização empresarial e tem dupla função: simplificar as
exigências fiscais em relação àqueles contribuintes e, ao mesmo tempo, conferir maior
eficiência à arrecadação e fiscalização tributária, uma vez que seria difícil à Administração
controlar um grande número de pequenos produtores e comerciantes.
A previsão do diferimento se dá, nas diversas legislações estaduais, em função do tipo
de mercadoria. É comum a concessão de diferimento para operações praticadas com produtos
143
in natura, insumos agropecuários, subprodutos da matança de gado e resíduos diversos, como
aparas de papel e plástico, sucata de metais ferrosos e não ferrosos, entre outros. Usualmente,
existe a previsão de encerramento do diferimento nas operações posteriores, em especial
aquelas que destinam as mercadorias a outro Estado ou as que resultam da industrialização.
Muito se diverge acerca da natureza jurídica do diferimento. O tema, entretanto,
precisa ser enfrentado, em função de “sua implicação com o crédito de ICMS (operações
anteriores e posteriores), no contexto da não-cumulatividade.”258
Em compilação de diversos estudos realizados sobre o tema, José Eduardo Soares de
Melo apresenta entendimentos segundo o qual o diferimento seria: i) equivalente à isenção;
ii) uma exclusão da oneração tributária que, embora não se confunda com a isenção, tem
efeitos idênticos a ela; iii) uma modalidade de não-incidência tributária; iv) uma modalidade
de substituição tributária.
Encarado o diferimento como isenção ou como modalidade de não-incidência, as
operações a ele sujeitas não possibilitariam o direito ao creditamento na operação
subseqüente, uma vez que aplicar-se-ia a vedação constitucional contidas no Artigo 155,
parágrafo 2º, II da Constituição Federal. Também o crédito relativo à operação anterior não
poderia ser aproveitado.
Quando se considera o diferimento uma modalidade de substituição tributária,
entender-se-á que não há exoneração do tributo, que continua devido, embora por terceiro.
Para esta corrente, permaneceria o direito ao crédito na operação diferida, uma vez que esta
operação é considerada tributada. Apenas no que concerne às operações posteriores é que
seria vedada a apropriação do crédito pelo adquirente.
Sobre o tema existe jurisprudência firmada no sentido de não haver direito ao crédito
nas operações beneficiadas pelo diferimento. Por sua pertinência com este estudo, veja-se o
acórdão abaixo transcrito, que trata do diferimento em operações de venda de sucata:
ICM. Crédito. Sucata de vidro adquirida para industrialização. Imposto
diferido.
Não tendo sido pago o tributo quando da aquisição da sucata, o qual ficou
diferido para incidir sobre o produto já industrializado, não tem o industrial
direito ao crédito referente à compra. Embargos de divergência conhecidos
e recebidos.259
258
MELO, José Eduardo Soares de. ICMS: teoria e prática. 6. ed., São Paulo: Dialética, 2003, p. 246.
BRASIL, Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário n. 92.675/SP. Tribunal Pleno. Relator: Min.
Cunha Peixoto, em 03/09/1981. Disponível em
http://www.stf.jus.br/portal/jurisprudencia/listarJurisprudencia.asp?s1=sucata e vidro e industrialização e
imposto e diferido&base=baseAcordaos Acesso em 23 set 2010
259
144
Fica claro que, sendo a operação interna de venda de sucata sujeita ao diferimento, não
haverá possibilidade de creditamento na operação subseqüente. Surgem daí conseqüências
econômicas, que se relacionam a uma maior oneração do produto fabricado a partir de
insumos reciclados.
Não há dúvida de que a técnica do diferimento é necessária, e mesmo benéfica, em
alguns casos. Há que se considerar, entretanto, que como bem adverte Ives Gandra da Silva
Martins, ao contrário do que ocorre com a isenção, na qual a finalidade visada pelo legislador
é a outorga de benefício, “no diferimento não há tal intenção, mas mera adoção de técnica
arrecadatória que não visa beneficiar o sujeito passivo da relação tributária, mas simplificar a
fórmula de recebimento do ICM pelo sujeito ativo da referida relação”260.
Já Roque Antonio Carrazza vislumbra, no diferimento, um tipo de benefício fiscal.
Justamente por isto, o autor adverte que, “em matéria de ICMS, deve obedecer às mesmas
diretrizes que norteiam a concessão de créditos presumidos, isenções etc.”261 Tal observação
ganha relevância quando se constata que, na prática, os Estados vêm concedendo diferimentos
por meio de atos normativos infralegais, em afronta ao princípio da legalidade tributária.
Como as concessões normalmente se referem a operações realizadas no âmbito interno
de cada Estado, não há grande reação por parte do CONFAZ. Casos há, entretanto, em que a
técnica do diferimento é prevista com o único intuito de impossibilitar que o contribuinte
utilize créditos que lhe são de direito.
Outro óbice oposto pelas Fazendas Públicas estaduais à aplicação plena do princípio
da não-cumulatividade nas operações com produtos recicláveis foi o Convênio ICM nº 9, de
18 de março de 1976262, que só em setembro de 2007 veio a ser revogado, por meio do
Convênio ICMS nº 113/2007263. Por força do Convênio ICM nº 9/76, as operações com sucata
ficavam sujeitas à apuração e recolhimento do imposto à vista de cada remessa, devendo o
contribuinte recolher o tributo incidente sobre cada operação por guia em separado, a qual
deveria acompanhar o trânsito da mercadoria.
Com isto, o que ocorreu na prática foi a impossibilidade de os comerciantes de
material reciclável utilizarem o crédito do imposto relativo às operações anteriores. Isto
260
MARTINS, Ives Gandra da Silva apud MELO, José Eduardo Soares de. ICMS: teoria e prática. 6. ed., São
Paulo: Dialética, 2003, p. 246.
261
CARRAZZA, Roque Antonio. ICMS. 7. ed. rev. e ampl. São Paulo: Malheiros, 2001, p. 259.
262
BRASIL, Ministério da Fazenda, CONFAZ. Convênio ICM 9, de 18 de março de 1976. Disponível em <
http://aacpdappls.net.ms.gov.br/appls/legislacao/serc/legato.nsf/749c4b1f5aedf7a304256b210079ce23/fb10ea28a
e2c32ef04256aea007a09f6?OpenDocument> Acesso em 20 set 2010. V. Anexo I
263
BRASIL, Ministério da Fazenda, CONFAZ. Convênio ICMS 113, de 28 de setembro de 2007. Disponível em
http://aacpdappls.net.ms.gov.br/appls/legislacao/serc/legato.nsf/749c4b1f5aedf7a304256b210079ce23/e253a2c6
1f11582a042573860046ee10?OpenDocument Acesso em 20 set 2010. V. Anexo II
145
porque, na guia de recolhimento, deveria constar o valor total do tributo devido pelo
comerciante, sob pena de não ser admitido o creditamento posterior, pela indústria adquirente
dos insumos recicláveis.
Segundo Roque Antonio Carrazza264, o mencionado Convênio ICM nº 9/76 não
encontrava fundamento de validade nem na Constituição anterior, sob cuja vigência foi
firmado, nem na Constituição atual, uma vez que não poderia restringir, como o fez, o alcance
do princípio da não-cumulatividade.
Como já salientado anteriormente, o Convênio ICM nº 9/76 não mais está em vigor,
por ter sido revogado de forma expressa pelo Convênio ICMS nº 113/2007. Em muitos
Estados brasileiros, entretanto, a legislação ainda prevê que a apuração e o recolhimento do
ICMS incidente sobre a venda de sucata seja feita à vista de cada operação. Com isto,
permanece, para muitos, a dificuldade de apropriar os créditos relativos a operações
anteriores, o que acarreta inegável ofensa ao primado da não-cumulatividade tributária.
Constata-se que as legislações estaduais, de modo geral, opõem dificuldades à
realização plena do princípio da não-cumulatividade nas operações realizadas com materiais
recicláveis. Ressalta-se ainda que, do mesmo modo que ocorre com o IPI, também a
legislação aplicável ao ICMS ignora ser a cadeia produtiva da reciclagem uma cadeia cíclica,
optando por tratar a sucata como o primeiro componente de uma cadeia linear. A perspectiva
considerada pela legislação busca inviabilizar, assim, a discussão acerca da possibilidade de
se aproveitar o crédito do ICMS incidente na última operação que destinou um dado produto
industrializado ao consumo.
Outro princípio constitucional tributário de aplicação específica ao ICMS, assim como
ao IPI, é o da seletividade da tributação em função da essencialidade da mercadoria, produto
ou serviço. De observância obrigatória em relação ao IPI, o princípio é de aplicação
facultativa ao ICMS, em razão do que dispõe o Artigo 155, parágrafo 2º, III, segundo o qual o
imposto previsto no inciso II (ICMS) poderá ser seletivo, em função da essencialidade das
mercadorias e dos serviços.
Em função do mencionado dispositivo constitucional, a aplicação do princípio da
seletividade deve orientar a atuação do legislador infraconstitucional no que tange ao ICMS
nos limites em que isto for possível, dada a autonomia estadual consagrada pelo princípio
federativo. Qualquer variação de alíquotas, entretanto, quando for implementada, deverá levar
em conta a essencialidade e conveniência da mercadoria ou serviço para a sociedade.
264
CARRAZZA, Roque Antonio. ICMS. 7. ed. rev. e ampl. São Paulo: Malheiros, 2001, p. 259.
146
Em que pese a relevância do referido princípio, que ao lado da não-cumulatividade
permite que os tributos indiretos se conformem ao primado da igualdade e da capacidade
contributiva, sua aplicação ao ICMS pode ainda ser considerada insipiente. No que tange à
reciclagem, não se tem notícia da efetivação do princípio, por meio da utilização de alíquotas
reduzidas para materiais recicláveis ou fabricados a partir de insumos reciclados, em qualquer
Estado do país.
O tema da seletividade do ICMS traz a baila importante questão: pode o imposto
estadual ser utilizado como instrumento de regulação da economia? A problemática é de
extremo interesse para este trabalho, que pretende abordar a adoção de uma política tributária
de favorecimento à reciclagem de resíduos sólidos. Poderia então o instrumental tributário
atinente ao ICMS ser utilizado com vistas ao estímulo da reciclagem?
Segundo Roque Antonio Carrazza, não só pode como deve o ICMS ser empregado
como instrumento regulador. Ao defender a aplicação compulsória da seletividade ao ICMS,
o autor assim justifica seu entendimento:
Melhor elucidando, o ICMS deverá ser seletivo em função da
essencialidade das mercadorias e dos serviços.
Com isso, pode e deve ser utilizado como instrumento de ordenação
político-econômica, estimulando a prática de operações ou prestações
havidas por úteis ou convenientes para o País e, em contranota, onerando
outras que não atendam tão de perto ao interesse nacional.265
Desde sua instituição, como Imposto sobre Vendas e Consignações, o tributo vem
sendo manejado com o intuito de alavancar o desenvolvimento econômico. Como já
demonstrado, o abuso da utilização extrafiscal do ICMS, pelos Estados, deflagrou odiosa
guerra fiscal entre os mesmos. Talvez por isto, diversos juristas tenham resistido em admitir o
emprego extrafiscal do tributo, como o fez Ruy Barbosa Nogueira, em conferência transcrita
por Sacha Calmon Navarro Coelho:
O ICM não pode ser usado como instrumento regulador da economia
fomentando ou desencorajando atividades. Não é imposto hábil de atuação
extrafiscal, quer em sua natureza quer pela razão de seu sujeito ativo. O
princípio da uniformidade da alíquota para todas as mercadorias é a
característica fundamental de que o ICM é imposto essencialmente fiscal.266
265
CARRAZZA, Roque Antonio. ICMS. 7. ed. rev. e ampl. São Paulo: Malheiros, 2001, p. 297.
NOGUEIRA, Ruy Barbosa apud COÊLHO, Sacha Calmon Navarro. Curso de Direito Tributário Brasileiro.
4. ed., Rio de Janeiro: Forense, 1999, p. 331.
266
147
A almejada neutralidade, entretanto, jamais realizou-se na prática, o que é
compreensível em razão da significância do ICM, em termos econômicos. Com o advento da
Constituição de 1988, em atendimento a forte pressão exercida pelos Estados-Membros, foi
conferido maior prestígio à autonomia financeira dos entes federados, sendo possível admitirse a utilização extrafiscal do ICMS, ainda que fortemente sujeita a limitações constitucionais.
Mesmo Ruy Barbosa Nogueira, acompanhando a evolução constitucional do tributo,
passou a admitir sua utilidade como instrumento de regulação. Em comentário à seletividade
do ICMS, facultada pela então recém promulgada Constituição de 1988, assim se posicionou
o autor:
Esta disposição é dirigida ao legislador estadual, dando-lhe, dentro da
competência para instituir esse imposto, mais a faculdade de acrescentar a
essa categoria fiscal ou de arrecadação, a função extrafiscal da
regulatividade [...] A consideração e decisão de essencialidade no caso é
matéria de política fiscal do legislador. A nosso ver, a essencialidade de
mercadorias e serviços deve estar a serviço do bem comum, cujo
atendimento é missão do Estado.267
Tendo em conta a preservação do equilíbrio federativo, entretanto, o autor entendia
que a seleção de alíquotas, por meio do ICMS, não poderia ser efetivada isoladamente por
qualquer Estado federado. Tal providência, que deveria ser conjuntural, somente poderia ser
adotada mediante concordância de todos os Estados, nos termos do que dispõe o Artigo 155,
parágrafo 2º, XII, “g” da Constituição.268
Assim, se por um lado parece certo que o ICMS pode ser utilizado como valioso
instrumento de regulação da atividade econômica, permanece indubitável que, para isto, deve
haver observância das diversas limitações constitucionais à manipulação indiscriminada e
isolada do tributo por parte de qualquer Estado-Membro. Entre estas, destaca-se: i)
observância das alíquotas interestaduais, fixadas por resolução do Senado Federal; ii)
observância das alíquotas mínimas, também fixadas pelo Senado Federal, nas operações
internas; iii) submissão das normas relativas a desonerações tributárias à apreciação dos
demais Estados federados, por meio do CONFAZ.
A preocupação do legislador de regular em plano constitucional tantos aspectos da
incidência do ICMS visa resguardar a Federação. Na Constituição, é possível perceber um
grande número de dispositivos de cunho unificador, cuja finalidade é uniformizar o modo
267
268
NOGUEIRA, Ruy Barbosa. Curso de Direito Tributário. 9. ed., atual. São Paulo: Saraiva, 1989, p. 137.
Op. cit., p. 137.
148
pelo qual o tributo incidirá nos Estados-Membros. Por conta disto é que se fala que o ICMS é
um imposto estadual, porém de caráter nacional.269
Com isto não se quer dizer que o ICMS tenha sido subtraído da competência estadual,
afinal, quem efetivamente institui o tributo são os Estados-Membros, por meio de leis
próprias. Deve ficar claro que, embora expedidas pelos Estados e pelo Distrito Federal, devem
as referidas normas manter certa homogeneidade. Assim, não é absoluta a autonomia dos
Estados e do Distrito Federal para legislar sobre o ICMS: não podem eles deixar de instituir
este imposto, sendo o exercício da competência tributária, neste caso, obrigatório; do mesmo
modo, falta-lhes autonomia para conceder desonerações fiscais, as quais somente serão
legítimas se observado o que dispõe o Artigo 155, parágrafo 2º, XII, “g” da Constituição
brasileira.270
Conclui-se que é possível a utilização do ICMS seletivo como instrumento de
incentivo à reciclagem de resíduos. Tal desiderato, entretanto, somente será atingido por meio
de uma política pública integrada, que envolva a participação – ou no mínimo a concordância
– de todos os Estados da Federação. Não há espaço para a adoção de medidas impensadas ou
unilaterais, que além de antijurídicas, em nada contribuirão para a promoção do
desenvolvimento sustentável no âmbito do Estado brasileiro.
3.2.3 As contribuições para o financiamento da seguridade social (COFINS) e para o
programa de integração social (PIS)
A Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social (COFINS) e a
Contribuição para o Programa de Integração Social (PIS) são tributos que, por incidir sobre a
receita bruta obtida pelas empresas, têm importante impacto econômico sobre o setor
produtivo. Por esta razão, a abordagem dessas contribuições guarda pertinência com o
presente estudo, sendo de interesse verificar de que maneira elas oneram as diversas etapas da
cadeia produtiva da reciclagem.
Tanto a COFINS quanto a Contribuição para o PIS são modalidades de tributação da
renda bruta. Diferem da tributação da renda líquida, na qual é considerado um conjunto de
269
PEIXOTO, Daniel Monteiro. Federação, competência tributária e guerra fiscal entre Estados via ICMS. In:
SANTI, Eurico Marcos Diniz de (coord.), Curso de Direito Tributário e Finanças Públicas: do fato à norma, da
realidade ao conceito jurídico. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 1089.
270
Op. cit., p. 1089.
149
adições e exclusões por meio das quais se garante que a incidência ocorre apenas quando há
acréscimo de valores ao patrimônio de quem se encontra sujeito à tributação. No caso da
tributação da renda bruta – ou da receita – incide o tributo mesmo quando inexista renda real
ou quando esta seja negativa.
Por esta característica, a tributação sobre a receita representa um retrocesso histórico
em relação à tributação à renda líquida. Em termos de eficiência, entretanto, esta modalidade
de tributação é conveniente para o Estado, pois a atividade de arrecadação desses tributos é
bastante simplificada. Em sua atividade arrecadatória, a administração fazendária é eximida
de coletar uma série de dados e realizar cálculos, sendo o processo de fiscalização dos dados
do contribuinte também mais simples, uma vez que ocorrendo o ingresso de receitas incide a
tributação.271
As contribuições sociais do PIS e da COFINS encontram fundamento constitucional
no Artigo 195, I, “b” da Constituição brasileira. Inicialmente, tinham como aspecto material a
incidência sobre o faturamento. Posteriormente, por força da Emenda Constitucional nº
20/1998, o texto constitucional constante do dispositivo citado substituiu a expressão “o
faturamento” pela expressão “a receita ou o faturamento”, sendo certo que atualmente ambas
as contribuições têm como aspecto material de sua incidência a receita bruta, como gênero,
que abrange qualquer entrada de rendimentos, seja ela na forma de faturamento ou não.
A contribuição para o PIS tem a mesma base de cálculo da COFINS: o faturamento
considerado receita bruta. A incidência dessas duas contribuições sobre a mesma base de
cálculo não causa maiores polêmicas, uma vez que está expressamente autorizada pela
Constituição Federal.272
Não fosse pela destinação prevista em lei para o PIS e a COFINS, poder-se-ia dizer
tratarem-se do mesmo tributo. Sendo, entretanto, espécies de contribuição social, a identidade
do tributo é determinada pela destinação do produto arrecadado, que é afetada a certa despesa,
prevista em lei.
No caso da COFINS, prevê o Artigo 1º da Lei Complementar nº 70, de 30 de
dezembro de 1991, que instituiu a referida contribuição, que a finalidade da contribuição é o
financiamento da seguridade social e que a mesma destina-se exclusivamente ao atendimento
de despesas nas áreas de saúde, previdência e assistência social.
271
CALIENDO, Paulo. Direito Tributário e Análise Econômica do Direito: uma visão crítica. Rio de Janeiro:
Elsevier, 2009, p. 309.
272
PACHECO, Ângela Maria da Motta. As Contribuições no Sistema Tributário Brasileiro. In MACHADO,
Hugo De Brito (coord.). As Contribuições no Sistema Tributário Brasileiro. São Paulo: Dialética, Fortaleza:
Instituto Cearense de Estudos Tributários – ICET, 2003, p. 82.
150
Em relação ao PIS, prevê o Artigo 1º da lei instituidora deste tributo – Lei
Complementar nº 7, de 1970 – que o Programa de Integração Social tem como objetivo
promover a integração do empregado na vida e no desenvolvimento das empresas. A referida
Lei Complementar nº 7, foi recepcionada pela Constituição de 1988, que modificou,
entretanto, a destinação da contribuição para o PIS. Tendo em conta o que dispõe o Artigo
239 da Constituição, a arrecadação do referido tributo é hoje vinculada ao custeio do segurodesemprego e do abono aos empregados com média de até dois salários mínimos de
remuneração mensal. Destes recursos, pelo menos quarenta por cento deverão ser destinados a
financiar programas de desenvolvimento econômico, através do Banco Nacional de
Desenvolvimento Econômico.
Outra distinção existente entre essas contribuições é a alíquota a elas aplicável.
Atualmente o PIS incide a alíquotas de 0,65% ou 1,65%, dependendo de ser sua incidência
cumulativa ou não. Já as alíquotas aplicáveis à COFINS são de 3%, para o regime cumulativo
e para o monofásico, e 7,6%, no caso da COFINS sujeita ao regime da não-cumulatividade.
Segundo Paulo Caliendo273, a tributação sobre o faturamento – no caso sobre a receita
bruta – envolve diversas discussões: seria o tributo considerado direto, indireto ou misto?
Devem os tributos incidentes sobre a receita bruta sujeitar-se aos princípios da nãocumulatividade e da neutralidade fiscal? Estes questionamentos, embora fundamentais, ainda
não se encontram totalmente resolvidos pela doutrina e jurisprudência, o que confirma a
complexidade das exações em comento.
Sem a pretensão de esgotar o tema, adota-se no presente trabalho a concepção de que a
Contribuição para o PIS e a COFINS são tributos indiretos, em razão de que sua incidência
não leva em consideração as características individuais ou a capacidade contributiva do
contribuinte de direito. Este sujeita-se à tributação quer tenha ele obtido êxito em seus
empreendimentos quer tenha havido prejuízos na atividade empresarial. Desta feita, outra
alternativa não resta, de ordinário, ao contribuinte de direito, senão repassar aos preços de
seus produtos ou serviços o encargo financeiro que terá com a tributação.
Em consideração a esta característica comum ao PIS e à COFINS, a Constituição
passou a permitir, com a edição da Emenda Constitucional nº 42, que essas contribuições
fossem não-cumulativas. O regime não-cumulativo foi instituído, para o PIS, com a edição da
Lei nº 10.637/2002 e para a COFINS por meio da Lei nº 10.833/2003.
273
CALIENDO, Paulo. Direito Tributário e Análise Econômica do Direito: uma visão crítica. Rio de Janeiro:
Elsevier, 2009, p. 309.
151
Estas leis determinaram a não-cumulatividade da COFINS e do PIS para certos setores
da economia, passando as alíquotas das referidas contribuições para 7,6% e 1,65%,
respectivamente. Em outras atividades foi mantido o regime cumulativo e em outras, ainda,
foi determinada a incidência monofásica das contribuições, permanecendo as alíquotas de
0,65% para o PIS e de 3% para o COFINS nesses dois últimos casos. Os regimes coexistem
no sistema atual.
A não-cumulatividade determinada em lei causou forte impacto econômico ao setor da
reciclagem, representado por real aumento da carga tributária suportada, sobretudo, pelos
comerciantes de materiais recicláveis que adquiriam produtos de catadores individuais. De
acordo com a sistemática adotada, não dão direito ao crédito os valores pagos a pessoas
físicas, conforme dispõe o Artigo 3º, parágrafo 3º, I da Lei nº 10.637/2002, que é repetido
pela Lei nº 10.833/2003.
Talvez se esperasse que, com a adoção do novo regime, os catadores de sucata fossem
forçados a sair da informalidade, uma vez que as empresas que deles adquirem seus produtos
tenderiam a pagar preços melhores àqueles que fossem regularmente constituídos. A
perspectiva, entretanto, não se concretizou. Dadas as peculiaridades da cadeia produtiva da
reciclagem, as novas alíquotas do PIS e COFINS terminaram por empurrar para a
informalidade alguns empresários, além de estimular muitos a praticar toda forma de evasão
fiscal e sonegação de tributos.
Por razões ligadas à eficiência, foi aprovada então, no texto da Lei n 11.196/2005, que
dispõe sobre uma diversidade de assuntos, a “suspensão” da incidência da COFINS e do PIS
na venda de desperdícios, resíduos ou aparas, para pessoas jurídicas que apurem o imposto de
renda com base no lucro real. A desoneração consta do Artigo 48 da mencionada lei, que
ressalva não aplicar-se a dita “suspensão” a vendas realizadas por pessoa jurídica optante pelo
regime simplificado de tributação que, à época, era regido pela Lei nº 9.317/1996 e
atualmente é disciplinado pela Lei Complementar nº 123/2006.
De pronto transparece a inadequação da terminologia utilizada pelo legislador,
quando, pretendendo desonerar as vendas de resíduos recicláveis, optou por “suspender” a
incidência do tributo. O termo “suspensão” diz respeito a situações provisórias, que
dependendo de condição futura, terão este ou aquele deslinde. Não há na Lei nº 11.196/2005,
entretanto, qualquer previsão de encerramento da dita “suspensão”. Nem se diz que cumprida
tal condição considera-se extinta a obrigação tributária, nem se diz que ocorrido certo fato
futuro, encerra-se a suspensão com a possibilidade de exigência do tributo.
152
A medida foi inicialmente celebrada pelos empresários ligados à reciclagem como se
fora uma desoneração definitiva dos tributos, que outra coisa não poderia ser senão uma
isenção tributária. Uma análise sistemática da legislação regedora da matéria, entretanto,
revela outra realidade. De acordo com o Artigo 47 da Lei nº 11.196/2005, não podem os
adquirentes das mercadorias beneficiadas pela suspensão utilizar o crédito relativo às referidas
aquisições.
Diante da vedação legal à apropriação do crédito, conclui-se que o “benefício”
concedido por meio da suspensão da incidência do PIS e da COFINS nas vendas de
recicláveis nada mais é que o diferimento, que consiste unicamente na postergação do
momento de pagamento desses tributos. Não há, portanto, outro interesse na medida senão o
de simplificar a arrecadação das referidas contribuições.
De positivo para as empresas do setor restou apenas a simplificação de procedimentos.
O custo econômico, entretanto, foi enorme, pois na prática o que se deu foi a majoração brutal
das contribuições, no setor da reciclagem. Somadas, a contribuição para o PIS e a COFINS
passaram de 3,65% para 9,25%. Acabaram por incidir apenas no final da cadeia produtiva,
mas a alíquotas que somente seriam viáveis caso realmente se lhes aplicasse o regime da nãocumulatividade.
Este maior custo tributário, em tributos indiretos como as contribuições em comento,
nunca é suportado pelo contribuinte de direito. No caso da cadeia produtiva da reciclagem, ao
contrário do que ocorre em outros setores da economia, o encargo financeiro do tributo não é
repassado ao preço final do produto. Explica-se: o material reciclado é uma comodity, cujo
valor é determinado pelo mercado. Se o reciclável chega mais caro à indústria do que o
insumo não reciclado, desaparece o mercado consumidor daquele produto. Por conta disso, os
encargos são transferidos de maneira reversa: aos integrantes das primeiras etapas do ciclo
produtivo.
Ocorre então a seguinte situação: as indústrias que utilizam os insumos reciclados
fixam o preço que os mesmos terão. Se há muitos encargos tributários a suportar, a indústria
paga menos pelos recicláveis que adquire do comerciante. Este, por sua vez, paga preços
menores aos catadores individuais. Em síntese: no caso da reciclagem, a lógica da majoração
de tributos é ainda mais cruel que em outras atividades, pois onera o elo mais frágil de toda a
cadeia produtiva, que é o catador de sucata.
A tributação incidente sobre a reciclagem de resíduos deve ser feita em consideração
às peculiaridades desta cadeia produtiva. Se para tantos outros setores da economia as
contribuições incidentes sobre a receita bruta tornaram-se mais equitativas com a adoção do
153
princípio da não-cumulatividade, é certo que também para o ramo da reciclagem devem as
referidas contribuições incidir de maneira mais justa.
3.3 O ESTÍMULO À RECICLAGEM POR MEIO DA TRIBUTAÇÃO: ANÁLISE DE
PROPOSIÇÕES LEGISLATIVAS JÁ APRESENTADAS
A realidade vivenciada hoje no planeta aponta para a premência da adoção de medidas
de proteção ao meio ambiente, que em última instância significam a preservação do direito à
vida. Do ponto de vista social, é possível constatar que todo o crescimento econômico
experimentado pelas nações, embora tenha trazido riquezas para tantos, não alcançou bilhões
de pessoa, que, excluídas das benesses do progresso, vivem ainda em situação de insegurança
humana e de miséria.
Há que se pensar o desenvolvimento, então, por outra ótica: a da sustentabilidade.
Disto já se ocupou a ordem constitucional brasileira, na qual o desenvolvimento sustentável
foi consagrado como direito fundamental. Como conseqüência, o desempenho da atividade
econômica somente pode ser considerado legítimo quando conciliar os valores da eficiência
econômica com aqueles atinentes à justiça social e à preservação do meio ambiente.
Neste contexto, ganham relevância certas atividades econômicas que, como a
reciclagem, incorporam as dimensões ambiental, social e econômica do desenvolvimento
sustentável. Não é outra a razão pela qual a reciclagem foi adotada pela Lei nº 12.305/2010
como um dos pilares da Política Nacional de Resíduos Sólidos, sendo ao mesmo tempo
objetivo e princípio informador da referida Política.
A partir da edição da Lei nº 12.305/2010, não há como pensar a gestão de resíduos
sólidos no país sem consideração à temática da reciclagem. De acordo com a referida Lei,
cabe ao Estado coordenar as políticas públicas de resíduos, devendo sua gestão ser
compartilhada com a sociedade e os agentes econômicos.
No papel de agente regulador da atividade econômica, cumpre ao Estado, ainda em
conformidade com a lei que estabelece a Política Nacional de Resíduos, conceder incentivos
financeiros, creditícios e tributários. Tendo em conta a importância da reciclagem para a
gestão integrada de resíduos sólidos, fica clara a pertinência da adoção de uma política
tributária voltada ao estímulo desta atividade econômica, com vistas à promoção do
desenvolvimento sustentável.
154
Já há algum tempo o tema da concessão de incentivos à reciclagem tem sido levantado
no âmbito dos poderes Legislativo e Executivo, sendo possível encontrar, na legislação
esparsa e em projetos em tramitação, algumas medidas e propostas que, tendo em conta a
questão ambiental e por vezes também o aspecto social, buscam estimular a reciclagem,
sobretudo nas etapas iniciais de sua cadeia produtiva.
Em âmbito federal, o mecanismo mais usual para o estímulo a qualquer atividade
econômica que envolva a industrialização de produtos é a manipulação do Imposto sobre
Produtos Industrializados, vocacionado a instrumentalizar a ação reguladora estatal. Na esfera
deste imposto, algumas medidas de incentivo à reciclagem já foram tentadas, ou encontram-se
ainda em fase de análise.
Em 23 de dezembro de 2009, foi editada a Medida Provisória nº 476274, que buscava
estimular a utilização, pelas indústrias, de matéria-prima reciclada. Para tanto, concedia à
indústria adquirente de insumo reciclado um crédito presumido no valor de até cinqüenta por
cento do valor pago na aquisição dos resíduos, multiplicado pela alíquota do IPI aplicável ao
produto fabricado a partir dos mesmos.
De acordo com a Medida, o crédito seria concedido à indústria apenas quando esta
adquirisse os insumos diretamente de cooperativas de catadores de materiais recicláveis. Na
Exposição de Motivos da Medida Provisória nº 476, estimava-se uma renúncia de receita em
torno de cento e sete milhões ao ano em decorrência do incentivo, sendo previstas as devidas
compensações, em atendimento ao Artigo 14 da Lei de Responsabilidade Fiscal.
Analisando o conteúdo da referida Medida Provisória, constata-se que seu principal
objetivo não era puramente o estímulo à reciclagem, mas o fortalecimento das cooperativas de
catadores de lixo formadas exclusivamente por pessoas físicas, tendência que já se observava
após a edição da Lei nº 11.445, de 5 de janeiro de 2007, que estabelece diretrizes nacionais
para o saneamento básico. Em seu Artigo 57, a mencionada Lei permite que os Municípios
contratem cooperativas de catadores, dispensada a licitação, para fins de coleta seletiva de
lixo.
A mesma preocupação com o cooperativismo pode ser notada na lei que estabelece a
Política Nacional de Resíduos Sólidos (Lei nº 12.305/2010), que em seu Artigo 8º, inciso IV,
prevê o incentivo à criação e ao desenvolvimento de cooperativas ou de outras formas de
associação de catadores de materiais reutilizáveis e recicláveis.
274
BRASIL, Presidência da República. Medida Provisória nº 476, de 23 de dezembro de 2009. Disponível em
https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2007-2010/2009/Mpv/476.htm V. Anexo III
155
Com uma visão mais democrática da atividade econômica, a Lei nº 12.305/2010 não
se limita ao cooperativismo como se este fosse a única resposta à questão da coleta seletiva.
Ao contrário, prevê também a possibilidade de outras formas de associativismo e, em seu
Artigo 7º, XII, determina a integração dos catadores de materiais reutilizáveis e recicláveis
nas ações que envolvam a responsabilidade compartilhada pelo ciclo de vida dos produtos.
O condicionamento do benefício a que as aquisições fossem feitas de cooperativas não
agradou ao setor da reciclagem, que pressionou politicamente o Congresso a afastar a vedação
do crédito a outras aquisições. Não havendo acordo, o Governo deixou caducar a Medida
Provisória nº 476/2009 sem que a mesma jamais chegasse a produzir efeitos.
É de se questionar se a concessão do benefício nos moldes previstos na Medida
Provisória em questão era juridicamente correta, ou se razão assistia às indústrias recicladoras
que se insurgiram contra o condicionamento do incentivo fiscal a que os insumos recicláveis
fossem adquiridos de cooperativas de catadores. Antes de partir para a resposta a este
questionamento, é necessário esclarecer que a Medida Provisória não desagradou apenas às
indústrias, mas também aos catadores individuais que não pretendiam se organizar em
cooperativas, assim como a pequenas e médias empresas formalmente constituídas que
operam com o comércio de reciclados.
Deixando de lado a questão coorporativa ou possíveis interesses relacionados a reserva
de mercado que pudessem ter todos aqueles que discordaram das limitações contidas na
Medida Provisória nº 476/2009 à utilização do crédito, há que se verificar se existe, no
ordenamento jurídico, fundamento de validade para o tratamento privilegiado às cooperativas.
O Artigo 174, parágrafo 2º da Constituição Federal permite que o Estado intervenha
na atividade econômica para apoiar e estimular o cooperativismo e outras formas de
associativismo. Esta regra compatibiliza-se com o princípio constitucional econômico atinente
à valorização do trabalho humano, incluindo a proteção a outras formas de trabalho além
daquele prestado mediante vínculo empregatício.
O estímulo ao cooperativismo e ao associativismo relaciona-se também ao princípio
da livre iniciativa, uma vez que a cooperativa nada mais é do que a união de trabalhadores que
se colocam no mercado e assumem o risco de uma atividade econômica. Deste modo, afirmase que há fundamento constitucional para a concessão de tratamento favorecido a
cooperativas.
No caso em análise, entretanto, o incentivo previsto na Medida Provisória nº 476/2009
não era dado diretamente às cooperativas, mas às indústrias, que poderiam ou não repassar os
ganhos obtidos com a possibilidade de utilizar o crédito presumido aos preços pagos às
156
cooperativas, embora a tal não fossem obrigadas.
Para compreender a situação que seria criada, tome-se como exemplo a seguinte
hipótese: uma indústria adquire cem quilos de sucata de alumínio, cujo preço de mercado é
hoje de R$ 250,00. Caso o produto fosse adquirido de catadores individuais ou empresas
comerciantes de material reciclável este seria o valor a ser pago. Caso o vendedor fosse uma
cooperativa, a indústria teria o direito de utilizar um crédito presumido no valor de R$ 12,50.
Poderia, então, pagar à cooperativa o valor de R$ 262,50 pelo mesmo material, sem que isto
significasse qualquer custo adicional. Ou poderia, para manter homogêneos os preços, pagar à
cooperativa os mesmos R$ 250,00, caso em que não seria atingido o objetivo legal de
fortalecimento ao cooperativismo. Isto porque não havia, na Medida Provisória nº 476/2009,
qualquer mecanismo que assegurasse que a finalidade almejada pelo legislador seria atendida.
Por outro lado, caso as indústrias repassassem o estímulo recebido aos preços pagos às
cooperativas, estaria criada uma enorme distorção no mercado, que comprometeria a
neutralidade econômica da tributação, em prejuízo dos outros agentes econômicos que atuam
no comércio de reciclagem, dentre eles alguns que recebem da Constituição a garantia de
tratamento favorecido, como as microempresas, empresas de pequeno porte e, mais
recentemente, os microempreendedores individuais.
Segundo o Artigo 170, IX, às microempresas e empresas de pequeno porte será dado
um tratamento jurídico diferenciado. O Artigo 179 reforça este mandamento, determinando a
obrigatoriedade de ser concedida, a estas empresas, a redução ou eliminação de suas
obrigações tributárias e deveres instrumentais. Este tratamento tributário favorecido foi
introduzido no ordenamento jurídico brasileiro por meio da Lei Complementar nº 123/2006,
que não contempla qualquer possibilidade de creditamento relativo ao IPI. Ao contrário, de
acordo com a referida Lei, caso as pequenas empresas sujeitas ao regime simplificado de
tributação estivessem sujeitas ao pagamento do IPI, não haveria direito ao crédito, nas
operações subseqüentes.
Caso tivesse a Medida Provisória nº 476/2009 sido convertida, haveria para os demais
comerciantes de material reciclável, em especial os microempreendedores individuais,
microempresas e empresas de pequeno porte, dificuldade de se manter no mercado, em clara
afronta ao princípio da livre concorrência. Afetada ainda seria a liberdade de iniciativa, uma
vez que comprometido estaria o direito de alguém exercer certa atividade econômica sob a
forma de organização empresarial. Com isto, estariam abertas as portas para a criação de
cooperativas “de fachada”, assim como para a sonegação de tributos, que é irmã gêmea da
tributação que não atende à neutralidade econômica.
157
Entende-se, assim, que embora seja constitucionalmente válida a concessão de
tratamento favorecido a cooperativas, este há que se coadunar com outros valores também
prestigiados pela Constituição. Melhor seria que eventuais benefícios fiscais fossem
concedidos em relação a tributos diretos, como o Imposto de Renda e os impostos incidentes
sobre a propriedade, nos quais é mais viável o atendimento à pessoalidade do sujeito passivo.
Há que se salientar, finalmente, que o direito ao creditamento do IPI pelo adquirente
de insumo reciclado não constitui benefício ou favor fiscal. Não fosse o enfoque distorcido da
legislação infraconstitucional, que trata a cadeia produtiva da reciclagem como se esta fosse
linear, o direito ao crédito, ainda que presumido, seria hoje reconhecido em relação a
aquisições feitas de qualquer pessoa jurídica regularmente constituída, bastando para isto que
esta emitisse documento fiscal.
Também relacionado à reciclagem, há em tramitação o Projeto de Lei do Senado nº
169, de 2008275, de autoria do Senador Marcelo Crivella. O objetivo básico do texto original é
isentar do IPI os veículos, máquinas, equipamentos e produtos químicos fabricados em países
integrantes do Mercosul, quando adquiridos por empresas recicladoras, cooperativas e
associações para emprego exclusivo em processos de reciclagem.
A proposição aguarda parecer da Comissão de Meio Ambiente, Defesa do
Consumidor e Fiscalização e Controle, para depois seguir à Comissão de Assuntos
Econômicos. Embora o benefício proposto seja restrito a categorias específicas de materiais
recicláveis, não contemplando aqueles que compõem a maior parte do que hoje chega às
indústrias recicladoras, trata-se de mais uma importante iniciativa no sentido de impulsionar a
atividade recicladora de resíduos sólidos no Brasil.
De especial interesse, no Projeto de Lei do Senado nº 169/2008, é o fato de que o
benefício concedido é a isenção, que, no caso da sistemática atual adotada no IPI, é mais
benéfica que a mera previsão de alíquotas nulas, por possibilitar o direito ao crédito relativo
às operações anteriores.
Outras proposições de relevo chegaram a ser apresentadas, mas nenhuma delas logrou
continuidade. Na Câmara dos Deputados, tramitaram os Projetos de Lei nº 4.137, de 2001, de
autoria do Deputado Ronaldo Vasconcellos276 e o nº 2.497, de 2007, de autoria do Deputado
275
BRASIL, Senado Federal. Projeto de Lei do Senado nº 169, de 2008. Disponível em
http://www.senado.gov.br/atividade/materia/detalhes.asp?p_cod_mate=84891 Acesso em 26 set 2010. V. Anexo
IV
276
BRASIL, Câmara dos Deputados. Projeto de Lei nº 4.137, de 2001. Disponível em
http://www.camara.gov.br/sileg/Prop_Detalhe.asp?id=26434 Acesso em 26 set 2010. V. Anexo V
158
Sarney Filho277, todos no sentido de isentar do IPI a atividade de reciclagem de resíduos
sólidos no país.
O projeto nº 2.497/2007 previa ainda a redução do Imposto sobre a Renda da pessoa
jurídica que atuasse no ramo da reciclagem, ao passo que a proposição nº 4.137/2001
concedia também isenção do Imposto sobre as Importações. Esses projetos, no entanto, foram
arquivados pela Câmara dos Deputados.
No âmbito estadual, é ainda mais rara a preocupação com o fomento à reciclagem. Em
regra, os materiais recicláveis são tratados pelas legislações estaduais como as demais
mercadorias, sobre cuja circulação incide normalmente o ICMS. Como já demonstrado
anteriormente, em muitos Estados há ainda a previsão de tratamento mais gravoso para as
operações com sucata, com a incidência individualizada do imposto à vista, para cada
operação, o que dificulta a utilização de eventuais créditos relativos a operações anteriores.
Existem algumas previsões de tratamento diferenciado. O Convênio ICMS nº 33, de
26 de março de 2010278 prevê a isenção do ICMS incidente sobre a venda de pneus usados
destinados à reciclagem ou à disposição final ambientalmente correta. O benefício, entretanto,
não se aplica quando os pneus forem destinados à remoldagem, recapeamento, recauchutagem
ou processo similar. Do ponto de vista da Lei nº 12.305/2010, que dispõe sobre a Política
Nacional de Resíduos Sólidos, a vedação em comento é no mínimo paradoxal, uma vez que a
referida Lei dá clara preferência à reutilização de materiais, quando esta se faz possível, por
ser ambientalmente menos impactante que a reciclagem.
Ainda no âmbito do ICMS, pode-se mencionar pontuais autorizações concedidas pelo
CONFAZ, para que um ou outro Estado conceda benefícios relacionados a operações
praticadas por contribuintes determinados, em relação a certas mercadorias. Exemplo disto é o
Convênio ICMS nº 95, de 6 de julho de 2007279, que autorizou o Estado de Mato Grosso a
conceder isenção do ICMS nas saídas internas de geladeiras e lâmpadas doadas pela
companhia energética daquele Estado, bem como do retorno das sucatas aos fabricantes, no
âmbito do Projeto Eficientização Energética em Comunidades de Baixa Renda.
Os exemplos mencionados – tanto em âmbito estadual como federal – são pontuais e
desarticulados. Não refletem uma postura estatal de opção pelo modelo de desenvolvimento
277
BRASIL, Câmara dos Deputados. Projeto de Lei nº 2.497, de 2007. Disponível em
http://www.camara.gov.br/sileg/Prop_Detalhe.asp?id=378459 Acesso em 26 set 2010. V. Anexo VI
278
BRASIL, Ministério da Fazenda, CONFAZ. Convênio ICMS n. 33, de 26 de março de 2010. Disponível em
http://aacpdappls.net.ms.gov.br/appls/legislacao/serc/legato.nsf/Conv%C3%AAnio?OpenView&Start=1&Count
=30&Expand=1.1#1.1 Acesso em 27 set 2010
279
BRASIL, Ministério da Fazenda, CONFAZ. Convênio ICMS n 95, de 06 de julho de 2007. Disponível em
http://aacpdappls.net.ms.gov.br/appls/legislacao/serc/legato.nsf/Conv%C3%AAnio?OpenView&Start=1&Count
=30&Expand=1.4#1.4 Acesso em 27 set 2010
159
de que trata a Constituição. Esta realidade retrata a ausência de uma política pública integrada
para a gestão de resíduos sólidos no país.
Com a edição da Lei nº 12.305/2010, entretanto, o incentivo à reciclagem deixa de ser
simplesmente desejável em razão dos valores prestigiados pela Constituição Federal para
consubstanciar-se em imposição legal que em tudo guarda relação de pertinência com aqueles
valores antes aludidos. Deve o Estado, no exercício do papel regulador que lhe é
constitucionalmente atribuído, planejar, coordenar e fiscalizar as políticas públicas de
resíduos sólidos.
Parte inevitável dessas políticas é a concessão de incentivos tributários. Estes, no
entanto, para surtir efeito, não podem ser concedidos de forma aleatória. Ao contrário, é
necessário cuidadoso planejamento e integração entre as diferentes esferas do poder estatal. É
conveniente que os benefícios sejam condicionados ao cumprimento, por parte dos agentes
econômicos, da função social empresarial. É desejável que a sociedade seja envolvida no
processo, não apenas como beneficiária de projetos, como também como apta a dar sua
própria contribuição. É preciso que haja fiscalização, por parte do Estado, quanto ao
cumprimento dos compromissos assumidos por todas as partes.
Segundo a Lei nº 12.305/2010, a gestão de resíduos sólidos há que ser desenvolvida
pela União, Estados, Distrito Federal e Municípios de maneira integrada e em cooperação,
além de ser prevista ainda a participação da sociedade e agentes econômicos. Assim, os
referidos entes políticos constitucionais deverão planejar de forma conjunta uma política
tributária que atenda aos reclamos da gestão de resíduos. Neste caso, a tônica que deve
permear as discussões entre eles deverá ser outra que não apenas a perda na arrecadação, tema
que infelizmente é sempre central quando se pensa o desenvolvimento de qualquer política
tributária.
À União, como órgão central, deve caber o papel de coordenação desta política. É ela
também que detém maiores condições de renunciar receitas, por ser-lhe a compensação da
arrecadação perdida mais fácil. Aos Estados, cabe agir de forma integrada entre si, focando os
benefícios regionais que podem advir da exploração da atividade econômica com
sustentabilidade.
Dos Municípios não há muito o que exigir do ponto de vista tributário, eis que não são
eles detentores da competência relativa à instituição dos tributos que mais oneram a cadeia
produtiva da reciclagem. São eles, entretanto, os maiores beneficiados por uma adequada
gestão de resíduos sólidos, por ser deles a responsabilidade de lidar com o lixo urbano. Cada
tonelada de resíduos recicláveis recolhida por catadores autônomos significa economia, pelas
160
prefeituras, do valor que seria gasto com o transporte e destinação daqueles resíduos.
Caberia então, aos Municípios, traçar uma política pública voltada ao elo mais frágil
da cadeia produtiva da reciclagem: os catadores de resíduos recicláveis autônomos e as
cooperativas de catadores. A fim de retirar essas pessoas dos lixões sem obstar-lhes o próprio
sustento, devem os Municípios implementar, coordenar e fiscalizar a coleta seletiva do lixo.
Poderão ainda os Municípios se responsabilizar pelas condições de trabalho dos
catadores de resíduos, fornecendo-lhes equipamentos de proteção individual e obrigando sua
utilização. A ação municipal pode incluir o planejamento de rotas a serem cumpridas pelos
catadores mediante permissão, garantindo assim a eficiência do serviço de coleta.
Para tudo isto, podem e devem os Municípios contar com a colaboração de empresas,
seja mediante a co-participação no financiamento da coleta seletiva, seja mediante o
desenvolvimento de programas de educação ambiental, ou pela oferta de pontos de coleta e
envolvimento dos consumidores, seus clientes.
À sociedade cabe conscientizar-se de que os recursos naturais são finitos e que, por
esta razão, o consumo de bens e serviços envolve responsabilidades. É necessário também que
se conscientize sobre o valor do trabalho do catador de resíduos, que ainda é vítima de
preconceito. Com a valorização deste profissional, deixa ele de ser considerado um excluído
social para ser visto pelo que é: um agente promotor da saúde humana e ambiental.
3.4 A SELETIVIDADE E A NÃO-CUMULATIVIDADE TRIBUTÁRIA COMO
MECANISMOS DE FOMENTO À RECICLAGEM
Afirmada a conveniência de se conceder um tratamento tributário favorecido à
reciclagem, resta investigar de que maneira o instrumental tributário pode ser utilizado com
esta finalidade. Já tendo sido constatada a relevância econômica dos tributos incidentes sobre
o consumo, ficou demonstrada a utilidade dos mesmos como instrumento de regulação
estatal.
Em se tratando dos dois mais importantes tributos indiretos existentes no sistema
tributário brasileiro – o IPI e o ICMS – devem ser analisados os princípios constitucionais que
informam estes impostos, o da seletividade e o da não-cumulatividade, a fim de verificar de
que maneira podem se relacionar à atividade econômica da reciclagem.
Como visto, a seletividade consiste na tributação mais ou menos gravosa de
161
mercadorias, produtos e serviços em função de sua essencialidade. O princípio é de cristalina
aplicação em relação a bens de primeira necessidade e medicamentos, por exemplo, cuja
essencialidade à sobrevivência é inquestionável. Não causa surpresa, também, a tributação
agravada de bens inequivocamente supérfluos, ou mesmo prejudiciais, como cigarros, bebidas
alcoólicas e artigos de luxo.
Casos há, entretanto, em que a essencialidade não é tão aparente. Assim, é necessário
compreender o conceito jurídico de essencialidade, a fim de determinar que produtos,
mercadorias e serviços seriam constitucionalmente legitimados a um tratamento tributário
menos oneroso.
Discorrendo sobre o princípio da seletividade, José Eduardo Soares de Melo280 afirma
que seu objetivo é suavizar a injustiça do imposto que grava diretamente o consumo.
Valendo-se da lição de Aliomar Baleeiro, o autor aponta elementos que permitem vislumbrar
o conceito de essencialidade:
[...] a seletividade significa discriminação ou sistema de alíquotas
diferenciadas por espécies de mercadorias, como adequação do produto à
vida do maior número de habitantes do País. As mercadorias essenciais à
existência civilizada deles devem ser tratadas mais suavemente, ao passo que
as maiores alíquotas devem ser reservadas aos produtos de consumo restrito,
isto é, o supérfluo das classes de maior poder aquisitivo.281
A essencialidade estaria relacionada, assim, à existência humana civilizada, que pode
ser entendida como existência digna. Produto essencial, portanto, não seria apenas aquele que
garante a sobrevivência, mas aquele que assegura que a mesma seja digna.
Também nesse sentido a lição de Paulo Caliendo282, para quem o conceito de
essencialidade deve ser entendido de maneira ampla, relacionando-se à proteção de um padrão
de vida digno. O autor chama ainda a atenção para as diferenças regionais, acentuando que
produtos e serviços que sejam considerados essenciais conforme uma região, cultura ou
época, podem não o ser necessariamente em uma região ou cultura diversa.
Alguns autores relacionam o conceito de essencialidade ao de mínimo existencial.
Também aí, entretanto, seria necessário inquirir sobre o que estaria abrangido neste mínimo.
Para a Constituição brasileira, parece claro que albergados sob este manto se encontram não
280
MELO, José Eduardo Soares de. IPI. In MARTINS, Ives Gandra da Silva (coord). Curso de Direito
Tributário. 12. ed., São Paulo: Saraiva, 2010, p. 633.
281
BALEEIRO, Aliomar. Direito Tributário Brasileiro. 11. ed. atualizada por Misabel Abreu Machado Derzi.
Rio de Janeiro, Forense, 2000, p. 347-348.
282
CALIENDO, Paulo. Direito Tributário e Análise Econômica do Direito: uma visão crítica. Rio de Janeiro:
Elsevier, 2009, p. 160.
162
apenas os bens indispensáveis à sobrevivência, como também, aqueles que se relacionam à
dignidade humana.
Buscando na interpretação sistemática da Constituição o conceito de essencialidade,
Regiane Binhara Esturilio conclui que o essencial relaciona-se à qualidade de um produto,
mercadoria ou serviço de ser indispensável à satisfação de uma ou de várias necessidades.
Neste conceito se incluiriam a moradia, a alimentação, a educação, a saúde, o vestuário, a
higiene, o transporte, o trabalho e a segurança.283
Segundo a autora, o texto constitucional atribui ainda a qualidade de essenciais a
outros produtos, mercadorias e serviços:
E há ainda outros artigos do texto constitucional indicando produtos,
mercadorias e/ou serviços essenciais como, por exemplo, as referências aos
serviços de telecomunicações, de radiodifusão sonora, de sons e imagens e
de energia elétrica (artigos 21 e 22); ao meio ambiente – itens que auxiliem
no combate à poluição, na preservação das florestas, da fauna e da flora
(artigos 23, inciso VI e 170, inciso VI); ao gás natural, o petróleo e seus
derivados, os combustíveis e os minerais (artigo 155, parágrafo 3 e 177).284
Também Luís Eduardo Schoueri chama a atenção para a amplitude do conceito de
essencialidade, que aparece no texto constitucional de forma aberta e pode, deste modo, ser
preenchido em consideração a razões de justiça distributiva ou, igualmente, a razões de ordem
estrutural. Segundo o autor:
Daí justificar-se, por conta das normas tributárias indutoras, que se
reformule o conceito de ‘essencialidade’, que deve ter duas perspectivas: o
ponto de vista individual dos contribuintes e as necessidades coletivas. Sob
a última perspectiva, tal conceito deve ser entendido a partir dos objetivos e
valores constitucionais: essencial será o bem que se aproxime da
concretização daqueles. Assim, tanto será essencial o produto consumido
pelas camadas menos favorecidas da população, dado o objetivo
fundamental da República de ‘erradicar a pobreza e a marginalização’
(artigo 3º, III, da Constituição Federal), como aquele que corresponda aos
auspícios da Ordem Econômica, diante do objetivo de ‘garantir o
desenvolvimento nacional’ (artigo 3º, II). 285
Merece destaque neste ponto a inegável essencialidade do bem ambiental. Não sendo
este bem, em si, tributável, consideram-se essenciais todos aqueles produtos e serviços que
283
ESTURILIO, Regiane Binhara. A Seletividade no IPI e no ICMS. São Paulo: Quartier Latin, 2008, p. 122
Op. cit., p. 122
285
SCHOUERI, Luís Eduardo. Normas tributárias indutoras e intervenção econômica. Rio de Janeiro: Editora
Forense, 2005
284
163
contribuem para sua preservação, eis que desta depende o próprio direito à vida não só das
presentes como, também, das futuras gerações.
Sob este ângulo, não há como questionar a essencialidade da reciclagem como
processo industrial que concilia preservação ambiental com desenvolvimento econômico.
Desta feita, entende-se que não só o insumo reciclável possui a natureza de essencial como,
também, os produtos finais obtidos a partir de um processo de reciclagem. Em razão da
seletividade tributária, devem ser tributados a alíquotas mais brandas que seus equivalentes
produzidos a partir de matéria-prima encontrada na natureza.
Segundo Lídia Maria Lopes Rodrigues Ribas:
Essa seletividade é um instrumento para frear o consumo de bens
indesejáveis ou menos necessários e liberar espaços para investimentos
merecedores de apoio, o que permite também uma redistribuição de rendas
e uma maior aproximação da Justiça Fiscal. O conceito de essencialidade
conduz à seletividade da alíquota do IPI e do ICMS, por exemplo.286
Em relação ao ICMS, infelizmente não tem havido, até o presente momento, aplicação
efetiva do princípio da seletividade por meio da graduação de alíquotas em função da
essencialidade das mercadorias postas em comércio. Segundo Roque Antonio Carrazza287,
isto se deve ao fato de ter a seletividade sido aceita como facultativa para este tributo.
De qualquer modo, é possível detectar uma tendência de cumprimento deste princípio,
ainda que não de forma ampla, por meio de outras técnicas que não a graduação de alíquotas,
como a concessão de créditos presumidos ou de reduções da base de cálculo do imposto. Não
é comum, entretanto, a aplicação da seletividade em função de ser a mercadoria destinada à
reciclagem ou oriunda de processo de industrialização no qual foi utilizado insumo reciclável.
No que tange ao IPI, de modo geral é possível afirmar que o princípio da seletividade
tem sido razoavelmente bem observado, havendo ampla diversificação de alíquotas, que
ocorre realmente em função da essencialidade dos produtos. Verifica-se que a legislação deste
imposto incorporou o conceito de essencialidade com razoável plasticidade e amplitude, não
considerando essenciais apenas os produtos da cesta básica ou de primeira necessidade, mas
também outros que guardam pertinência com valores consagrados na Constituição.
Não chegou, porém, a legislação do IPI, a contemplar de modo satisfatório a
seletividade em relação aos recicláveis. Há em tramitação, projeto de lei com este objetivo.
286
RIBAS, Lídia Maria Lopes Rodrigues. Defesa ambiental: Utilização de instrumentos tributários. In TÔRRES,
Heleno Taveira (org), Direito Tributário Ambiental. São Paulo: Malheiros, 2005, p. 687.
287
CARRAZZA, Roque Antonio. ICMS. 7. ed. rev. e ampl. São Paulo: Malheiros, 2001, p. 301.
164
Trata-se do Projeto de Lei do Senado nº 510, de 2009288, de autoria da Senadora Serys
Slhessarenko. O objetivo do texto original é reduzir a zero a alíquota do IPI incidente sobre
resíduos recicláveis, assim como produtos industrializados por empresas recicladoras, em cuja
produção os insumos recicláveis correspondam a pelo menos setenta por cento do custo total
das matérias-primas empregadas no processo de produção.
A matéria foi aprovada na Comissão de Meio Ambiente, Defesa do Consumidor e
Fiscalização e Controle, seguindo para a Comissão de Assuntos Econômicos, onde aguarda
parecer do relator.
A justificativa do projeto destaca a essencialidade ambiental e social dos processos de
reciclagem, razão pela qual é possível concluir que a proposta de aplicação de alíquotas nulas
aos insumos e aos produtos fabricados a partir de matéria-prima reciclada fundamenta-se na
seletividade do IPI.
Merece atenção o fato de que não seria necessária lei para a fixação, em zero, de
alíquotas do IPI, uma vez que pode este imposto ter suas alíquotas diminuídas ou majoradas
pelo Poder Executivo, por meio de decreto, em conformidade com o que dispõe o Artigo 153,
parágrafo 1º da Constituição Federal. Assim, nada impediria que, aprovada a lei em comento,
fossem revertidas as alíquotas, por ato do Executivo, bastando para isto que se observasse o
prazo de noventa dias para aplicação da alíquota majorada.
Melhor seria que o projeto dispusesse sobre a concessão de isenção aos insumos e
produtos finais fabricados a partir de recicláveis. Entretanto, parece claro que o objetivo do
projeto é, reconhecendo a essencialidade do processo de reciclagem, conceder a exoneração
tributária com fundamento na seletividade.
Ainda em relação ao mencionado Projeto de Lei do Senado nº 510/2009, destaca-se
que a desoneração pretendida refere-se tanto aos produtos que compõem as primeiras etapas
do ciclo produtivo quanto aos produtos finais. Embora louvável a intenção legislativa, há que
se observar que o plástico reciclado, por exemplo, pode se prestar à fabricação de qualquer
produto, seja ele essencial ou absolutamente supérfluo. Assim, poderia haver subversão ao
princípio da seletividade tributária decorrente da tentativa de se observar o mesmo princípio.
A fixação da alíquota em zero apenas nas primeiras etapas da cadeia produtiva,
entretanto, de nada adiantaria, pois o benefício não seria refletido nos preços praticados nas
etapas finais do ciclo do produto. Isto ocorre em razão do modo como é hoje aplicado o
288
BRASIL, Senado Federal. Projeto de Lei do Senado nº 510/2009. Disponível em
http://www.senado.gov.br/atividade/materia/detalhes.asp?p_cod_mate=94086 Acesso em 27 set 2010 V. Anexo
VII.
165
princípio da não-cumulatividade tributária ao IPI, pois a legislação não admite a utilização do
crédito relativo às operações anteriores, no caso de alíquotas nulas.
Por esta razão, há o princípio da seletividade que ser pensado em conjunto com o
princípio da não-cumulatividade, o que, de resto, é verdadeiro em relação a qualquer
incentivo que se pretenda conceder, no caso de tributos não-cumulativos.
No início deste trabalho chamou-se a atenção para a estreita relação de
interdependência existente entre o Direito e a Economia. Tal observação faz-se novamente
necessária à vista do tema ora abordado – a aplicação do princípio da não-cumulatividade às
operações com mercadorias e produtos recicláveis – uma vez que o real alcance do princípio
em comento não prescinde de uma análise econômica de sua repercussão.
Diante mão reconhece-se que nem a todos agrada que o estudo do Direito seja feito à
vista da compreensão econômica dos fatos, como também não lhes aprazeria a análise do
Direito à luz da sociologia ou da ciência política. A argumentação destes, baseada na Teoria
Pura do Direito, apresentada por Hans Kelsen, consiste basicamente em que ao intérprete do
Direito só interessam conceitos eminentemente jurídicos. Sua proposta consiste na depuração
do objeto do Direito – a norma jurídica – de modo a não permitir que sua compreensão seja
deturpada por fatos ou estudos sociológicos, políticos, econômicos, filosóficos ou
psicológicos. Para eles, somente desta maneira pode a Ciência do Direito, que é autônoma,
alcançar os ideais da objetividade e da exatidão.
São inúmeros e eminentes os juristas que, no Brasil, adotaram ou adotam esta postura
jurídica em alguma medida. Mesmo entre eles, entretanto, há certo consenso em que o Direito
de algum modo afeta e é afetado pelos demais ramos do conhecimento. Veja-se, por exemplo,
o que diz Paulo de Barros Carvalho, um dos baluartes do positivismo jurídico no Direito
Tributário, acerca dessa interdisciplinaridade:
Não acredito ser possível, por isso mesmo, isolar-se, dentro do social, o fato
jurídico, sem uma série de cortes e recortes que representem, numa ascese
temporária, o despojamento daquele fato cultural maior de suas colorações
políticas, econômicas, éticas, históricas etc., bem como dos resquícios de
envolvimento do observador, no fluxo inquieto de sua estrutura emocional.
Sem disciplinas, é claro, não teremos as interdisciplinas, mas o próprio
saber disciplinar, em função do princípio da intertextualidade, avança na
direção de outros setores do conhecimento, buscando a indispensável
complementaridade. O paradoxo é inevitável: o disciplinar leva ao
interdisciplinar e este último faz retornar ao primeiro.289
289
CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de direito tributário. 18. ed., rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2007, p.
167.
166
Quando se diz que o tema da não-cumulatividade é melhor compreendido à luz de
uma análise econômica do Direito Tributário, não se está defendendo uma teoria de
interpretação econômica do Direito Tributário, a qual não se acredita possível, por ignorar
preceitos mínimos contidos no sistema jurídico tributário.
O que se pretende, ao contrário, é justamente a compreensão do Direito em
consideração ao meio sobre o qual ele está apto a incidir, produzindo efeitos que, além de
jurídicos, podem ser econômicos, políticos e sociais. Segundo Paulo Caliendo:
A ciência do Direito deve reconhecer que deve existir uma coerência
sistêmica entre justiça e a eficiência [econômica] em sentido pragmático, ou
seja, o sistema de normas deve ser orientado por valores e justificativas
advindas do contexto extranormativo. Dessa forma, não se trata de negar a
autonomia semântica e sintática da linguagem jurídica, mas de reconhecer
que a rede de significados adotados no direito decorrem [sic] de uma
conexão entre eficiência e justiça. Não há como negar qualquer relação ou
determinar uma ordem de prioridade de uma sobre a outra.290
Não só o tema da não-cumulatividade tributária guarda relação com a eficiência
econômica como, de resto, todo o Direito Tributário o faz. Isto é especialmente verdadeiro
quando se fala em intervenção do Estado sobre o domínio econômico por meio de normas
tributárias indutoras, temática esta pisada e repisada ao longo de todo este estudo.
Voltando à questão da não-cumulatividade, recorda-se que o referido princípio
constitucional aplica-se a tributos indiretos e tem por objetivo assegurar observância aos
princípios da capacidade contributiva e da igualdade em tributos nos quais, por incidirem
sobre o consumo, não é possível atentar-se à capacidade econômica daquele que recebe o
encargo financeiro da tributação.
Por meio da não-cumulatividade, assegura-se que não haverá tributo incidindo sobre
tributo, o que produz um efeito cascata que inibe o crescimento econômico e afeta a
competitividade das empresas. Por fim, o princípio da não-cumulatividade possibilita
alcançar, nos tributos indiretos, “a neutralidade fiscal, permitindo que as decisões dos agentes
econômicos não sejam distorcidas pelo peso da tributação e tampouco que os consumidores
sejam afetados por uma tributação excessiva e regressiva”.291
290
CALIENDO, Paulo. Direito Tributário e Análise Econômica do Direito: uma visão crítica. Rio de Janeiro:
Elsevier, 2009, p. 93-94.
291
Op. cit., 2009, p. 324.
167
Em que pese a relevância jurídica deste princípio, cuja realização é traçada pela
legislação infraconstitucional aplicável aos tributos por ele informados, tem a nãocumulatividade sido causa de incontáveis disputas entre a Fazenda Pública e os contribuintes,
assim como fonte de acalorados debates doutrinários.
De acordo com a Constituição brasileira, o princípio da não-cumulatividade aplica-se
ao IPI e ao ICMS de forma obrigatória, sendo sua aplicação permitida em relação à
contribuição para o PIS e à COFINS. Já tendo sido abordada a sistemática adotada pela
Constituição e pelas legislações infraconstitucionais em relação a cada um dos referidos
tributos não-cumulativos, resta agora verificar de que modo a efetivação do princípio em
comento pode servir de base a uma política tributária especificamente voltada à reciclagem,
com o objetivo de estimular esta atividade econômica.
De imediato observa-se que, em regra, a não-cumulatividade funciona como um
desestímulo à atividade produtiva ligada à reciclagem, o que pode acontecer mesmo quando
comparada a sua aplicação às cadeias produtivas que utilizam matérias-primas brutas.
Tanto a legislação aplicável ao IPI quanto a que se aplica ao ICMS dão à cadeia
produtiva da reciclagem o tratamento tributário de uma cadeia linear. Assim, a sucata de todo
gênero é tratada pela legislação como o primeiro componente da cadeia produtiva, como se
nenhum processo tivesse ocorrido antes, como se aquele material tivesse sido extraído
diretamente da natureza.
Este o perfil do que ocorre nas operações com recicláveis, segundo as normas jurídicas
hoje aplicáveis ao ICMS e ao IPI:
Sucata
Produto
intermediário
Produto final
Esta sistemática muito bem se prestou a retratar processos de industrialização dos mais
diversos itens, até o momento em que, a partir dos conceitos de reciclagem e reutilização,
passou-se a buscar matérias-primas não apenas na natureza, mas nos resíduos de algo que já
fora sujeito a todo um processo de industrialização e que, por não mais ser útil, pode voltar ao
processo produtivo na forma de matéria-prima.
É bem outra a configuração da cadeia produtiva que se forma a partir da reciclagem de
resíduos sólidos, a qual pode ser abaixo visualizada:
168
Produto
intermediário
Operação
tributada
Operação
tributada
consumo
Sucata
Produto final
Descarte
Operação
tributada
Com a introdução dos processos industriais de reciclagem, mudam os conceitos. Ao
invés de cadeia produtiva linear, a realidade mostra uma cadeia cíclica, conceito já
incorporado pela novel Lei nº 12.305/2010, que em diversos momentos dispõe sobre o “ciclo
de vida dos produtos”.
É certo, em qualquer ramo do conhecimento, que um conceito velho não pode ser
usado para definir algo novo, que com o velho não se confunde. Assim, a sistemática da nãocumulatividade aplicável à reciclagem não pode ser idêntica àquela que se aplica a uma
cadeia produtiva linear.
Considerando que o regime da não-cumulatividade se operacionaliza por meio da
compensação do tributo incidente na operação realizada pelo sujeito passivo tributário com o
tributo que foi pago nas operações anteriores, e tendo em conta que houve operação tributada
anterior ao descarte do resíduo sólido, deve a legislação criar mecanismos que permitam a
compensação. De outro modo, tem-se verdadeira incidência em cascata, ou regime
cumulativo de tributação.
Como se sabe, um dos efeitos mais nocivos da cumulatividade é a oneração excessiva
dos preços, pela tributação. Assim, quando a lei não permite a utilização do crédito, está
transferindo ao consumidor encargo tributário extraordinário, embutido no custo do produto.
O efeito econômico é a inibição do consumo, com conseqüente impacto no desenvolvimento.
Na cadeia produtiva da reciclagem o fenômeno da cumulatividade repercute de
maneira inversa. O mercado consumidor dos resíduos sólidos recicláveis é representado pelas
indústrias, que utilizam este material como insumo. São estas quem fixam os preços, uma vez
que quando o custo do insumo reciclável é superior ao da matéria-prima bruta, a indústria
169
opta por utilizar esta última em sua produção. Não sendo possível repassar os encargos
financeiros da tributação para o preço do produto final, dois fenômenos podem ocorrer: i) o
custo tributário é repassado da indústria recicladora ao comerciante de sucata e deste ao
catador de material reciclável; ou ii) a atividade se torna economicamente inviável e o
processo de reciclagem é abandonado.
Deste modo, no caso da reciclagem o ônus tributário advindo da cumulatividade da
tributação é transformado em custo social ou em custo ambiental. Na primeira hipótese, os
catadores de materiais recicláveis suportam o encargo financeiro da tributação, na forma de
preços aviltantes que lhe são pagos pelo material coletado. Na segunda, o não-aproveitamento
dos resíduos descartados representa séria ameaça ao meio ambiente e, em algumas
circunstâncias, fonte de grandes impactos sobre a saúde das populações.
A efetiva aplicação do princípio constitucional da não-cumulatividade à reciclagem
atende, pois, à equidade da tributação. Pensando, no entanto, em termos de eficiência na
arrecadação tributária, admite-se não ser possível determinar com exatidão o valor do crédito
a que faz jus a indústria ou o comerciante de material reciclável, uma vez que, em se tratando
de materiais descartados, não há documentação que ateste o valor do tributo incidente na
operação anterior.
Ainda que existisse tal documento, complicadas operações contábeis teriam que ser
feitas para, em consideração à perda parcial de utilidade do bem descartado, sua depreciação,
perda, etc., chegar-se proporcionalmente ao valor do crédito a ser aproveitado. Sendo certo,
no entanto, que o direito ao crédito existe, haverá o legislador que encontrar uma maneira para
assegurá-lo.
De modo geral, nos casos em que é difícil determinar com exatidão o valor do crédito
a que tem direito o contribuinte, as legislações têm adotado o sistema de créditos presumido,
que é assim explicado por Roque Antonio Carrazza:
Este sistema consiste em outorgar ao contribuinte um crédito fiscal que não
corresponde ao resultante das efetivas entradas, em seu estabelecimento, de
mercadorias, matérias-primas e outros insumos. Tal crédito fiscal, por força
da legislação de regência, passa a ser utilizado como moeda de
pagamento.292
A sistemática do crédito presumido é utilizada em substituição à sistemática do crédito
real nos casos em que, embora este exista, é de difícil determinação. A título de exemplo,
292
CARRAZZA, Roque Antonio. ICMS. 7. ed. rev. e ampl. São Paulo: Malheiros, 2001
170
pode-se citar a faculdade concedida por grande parte das legislações estaduais aos prestadores
de serviço de transporte, de utilizarem um crédito presumido em certo percentual, em
substituição ao crédito real a que fariam jus quando da aquisição de pneus, peças de veículos e
combustível. O mesmo procedimento é comum também em relação a agricultores, que por
vezes são autorizados a utilizar certo percentual a título de crédito fiscal, em substituição ao
crédito relativo aos insumos agropecuários, combustível e agrotóxicos empregados em sua
atividade.
É comum também a concessão de créditos presumidos como forma de incentivo fiscal.
Exemplos da adoção desta sistemática com a finalidade de estimular certas atividades podem
ser encontrados tanto na legislação do IPI quanto nas legislações estaduais, que muitas vezes
têm preferido esta forma de incentivo à redução de alíquotas.
Em um caso ou em outro, a sistemática seria perfeitamente aplicável à reciclagem,
tanto no que se refere ao IPI quanto ao ICMS, desde que observados os demais princípios
constitucionais tributários. Saliente-se, no entanto, que para configurar um incentivo, o crédito
concedido deverá ser em valor superior àquele a que já teria direito o contribuinte em
cumprimento ao primado da não-cumulatividade.
Considerando que a cadeia produtiva da reciclagem é cíclica, em relação ao IPI
entende-se que a possibilidade de utilizar o crédito relativo às operações de industrialização
das etapas anteriores nada mais é que a aplicação do princípio constitucional da nãocumulatividade. Isto porque, no caso deste imposto, a Constituição não condiciona o
aproveitamento do crédito a que a operação imediatamente anterior tenha sido tributada.
Desta maneira, para a correta aplicação do princípio da não-cumulatividade no caso do
IPI incidente sobre a reciclagem, basta que a legislação de regência permita à indústria que
utiliza resíduos recicláveis como insumo que se aproprie de certo valor a título de crédito
presumido. Este valor, representativo dos tributos já recolhidos nas etapas anteriores à
industrialização, seria compensado pela empresa com o valor por ela devido sobre a operação
própria.
A adoção desta sistemática foi prevista, para o IPI, na Medida Provisória nº 476, de
23 de dezembro de 2009, que não sendo apreciada pelo Congresso em tempo hábil, perdeu
sua eficácia em junho de 2010. A referida Medida Provisória, entretanto, tratava do crédito
presumido como modalidade de incentivo fiscal e condicionava o seu aproveitamento a que a
indústria adquirisse os insumos de cooperativas de catadores de material reciclável.
O direito ao crédito, neste caso, não pode ser restringido a apenas alguns contribuintes
do imposto, uma vez que decorre da Constituição Federal. Esta, ao dispor sobre a não-
171
cumulatividade do IPI, afirma-a irrestrita. Deste modo, “referido abatimento, como categoria
jurídica de hierarquia constitucional, somente pode encontrar restrições ao seu alcance no
próprio texto da Lei Maior, o que, no caso do IPI, não ocorre.293
Considerando que o direito ao crédito é decorrência imediata da Constituição, não é
admissível ao legislador infraconstitucional obstá-lo de qualquer maneira. Não sendo possível
a aferição exata do montante a ser abatido em relação ao tributo incidente nas operações
anteriores, é mandatória a previsão legal da sistemática dos créditos presumidos.
Defende-se ainda a concessão de um crédito presumido adicional, a título de incentivo
fiscal, com o intuito de fomentar a atividade produtiva ligada à reciclagem, ou mesmo, como
pretendido pela Medida Provisória nº 476/2009, como estímulo ao cooperativismo e
associativismo. Para tanto, pode a legislação atribuir um crédito presumido de valor superior
àquele que já é de direito, em razão da não-cumulatividade.
Também no caso do ICMS é perfeitamente cabível a concessão de crédito presumido
ao comerciante de material reciclável. Duas hipóteses devem ser consideradas, em relação a
este tributo: i) a aquisição de resíduos sólidos diretamente de contribuinte do imposto, por
exemplo, de supermercado que vende ao comerciante de sucatas as caixas de papelão onde se
encontravam acondicionados os produtos a serem revendidos; ii) a aquisição de resíduos que
foram descartados pelo consumidor e coletados por pequenos catadores de sucata.
Na primeira hipótese, considerando que a operação anterior foi tributada normalmente
pelo ICMS, há que ser admitido o creditamento do imposto. A exemplo do que ocorre no caso
do IPI, o direito ao crédito decorre diretamente da Constituição Federal, o que significa que
eventuais vedações contidas em lei padecem do vício de inconstitucionalidade.
No caso de ter sido o material reciclável adquirido após seu descarte, o comerciante
arca integralmente com o encargo da tributação, em que pese o significativo ônus econômico
desta forma de tributação. Isto porque, no caso do ICMS, a Constituição faz expressa ressalva
ao direito à compensação, quando a operação anterior não tenha sido sujeita à incidência do
tributo, ou quando tenha sido realizada sob o amparo de isenção.
Tendo em conta a essencialidade da reciclagem, defende-se a concessão de crédito
presumido do ICMS a título de incentivo. Neste caso, a permissão de creditamento tem o
caráter de norma tributária indutora.
293
BOTALLO, Eduardo Domingos. O Imposto sobre Produtos Industrializados na Constituição e no Código
Tributário Nacional. In: In: SANTI, Eurico Marcos Diniz de (coord.), Curso de Direito Tributário e Finanças
Públicas: do fato à norma, da realidade ao conceito jurídico. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 940.
172
Consideradas as peculiaridades do ICMS no que tange à competência tributária,
entende-se que a concessão do crédito deva ser disciplinada por meio de Lei Complementar,
atendendo ao que dispõe o Artigo 155, XII, “c” da Constituição Federal. No caso de ser o
benefício concedido isoladamente por um ou outro Estado, o que não se considera ideal, uma
vez que as políticas públicas relacionadas à gestão de resíduos sólidos devem ser feitas de
maneira integrada entre os entes federados, deverá haver concordância unânime de todos os
Estados, por meio do CONFAZ.
O crédito presumido do ICMS deve ser concedido ao primeiro integrante da cadeia
produtiva que estiver efetivamente sujeito ao pagamento do tributo, de modo a não
possibilitar que o direito à compensação seja afetado pelo diferimento do imposto.
Há ainda que se considerar que os primeiros integrantes da cadeia produtiva da
reciclagem são, em geral, pequenos comerciantes, optantes pelo regime simplificado de
tributação instituído pela Lei Complementar nº 123/2006. As vendas por eles realizadas não
dão ao adquirente das mercadorias direito ao crédito do ICMS, senão quando limitado ao
valor efetivamente recolhido a título deste imposto, na sistemática do Simples Nacional.
Atentando-se a esta realidade, deverá a Lei Complementar concessiva do crédito
presumido relativo às operações com materiais recicláveis encontrar mecanismos que
assegurem a neutralidade econômica da tributação, mediante o respeito ao princípio da nãocumulatividade, de modo a não impedir a permanência das micro e pequenas empresas no
mercado da reciclagem, o que em última instância atentaria contra os princípios da livre
iniciativa e da livre concorrência.
O raciocínio até aqui desenvolvido em relação à não-cumulatividade do IPI e do ICMS
não se aplica à COFINS e ao PIS. No caso dos dois primeiros tributos, o regime nãocumulativo relaciona-se aos produtos, mercadorias e serviços, que, tendo sofrido a incidência
de tributos em etapa anterior da cadeia produtiva, devem ser tributados apenas pelo valor que
lhes seja agregado. Já a não-cumulatividade do PIS e da COFINS relaciona-se à receita
auferida pelas empresas, não guardando relação com o valor agregado à mercadoria ou
serviço. Nem por isto se diga que a sistemática atualmente prevista na legislação de regência é
adequada.
Como se teve a oportunidade de verificar no tópico em que foi abordada a incidência
da contribuição para o PIS e da COFINS no setor da reciclagem, aos primeiros integrantes da
cadeia produtiva é concedida uma “suspensão” do imposto, cujos efeitos são idênticos ao do
diferimento. Das indústrias recicladoras, entretanto, são exigidas as contribuições pelas
alíquotas aplicáveis ao regime não-cumulativo, muito superiores às incidentes no caso do PIS
173
e COFINS cumulativos, sem que lhes seja facultado o aproveitamento de qualquer crédito, em
razão de não ter havido recolhimento do tributo nas etapas anteriores.
Ocorre, neste caso, uma falsa não-cumulatividade dos tributos em questão, que onera
desproporcionalmente a produção a partir de insumos recicláveis, quando em comparação
com a produção a partir de matéria-prima bruta. Este regime tributário agravado, imposto pela
legislação infraconstitucional aplicável à COFINS e ao PIS, é anti-jurídico, pois contraria o
princípio do desenvolvimento sustentável em todas as suas dimensões.
Poder-se-ia argumentar que a não-cumulatividade, no caso dessas contribuições, não é
constitucionalmente obrigatória, mas mera faculdade do legislador infraconstitucional. A
afirmação é procedente. Entretanto, ao conceder tratamento tributário diferenciado entre
contribuintes, deve o legislador valer-se de critérios discriminantes constitucionalmente
válidos. Não é o que ocorre no caso em questão, uma vez que a legislação que prevê a nãocumulatividade do PIS e da COFINS desconsidera valores de alto prestígio no texto
constitucional, em especial o que diz respeito à defesa do meio ambiente.
Deste modo, entende-se urgente uma alteração legislativa que confira efetividade ao
regime não-cumulativo do PIS e da COFINS incidentes sobre a cadeia produtiva da
reciclagem, o que pode ser feito por meio da permissão expressa a que as recicladoras
aproveitem o crédito relativo às aquisições de materiais recicláveis. Também no caso dessas
contribuições seria possível a concessão de tratamento tributário diferenciado. Em
consideração aos aspectos sociais, ambientais e econômicos envolvidos na reciclagem, este
somente seria válido quando mais benéfico, cuja finalidade seria a promoção do
desenvolvimento sustentável.
Em relação a qualquer um dos tributos mencionados, a efetiva realização do princípio
da não-cumulatividade não se traduz em vantagem apenas para empresas e consumidores,
como, também, para o Estado arrecadador. Por um lado, o modelo não-cumulativo aproxima a
tributação da neutralidade econômica, evitando distorções no regime de competição entre os
agentes econômicos e permitindo que a tributação sobre o consumo seja mais justa, por
considerar a capacidade contributiva daqueles que sofrem o impacto econômico do tributo.
Por outro lado, a tributação não-cumulativa reduz a possibilidade de sonegação e a
informalidade. Isto porque, a fim de garantir o direito à utilização do crédito, os contribuintes
devem certificar-se da regularidade das operações praticadas por aqueles outros contribuintes
dos quais adquiriram produtos, mercadorias ou serviços, o que facilita o trabalho da
fiscalização. Deste modo, o princípio em comento alia os valores da equidade aos da
174
eficiência da tributação, o que só ressalta a importância de ser corretamente observado tanto
pela legislação infraconstitucional quanto pelos órgãos da Administração Tributária.
Conclui-se que da estreita observância dos princípios da seletividade e da nãocumulatividade tributária a todos os tributos a que se aplicam depende o alcance da
neutralidade da tributação e, consequentemente, da justiça fiscal. Em relação à reciclagem de
resíduos sólidos, tal objetivo não foi ainda atingido, sendo, portanto, necessária a sua
consideração quando do planejamento e implementação de uma política tributária de
incentivo a esta atividade econômica, em prol do desenvolvimento sustentável.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A concepção de desenvolvimento, na contemporaneidade, vai além do aspecto
econômico, envolvendo também outras dimensões, como a política, a social e a ambiental. A
partir da consideração dessas dimensões surge o conceito de desenvolvimento sustentável,
que concilia o crescimento econômico com o direito ao meio ambiente saudável e equilibrado
e com a realização da justiça social, por meio da redução das desigualdades existentes.
O desenvolvimento é uma questão de Estado, razão pela qual deve ser tratado em
âmbito constitucional. O tema é jurídico, mas exige consideração também sob o aspecto
econômico, uma vez que direito e economia guardam relação de interdependência, devendo as
questões econômicas ser reguladas pelo Direito.
Na Constituição brasileira promulgada em 1988, é possível identificar uma
Constituição econômica, de caráter dirigente, que abrange normas constantes em todo o texto
constitucional, destinadas a regular o papel do Estado e dos agentes econômicos, assim como
da sociedade, no que se refere ao desenvolvimento não apenas no sentido econômico, mas
também humano e social. Presente ainda na Constituição brasileira a preocupação com a
questão ambiental. Desta forma, é possível concluir que a Constituição brasileira adota, como
princípio, o desenvolvimento sustentável.
Considerado o desenvolvimento sustentável em todas as suas dimensões e tendo em
vista que cada uma delas refere-se a um direito fundamental expressamente contemplado em
patamar constitucional, é possível concluir que o desenvolvimento sustentável figura, na
Constituição Federal de 1988, como direito fundamental e como princípio informador da
atividade econômica, o que impõe a busca de alternativas aos modelos de exploração da
atividade econômica empregados, de modo a conciliar preservação ambiental, viabilização da
economia e justiça social.
Na condição de direito fundamental, é o desenvolvimento sustentável oponível contra
o Estado, a quem incumbe promovê-lo em consonância com o perfil que lhe foi traçado pela
Constituição. O Estado brasileiro instituído pela Constituição Federal de 1988 é o Estado
Democrático de Direito. A inspirar sua Constituição econômica estão valores sociais e
também liberais, que devem ser compatibilizados. Em razão do dirigismo constitucional, o
Estado Democrático de Direito tem sua atuação pautada pela busca da transformação.
176
O Estado contemporâneo não mais se contenta com a simples função de assegurar as
liberdades individuais. A ele não cumpre também agigantar-se ao ponto de realizar sozinho
todas as mudanças necessárias. Em razão de seu caráter democrático, deve o Estado atuar na
promoção do desenvolvimento, em parceria com a sociedade e com os agentes econômicos,
sob o direcionamento do Estado.
Em seus Artigos 173 e 174 a Constituição brasileira autoriza a intervenção estatal
sobre o domínio econômico, que pode ser feita de forma direta ou indireta, caso em que o
Estado atua como agente normativo e regulador da atividade econômica. Esta intervenção se
justifica pela necessidade de assegurar os direitos fundamentais – entre eles o
desenvolvimento sustentável – e para garantir a observância do regime jurídico econômico
constitucional.
No campo da intervenção indireta, deve o Estado atuar por meio de políticas públicas,
que
são mecanismos perfeitamente compatíveis com o ideário de
democracia,
descentralização e participação social a todo tempo exaltados na Constituição brasileira.
A atuação estatal no domínio econômico não é mera faculdade. Havendo direito
fundamental a assegurar, ou havendo ameaça ao regime jurídico econômico, tem o Estado o
dever jurídico de atuar, diretamente ou por meio de intervenção no domínio econômico. Para
tanto, deve valer-se de todos os instrumentos e competências que lhe foram concedidos pela
Constituição.
Justifica-se a intervenção estatal em relação a certas atividades econômicas que, por
sua natureza e características, são potencialmente realizadoras daqueles valores consagrados
pela Constituição como diretrizes da ordem econômica. Uma dessas atividades é a
reciclagem, que por contemplar as dimensões social, ambiental e econômica do
desenvolvimento sustentável, deve ser incentivada pelo Estado.
A reciclagem consiste na transformação de materiais usados em novos produtos para o
consumo. Por meio deste processo, resíduos sólidos descartados na condição de lixo são
aproveitados como matéria-prima para a fabricação de produtos novos. A partir deste
conceito, o lixo passa a ter interesse econômico, fazendo surgir uma nova cadeia produtiva
cuja maior qualidade consiste em aliar desenvolvimento econômico com proteção ambiental.
O Artigo 170 da Constituição brasileira delineia o perfil pretendido pelo legislador
constituinte para a ordem econômica brasileira, o qual deve ser observado por todos os
agentes econômicos, entre eles as empresas integrantes da cadeia produtiva da reciclagem.
A valorização do trabalho é tratada na Constituição como instrumento de realização do
princípio da dignidade humana, o que permite concluir que sem o direito ao trabalho e sua
177
valorização não há dignidade. Para a concretização deste princípio, faz-se necessário que haja
trabalho para todos, razão pela qual a busca pelo pleno emprego é decorrência imediata do
princípio que determina a valorização do trabalho humano.
Com ambos os princípios relaciona-se a indústria da reciclagem, na medida em que o
setor é responsável pela geração de um grande número de postos de trabalho, tanto na forma
de emprego quanto de trabalho autônomo. Parte considerável dos trabalhadores autônomos
que integram a cadeia produtiva da reciclagem atua junto a lixões, em condições insalubres e
por vezes degradantes. Esta questão interfere diretamente na questão da valorização do
trabalho humano, o que reforça a necessidade da atuação estatal, preferencialmente por meio
de políticas públicas, cujo foco seja a proteção a este tipo de trabalho.
Também informa a ordem econômica constitucional o princípio que determina a
defesa do meio ambiente, tratado na Constituição como direito fundamental de terceira
dimensão. A este princípio relaciona-se a reciclagem de resíduos sólidos pelos óbvios
benefícios ambientais vinculados à atividade, entre os quais destaca-se a diminuição do
impacto ambiental causado pelo grande consumo e descarte dos bens produzidos e a
preservação dos recursos naturais, uma vez que a utilização de insumos recicláveis evita o
emprego de matérias-primas obtidas na natureza.
Ao prever a defesa do meio ambiente como princípio norteador da atividade
econômica, o Artigo 170, VI da Constituição alude à possibilidade da concessão de
tratamento diferenciado às empresas, conforme o impacto ambiental de seus produtos e
serviços e de acordo com seus processos de elaboração e prestação. Afirmada, no dispositivo
em comento, a legitimidade da intervenção estatal sobre o domínio econômico, mediante a
concessão de incentivos, a setores que, como a reciclagem, sejam ambientalmente
sustentáveis.
A Constituição brasileira faz opção pelo desenvolvimento num ambiente de economia
de mercado, que é considerado patrimônio nacional, conforme se depreende do disposto no
Artigo 219 da Constituição Federal. Esta a razão da inclusão, na ordem econômica
constitucional, dos princípios garantidores da livre iniciativa e da liberdade de concorrência,
que dizem respeito ao direito de acesso e permanência no mercado. Os princípios em comento
relacionam-se à reciclagem, que tem atraído os agentes econômicos com a promessa de um
novo mercado.
Em função da liberdade de iniciativa e de concorrência, têm os diversos integrantes da
cadeia produtiva da reciclagem assegurado seu direito de acesso e permanência no mercado.
Tendo em conta as condições sob as quais os operadores da reciclagem concorrem com as
178
empresas que utilizam insumos não recicláveis, cabe ao Estado intervir para assegurar a
observância dos referido princípios constitucionais econômicos.
A Constituição brasileira assegura o direito de propriedade, que compreende a
propriedade dos bens de produção. Do mesmo modo que a propriedade tem uma função social
a cumprir, no regime constitucional econômico brasileiro a livre iniciativa – permissão para
que o proprietário explore economicamente seus bens – condiciona-se ao cumprimento, pela
empresa, de uma função social. Não basta, para a ordem econômica constitucional, que a
atividade econômica seja lícita. Necessário se faz que sua exploração atinja um fim social.
O cumprimento da função social empresarial não constitui negativa da racionalidade
econômica, que visa o lucro, mas na exigência de que, ao atuar no mercado, o agente
econômico adote práticas ambientalmente corretas, que pratique a concorrência leal, que
promova o trabalho humano digno, que busque o equilíbrio entre os interesses empresariais e
os da sociedade de consumo, que cumpra suas obrigações tributárias, em suma, que a empresa
seja ética.
Como agentes econômicos que atuam no mercado, as empresas ligadas ao ramo da
reciclagem estão sujeitas à observância de sua função social. A concessão de incentivos
governamentais aos integrantes da cadeia produtiva da reciclagem deve ser condicionada à
verificação do cumprimento desta função.
O exercício de atividade econômica sujeita-se ainda a outro princípio constitucional,
que determina a defesa do consumidor. Do cotejo deste princípio com o direito ao
desenvolvimento sustentável surge a concepção do consumo sustentável, fundamentada na
idéia de que além de possuírem direitos, os consumidores são também detentores de
responsabilidade ambiental.
A concepção de consumo sustentável pode ser atrelada à reciclagem no sentido de que
o consumidor deve responsabilizar-se pela adequada destinação dos resíduos de seu consumo.
Neste sentido, destaca-se a importância da conscientização do consumidor, da qual depende
investimento em educação ambiental e políticas relacionadas à coleta seletiva do lixo.
Estado, sociedade e agentes econômicos são co-partícipes no processo do
desenvolvimento sustentável. Esta diretriz foi positivada em âmbito infraconstitucional pela
Lei nº 12.305/2010, que institui a Política Nacional de Resíduos Sólidos. Segundo a referida
lei, a gestão de resíduos será feita de forma integrada, envolvendo a participação de todos os
entes políticos constitucionais, assim como da sociedade e dos agentes econômicos.
Não há como pensar a gestão de resíduos no país sem consideração à temática da
reciclagem. Por esta razão, a reciclagem é adotada pela Lei nº 12.305/2010 como um dos
179
pilares da Política Nacional de Resíduos Sólidos, sendo ao mesmo tempo objetivo e princípio
informador da referida Política.
A Lei nº 12.305/2010 estabelece diversos instrumentos com vistas à viabilização das
políticas públicas relacionadas a resíduos sólidos. Entre os instrumentos previstos, destacamse a coleta seletiva, a educação ambiental e a concessão de incentivos fiscais, financeiros e
creditícios.
Tendo em conta a importância da reciclagem para a gestão integrada de resíduos
sólidos, é pertinente a adoção de uma política tributária voltada ao estímulo desta atividade
econômica, com vistas à promoção do desenvolvimento sustentável.
A Constituição brasileira estabelece para os tributos uma função social. Esta
compreende uma função fiscal e uma função extrafiscal. A função fiscal dos tributos diz
respeito à obtenção dos recursos de que o Estado necessita para o financiamento de sua
atuação. Para adequadamente agir na promoção do desenvolvimento sustentável, deverá o
Estado planejar e implementar políticas públicas, que dependem, para sua realização da
existência de recursos financeiros disponíveis. Também deverá o Estado atuar como agente
fiscalizador, atividade que não prescinde dos recursos que são levados aos cofres públicos por
meio da arrecadação de tributos.
O instrumental tributário pode ainda ser utilizado com a finalidade de direcionar a
atividade econômica, quer no fomento de certos setores ou atividades, quer como forma de
coibir práticas que não se compatibilizam com os valores prestigiados pela ordem
constitucional. Esta abordagem da tributação, de extrema utilidade para a atuação do Estado
como promotor do desenvolvimento sustentável, consiste na função extrafiscal dos tributos.
A função social dos tributos relaciona-se ainda à idéia do justo tributário, que legitima
a tributação. Sob um aspecto, a justiça da tributação relaciona-se à utilização do tributo como
instrumento de distribuição da riqueza, o que é feito por meio da satisfação das necessidades
essenciais da população.
Sob outro ângulo, a justiça tributária pode ser aferida pelo sopesar das exigências
tributárias feitas pelo Estado por meio de sua competência impositiva e as reais necessidades
públicas de ingresso de recursos. Tal valoração não prescinde de uma análise econômica da
tributação e do impacto por ela exercido sobre a atividade econômica, o que permite assegurar
que a imposição tributária não atente contra a ordem econômica constitucional.
A análise econômica da tributação é ainda mais relevante quando o instrumental
tributário é utilizado com finalidade regulatória. Esta deve pautar-se pela observância aos
princípios constitucionais econômicos e aos tributários, sem, contudo, ignorar os
180
conhecimentos da ciência econômica, cuja utilização auxilia o direito no mister de direcionar
a atividade econômica.
Considerando que a tributação é importante instrumento para a intervenção do Estado
sobre o domínio econômico pela via da indução, afirma-se a utilidade e pertinência jurídica da
adoção de uma política tributária promocional do desenvolvimento, sendo o incentivo à
reciclagem parte integrante desta política.
Seu planejamento deve levar em conta a questão do justo tributário, além da eficácia
da utilização do instrumental tributário para a obtenção dos fins pretendidos, quer sejam eles
meramente arrecadatórios, quer se relacionem à indução de comportamentos pela via da
extrafiscalidade. O equilíbrio entre os referidos valores caracteriza a tributação ótima, assim
entendida aquela em que se compatibilizam o princípio equidade com o princípio da
eficiência da tributação.
Os sistemas tributários da atualidade – entre eles o brasileiro – tendem a prestigiar o
valor da eficiência, em detrimento da equidade. Isto explica a adoção prevalente de tributos
indiretos, que, embora mais simples de arrecadar e fiscalizar, são considerados regressivos,
por atingir a todos da mesma forma. Por esta razão, o aspecto central de preocupação, nesse
tipo de tributo, deve ser a busca da neutralidade fiscal nas operações econômicas.
Não sendo possível ao legislador conhecer as condições econômicas do consumidor,
que é quem arca com o encargo financeiro da tributação, o princípio da capacidade
contributiva é relativizado, somente sendo alcançado pela via indireta da seletividade e da
não-cumulatividade. Estes mecanismos constituem importante instrumento de garantia da
neutralidade da tributação incidente sobre o consumo.
Em razão de serem os tributos indiretos os que mais impactam economicamente a
cadeia produtiva da reciclagem de resíduos sólidos, afirma-se a importância de sua
consideração quando do planejamento de uma política tributária de incentivo à reciclagem,
uma vez que muito bem se prestam à utilização com finalidade regulatória. De particular
interesse, nesse caso, o IPI, o ICMS, a Contribuição para o PIS e a COFINS.
A todos os mencionados tributos aplica-se a sistemática da não-cumulatividade
tributária, por meio da qual se evita a incidência de tributo sobre tributo, preservando-se a
neutralidade da tributação sobre o consumo, o respeito à capacidade contributiva e à
igualdade. Ao IPI e ao ICMS aplica-se, ainda, o mecanismo da seletividade, que consiste na
variação de alíquotas em função da essencialidade do produto ou mercadorias.
As técnicas da não-cumulatividade e da seletividade devem ser consideradas quando
da utilização dos referidos tributos indiretos com a finalidade de estimular ou desestimular
181
comportamentos. Por esta razão, cabe investigar de que modo são os mecanismos aplicados
nos tributos incidentes na cadeia produtiva da reciclagem de resíduos.
O IPI incide sobre a transformação de sucata em produto novo ou em matéria-prima a
ser utilizada como insumo na fabricação de novos materiais de consumo, em razão de ser a
referida atividade enquadrada no conceito legal de industrialização.
Trata-se de imposto essencialmente regulatório, mediante o qual o Estado tem a
possibilidade de intervir sobre o domínio econômico. A função regulatória do IPI é cumprida
por meio da seletividade, que consiste na imposição de alíquotas diferenciadas em função da
essencialidade do produto, com tributação mais gravosa para os produtos supérfluos e mais
branda para os essenciais. O emprego da seletividade de alíquotas atrelado à reciclagem ainda
é tímido.
Ainda que, em obediência ao primado da seletividade tributária, fossem aplicadas
alíquotas menores ou mesmo nulas nas primeiras etapas da cadeia produtiva da reciclagem, a
medida poderia não ser economicamente significativa para o fomento do setor, uma vez que
não refletirá necessariamente na tributação do produto final.
Isto ocorre em função da aplicação que é dada pela legislação infraconstitucional a
outro princípio informador do IPI, o da não-cumulatividade tributária. Embora a Constituição
determine que, no caso do IPI, o referido princípio incida de maneira irrestrita, sua incompleta
inobservância pode tornar nulas quaisquer vantagens tributárias concedidas, por onerar
economicamente o preço final do produto.
Também ao ICMS são aplicáveis os princípios constitucionais da seletividade e da
não-cumulatividade tributária. Neste imposto, o conteúdo dos referidos princípios jurídicos
não é tão abrangente quanto no IPI. A fim de preservar as autonomias estaduais e,
consequentemente, o equilíbrio federativo, preocupou-se o legislador constituinte em moldar
os princípios da seletividade e da não-cumulatividade ao ICMS, conferindo-lhes menor
amplitude.
A exemplo do que ocorre em relação ao IPI, também no caso do ICMS não têm os
princípios em comento tido aplicação efetiva na tributação da reciclagem. O aproveitamento
de créditos, a que faz jus o contribuinte em razão da não-cumulatividade, tem sido dificultado
pelas legislações estaduais. Não se verifica também o emprego da seletividade de alíquotas
relacionado à reciclagem.
Dado o importante impacto econômico que o ICMS exerce sobre o comércio, é
possível a manipulação deste tributo com a finalidade de incentivo à reciclagem. Para tanto,
182
devem ser observadas as condicionantes que a Constituição impõe à desoneração deste
tributo, em razão do equilíbrio federativo.
Também exercem significativo impacto econômico sobre a cadeia produtiva da
reciclagem as contribuições para o PIS e a COFINS, as quais possuem idêntica hipótese de
incidência e base de cálculo: a receita bruta das empresas. As referidas contribuições
sujeitam-se ao regime não-cumulativo de tributação, que, em razão de lei, é aplicável apenas
em relação a certas atividades econômicas, entre elas a reciclagem.
A sistemática da não-cumulatividade do PIS e da COFINS aplicável à reciclagem
impõe ao setor ônus inexistente em outros ramos da atividade econômica. A legislação
desonera as empresas integrantes das primeiras etapas da cadeia produtiva, mas veda o
aproveitamento do crédito por parte das indústrias. Disto resulta aumento da carga tributária
representada por essas contribuições, que terminam por incidir de maneira cumulativa.
A análise da incidência dos aludidos tributos indiretos sobre a cadeia produtiva da
reciclagem revela a ausência de consideração às peculiaridades desta atividade econômica.
Foram encontradas distorções que determinam tratamento tributário mais gravoso para a
reciclagem, quando comparado às cadeias produtivas que utilizam insumos obtidos na
natureza. Em todos os tributos examinados constata-se a inobservância do princípio
constitucional da não-cumulatividade, ou pelo menos a existência de distorções quando da sua
aplicação.
Tendo em vista o aumento da consciência ambiental, o tema da concessão de
incentivos à reciclagem tem sido levantado no âmbito dos poderes Legislativo e Executivo
com alguma freqüência. É possível encontrar na legislação esparsa e em projetos em
tramitação algumas medidas e propostas que, tendo em conta a questão ambiental e por vezes
também o aspecto social, buscam estimular esta atividade econômica. A maior parte dessas
medidas relaciona-se à concessão incentivos por meio do IPI, seja na forma de isenção,
redução de alíquotas ou concessão de créditos presumidos, para empresas que operam no
ramo da reciclagem.
Existe no ordenamento jurídico brasileiro fundamento constitucional e legal para a
concessão de um tratamento tributário favorecido à reciclagem de resíduos sólidos, dada a sua
estreita relação com o desenvolvimento sustentável. No planejamento de uma política de
incentivo ao setor deve ser considerada a manipulação de tributos que, por serem
economicamente significativos, maior influência exerçam nas decisões dos agentes
econômicos ligados à reciclagem.
183
Neste sentido deve ser pensada a utilização, com finalidade regulatória, do IPI, do
ICMS e das contribuições para o PIS e COFINS. A seletividade e a não-cumulatividade
inerentes a estes tributos são, assim, valiosos instrumentos de uma política tributária de
incentivo ao setor da reciclagem.
Em obediência à seletividade tributária, afigura-se possível e juridicamente correta a
aplicação de alíquotas reduzidas, tanto do IPI quanto do ICMS, a insumos recicláveis e
produtos finais fabricados a partir de insumos recicláveis. Considerando que não é possível
questionar a essencialidade da reciclagem como processo industrial que concilia preservação
ambiental com desenvolvimento econômico, entende-se que o produto final obtido a partir de
insumo reciclado ganha também a natureza de essencial, devendo ter alíquotas mais brandas
que seus equivalentes produzidos a partir de matéria-prima encontrada na natureza.
O princípio da seletividade deve ser pensado em conjunto com o princípio da nãocumulatividade, o que, de resto, é verdadeiro em relação a qualquer incentivo que se pretenda
conceder, no caso de tributos não-cumulativos. Isto ocorre porque, caso não seja possível a
compensação dos créditos acumulados nas diversas etapas da cadeia produtiva, podem
eventuais desonerações tributárias não se refletir nos preços finais.
Em relação aos tributos indiretos analisados, é a não-cumulatividade tributária o ponto
de maior interesse. É inegável a relevância jurídica do princípio em comento, por meio do
qual é atingida a neutralidade da tributação e, consequentemente, a justiça fiscal.
Tanto a legislação do IPI quanto a do ICMS tratam as operações com recicláveis
linearmente, desconsiderando as peculiaridades desta cadeia produtiva, que tem natureza
cíclica. Pelas regras vigentes, é vedado às recicladoras aproveitar o crédito do imposto que já
incidiu em etapas anteriores.
Para corrigir as distorções existentes, deve ser concedido às empresas que adquirem
insumos recicláveis um crédito presumido. O referido crédito, representativo dos tributos
recolhidos nas operações praticadas no ciclo anterior de produção, é decorrência imediata do
princípio constitucional da não-cumulatividade.
É pertinente ainda a concessão de crédito presumido adicional, a título de incentivo
fiscal, com o intuito de fomentar a atividade produtiva ligada à reciclagem. Neste caso, ao
editar norma tributária de indução, estaria o Estado regulador intervindo indiretamente sobre o
domínio econômico com a finalidade de promover o desenvolvimento sustentável. Para fazer
jus ao incentivo, devem as empresas beneficiárias cumprir sua função social, que é ao mesmo
tempo fundamento e condicionante da atuação estatal por meio da concessão de incentivos.
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194
ANEXO I
CONVÊNIO ICM 9, DE 18 DE MARÇO DE 1976
Dispõe sobre a obrigatoriedade de recolhimento do
ICM
por
interestaduais
guia
com
em
separado
sucatas
e
nas
operações
estabelece
outra
providência.
Publicação: DOU de 24.03.76.
Ratificação nacional: DOU de 14.04.76.
Vigência a partir de 01.05.76.
REVOGADO pelo Convênio ICMS 113/07. Efeitos a partir de 1º.11.2007.
Cláusula primeira - Acordam os signatários em estabelecer que o Imposto sobre Circulação
de Mercadorias incidente nas saídas interestaduais com sucatas seja recolhido por guia em
separado, antes de iniciada a remessa.
Parágrafo único - Nas operações previstas de que trata esta cláusula, uma das vias do
comprovante de recolhimento deverá acompanhar a mercadoria, juntamente com a Nota
Fiscal própria para fins de transporte e de aproveitamento do crédito pelo destinatário.
Cláusula segunda - Este convênio entrará em vigor a 1º de maio de 1976, ficando revogada a
cláusula oitava do V Convênio do Rio de Janeiro, de 16 de outubro de 1968.
195
ANEXO II
CONVÊNIO ICMS 113, DE 28 DE SETEMBRO DE 2007
Revoga os Convênios ICM 09/76, 17/82, 15/88 e
ICMS 61/96.
Publicado no DOU, de 03.10.07, Seção 1, página 32 a 39.
O Conselho Nacional de Política Fazendária - CONFAZ, na sua 127ª reunião
ordinária, realizada em Florianópolis, SC, no dia 28 de setembro de 2007, tendo em vista o
disposto no art. 199 do Código Tributário Nacional (Lei nº 5.172, de 25 de outubro de 1966),
resolve celebrar o seguinte
C O N V Ê N I O
Cláusula primeira. Ficam revogados:
I – o Convênio ICM 09/76, de 18 de março de 1976, que estabelece o recolhimento do
ICM nas operações com sucata através de guia em separado;
II – o Convênio ICM 17/82, de 21 de outubro de 1982, que dispõe sobre a exigência
de guia especial de recolhimento nas operações com lingotes de metais não-ferrosos;
III – o Convênio ICM 15/88, de 12 de julho de 1988, que dispõe sobre a
obrigatoriedade de recolhimento do ICM por guia em separado nas operações interestaduais
com couro, sebo e outros produtos;
IV – o Convênio ICMS 61/96, de 13 de setembro de 1996, que dispõe sobre a
concessão de autorização para utilização de créditos fiscais acumulados, para abatimento do
valor do imposto a ser recolhido por guia de recolhimentos especiais, nas operações
interestaduais com ligas de alumínio.
Cláusula segunda. Este convênio entra em vigor na data de sua publicação no Diário
Oficial da União, produzindo efeitos a partir de 1º de novembro de 2007.
196
ANEXO III
MEDIDA PROVISÓRIA Nº 476, DE 23 DE DEZEMBRO DE 2009
Sem eficácia
O PRESIDENTE DA REPÚBLICA, no uso da atribuição que lhe confere o art. 62 da
Constituição, adota a seguinte Medida Provisória, com força de lei:
Art. 1º Os estabelecimentos industriais farão jus, até 31 de dezembro de 2014, a
crédito presumido do Imposto sobre Produtos Industrializados – IPI na aquisição de resíduos
sólidos utilizados como matérias-primas ou produtos intermediários na fabricação de seus
produtos.
§ 1º Para efeitos desta Medida Provisória, resíduos sólidos são os materiais,
substâncias, objetos ou bens descartados resultantes de atividades humanas em sociedade.
§ 2º Cabe ao Poder Executivo definir, por código da Tabela de Incidência do IPI –
TIPI, quais os materiais adquiridos como resíduos sólidos darão direito ao crédito presumido
de que trata o caput.
Art. 2º O crédito presumido de que trata o art. 1º:
I – será utilizado exclusivamente na dedução do IPI incidente nas saídas dos produtos
que contenham resíduos sólidos em sua composição;
II – não poderá ser aproveitado se o produto que contenha resíduos sólidos em sua
composição sair do estabelecimento industrial com suspensão, isenção ou imunidade do IPI;
III – somente poderá ser usufruído se os resíduos sólidos forem adquiridos diretamente
de cooperativa de catadores de materiais recicláveis com número mínimo de cooperados
pessoas físicas definido em ato do Poder Executivo, ficando vedado, neste caso, a
participação de pessoas jurídicas; e
IV – será calculado pelo adquirente mediante a aplicação da alíquota da TIPI a que
estiver sujeito o produto que contenha resíduos sólidos em sua composiçao sobre o percentual
de até cinquenta por cento do valor dos resíduos sólidos constantes da nota fiscal de
aquisição, observado o § 2º do art. 1º.
Parágrafo único. O percentual de que trata o inciso IV será fixado em ato do Poder
Executivo.
197
Art. 3º O § 2º do art. 4º da Lei nº 12.024, de 27 de agosto de 2009, passa a vigorar com
a seguinte redação:
“§ 2º O disposto neste artigo aplica-se aos fatos geradores ocorridos nos meses de
janeiro a março de 2010.”
Art. 4º O Poder Executivo regulamentará o disposto nos arts. 1º e 2º desta Medida
Provisória.
Art. 5º Esta Medida Provisória entra em vigor na data de sua publicação, produzindo
efeitos a partir de sua regulamentação em relação aos arts. 1º e 2º.
Art. 6º Fica revogado o inciso II do art. 61 da Medida Provisória nº 472, de 15 de
dezembro de 2009, voltando a viger o art. 2º da Lei nº 9.959, de 27 de janeiro de 2000.
Brasília, 23 de dezembro de 2009; 188º da Independência e 121º da República.
LUIZ INÁCIO LULA DA SILVA
Guido Mantega
198
ANEXO IV
PROJETO DE LEI DO SENADO Nº 169, DE 2008
Concede isenção do Imposto sobre Produtos
Industrializados na aquisição de veículos, máquinas,
equipamentos
e
produtos
químicos,
quando
adquiridos por empresas recicladoras, cooperativas e
associações para emprego, exclusivo, em serviços e
processos de reciclagem.
O CONGRESSO NACIONAL decreta:
Art. 1º Ficam isentos do Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI) os veículos,
máquinas, equipamentos e produtos químicos, de fabricação em países integrantes do
Mercosul, quando adquiridos por empresas recicladoras, cooperativas e associações, para
emprego, exclusivo, em processos de reciclagem.
Art. 2º A isenção de que trata o art. 1º será concedida na forma do regulamento, e será
declarada nula, sendo o imposto cobrado com todos os acréscimos legais, se verificada antes
de decorridos três anos da aquisição:
I – a transferência, a qualquer título, da propriedade dos bens objeto da isenção, salvo
para pessoas jurídicas de que trata a presente Lei e mediante a prévia anuência do órgão de
administração fiscal;
II – a comprovação de uso dos bens, de que trata o art. 1º, em atividade diversa da que
houver justificado o benefício; ou
III – a descaracterização dos bens, se a isenção houver sido baseada no disposto no art.
3º desta Lei.
Parágrafo único. A isenção para veículos, máquinas e equipamentos, de que trata a
presente Lei, só poderá ser concedida uma vez, ressalvadas as hipóteses de sinistro com perda
total, furto, roubo ou da transferência de propriedade prevista no inciso I deste artigo.
199
Art. 3º O regulamento disporá sobre restrições à concessão da isenção de que trata esta
Lei ao atendimento dos requisitos de identificação dos bens e produtos que especificar,
inclusive quanto os aspectos quantitativos, quantitativos, controle de uso e demais exigências
legais.
Art. 4º Fica assegurada a manutenção do crédito do Imposto sobre Produtos
Industrializados (IPI) relativo a matériasprimas, produtos intermediários e material de
embalagem empregados nos bens e produtos objeto da isenção de que trata o art. 1º.
Art. 5º Para os fins do disposto no art. 14 da Lei Complementar nº. 101, de 4 de maio
de 2000, o Poder Executivo estimará o montante da renúncia de receita decorrente do disposto
nesta Lei e o incluirá no demonstrativo a que se refere o § 6º do art. 165 da Constituição
Federal, o qual acompanhará o projeto de lei orçamentária cuja apresentação ocorrer depois
de sessenta dias de publicação desta Lei.
Art. 6º Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação.
Parágrafo único. A isenção de que trata esta Lei produzirá efeitos a partir do primeiro
dia do exercício financeiro imediatamente posterior àquele em que for implementado o
disposto no art. 5º.
JUSTIFICAÇÃO
As medidas de incentivo fiscal, aqui propostas, têm o objetivo de estimular a atividade
de reciclagem no País, maximizando os efeitos multiplicador dos seus benefícios sobre o meio
ambiente, e com a preocupação de contribuir para uma vida sustentável para as gerações
presentes e futuras.
O reaproveitamento de materiais e produtos sem utilidade ou considerados
imprestáveis ou descartáveis ainda é uma atividade incipiente no Brasil. Por isso mesmo
enfrenta muitas dificuldades para atender a demanda pela desintoxicação do nosso sistema
ambiental. As dificuldades se revelam na indisponibilidade de tecnologias apropriadas à
reciclagem de diversos tipos de materiais e produtos que ainda são jogados ou mal
depositados no meio ambiente. As dificuldades se revelam também pelo baixo nível de
investimentos no setor.
Ademais, a atividade de reciclagem é, potencialmente, um setor promissor para a
geração de emprego e renda, principalmente para as camadas mais necessitadas da sociedade.
Mas os benefícios não se restringem à geração de emprego, de renda e da retirada do meio
200
ambiente de materiais recicláveis. O impacto dos resultados positivos vão além desses
ganhos: ajudam no processo de economia de uso de recursos naturais renovais ou não.
A legislação ambiental brasileira e a Política Nacional de Meio Ambiente têm como
foco principal a preocupação com a preservação, a melhoria e a recuperação da qualidade
ambiental no País. O setor público, por esse meio, busca despertar a consciência coletiva para
necessidade de se ter um ambiente ecologicamente equilibrado. Para isso, é fundamental que
o Estado estimule a instalação de indústrias recicladoras de pequeno, médio e grande porte
por todo o País.
Sala das Sessões,
Senador MARCELO CRIVELLA
201
ANEXO V
PROJETO DE LEI Nº 4.137, DE 2001
Concede isenção do Imposto sobre Produtos
Industrializados (IPI) e o Imposto de Importação (II)
para equipamentos e máquinas, quando destinados a
indústrias de reciclagem de materiais.
O CONGRESSO NACIONAL decreta:
Art. 1º Ficam isentos do Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI) e do Imposto
de Importação (II) os equipamentos e máquinas, quando destinados a indústrias de reciclagem
de materiais usados.
Art. 2º Fica assegurada a manutenção e a utilização do crédito do IPI, relativo a
matérias-primas, produtos intermediários e material de embalagem, utilizados na
industrialização dos produtos de que trata o art. 1º.
Art. 3º Esta lei entra em vigor na data de sua publicação.
JUSTIFICAÇÃO
Esta proposição objetiva estimular e favorecer as indústrias de reciclagem de materiais
usados.
É preciso tomar medidas legais que incentivem as iniciativas de proteção e melhoria
do meio ambiente.
O estímulo às indústrias de reciclagem de materiais usados tem por finalidade reduzir
o desperdício de insumos e matérias-primas, o qual, no processamento industrial, aumenta a
emissão de gases e efluentes tóxicos para a atmosfera e a natureza em geral.
A redução da poluição industrial e do consumo de matérias-primas também produz
diminuição dos custos da economia e aumento do bem-estar da coletividade.
202
Esta proposição, ao isentar do IPI e do Imposto de Importação os equipamentos e
máquinas destinados às indústrias de reciclagem de materiais usados, está colaborando com
esses objetivos.
Espero contar com o apoio dos nobres pares do Congresso Nacional para sua
aprovação.
Sala das Sessões, 20 de fevereiro de 2001.
RONALDO VASCONCELOS
203
ANEXO VI
PROJETO DE LEI Nº 2.497, DE 2007
Dispõe sobre a isenção de Imposto Sobre Produto
Industrializado - IPI e a redução de 50% (cinqüenta
por cento) da alíquota do Imposto de Renda das
Pessoas Jurídicas – IRPJ para materiais e produtos
originados de reciclagem.
O CONGRESSO NACIONAL decreta:
Art. 1º Esta Lei assegura a isenção de Imposto Sobre Produto Industrializado – IPI e
redução de 50% (cinqüenta) por cento da alíquota do Imposto de Renda das Pessoas Jurídicas,
para materiais e produtos originados de reciclagem, como forma de incentivar sua produção e
comercialização.
Art. 2º Considera-se reciclagem o processo de transformação que torna útil e
disponível, quantas vezes se mostrar viável, técnica e economicamente, o material ou produto
que já foi utilizado.
Art. 3º Ficam isentos de IPI os materiais e produtos originados de reciclagem.
Art. 4º As pessoas jurídicas que utilizem como matériaprima materiais e produtos
originados de reciclagem, podem recolher o IRPJ com redução de 50% (cinqüenta por cento)
da alíquota.
§ 1º A redução de que trata o caput somente se aplica ao imposto calculado com base
no lucro da exploração relativo às atividades incentivadas da pessoa jurídica, não alcançando
o adicional do imposto de renda.
§ 2º A redução de que trata o caput não impede a aplicação em incentivos fiscais, nas
condições previstas na legislação tributária, com relação ao montante de imposto a pagar.
§ 3º Na hipótese de haver pluralidade de estabelecimentos, é reconhecido o direito à
redução de que trata esta Lei apenas em relação aos rendimentos dos estabelecimentos que
realizem as atividades mencionadas no art. 2º desta Lei.
204
§ 4º Para os efeitos do disposto no caput, as pessoas jurídicas beneficiárias da redução
devem demonstrar em sua contabilidade, com clareza e exatidão, os elementos de que se
compõem as operações e os resultados do período de apuração de cada um de seus
estabelecimentos.
§ 5º Se a pessoa jurídica mantiver atividades não abrangidas pela redução de que trata
esta Lei, deverá efetuar, em relação às atividades beneficiadas, registros contábeis específicos,
para efeito de destacar e demonstrar os elementos de que se compõem os respectivos
custos, receitas e resultados.
§ 6º Na hipótese de o sistema de contabilidade adotado pela pessoa jurídica não
oferecer condições para a apuração do lucro por atividade, este pode ser estabelecido com
base na relação entre as receitas líquidas das atividades beneficiadas pela redução e a receita
líquida total.
Art. 5º A fruição da redução de que trata o art. 4º desta Lei, fica condicionada à
observância, pela pessoa jurídica beneficiária, dos dispositivos da legislação trabalhista e
social e das normas de proteção e controle do meio ambiente.
Art. 6º Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação, revogando-se disposições
em contrário.
JUSTIFICAÇÃO
O Brasil convive nos dias de hoje com enorme desperdício de recursos naturais por
falta de reciclagem e conseqüentemente pela não reutilização dessa matéria-prima.
Como se sabe, os recursos ambientais, especialmente os não renováveis, estão em
franco processo de esgotamento no planeta. Nenhum País do mundo pode se dar ao luxo de
explorar os recursos da natureza sem se preocupar com o elevado grau de erosão genética dos
recursos renováveis e exaurimento dos recursos não renováveis.
A produção diária de lixo no Brasil, em 2000, alcançava o total de 125.281 toneladas,
expressando em toda a sua plenitude a evolução da economia mundial da utilização dos
produtos descartados. Esta realidade, refletida em mais de 60% dos municípios brasileiros que
utilizam, infelizmente, os lixões como forma de destinação final do lixo produzido.
Assim, a cada dia, o desafio de substituir a economia do descarte pela economia dos
três erres: reduzir o consumo, reutilizar e reciclar em todas as etapas do desenvolvimento, está
cada vez mais presente no cotidiano.
205
A adoção da reciclagem atua de forma positiva nas extremidades do processo
produtivo. Primeiramente contribui para a diminuição da pressão por recursos naturais, muito
vezes escassos e explorados de forma predatória, como no caso do desmatamento para a
produção de papel. Na outra extremidade, contribui para a diminuição dos impactos negativos
oriundos da poluição pelo acúmulo e destinação inadequada do lixo urbano.
Do ponto de vista social, o incremento da reciclagem de materiais e produtos,
contribuirá para a geração de mais oportunidades de trabalho, inclusive na forma de
cooperativas, propiciando a inclusão de muitas pessoas no sistema produtivo, hoje
marginalizadas.
A presente proposição visa exatamente criar as condições de incentivo aos setores
produtivos mediante a isenção do Imposto Sobre o Produto Industrializado – IPI, bem como a
redução de 50% (cinqüenta por cento) da alíquota do Imposto de Renda das Pessoas Jurídicas
que utilizem o processo de transformação que torna útil e disponível, quantas vezes se mostrar
viável, técnica e economicamente, o material ou produto que já foi utilizado.
Sala das Sessões, em de novembro de 2007
Deputado SARNEY FILHO
PV-MA
206
ANEXO VII
PROJETO DE LEI DO SENADO Nº 510, DE 2009
Concede redução do Imposto sobre Produtos
Industrializados (IPI) incidente sobre atividades de
reciclagem.
O CONGRESSO NACIONAL decreta:
Art. 1º Esta lei dispõe sobre a concessão de incentivo fiscal à reciclagem, com o
propósito de promover a criação de emprego e renda no setor, bem como reduzir a geração de
resíduos e a conseqüente poluição.
Art. 2º Fica reduzida a zero a alíquota do Imposto sobre Produtos Industrializados
(IPI) incidente sobre resíduos recicláveis, bem como sobre bens, elaborados por empresas
recicladoras, em cuja produção as matérias-primas representadas por resíduos recicláveis,
inclusive bens descartados e inservíveis, correspondam a pelo menos 70% do custo total das
matérias-primas empregadas no processo de produção.
Art. 3º Para os efeitos desta Lei, consideram-se:
I – resíduo reciclável: material resultante de bens de consumo industrializados
descartados ou inservíveis e passível de reaproveitamento em novo ciclo de produção
industrial e consumo;
II – empresa recicladora: empresa cuja principal fonte de receitas seja a reciclagem de
resíduos, inclusive de bens descartados e inservíveis.
Art. 4º O regulamento disporá sobre requisitos e restrições à concessão do benefício
de que trata esta Lei.
Art. 5º Para os fins do disposto no art. 14 da Lei Complementar nº 101, de 4 de maio
de 2000, o Poder Executivo estimará o montante de renúncia de receita decorrente do disposto
nesta Lei e o incluirá no demonstrativo a que se refere o § 6º do art. 165 da Constituição
Federal, o qual acompanhará o projeto de lei orçamentária cuja apresentação ocorrer depois
de sessenta dias da publicação desta Lei.
207
Art. 6º Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação e produzirá efeitos a partir
do primeiro dia do exercício financeiro imediatamente posterior àquele em que for
implementado o disposto no art. 4º desta Lei.
JUSTIFICAÇÃO
O descarte inadequado de resíduos representa, em todo o mundo, séria ameaça ao
meio ambiente e, em muitas circunstâncias, fonte de graves impactos sobre a saúde das
populações atingidas. A dimensão do problema é de tal ordem que muitos países chegam a
conceder compensação financeira a outros que se disponham a receber esses materiais.
Por tudo isso, já existe amplo consenso quanto à importância de políticas destinadas
não somente a promover destinação final ambientalmente adequada de resíduos mas, também,
a minimizar a geração desses materiais, inclusive por reaproveitamento e reciclagem. Daí
resulta impacto ambiental positivo, não desprezível, em termos de menor carga sobre aterros
sanitários e menor acúmulo de materiais em lixões. Há que se ressaltar, ainda, outro efeito
altamente positivo da reciclagem: a queda na demanda por recursos naturais, inclusive
energéticos.
Um efeito adicional da reciclagem é de caráter social: a geração de oportunidades de
ocupação e de emprego para grande número de cidadãos que se encontram alijados do ercado
formal de trabalho. O contingente de catadores, principalmente de papel, papelão e latas de
alumínio, é tão grande que levou a esforços, principalmente por entidades não
governamentais, no sentido de assegurar a organização desses trabalhadores em cooperativas.
Em nosso país, todavia, o desenvolvimento da reciclagem, que normalmente envolve
um segmento empresarial frágil, tem sido severamente limitado pela carga tributária incidente
sobre o setor. Daí o inegável mérito econômico e social da renúncia fiscal envolvida no
presente projeto de lei.
Sala das Sessões,
Senadora SERYS SLHESSARENKO
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