a filosofia da libertação de enrique dussel e os direitos humanos

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A FILOSOFIA DA LIBERTAÇÃO DE ENRIQUE DUSSEL E OS DIREITOS
HUMANOS: A AMÉRICA LATINA COMO LUGAR QUE FALA SOBRE A SUA
ALTERIDADE
Lívia Teixeira Moura Lobo1 (UFPa)
RESUMO: Este artigo objetiva apresentar a filosofia da libertação, desde a sua
concepção primeiramente ética, como um pensar capaz de contribuir acerca da
reflexão sobre o fundamento moderno dos direitos humanos. Para relacionar a
filosofia da libertação com o fundamento dos direitos humanos, introdutoriamente
apresenta-se o pensar de Enrique Dussel como questionador da tradição latinoamericana desde o seu período colonial e como a colonialidade importa para todo o
desenvolvimento filosófico dusseliano. Em seguida, o próprio Dussel é apresentado,
inclusive no que se refere às suas principais influências para que, no tópico seguinte,
a filosofia da libertação seja exposta em seus objetivos e categorias. Enfim, o
fundamento moderno e individualista dos direitos humanos é aberto para crítica e
encontramos uma possibilidade de fundamento distinta e saída do primado ético da
filosofia da libertação.
PALAVRAS-CHAVE: Filosofia da Libertação. Ética. Direitos Humanos.
ABSCTRAT: This per presents the philosophy of liberation, since its first ethical
conception, as a thinking able to contribute on the reflection on the modern foundation
of human rights. To relate the philosophy of liberation on the grounds of human rights,
an introductory presentation to the thinking of Enrique Dussel as questioning the Latin
American tradition since its colonial period and how the coloniality matter for all
dusseliano philosophical development. Then, the very Dussel is presented, including
in relation to its main influences to the next topic, the philosophy of liberation is exposed
in its objectives and categories. Anyway, modern and individualistic foundation of
human rights is open to criticism and found a distinct possibility of ground and out of
the ethical primacy of philosophy of liberation.
KEYWORDS: Philosophy of Liberation. Ethic. Human rights.
1
Mestra pelo Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal do Pará –
PPGD/UFPA. Doutoranda do PPGD/UFPA.
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A filosofia da libertação de Enrique Dussel e os Direitos Humanos: A américa latina como lugar que
fala sobre a sua alteridade
1 INTRODUÇÃO
Apresentar a filosofia da libertação como um caminho para se pensar acerca
do fundamento moderno dos direitos humanos é, indubitavelmente, apresentar um
pensar distinto, com o qual muitos de nós, latino-americanos, não estamos
familiarizados, a não ser pela raiz que une a filosofia de Enrique Dussel à teologia da
libertação, pensada por expoentes como Frei Betto e Leonardo Boff, e também à
pedagogia do oprimido de Paulo Freire.
A filosofia de Dussel, realmente cunhada “da libertação” a partir dos
movimentos contra as ditaduras na América Latina na década de 60, possui
influências para além do marxismo e sua principal sustentação é, aos olhos desta
autora, a ética da alteridade desenvolvida por Emmanuel Levinas, cujas ideias acerca
do “Outro” exterior, infinito e inapreensível em uma autorreflexão servem para que
Dussel apresente a América Latina exatamente como este “Outro”, como continente
que, por sua tradição colonial pioneira e peculiar, não encontra sua identidade nos
padrões impostos pela racionalidade europeia desde o período de colonização.
A América Latina é, para a filosofia da libertação, uma tradição que permanece
ocultada, não somente em razão da eterna tentativa de transformar suas distinções
culturais para alcançar o modelo europeu disseminado como o ideal, mas, sobretudo,
ocultada enquanto lugar de fala acerca de seu próprio pensar. Em verdade, o real
motivo para a existência deste pensamento latino-americano é a preocupação de
Dussel em voltar sua reflexão especialmente para o continente, tendo por ponto de
partida a descoberta da latino América pelo ocidente.
É desde esta descoberta, realizada por Cristóvão Colombo em 1492, que, para
o nosso autor, o continente passa a ser um local de exploração e violência, ambas
justificadas pela crença europeia de que sua racionalidade era razão universal, pronta
para impor-se e civilizar os irracionais, isto é, os nativos latino-americanos. É de se
observar como a ideia de razão universal e de dominação da natureza pelo homem já
são manifestadas no período colonial, fato compreendido pelo pensar dusseliano
como o verdadeiro início da modernidade, diferentemente do que a história
comumente ensina.
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O despertar da modernidade europeia, no seio da península ibérica, já trazia à
emergência o homem ensimesmado, o indivíduo pretensamente capaz de dominar
tudo com sua razão. Em contraponto, a América Latina e seus nativos seriam os
“Outros” que não se encaixam nesta racionalidade identitária, mas alardeada como
universal, seriam, pois exteriores aos padrões modernos e europeus e sua inserção
sempre foi uma tentativa forçada, violenta e fracassada, pois sua tradição resistia, e
ainda resiste, em esvaecer-se em um padrão que se impõe violentamente como
universal.
Portanto, a filosofia da libertação importa na medida em que pode contribuir
com o fundamento moderno os direitos humanos. Diz-se isso, porque os direitos
humanos consagram em sua base filosófica, desde as Declarações de Direitos da
modernidade (a francesa e a americana), o indivíduo livre, autônomo e racional. Este
mesmo indivíduo é afirmado em sua capacidade de autorreflexão, a qual não depende
de qualquer base dialogal para conceber direitos pretensamente universais. A
experiência colonial da América Latina, entretanto, está a interpelar por aqueles que,
há muito, estão em um contínuo processo de violenta civilização e que, longe de
serem irracionais como supõe a modernidade, possuem um discurso racional capaz
de mostrar que o diálogo racional, contrariamente à imposição de uma razão, pode
ser o caminho para direitos humanos verdadeiramente universais, cujo conteúdo
ético, qual seja a justiça, não está na elevação de uma racionalidade identitária para
o condição de universal, mas no diálogo entre os seres humanos, permitindo que
aqueles que foram ocultados em sua racionalidade possam, então, falar.
A fim de elucidar com maior profundidade a filosofia da libertação e sua
possível influência para os direitos humanos, o presente escrito será composto de
uma apresentação sobre Enrique Dussel em sua trajetória acadêmica, bem como
acerca dos principais conceitos da própria filosofia da libertação, estes extraídos de
livro homônimo. Enfim, a ideia de alteridade, própria a filosofia de Dussel, será
utilizada para pensar os direitos humanos em seu fundamento moderno, ao que se
seguirá a conclusão.
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fala sobre a sua alteridade
2 ENRIQUE DUSSEL
Enrique Domingo Dussel Ambrosini nasceu em 1934 no pobre povoado de La
Paz, o qual contava, naquela época, com pouco mais de três mil habitantes. Embora
fruto de um local pobre, Dussel é filho de um médico e uma dona de casa que
detinham maior poder econômico que a maioria ao seu redor. Marquinez A. (1995, p.
12) nos informa ter sido a realidade do povoado um fator decisivo para a
transformação de Dussel em filósofo. O contato com os modestos camponeses fez da
pobreza uma experiência originária para nosso filósofo e também ensejo para o
questionamento. Como já aclarado, a experiência colonial é elementar para a filosofia
da libertação e, nesse sentido, é de se dizer que Dussel esteve desde sempre em
contato colonialidade de sua província em relação a capital Buenos Aires.
A vida acadêmica de Dussel iniciou-se na Universidade de Cuyo, na cidade
de Mendonza, onde licenciou-se em filosofia. Graduado, o filósofo partiu para
completar os estudos na Espanha, onde, em sua chegada, percebeu sua distinção em
relação aos europeus e sua vocação latino-americanista, posto que naquela lugar era
Outro latino-americano. (MARQUÍNEZ A., 1995, p. 15).
Foi também a América Latina que levou Dussel até Israel onde voltou-se aos
estudos de hebraico e onde dirigiu suas reflexões para entender o ethos do homem
do deserto, do antecessor dos espanhóis, do criollo e da própria América Latina. Foi
neste período, situado no início da década de 60, que Dussel escreveu seu primeiro
livro “El humanismo semita”. (MARQUÍNEZ A., 1995, p.16).
O filósofo se manteve na Europa até 1966 e Zimmermann (1987, p. 30) nos
diz que toda esta experiência no continente foi polarizada pela vocação latinoamericanista de Dussel, cuja empreitada era a de assumir racionalmente a barbárie
da qual acusavam os latino-americanos. Esta tarefa teve como referencial a
“Simbólica do Mal” de Paul Ricoeur e os diálogos diretos com o hermeneuta, os quais
permitiram que os aspectos simbólicos e o mundo mítico latino-americanos fossem
relevados como partes dos essenciais para a racionalidade filosófica e para o pensar
mundial acerca do lugar.
Em 1966 ocorre a volta do autor para a Argentina, mesmo ano em que as
forças armadas assumem o poder no país. Em 1969 a cátedra de ética da
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Universidade de Cuyo é ocupada por Dussel que inicia seu curso dedicando-se à
fenomenologia de Max Scheler, Merleau Ponty, Paul Ricoeur, Edmund Husserl e
Martin Heidegger, dando-se conta, assim, do pouco espaço destinado a um pensar
latino-americano no espaço acadêmico e do não compromisso com a mudança do
continente. (MARQUÍNEZ A., 1995, p. 21/22).
Os anos 60 foram de endurecimento da ditadura militar e também de maior
crítica sobre a realidade política da América Latina. A II Conferência Geral do
Conselho Episcopal Latino-Americano – CELAM, no ano de 1968 na cidade de
Medelín, chamou os pensadores latino-americanos à responsabilidade política. Neste
contexto, nosso autor passa a se questionar sobre a possibilidade de um pensar
próprio para e desde a América Latina, surgindo daí sua ideia acerca de uma “filosofía
de la liberación”. (MARQUÍNEZ A., 1995, p. 21/22).
Em 1971 Dussel apresenta trabalho no II Congresso Nacional de Filosofia em
Córdoba posicionando-se contrariamente à ontologia ou o que chama “metafísica do
sujeito”, cuja expressão seria, em sua concepção, a da vontade de domínio que há
muito assolara a Europa e cuja herança ficou incrustadas nas elites da periférica
América Latina, sempre empenhadas em manter os oprimidos silenciados em
contraponto à sua semi-ilustração.
Ao romper com a ontologia como filosofia primeira, Dussel desloca seu pensar
da hermenêutica de matriz heideggeriana e volta-se à ética como filosofia primeira,
passando a adotar “Totalidade e Infinito” de Emmanuel Levinas como possível pensar
para superar a primariedade acerca da questão do ser. Nesse sentido, Levinas possui,
ainda nas obras atuais de Dussel, uma importância basilar, uma vez que foram os
seus escritos os responsáveis por garantir o Outro como fundamento para a filosofia
da libertação. A autorreflexão do indivíduo migra para o diálogo com o Outro, o qual
nada mais é que a filosofia prática.
O Outro aprendido com Levinas é exterior à minha reflexão, por isso nunca
serei capaz de compreendê-lo integralmente ou de apreendê-lo em sua compreensão
para construir conhecimento. Portanto este Outro nunca poderá ser mediação ou
instrumento, mas sempre um rosto com o qual me deparo desde o nascimento e no
qual encontro meus limites éticos.
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fala sobre a sua alteridade
Como já afirmado o Estado Argentino passou por um período ditatorial, o qual
foi sucedido, em 1973, pelo populismo de Juan Domingo Perón. Enrique Dussel não
se furtou de criticar a militância e o governo peronista, passando a elucidar, em forma
de crítica, os conceitos utilizados nos discursos governistas. O conceito de povo foi
largamente pensado pelo filósofo que não deixou passar despercebida a luta de
classes entre opressores e oprimidos na Argentina, bem como no sistema imperialista
e neocolonial capitaneado pela Europa e pelos Estados Unidos (MARQUÍNEZ A.,
1995, p. 28/30). O marxismo já se faz fortemente presente na obra de Dussel.
É justamente este marxismo o motivo para um atentando com bomba a casa
e biblioteca de Dussel. O ato violento não feriu qualquer dos familiares do autor, nem
fê-lo desistir de ministrar suas aulas na Universidade de Cuyo, entretanto, uma
acusação de “marxismo” resultou em sua expulsão da universidade, levando-o ao
exílio no México em 1976. Este exílio fez de Dussel um argentino-mexicano e um
comprometido pesquisador de Marx. Este exílio deu origem ao livro “filosofia da
libertação”, escrito de cor pelo filósofo, posto que sua biblioteca ficara na Argentina.
3 A FILOSOFIA DA LIBERTAÇÃO
A filosofia da libertação é um escrito de um homem da periferia para homens
da periferia, bem como para o homem do centro (DUSSEL,1996 p. 10). Trata-se, pois
da formulação de categorias metafísicas que denunciam as categorias opressor, ou o
detentor do poder de formular e espraiar o conhecimento dito racional, dado o poder
de fala concedido por seu status econômico superior, bem como a categoria oprimido,
ou aquele silenciado pela imposição de uma racionalidade pretensiosamente
alcunhada razão universal.
Estas categorias estão alicerçadas na ética da alteridade desenvolvida por
Levinas, portanto sempre fazem referência ao rosto do Outro que está a nos lembrar
incessantemente sobre os limites que sua presença nos impõe. Nesse sentido, o
Outro não pode se tornar objeto de uma análise autorrefletida, mas tão somente pode
ser um interlocutor de um diálogo que gera uma compreensão parcial.
A filosofia pretende, assim, reivindicar o papel de interlocutora da tradição
latino-americana, orientando a produção de conhecimento para a experiência colonial
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da América Latina e seus desdobramentos, promovendo uma abertura para o
pensamento possivelmente distinto daquele saído do centro europeu e comprovando
que a periferia também é dotada de razão. À periferia cabe o pensamento crítico
acerca de sua condição periférica, sem esquecer-se que o centro dominador também
é parte de seu horizonte e que a rendição ao conhecimento produzido exclusivamente
naquele e para aquele lugar de fala é a morte do pensar filósofico e o nascer da
ontologia acabada e ideológica que se instala tanto através da ciência, como por meio
da consciência vigente nas populações ainda colonizadas. (DUSSEL,1996, p. 14/16).
Embora dotada de categorias metafísicas, a filosofia da libertação não se
resume a elas, mas as aplica à materialidade da existência, esta também pensada
através de categorias. As categorias materiais se devem ao materialismo herdado do
marxismo e também de uma influência heideggeriana acerca da cotidianidade que, na
concepção de Dussel, não pode ser acrítica e distanciada dos rostos que nos rodeiam,
sob pena de passarmos a enxergar os rostos como coisas-sentido, como partes de
um sistema, tal como se, exemplificativamente, o taxista fosse somente o
prolongamento do táxi e do seu serviço (DUSSEL, 1996, p. 56). Esta totalização
instrumental seria o reflexo do sistema capitalista e da transformação do homem em
trabalho vivo, a qual não permite o reconhecimento do Outro enquanto Outro que não
está ao meu serviço.
A primeira categoria importante para revelar o que transcende o sistema do
ser e para dar início à libertação real é a “Proximidade”. Dussel (1996, p. 29)
compreende que as experiências grega e europeia moderna privilegiaram a ação do
homem sobre a natureza, como fysis ou natura, pois o homem era entendido como
luz ou cogito e o político restou definido como o controlado, o dominado. Privilegiar,
então, a proximidade, a política e a posição homem-homem é iniciar um discurso
filosófico desde outra origem, desde o aproximar-se como a práxis de cortar distância,
aproximar-se na fraternidade, o surgir além da origem do mundo, pois se o mundo é
anterior a todas as coisas que o habitam, a responsabilidade pelo mundo do Outro é
anterior ao próprio mundo.
A proximidade originária nasce do útero materno e é recebida nos braços da
cultura, “la inmediatez madre-hijo se vive también siempre como relación culturapueblo”, pois o nascimento acontece sempre dentro de uma totalidade simbólica que
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alimenta com os signos da história e orienta para a reciprocidade que torna o tempo
sincrônico, em um momento “o meu tempo é seu tempo.”. (DUSSEL, 1996, p. 32/33).
Quando tem de deixar a proximidade do Outro, o homem se acerca dos entes,
das coisas, dos objetos que se organizam em uma ordem, com uma função na
totalidade que os abarca e compreende. O nível dos entes é a proxêmica ou o ôntico
e o nível da totalidade é o ontológico. O mundo é, pois, uma totalidade instrumental
de sentido, não é uma soma dos entes ou de coisas reais, mas uma totalidade de
entes com sentido, portanto é também limite dentro do qual cada ente (feito ou coisa)
pode encontrar seu sentido e o homem dá sentido às coisas; sem homem não há
mundo, somente cosmos, ou seja, uma totalidade de coisas reais, conhecidas ou não.
(DUSSEL, 1996, p. 35/38).
Dussel (1996, p. 50) está a dizer, então, que não há fenômeno sem que lhe
seja constituído um sentido, isto é, sem a expressão linguística ou pensamento acerca
do que seja um fato, devendo-se compreender este sentido sempre como cotidiano e
existencial e nunca como mera consideração teórica ou abstrata, de maneira que seja
algo integra à ação, situando-a em um horizonte de entendimento, seja prática ou
poiética.
Nesta senda, o que é descoberto e constituído com um sentido pode ou não
ser estimado como valor, como categorias hierarquizadas segundo as pautas culturais
de produção. Sentido e valor existem porque fazem referência ao mundo, ao sistema,
à totalidade desenvolvida desde o homem e não somente desde a constituição real
da coisa mesma. Logo, o recepcionado pela totalidade interpretativa tem sentido, mas
pode não ter valor, caso não possua receptividade na totalidade prático-poiética, caso
não possua o funcionamento real ou simbólico dignos de estima e operacionalização.
(DUSSEL, 1996, p. 52).
A afirmação prática da totalidade se dá por meio da práxis de dominação,
prática perversa de coação do Outro a participar do sistema que o aliena e o contraria
em sua natureza e essência histórica. À medida em que o oprimido tenta libertar-se,
através da prática que subverte a ordem fenomenológica, perfurando-a pela
transcendência metafísica que critica o estabelecido, a dominação vai transformandose em repressão, uma violência justificada e institucionalizada pela ontologia ou
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ideologia do sistema, em clara declaração do projeto vigente e suas leis. (DUSSEL,
1996).
A ação libertadora, detentora de consciência ética, a qual escuta o clamor de
justiça do Outro, se dirige a este Outro como práxis (relação homem-homem) e nela
está incluída também a poiese (relação homem-natureza), pois não há libertação sem
economia e tecnologia humanizada. O ethos da libertação é a atitude ou capacidade
de inovar, de criar o novo, pois emerge do serviço ao Outro, este serviço se estrutura
no eixo fundamental que é o amor ao Outro como Outro, ao oprimido não por sua
situação de oprimido, mas como sujeito da exterioridade. (DUSSEL, 1996, p. 83).
O desenvolvimento do pensamento sobre a ação libertadora, como se pode
observar, foi precedida pela libertação da própria filosofia latino-americana, a qual está
na busca pelo pensar-se por reconhecer-se como exterioridade não suficientemente
compreendida pela filosofia europeia. O mesmo projeto é direcionado para a América
Latina enquanto continente e enquanto tradição e isso significa que a libertação está
em reconhecer a própria exterioridade como meio de sair da totalidade que faz
considerar e ser considerado “não-ser” através do ocultamento das distinções pela
imposição de uma única identidade. (DUSSEL, 2012, p. 65; 2004, p. 18).
Seguindo para outro nível de reflexão, Dussel (1996, p. 87) informa que o
pensamento sobre proximidade, totalidade, mediações (meios), exterioridade,
alienação e libertação devem ser pensados e aplicados em outros quatro momentos
metafísicos: a política, a erótica, a pedagógica e o antifetichismo. Estes momentos
permitem elevar a teoria à uma maior concretude e fazem referência à relação
homem-homem.
Na política a proximidade se dá em uma relação irmão-irmão e condiciona as
demais categorias mencionadas. É de se esclarecer ser a palavra política empregada
como amplo conceito para a ação social humana prática, tanto do governante, como
do governado, em níveis nacional e internacional, entre classes, formações sociais e
seus modos de produção, configurando-se dentro de uma totalidade estruturada
institucionalmente, em uma formação sócio-histórica, abaixo do poder de um Estado.
Em sendo totalidade, possui fundamento no projeto de ser e para além da totalidade
hegemônica está o povo, os oprimidos da totalidade que guardam exterioridade.
(DUSSEL, 1996, p. 88-90).
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fala sobre a sua alteridade
As classes oprimidas são partes cumpridoras de trabalhos que as alienam e
impedem de satisfazer as necessidades que o próprio sistema lhes impõe, são
interpeladoras da realidade clamando por um novo sistema. As classes oprimidas das
nações dependentes guardam em sua cultura a exterioridade máxima do sistema
atual mundial, pois não há uma exterioridade somente econômica, como política,
cultural e histórica que as distinguem na maneira de viver, manipular, compreender,
interpretar os instrumentos tecnológicos, as mediações. (DUSSEL, 1996, p. 90-92).
O segundo momento de aplicação das categorias da filosofia da libertação diz
respeito à erótica, a qual descreve a relação varão-mulher, mais propriamente a
dominação do homem pela mulher na sociedade ocidental que privilegia o momento
pensante do homem, desprezando o corpo e a sexualidade. Mas, superando o
dualismo corpo-alma e afirmando-se a unidade de carne (básar em hebráico), podese compreender a erótica como a sensibilidade do corpo do Outro a fim de cumprir o
desejo do Outro como Outro, sexuado de uma maneira que chama o Eu para suprir a
ausência, sem nunca se tornar objeto sob o risco de perder sua alteridade, a plenitude
do éros, a liberadade. (DUSSEL, 1996, p. 101/102).
A dominação erótica é acompanhada da dominação política, o ego cogito que
funda ontologicamente o “eu conquisto” é o mesmo ego fálico que reproduz a
dominação política na dominação sexual e, assim, a mulher popular, de cultura
periférica sofre dupla violação, a da cultura dominante e a de sua sexualidade, é vítima
do imperialismo e da ideologia machista. (DUSSEL, 1996, p. 105).
A reversão dos processos históricos que tornaram a mulher latino-americana
vulnerável enseja a liberação erótica, isto é, a libertação da mulher, a libertação do
patriarcalismo, da definição de mulher como castrada e como “não-falo”, isto é, como
não-ser e, não menos importante, a recuperação pelo varão de parte da sensibilidade
perdida para a ideologia machista. Para tanto, Dussel (1996, p. 105) propõe começar
de novo.
Libertar-se da erótica dominadora, não é, pois a negação pura da dominação,
nem da erótica e sim o reconhecimento da distinção sexual que leve a uma alteridade
erótica, de modo que um casal de iguais se forme, dotado de distinção sexual entre
seus componentes, mas constituído de pessoas com igual direito à vida, ao trabalho,
à educação, à política, sendo parte deste projeto a libertação da erótica cultural dos
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povos e culturas dependentes, restituindo-lhes a dignidade (DUSSEL 1996, p. 106108).
O terceiro momento, ou pedagógica converge da política e da erótica,
constituindo a relação pais-filhos, mestre-discípulo, ou seja a criança nasce e é
educada para formar uma comunidade política, portanto a pedagógica não se ocupa
somente da educação do filho na família erótica, mas também da juventude e do povo
nas instituições escolares, universitárias, científicas, os meios de comunicação, como
questões culturais e ideológicas. (DUSSEL, 1996, p. 109).
Uma vez que a cultura acumulada é transmitida pelos sistemas pedagógicos,
a exterioridade a estes sistemas surge sempre através do novo, do Outro
questionador do que está dado e este mostra sua anterioridade à ontologia da melhor
maneira: por meio da liberdade criadora com que é parido, mostrando-se como
oriundo da fecundidade criadora, como exterior ao já dado, ao tradicional, dando
realidade ao novo, ao homem novo. (DUSSEL, 1996, p. 111).
O desapreço pela cultura periférica, entendida pelo centro como barbárie,
incultura, não-ser, irracionalidade, a retira do sistema escolar, das universidades, dos
meios de comunicação. Mas é, justamente, a distinção da cultura popular periférica e
a não repetição das estruturas culturais do centro a melhor garantia e o núcleo menos
contaminado do homem novo, sendo, por conseguinte, a morte cultural deste homem
novo, do filho, a alienação pedagógica, a repressão cultural que o afasta do projeto
de libertação que, uma vez na consciência do povo, o possibilitaria discernir em si o
pior – a cultura imperial vulgarizada – e o melhor, sua exterioridade cultural. (DUSSEL,
1996, p. 113-116).
O quarto e último momento é o antifetichismo, através do qual faz-se a tomada
de consciência do processo de absolutização da totalidade como algo divino. O fetiche
é o objeto para o qual se atribui poder sobrenatural e se presta culto, produzindo-se o
fetichismo (BARRETTO, 2013, p. 23), assim, a fetichização política é a divinização do
império, da centralidade geopolítica, econômica e militar; já a totalidade erótica se
fetichiza na fascinação pelo falo na ideologia machista; enfim a pedagógica sofre
efeito fetichizante pela alienação da cultura popular realizada pelo imperialismo
ilustrado e elitista. (DUSSEL, 1996, p. 118).
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O antifetichismo nega a divindade dos sistemas através de uma ateísmo
autêntico. O antifetichismo deve libertar de elementos divinizados que fetichizam, mas
não negar a religião que torna o homem responsável pelo Outro, pelo oprimido, pois
este puro ateísmo não é suficientemente crítico.
O responsável pelo Outro nunca terá motivos suficientemente fortes para
deixar de dar de comer ao que tem fome, nem a propriedade privada natural ou divina
serão poderosas o bastante. O cosmos será interpretado pelo libertador como criação
da liberdade incondicionada a serviço de acalmar a fome, dessa forma o cosmos
adquirirá status ético e a liberdade absoluta estará a serviço do Outro. (DUSSEL,
1996, p. 124).
Dussel (1996, p. 126-127) encerra os quatro momentos da relação homemhomem, elucidando ser o verdadeiro materialismo o materialismo crítico, aquele que
serve ao Outro com a matéria trabalhada, libertando o oprimido, dando-lhe de comer,
distribuindo equidade em uma economia justa, sem dominadores. É dessa forma,
também, que se se rende à liturgia ao Absoluto.
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A
FILOSOFIA
DA
LIBERTAÇÃO
E
A
ALTERIDADE
FUNDANTE:
POSSIBILIDADES PARA OS DIREITOS HUMANOS
Em se considerando ato de justiça a proteção ao ser humano e a busca por
garantir-lhe a guarda de qualquer violação, concordamos com Bragato, Culleton e
Fajardo (2009, p. 14) quando nos dizem serem os direitos humanos protetores
daqueles que formam a comunidade ética, conduzindo-os para a consciência ética da
solidariedade e respeito mútuo. Mas se o existir vem mostrando-se contrário ao
caminho da justiça, esta passa a ser uma questão à nós colocada pela realidade, a
qual pergunta e pede, através do rosto do outro vitimado, pela justiça que nos fará
felizes.
O mundo em rostos questiona a causa, razão, motivo, fundamento para a
constante falha dos direitos humanos. A realidade está a perguntar e a propor, pois,
um diálogo. Desde já, poderíamos adiantar-lhe que os direitos humanos estão sendo
construídos ao longo da história por humanos também falhos quanto as suas criações
e cuja capacidade reflexiva está muito mais para perguntar a si mesmo sobre a
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possibilidade de uma resposta do que perguntar ao Outro e, caso a filosofia
hermenêutica esteja certa, este movimento retira a autenticidade da pergunta. Talvez
o que esteja faltando para os direitos humanos seja, então, que o exercício da
existência reflita menos uma autorreflexão, que vem se mostrando pouco contributiva
para a resolução de seu problema, e mais diálogo, buscando a contribuição através
da reflexão mútua conseguida em uma conversa. Na radicalidade deste diálogo está
o que não estamos acostumados a considerar como quem possa nos levar até a
verdade, como aquele capaz de nos causar inquietações e nos fazer pensar
eticamente, o Outro.
Em Dussel (1996), a justiça é também o amor ao Outro, colocar-se junto a ele
no enfrentamento das misérias para que cada um possa exercer sua exterioridade e
subverter o injusto na ordem estabelecida. Isso implica ser responsável pelo Outro,
tomando-lhe a cargo, estando ao seu serviço, pois é a pessoa inalienável a origem de
todo o direito positivo. A justiça é, pois, colocar-se à disposição do Outro para saciar
sua a fome, é desapego e liberdade, porque permite entregar ao Outro o que é seu.
(VELASCO, 1991, p. 76).
A radicalidade do “Outro” tanto nas obras de Levinas, quanto na de Dussel
não é, contudo viva nos pensadores do período em que despontaram os direitos
humanos. Em verdade, a radicalidade está no “sujeito” ou no Eu levinasiano. Na
modernidade, um período de intensas lutas por reconhecimento de direitos, o que hoje
conhece-se como direitos humanos foi resultado de uma positivação inaugural para
livrar a individualidade de uma nociva interferência do Estado. A positivação do Eu
nas cartas de direitos foi fruto das necessidades da época, não mais condescendentes
com o poder divino do rei de comandar e crente na centralidade do homem e em seu
poder de dominar e transformar a natureza.
O que era transcendental foi trazido à terra pelo iluminismo e o homem virou
a medida para o homem, pois não se tolerava mais a mediação do real através daquilo
que é transcendente e impõe barreiras ao pensamento e à existência. O conhecer
virou, pois, uma empreitada ousada e essencialmente humana, baseada na aplicação
da razão e na unificação de conhecimentos para iluminar espaços obscuros, livrandoos de mistérios e tornando a realidade um espaço para a manifestação de descobertas
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fala sobre a sua alteridade
e realizações que nada teriam a ver com qualquer ordem considerada mística.
(FITZPATRICK, 2007, p. 74).
A qualidade moderna de fazer emergir a autonomia de uma identidade a partir
da diferença, isto é aquilo que antes era unido e depois foi separado, alienando a
exterioridade através da dualidade, é para a filosofia da libertação resultado do
processo colonial, por meio do qual os Europeus se depararam com o ambiente
natural completamente distinto da América Latina, bem como com os nativos do
continente também distintos fenotipicamente e culturalmente. Diversamente da
relação que a Europa mantinha com outros lugares distintos culturalmente e cujo povo
também se distinguia na aparência, a ligação com a América Latina foi baseada em
subjugação e dominação, como se toda a vida daquele lugar pudesse realmente ser
dominada para fins de exploração. Juntamente à experiência da descoberta e da
dominação, a latino América também foi trampolim para que a Europa passasse a ter
mais vantagens no comércio mundial, transformando-se em centro constituidor de
uma periferia.
A conquista territorial da América Latina foi mesmo entendida como um ato
de criação europeia, ou então o continente não possuiria o nome que tem e também
não teria sua história contada a partir da visão europeia, nem seria recordado como
alvo de violência civilizatória necessária para salvar selvagens de seu atraso e
imaturidade espiritual.
A experiência colonial foi originária tanto para a América Latina quanto para a
modernidade europeia, cujas ideais de liberdade e propriedade foram edificados sobre
a
individualidade
poderosa,
dominadora
e
transformadora
da
natureza,
individualidade esta já promotora de todos estes seus atributos durante a conquista
da América e, mais que isso, devedora de seu estabelecimento, enquanto
materialização de uma racionalidade universal, à identidade europeia traçada a partir
da oposição à identidade dos nativos latino-americanos que emprestaram seu
sofrimento e violação para a emergência da superioridade, individualidade, liberdade,
propriedade e razão universal do Eu europeu.
A constituição colonial latino-americana foi, então, criadora de uma
modernidade temporã que informou a modernidade do século XVII acerca da
constituição de uma identidade a partir da qual se poderia escolher estrategicamente
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o que seria irracional, selvagem, ilegal, não humano. Esta oposição desvantajosa para
os que não se ajustassem aos padrões eleitos pela identidade europeia já era uma
prática para subjugar os povos colonizados, mas ganhou ares científicos e teorias
filosóficas e políticas somente no período que a Europa denomina modernidade.
A América Latina é, pois, aquela reivindicante de seu reconhecimento como
Outra, detentora de uma exterioridade que, mesmo no decorrer de tentativas para ser
reduzida e também de reduzir-se aos padrões europeus, continua brilhando em uma
tradição distinta que interpela sobre a vida de seu povo, sobre a contínua
transformação do ser humano em objeto do sistema capitalista e em objeto da própria
relação sujeito-objeto. A tradição latino-americana está a falar, mas como em qualquer
diálogo faz-se imperioso que se a escute.
Somente posso escutar, caso esteja atenta para a cotidianidade que me cerca
e para as pessoas que a constituem; estas me dirão e se não disserem seus rostos
me convidarão para perguntar-lhes e, desta forma, eu estarei realizando o primeiro
momento da filosofia da libertação, a proximidade.
Na hipótese de que os direitos humanos voltem-se ao Outro como a base para
sua existência, buscando pensar dialogalmente, em lugar de ser sua base fruto do
pensamento vindo da autorreflexão passível de expressar-se unicamente como
identidade, a proximidade do Outro para escutá-lo é irresistível.
O Outro é, assim, a condição para a existência da linguagem tanto do
indivíduo, quanto da lei, despontando como aquele que pode me situar eticamente e
me fazer submergir na moralidade (DOUZINAS, 2009, p. 354). É o Outro quem
determina o meu dever, sendo o dever mais básico de nossa relação o de ser
responsável eticamente por este Outro, resultando daí direitos e obrigações restantes.
Os humanos não seriam, assim, nascidos apenas para dominar e controlar,
mas seres já nascidos na proximidade de Outrem para a diminuição da distância, para
estar no arredor da fraternidade antes mesmo de nomear ou conhecer qualquer coisa
no mundo, afinal a primeira experiência no mundo é sempre a do face-a-face
A proximidade permitirá que o ouvir o Outro seja sempre a lembrança de que
não se está acercado de objetos organizados em uma ordem e a cumprir uma função
na totalidade, mas sim de pessoas que constroem o sentido do mundo. Os direitos
humanos carecem de conteúdo ético quando elegem por fundamento o indivíduo que
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fala sobre a sua alteridade
transforma tudo o que não é ele mesmo em partes de um sistema de engrenagens a
mover o seu próprio mundo, explorando e distanciando-se do Outro como se este
estivesse a seu serviço.
A compreensão dos direitos humanos enquanto parte da totalidade, como
derivação da realidade na qual é inserida, está fundada no individualismo identitário,
mas este fundamento pautado primeiramente nos interesses de classe acaba por
atribuir maior valor aos direitos que correspondam às necessidades desta base
identitária.
Na totalidade na qual o Outro é a quem recorro quando quero pensar a
realidade circundante e seus problemas, os direitos humanos não encobrem
exterioridades, mas dialogam com elas para buscar seu melhor sentido e a melhor
forma de fazer-se ação sem alienar, pela falta de crítica advinda do fechamento ao
diálogo, o Outro como parte de um sistema que me serve, mas que o cala enquanto
alteridade e que também me cala em meu egoísmo e em minha incapacidade de ver
a face no lugar do trabalho vivo.
Em tendo por base última o Outro os direitos humanos são práxis de
libertação, são a materialização política, capaz de abranger a comunidade e mostrarse como instrumento já apto a atender o clamor da justiça, em constante renovação,
conforme os diálogos vão se dando e o entendimento mútuo vá acontecendo.
Como práxis de libertação, os direitos humanos com fundamento último no
Outro, são a aplicação da proximidade na política, isto é, na relação irmão-irmão. Para
se pensar sobre esta aplicação, entretanto, há que se dar conta antes de que o mundo
é uma totalidade de sentido surgida dos valores das necessidades, mas cuja mudança
de base para o Desejo metafísico pelo Outro seria meio para a negação da negação
de exterioridades feita pelo individualismo e o verdadeiro acolhimento do Outro sem
aliená-lo.
Como práxis de libertação e mudança para a nova totalidade do Desejo
metafísico, da exterioridade e da não alienação, os direitos humanos são instrumento
para aproximar irmão de irmão na política. A proximidade política se cumpre diante do
rosto exterior a todo o sistema e provocador da responsabilidade. Os direitos humanos
seriam instrumentos, assim, para que a responsabilidade se concretizasse e a justiça
fosse alcançada, de maneira que a crítica saída do diálogo sobre a cotidianidade se
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LOBO, Lívia Teixeira Moura
transformasse em reivindicações recepcionadas pela política de um lugar e, por
semelhança analógica, também pela política de outros lugares.
Os direitos humanos como proximidade política são sempre ferramentas
críticas, porque emergem da experiência frustrante que se eleva como diálogo, e
como reflexo da luta por não aprisionar a exterioridade do Outro estarão sempre em
debate ético no intuito de não transformar o irmão em vítima, em parte de uma
economia transformadora do ser humano em trabalho vivo e a política em um meio de
manutenção de necessidades interessantes para uma classe, mas para as quais
todos são conduzidos, mesmo sem condições de alcance real da satisfação destas
necessidades.
Da corporalidade protegida da violência na relação irmã-irmão, deriva-se a
corporalidade da mulher na relação erótica, na qual o dualismo corpo e alma será
superado pela celebração da unidade da carne e da sensibilidade do corpo que, longe
de estar a serviço da dominação, está para cumprir o desejo com a liberdade para
aqueles que se encontram na perfeição do Eros. Em sendo a proximidade política
uma realidade, sua configuração migrará para os conflitos de gênero livrando a mulher
e o homem da ideologia machista para que se desenvolvam sabendo serem as
distinções de sexo e de desenvolvimento de sensibilidade erótica não restritivas de
direitos.
Os direitos humanos, interpretados pela filosofia da libertação, são
instrumentais para uma totalidade na qual a dominação masculina não seja mais
mitificada como natural e a exterioridade da mulher, em relação à totalização da
sexualidade masculina como a única passível de ser livre, retire a mulher do papel de
objeto desta sexualidade, transformando-se, assim a erótica, isto é, a relação entre
mulher e varão, em uma relação para além da sensibilidade do corpo do Outro,
pautada no desejo do Outro porque é Outro, porque é distinto, “El otro, sexuado de tal
manera que llama al yo al cumplimento de la ausencia, nunca puede ser tomado como
un mero objeto, cosa, de lo contrario al perder su alteridad pierde igualmente la
capacidad de la plenitud del éros” (DUSSEL, 1996, p. 102).
Libertar-se da erótica dominadora, não é, pois a negação pura da dominação,
nem da erótica e sim o reconhecimento da distinção sexual que leve a uma alteridade
erótica, de modo que um casal de iguais se forme, dotado de distinção sexual entre
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A filosofia da libertação de Enrique Dussel e os Direitos Humanos: A américa latina como lugar que
fala sobre a sua alteridade
seus componentes, mas constituído de pessoas com igual direito à vida, ao trabalho,
à educação, à política, sendo parte deste projeto a libertação da erótica cultural dos
povos e culturas dependentes. (DUSSEL 1996, p. 106-108).
Na relação pedagógica entre mestre-discípulo, pais-filhos, cultura-juventude,
a anterioridade da proximidade política e a centralidade do Outro permitirão o
questionamento desde o novo, isto é, daquele que começa a conhecer, daquele que
inicia a vida política, cultural e social, daquele que nasce. As pessoas que ainda se
encontram em processo de aprendizagem e formação de convicções serão as
principais responsáveis por indagar e transformar a realidade em que vivem para
melhor, contanto não sejam os aprendizes castrados em sua liberdade de pensar e
debater. O futuro pensar nos direitos humanos está nesta relação de aprendizado e
reflexão.
Ao fim, precisa-se se estar sempre atento para que a alteridade propagada
em um dos momentos de aplicação das categorias metafísicas da filosofia da
libertação não se renda ao fetichismo e vire alvo de idolatria e absolutização. Quando
a responsabilidade pelo Outro não passar de discurso para encobrir exterioridades e
fazer saltar uma identidade, aplica-se o antifetichismo.
A negação da divinização dos direitos humanos importa na medida em que
estes instrumentos políticos possam ser utilizado para garantir privilégios à uma
identidade em detrimento das exterioridades que nela não se encaixam. O
antifetichismo nos direitos humanos é, então, o ateísmo da identidade e afirmação do
Outro, cuja presença abre sempre a possibilidade da crítica e com esta surge o
pensamento acerca da realidade e a contínua busca por não tornar divina a
identidade.
Os direitos humanos devem garantir, primariamente, os limites de
determinados marcos férreos, cuja transposição pode ser a morte da corporalidade
viva (DUSSEL, 2012, p. 131). Na relação irmão-irmão o respeito à dimensão
metafísica do Outro é nota essencial, mas somente é possível observar a
exterioridade, caso a relação originária do face-a-face se fizer entre rostos e corpos
com vida.
A vida humana, por demandar exigências para sua manutenção, impõe limites
e fundamenta normativamente uma ordem, por isso precisamos da filosofia prática,
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para pensarmos a realidade que construímos a cada dia para nos mantermos vivos,
no patamar mais básico deste pensamento, e para alcançarmos o sumo Bem, o
patamar mais elevado e que nos leva a exercitar as virtudes.
É através de seu “conteúdo material”, pois, que o ser humano reproduz a vida
física, espiritual e cultural. É no âmbito universal da vida humana que a corporalidade
viva mostra-se como referência para a saída da consciência de sua autorreflexão e
passagem ao reconhecimento do Outro, da comunidade. Para o direito como práxis
de libertação o reconhecimento do Outro pode ser também a visibilidade da vítima,
isto é, o sujeito negado, aquele que não pode viver, mas por quem se tem
responsabilidade e esta é universal, independe de cultura, cor de pele, gênero ou
qualquer outra formalidade específica que recorte o Outro em um determinado
horizonte.
Enquanto fundamentados no “Outro” os direitos humanos serão instrumentos
para o reconhecimento das vítimas que não podem reproduzir ou desenvolver sua
vida, cuja exclusão da participação na discussão as afeta com o risco da morte. A dor
da corporalidade das vítimas se revelará como negação da vida humana e também
como negação da afirmação dos valores estabelecidos sistematicamente,
considerados ilegítimos, excludentes e dominadores diante da alteridade da vítima.
(DUSSEL, 2012, p. 302).
Da negação da vítima surge a frustração e a abertura para a crítica ética, a
qual nos abrirá para à interpelação do Outro, para ouvirmos a palavra que nos impele
ao mover, a sair da felicidade individual para ir à luta pela felicidade do irmão. Dussel
(2012, p. 408) nos diz não se tratar somente da superação de um estado intelectual
pré-crítico, mas de sair da irresponsabilidade egoísta da insignificância e do descuido
com o Outro.
5 CONCLUSÃO
Este artigo buscou apontar as possíveis contribuições que a filosofia da
libertação, desenvolvida por Enrique Dussel, pode oferecer ao fundamento moderno
dos direitos humanos. O trabalho é também uma oportunidade de fazer conhecer a
filosofia feita na América Latina para a América Latina, aproximando o pensar acerca
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A filosofia da libertação de Enrique Dussel e os Direitos Humanos: A américa latina como lugar que
fala sobre a sua alteridade
da realidade do continente a um subsídio aos direitos humanos, em lugar de
apresentar este local de fala, como comumente acontece, como um espaço para o
qual os esforços dos mencionados direitos se dirigem, dadas as suas constantes
violações.
Mas se as violações são fatos, não se pode escapar do reconhecimentos
delas. E se os direitos humanos falham em saná-las, também denunciam que sua
práxis, baseada em uma fundamentação subjetivista, pode estar calcada em um
alicerce fraco. A filosofia da libertação está a dizer aos direitos humanos, então, que
seu fundamento seja o da alteridade, o da abertura para o diálogo, o qual ouve a
corporalidade sensível e vitimada, respeitando a experiência primeira de todo ser
humano no mundo, qual seja a do face-a-face, matriz do primeiro gesto significante a
nos chamar para o comprometimento com a bondade e a justiça.
Quando o chamamento, feito pelo Outro, pede por justiça, deve-se, pois,
lançá-lo para os direitos humanos para que, desde o seu fundamento, impeça a
violência contra corporalidade viva e, sobretudo, impeça a interrupção da continuidade
das pessoas ao impor-lhes papéis não compatíveis com suas vivências, tornando-as
traidoras de si mesmas e encobertas por uma identidade que não é a sua, mas que
transfigura-se em razão universal.
A compreensão dos direitos humanos desde o Outro, o qual é corporalidade
viva, é fruto da abertura para o diálogo e para a responsabilidade do chamamento a
ser justo, a exercitar esta virtude no serviço ao Outro. Este serviço, por conseguinte,
pode ser feito politicamente quando os direitos humanos são instrumentos para a
justiça social, para o desenvolvimento da vida humana em seu sentido físico, espiritual
e cultural, enxergando-se neste âmbito a proximidade entre irmãos, a qual é originária
e nasce do face-a-face.
Quando se intentou justificar os direitos humanos utilizando-se da experiência
da América Latina quis-se aproximá-los da Justiça e para tanto o fundamento dos
direitos humanos, a causa porque são, foi redirecionado do marcante individualismo
moderno para a distinção inesgotável que configura o Outro, radical ético essencial
da filosofia da libertação, cuja reflexão sobre a América Latina a constitui como
exterioridade encoberta e negada. Buscou-se estabelecer um exercício crítico a partir
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da experiência de um lugar nascido, para o Ocidente, como inferioridade passível de
ser violada, cuja experiência tem muito a dizer sobre o subjetivismo moderno.
O encontro com o Outro, proposto pela filosofia da libertação e refletido nas
categorias metafísicas que que se aplicam às categorias da relação homem-homem,
é elementar para nos encaminhar no sentido da reflexão ética, a qual longe de ser
individuada, é dialogal e ensejam a obrigação de resposta à interpelação do
injustiçado. Esta relação, por conseguinte, ao nos dizer o que é o justo, nos dirá
também que o fundamento dos direitos humanos deve se constituir à esta relação ou
então será injusto.
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A filosofia da libertação de Enrique Dussel e os Direitos Humanos: A américa latina como lugar que
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ZIMMERMANN, Roque. América Latina – O não ser; uma abordagem filosófica a
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