O mistério da origem da música Do ponto de vista evolutivo o simples fato de a música existir é um mistério. Que vantagem adaptativa justifica seu aparecimento e manutenção ao longo de milhões de anos? Apesar de ainda não termos uma boa explicação, em seu livro mais recente Oliver Sacks fornece algumas pistas importantes. Analisando pacientes com diversos tipos de distúrbios relacionados à música Sacks mostra como a música está relacionada à linguagem e ao pensamento lógico. É fácil imaginarmos como o aparecimento da linguagem foi selecionado ao longo da evolução. Ela permite a cooperação entre os membros da espécie facilitando a organização social. Mas a música é um caso a parte. Porque nossa capacidade de escutar, apreciar, e criar música foi selecionada se não cantamos para atrair parceiros sexuais ou para obter alimentos? Qual seria a função original de nossas habilidades musicais? Sacks demonstra que a capacidade musical de nosso cérebro é muito mais extensa que a observada na maioria das pessoas. Diversos experimentos sugerem que as crianças nascem com ouvido absoluto (capacidade de reconhecer tons musicais independente do contexto em que se apresentam), mas perdem esta habilidade com o desenvolvimento da linguagem. Crianças educadas em línguas em que a tonalidade é importante, como algumas línguas orientais, têm uma maior probabilidade de reter seu ouvido absoluto até a idade adulta. Também é sabido que pessoas que perdem a visão muito cedo desenvolvem uma maior sensibilidade musical. Analisando dezenas de exemplos deste tipo Sacks demonstra que muito provavelmente o aparecimento da nossa capacidade lingüística, faz milhões de anos, foi responsável pelo cerceamento de nosso potencial musical, parte do qual ainda podemos recuperar através da educação. Analisando uma série enorme de pacientes com distúrbios neurológicos Sacks demonstra que o recrutamento das habilidades musicais pode, em muitos casos, ajudar a reorganização da mente de pacientes com distúrbios da fala e amnésia. A capacidade musical nestes casos parece ser um coadjuvante na organização de diversas atividades mentais que envolvem ritmos ou atividades repetitivas como o andar ou a contagem ou a enumeração de dados. Talvez tenha sido esta a função das habilidades musicais na sua origem. As observações de Sacks sugerem que no passado distante o ser humano utilizava de maneira extensa sua capacidade musical para organizar atividades mentais hoje organizadas através de outros mecanismos como a linguagem e o pensamento lógico. Se isso é verdade, fica fácil imaginar como esta capacidade teve um papel importante na estruturação de nossas atividades cerebrais e porque foi selecionada durante a evolução. O mais impressionante é imaginar que a nossa musicalidade atual nada mais é que os resquícios de uma capacidade mental que possuíamos e que perdemos quando a linguagem e o raciocínio lógico dominaram nosso universo mental. O universo mental em que vivíamos na época em que a música reinava livre em nossos cérebros é difícil de imaginar e impossível de reviver. Os remanescentes “arqueológicos” destas habilidades é o que observamos em gênios como Mozart ou nos pacientes de Sacks. Esta hipótese é no mínimo intrigante. Mais informações em: Oliver Sacks, Musicophilia: tales of Music and the Brain. Alfred A. Knopf, New York 2007 Fernando Reinach ([email protected])