A (DES)CONSTRUÇÃO ENUNCIATIVA DO ADJETIVO FÁBIO LIMA WENCESLAU (UFMG) (...) os estudos gramaticais, especificamente sintáticos, teriam muito a ganhar se abordássemos essas categorias lingüísticas a partir de um ponto de vista mais amplo do que aquele de natureza estritamente morfossintática. Dessa forma, além da função sintática e da identidade morfológica, estaríamos trabalhando com o papel enunciativo das categorias. (DIAS, 2000) RESUMO: Acreditamos que, na perspectiva da enunciação, podem ser formuladas bases para melhor compreensão do funcionamento do adjetivo. E entendemos que essa proposta é relevante para a lingüística, particularmente para a descrição gramatical da língua. Para isso, desconstruímos três noções propostas para o estudo do adjetivo: a de ser palavra que qualifica/caracteriza o “ser” (ALMEIDA, 1999; LIMA, 1986; CEGALLA, 1985; ANDRÉ, 1997; CUNHA e CINTRA, 2001); a de distinguir entre uso atributivo e referencial (DONNELLAN, 1971); e a de intersecção de conjuntos (CHIERCHIA, 2003; ILARI, 1993). Essas noções não se aplicam a todas as ocorrências de adjetivo, e a existência de lacunas e de contra-exemplos reforça a proposta de uma outra perspectiva de análise, que considere o uso e as condições em que se emprega o adjetivo. O objetivo agora, no entanto, é o de primeiramente revisitar algumas dessas teorias sobre adjetivos, a fim de desconstruí-las na perspectiva da enunciação, para depois reconstruir nossos conhecimentos sobre essa classe particular da língua. Para realizamos esta pesquisa, filiamo-nos ao pensamento de Benveniste, de Ducrot, de Bally e de Bakhtin, de maneira mais geral, e adotamos as teorias de enunciação como propostas em Dias (2006, 2005, 2003, 2002 e 1996), principalmente, e em Guimarães (2006 e 2002) e Achard (1999). Introdução Quando tivemos os primeiros contatos com a Lingüística e entendemos que, sobre a estrutura de uma língua, há mais aspectos do que aqueles explicitados na gramática tradicional, começamos a buscar outras explicações para ocorrências do português do Brasil. Assim, além de estudos morfológicos e sintáticos, encontramos os estudos semânticos, com diferentes abordagens das questões de sentido e significação. Ocorre que muitos estudos morfológicos e sintáticos implicam considerar imanente o sentido das formas lingüísticas e preterem questões associadas ao uso, ao emprego dessas formas. Acreditando que o uso das formas deva, sim, ser considerado, 2 recorremos a uma literatura semântica de perspectiva enunciativodiscursiva, como vista, por exemplo, em Dias (2006, 2005, 2004, 2003, 2001, 2000, 1998) e em Guimarães (2006, 2002a, 2002b). Sem dúvida, essa é uma opção teórica que nos permite observar o uso do adjetivo e descrever sua significação, bem como suas relações com sua historicidade e exterioridade. O objetivo neste artigo, no entanto, é o de primeiramente revisitar algumas teorias sobre adjetivos, a fim de desconstruí-las na perspectiva da enunciação, para depois reconstruir nossos conhecimentos sobre essa classe particular da língua. Estruturamos este texto em quatro seções: esta Introdução; a seção 2, Explicitação do problema, em que discutimos noções generalizadas e correntes sobre o adjetivo; a seção 3, Teorias sobre adjetivo, em que analisamos mais objetivamente três diferentes teorias relacionadas a essa classe; e, finalmente, a seção 4, Considerações finais, em que brevemente sinalizamos nossa proposta para estudo futuro. Explicitação do problema Nosso interesse pelo estudo dos adjetivos pode ser inicialmente demonstrado com a análise deste enunciado, legenda de uma charge, publicada em um jornal de grande circulação: (01) bons companheiros (Folha de S.Paulo, Opinião, 26/08/2005) 3 A charge em questão constitui-se de uma cena, em que uma caricatura de Lula, Presidente da República, tem sua faixa presidencial esticada para trás por um componente de um grupo de homens vestidos de terno e gravata. Um desses componentes está se higienizando com essa faixa. Sob a cena, apresenta-se a legenda “bons companheiros”. A compreensão de uma sentença, ignorada a sua enunciação, normalmente decorre da observação das relações morfossintáticas e semânticas estabelecidas pelos sentidos “imanentes”, “denotativos”, que as palavras “carregam”, ou a partir deles, quando ocorrem “sentidos figurados”. Nessa perspectiva, para a compreensão da charge, destaca-se a relevância maior do lingüístico, do gramatical, que será vinculado à figura que essencialmente constitui uma charge. Assim, podemos dizer que o adjetivo “bons” determina o substantivo “companheiros”, caracterizandoo, qualificando-o; ou que existem “companheiros” e que esses são “bons”. Considerando a imagem que, em (1), mostra uma atitude oposta a um comportamento “bom”, infere-se a ironia, resultando na “mensagem do texto”: o presidente está sendo “prejudicado” por seus companheiros políticos. Mesmo que tomemos essa compreensão como apenas uma possibilidade de interpretação nessa perspectiva, entendemos que esse tipo de análise ignora muito da exterioridade que constitui a significação do enunciado e, por extensão, da charge, afinal qualquer leitor amadurecido para esse gênero textual depreende uma 4 significação maior, mais específica até, e que a vincula necessariamente a acontecimentos políticos reais e à subjetividade do sujeito-enunciador. Essa subjetividade está explicitamente marcada pelo emprego do adjetivo “bons”, caracterizando o substantivo “companheiros”, nomeando ironicamente a situação real do presidente, que foi maculada por denúncias contra seus próprios companheiros de partido e de governo, no então cenário político brasileiro. Portanto, o emprego do adjetivo “bons” é uma marca da subjetividade do sujeito-enunciador, que expressa uma “opinião” sobre o fato a que se refere com a charge. Podemos dizer que, na charge, o emprego de adjetivo não indica meramente “qualidade/característica” do substantivo, como tradicionalmente se pensa, mas que, na constituição do enunciado, forma com ele uma referência marcada pela subjetividade do sujeito-enunciador, resultando no efeito de sentido que se constrói na enunciação. Entendemos, então, que o emprego do adjetivo na enunciação integra a constituição da referência, resultante de sua relação sintática com o substantivo e de sua contribuição na constituição do(s) sentido(s) no enunciado. Entendemos que a constituição da referência seja um aspecto da constituição do sentido, conforme Guimarães (2006). A compreensão do enunciado diz respeito igualmente ao modo como se relacionam substantivo e adjetivo, ou, em outras palavras, como se estabelece a relação de determinação entre essas duas classes de palavras, para que constituam um sintagma. 5 Em (01), isso fica explicitamente marcado pela articulação das palavras, ou seja, a concordância de “bons” e “companheiros”, ambos no masculino e no plural. Certamente essa relação não é bem a mesma em todos estes outros sintagmas, retirados também de charges: (02) educação britânica (Folha de S.Paulo, Opinião, 14/02/2006); (03) deputados cassáveis (Folha de S.Paulo, Opinião, 15/10/2005); (04) delação premiada (Folha de S.Paulo, Opinião, 06/10/2005); (05) jogadores inocentes (Folha de S.Paulo, Opinião, 01/10/2005); (06) pizza zero (Folha de S.Paulo, Opinião, 17/10/2005); (07) voto família (Folha de S.Paulo, Opinião, 31/10/2005); (08) plataforma eleitoral (Folha de S.Paulo, Opinião, 17/03/2006). Podemos observar que, em (02), a relação de determinação entre o substantivo “educação” e o adjetivo “britânica” está bem marcada, conforme o conhecimento tradicional, porque ser “britânica” é a qualidade/característica de “educação”; além disso, essa relação está marcada também sintaticamente pelo fenômeno da concordância: o adjetivo está flexionado no feminino singular, conforme o substantivo. Em (03), O mesmo processo de determinação ocorre: o adjetivo “cassáveis”, que é a qualidade / característica de “deputados”, concorda em gênero e número com esse 6 substantivo. Em (04), repetem-se os mesmos fenômenos. É interessante notarmos que essas análises reforçam a noção de que a relação entre essas classes decorre primeiro da identificação de uma referência do substantivo, para depois sobre ele se atribuir uma característica, um adjetivo. De (05) a (07), há ocorrências que comprometem a noção de determinação como demonstrada anteriormente, porque a distinção entre substantivos e adjetivos não se faz tão facilmente, afinal falta explicitar como ocorre a escolha da palavra que se toma como substantivo ou adjetivo – e com as quais se opera a concordância. Observamos, em (05), dois “adjetivos” – “jogadores” e “inocentes” – que se articulam, um deles é tomado como substantivo – “jogadores” – e o outro como adjetivo – “inocentes”. Já em (06) e (07), dois “substantivos” – “pizza” e “zero”, “voto” e “família” – articulam-se e apenas um é tomado como substantivo; tornam-se adjetivos, respectivamente, “zero” e “família”. Sobre ocorrências desse tipo, Ilari (1993, p. 42) explica que “na representação tradicional do papel do adjunto, o nome e o adjetivo entram com a mesma função, e o fato de que o primeiro constitui o núcleo do sintagma aparece como um mero acidente gramatical”. O autor, porém, contesta essa noção tradicional, defendendo que é o adjetivo que tem a função de restrição do substantivo, e que, por isso, não é acidental. Em (08), o sintagma “plataforma eleitoral” possibilita uma observação interessante, porque a polissemia do substantivo “pla7 taforma” somente é desfeita em um enunciado, portanto no uso, ou com o emprego de um adjetivo: “plataforma continental”, ”plataforma espacial”, ”plataforma política”, etc. Podemos associar à observação de (08) a noção de “restrição” proposta em Ilari (1993), pois, nessa forma de determinação, é o adjetivo que precede o substantivo, para constituir a identidade referencial do sintagma, diferindo-se do modelo tradicional que institui primeiramente o substantivo para, depois, associar a ele uma qualidade/característica – como visto acima sobre (02), (03) e (04). Outro aspecto da compreensão do exemplo (1) – “bons companheiros” – remete ao posicionamento do adjetivo em relação ao substantivo: “bons” está anteposto a “companheiros”. Parece-nos que a posposição de “bons”, que resultaria em “companheiros bons”, não produziria o mesmo efeito de sentido na constituição da charge. Entendemos que, na memória de enunciações, há uma repetição desse sintagma assim ordenado, para indicar ironicamente a “maldade” ou a “traição” de alguém. Existe inclusive um filme, intitulado também “Bons companheiros”, que narra uma história de gângsteres, com muita violência e traições. Além das observações sobre a charge em (01) e sobre os exemplos de (02) a (08), podemos ainda demonstrar nosso interesse pelos adjetivos com ocorrências como estas: (09) Ninguém triste consegue simpatia dos outros; (10) O juiz julgou culpado o réu inocente; (11) Candidato limpo respeita a cidade; 8 (12) Bonito, hein?! Em (09), o adjetivo “triste” estabelece uma relação de determinação com “ninguém”, uma palavra que não é um substantivo, nem indica um “ser”; assim fica comprometida uma análise tradicional em que se diz que “triste” é a qualidade do “ser”. Em (10), observamos dois adjetivos, “culpado” e “inocente”, determinando o mesmo substantivo, mas, obviamente, isso não resulta em uma contradição; entendemos que essa sentença exemplifica singularmente a enunciação, pois há nela duas diferentes instâncias: a do sujeito gramatical, “o juiz”, que determina “o réu” como “culpado”, e a do sujeito-enunciador, que determina “o réu” como “inocente”. Essa distinção pode ser evidenciada, se explicitamos o ato ilocucional, como na Teoria dos Atos de Fala: (10a) Eu afirmo que o juiz julgou culpado o réu inocente Em (11), observamos o adjetivo “limpo” determinando o substantivo “candidato”, resultando nos sentidos: candidato asseado, higiênico, ou, por extensão, candidato honesto. Ocorre que esse enunciado constitui uma propaganda contra a poluição de uma cidade, em uma eleição passada, na qual um primeiro enunciado é “Político sujão não ganha eleição”. Logo, na enunciação, para “candidato limpo”, produz-se o sentido “candidato que não suja a cidade”. Finalmente, em (12), observamos o adjetivo “bonito” empregado isolado em um enunciado; e somente em uma enunciação específica conseguimos identificar a que se 9 enunciação específica conseguimos identificar a que se atribui tal qualidade. Todas as nossas considerações apresentadas sinalizam a necessidade de um outro olhar sobre os adjetivos, para que possamos esclarecer, pelo menos, mais alguns pontos ainda obscuros em seu emprego. Teorias sobre adjetivo Ao buscar estudos sobre adjetivos, para entender melhor seu emprego, encontramos diferentes teorias, em diferentes perspectivas. Algumas delas sinalizam boas intuições, outras são recorrentes na literatura e outras ainda nos parecem inconclusivas. De todas essas, agora, trataremos mais especificamente de três delas: a abordagem tradicional, discutida também na seção anterior; a distinção entre uso referencial e uso atributivo de descrições definidas, de Donnellan (1971); e a relação com a teoria dos conjuntos. Sabemos que, tradicionalmente, o adjetivo é definido nas gramáticas como a palavra que qualifica o ser, ou que qualifica o substantivo. Tornou-se comum pensar o adjetivo como um qualificador, ou um caracterizador. Essa perspectiva de análise, identificada como a da gramática tradicional, remete aos estudos da Antigüidade Greco-Romana, à noção filosófica que relaciona o substantivo à essência dos seres, sobre os quais se pode atribuir 10 uma qualidade. Relaciona, assim, a descrição gramatical à representação que se faz do mundo. Um exemplo claro dessa perspectiva encontramos na definição de adjetivo de Almeida (1999, p. 139): A esta classe pertencem todas as palavras que se referem ao substantivo para indicar-lhe uma qualidade, ou seja, adjetivo é toda a palavra que modifica a compreensão do substantivo, afetando, quanto à idéia, a substância da coisa: homem inteligente, laranjeira alta, rapaz estudioso, homem magnânimo. (Grifos do autor) Vamos exemplificar essa idéia de que adjetivo acrescenta qualidade ao substantivo com mais estes sintagmas: (13) candidato inteligente; (14) casa nova; (15) médico plantonista. Aos substantivos em (13), (14) e (15) – “candidato”, “casa” e “médico” –, que nomeiam seres, são atribuídas qualidades, características, ou seja, os adjetivos – “inteligente”, “nova” e “plantonista”, respectivamente. Devemos pensar, portanto, que a qualidade ou a característica do “candidato” é ser “inteligente”, que a da “casa” é ser “nova” e que a do “médico” é ser “plantonista”. Notamos, nessa relação, a predominância da idéia de existência para a identificação do substantivo, sobre o qual se atribui o adjetivo. 11 Também em outras quatro gramáticas analisadas – Cunha (1976), Cegalla (1985), Lima (1986) e André (1997) –, os substantivos são definidos como palavras com que nomeamos ou designamos os seres. Recorremos a Cunha & Cintra (2001, p. 177), para exemplificar essa conceituação de substantivo, que reforça a relação entre essa classe de palavra e a noção de existência do ser: SUBSTANTIVO é a palavra com que designamos ou nomeamos os seres em geral. São, por conseguinte, substantivos: a) os nomes de pessoas, de lugares, de instituições, de um gênero, de uma espécie ou de um de seus representantes: (...) b) os nomes de noções, ações estados e qualidades, tomados como seres: (...) Ocorre que, em certas expressões da língua, nas quais observamos o emprego de substantivo e adjetivo, constituindo sintagma, essa noção de precedência da dimensão da existência do substantivo, para posterior qualificação, pode ser questionada, como em: (16) futuro candidato; (17) falso médico. Em (16) e em (17), os substantivos “candidato” e “médico” têm a noção de precedência comprometida pelo sentido resultante do sintagma, uma vez que os adjetivos a eles atribuídos – “futuro” e “falso”, respectivamente – produzem efeito de sentido de inexis12 tência dos “seres”. Fica inadequado dizermos que a característica do “candidato” é ser “futuro”, ou que a do “médico” é ser “falso”. A própria noção de representação do mundo fica igualmente comprometida com esses casos. Nesse sentido, concordamos com Dias (2001, p. 69), que exemplifica ainda essa questão mostrando-nos determinados substantivos e adjetivos, com os quais ocorre o mesmo questionamento: “É o caso de inexistência, nada, ausência; ou ainda o caso de falsa e provável em ‘gravidez falsa’ e ‘provável candidato’.” (grifos do autor). Considerando que falantes entendem naturalmente tanto as expressões de (13) a (15), como as de (16) e (17), consideramos evidente a necessidade de uma explicação melhor, mais consistente pelo menos, para ocorrências tão freqüentes na língua. Os exemplos de (16) e (17) podem sugerir que, quando o adjetivo “compromete” a noção de precedência do substantivo, ocorre anteposto no sintagma. Mas isso, por enquanto, não pode ser generalizado. Esses exemplos tornam-se certamente inadequados, ao considerarmos os mesmos efeitos de sentido, se os reescrevemos como: (16a) ?candidato futuro; (17a) ?médico falso. Especialmente em (17), notamos que o sentido pode ser inclusive entendido como “um médico que é falso, dissimulado, mentiroso”; contudo, outras ocorrências, como “provável candi13 dato/candidato provável”, ou “futuro lar/lar futuro”, não nos parecem modificar os efeitos de sentido. Parece-nos haver, sim, uma preferência de uso, que entendemos ser reflexo da própria memória de enunciações de cada ocorrência. Os exemplos (16) e (17) ainda podem ser associados à distinção entre uso referencial e uso atributivo de descrições definidas, proposta por Donnellan (1971). Por uso atributivo, entendemos que uma expressão empregada pelo falante efetivamente denota aquilo que refere; por uso referencial, uma expressão empregada denota determinado referente via uma descrição particular do falante. O autor propõe, entre outros exemplos, a pergunta “Quem é o homem bebendo um martini?”, para diferenciar esses usos: se um interlocutor realmente identifica uma pessoa tomando um Martini, trata-se de uso atributivo; se um interlocutor identifica essa mesma pessoa, embora saiba que ela não esteja, na verdade, bebendo um martini, então é uso referencial. As expressões “futuro candidato” e “falso médico” podem ser descritas como em uso referencial – ou pelo menos podem ser relacionadas ao uso referencial, mais que ao atributivo –, ao serem empregadas em enunciados como: (18) Rodrigo é um futuro candidato a vereador de Belo Horizonte; (19) Conhecemos o falso médico do bairro. 14 Chierchia (2003), bem como vários outros autores da literatura consultada sobre adjetivos, vale-se da teria dos conjuntos, direta ou indiretamente, para explicar determinadas expressões ou frases. Segundo ele, “um conjunto ou classe é uma coleção qualquer de objetos, originários de um determinado domínio (números, indivíduos, nêutrons etc.) (p. 78)”. Sobre essa teoria, o próprio autor adverte que se trata “de um modo de pensar um pouco estranho, no qual cada aspecto da realidade, desde o mais simples até o mais complexo e abstrato, é concebido como um conjunto de algum tipo” (p. 77). Por exemplo, o sentido da expressão “construção cinza” resulta da interseção de duas classes: a classe das construções e a classe dos objetos cinza, verificadas por uma semântica de valor de verdade. Chierchia (2003) adota a teoria dos conjuntos para tratar especificamente dos adjetivos em posição de adjunto, que são descritos pelo autor como modificadores do nome. Assim, um adjetivo indica um conjunto de seres, como em “garoto negro”, em que “negro” indica o conjunto de “pessoas de pele negra” ao qual “o garoto” pertence – o conjunto “negro” modifica o conjunto nominal “garoto”. No entanto, um problema para a aplicação dessa teoria decorre de exemplos como “garoto alto”, por causa da subjetividade que o 15 adjetivo “alto” implica, ou, na percepção de Chierchia, por causa de efeito de comparação que essa forma implica – um “garoto alto” como aluno da 5ª. série do ensino fundamental não é necessariamente um “garoto alto” com jogador de basquete. Chierchia (2003, p. 314) soluciona essa questão diferenciando esse tipo de adjetivo dos demais, defendendo que “Adjetivos como alto, pesado, inteligente, bom, são sempre usados com referência implícita ou explícita a uma classe de comparação.” (grifos do autor). Em Ilari (1993, p. 45), encontramos concordância com essa percepção de comparação, pois o autor acredita que “Se adjetivos como ‘grande’ e ‘pequeno’ chegam a ser de alguma utilidade prática para indicar dimensões de objetos e seres humanos, é porque o contexto permite no mais das vezes que os utilizemos em comparação implícita com outros objetos ou seres ‘do mesmo tipo’”. Acreditamos que esse emprego diferenciado de adjetivos como “alto”, “grande e “pequeno” demanda a observação das condições de enunciação e mesmo da subjetividade do enunciador. E isso fica reforçado, para nós, pelo próprio Chierchia (2003), ao falar de “referência implícita a uma classe de comparação”. Vejamos esta sentença: (20) O garoto alto é meu sobrinho. 16 Para podermos recuperar a “classe implícita” no uso do adjetivo em (20), em que “alto”, por exemplo, determina “garoto” em relação aos demais meninos com quem ele brinca, é necessário evidenciar as condições em que ocorre sua enunciação, as condições em que a sentença em (20) é empregada por um enunciador e torna-se um enunciado. Sobre o emprego da teoria dos conjuntos no tratamento dos adjetivos, Ilari (1993) tem uma posição bastante crítica, com a qual concordamos. Segundo ele, “Apesar do forte apelo intuitivo que sempre exerceu, essa teoria não dá conta de todos os usos possíveis de adjetivos” (p. 41). O autor enumera estes três argumentos contra essa teoria: (a) a perda da relação de interseção entre conjuntos em expressões idiomáticas, como “elefante branco” e “controle remoto”; (b) a percepção de diferenças semânticas entre interseções dos mesmos conjuntos, como “soldado francês” e “francês soldado”; e (c) a impropriedade de se falar em interseção de conjuntos com adjetivos intensionais, como “falso amigo” e “suposto comunista”. Considerações finais Conforme as teorias apresentadas neste artigo, sobre os adjetivos podemos dizer que são palavras que qualificam/caracterizam o ser (ALMEIDA, 1999; LIMA, 1986; CEGALLA, 1985; ANDRÉ, 1997; CUNHA e CINTRA, 2001), que se distinguem 17 pelo uso atributivo e referencial (DONNELLAN, 1971) e evidenciam a intersecção de conjuntos (CHIERCHIA, 2003; ILARI, 1993). Como vimos, no entanto, essa variedade de noções, que não se aplicam a todas as ocorrências, e as críticas aqui feitas contra elas confirmam certamente que ainda temos muito o que desvendar sobre adjetivos. Embora na literatura lingüística o adjetivo já receba tratamento diverso, entendemos que a existência de lacunas e de contra-exemplos reforça a proposta de outra perspectiva de análise, que agora considere o uso e as condições em que se emprega o adjetivo – a da enunciação. Observamos que o adjetivo tem papel extremamente relevante para a compreensão dos sentidos dos enunciados das charges apresentados neste texto e que seu emprego, embora desprezado em muitas perspectivas, constitui marca da relação entre sujeito e linguagem, que pode ser explicitada na perspectiva da enunciação. Nessa perspectiva, abre-se um caminho para formularmos bases para compreensão do uso do adjetivo, observando condições de determinação do substantivo e condições em que ocorre a articulação entre substantivo e adjetivo. Defendemos que essa proposta seja relevante para a lingüística, particularmente para a descrição da gramática da língua, principalmente porque diz respeito a aspectos não tratados em outras perspectivas e porque produzem uma outra reflexão sobre questões ainda persistentes na análise do emprego do adjetivo. Cabe-nos, portanto, futuramente, descrever o comportamento dos 18 adjetivos, evidenciando condições de determinação e de articulação entre adjetivo e substantivo na constituição do sintagma nominal. 19 Referências bibliográficas ALMEIDA, N. M. Gramática metódica da língua portuguesa. 44. ed., São Paulo: Saraiva, 1999. ANDRÉ, H. A. Gramática ilustrada. 5., ed., São Paulo: Moderna, 1997. CEGALLA, D. P. 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