Informal, ilegal, injusto: percepções do mercado de trabalho no Brasil. Eduardo G. Noronha – UFSCAR Depto de Ciências Sociais RESUMO: Nas últimas quatro décadas o debate sobre mercado de trabalho apontou uma clara divisão entre mercados formais e informais. Para os economistas, tal dualidade deriva do processo de industrialização de um país no qual muitas atividades não eram suficientemente rentáveis para investimento de capitais. Contudo, para os juristas, tais atividades têm sido crescentemente classificadas como ‘ilegais’ e não meramente como `informais’. A população defronta-se hoje com dois conceitos, ‘ilegal’ e `informal`, os quais não são assim expressos, mas percebidos como `injusto`. Neste artigo busca-se caracterizar cada uma dessas noções (ilegal, informal, injusto) e analisar as influências mútuas do mainstream econômico (em busca de eficiência) e da tradição jurídica brasileira (na qual o contrato de trabalho é antes de tudo matéria de lei). Outro objetivo é examinar como os trabalhadores percebem quais os direitos de trabalho mínimos para o contrato de trabalho `justo`. _______________________________________________________ Trabalho apresentado no XXV Encontro Anual da ANPOCS Caxambu, MG, 16 a 20 de outubro de 2001. ______________________________ Informal, Ilegal, Injusto: percepções do mercado de trabalho no Brasil Eduardo Noronha – [email protected] 2 Informal, ilegal, injusto: percepções do mercado de trabalho no Brasil. Eduardo G. Noronha – UFSCAR Dpto de Ciências Sociais [email protected] Introdução Neste paper busca-se analisar as diferentes maneiras nas quais a informalidade é entendida no Brasil, tanto através da produção sociológica, quanto da análise dos visão de especialistas da área como economistas, juristas e inspetores do trabalho. O significado de informalidade depende do de formalidade em cada país e período e embora isso seja bastante e logicamente evidente, as análises sobre informalidade tendem a ignorar a noção de formalidade que se lhe contrapõe. O conceito de mercado formal, por sua vez, deriva de concepções e práticas contratuais e legislativas as quais dependem de conflitos de interesse, legitimidade e noções de justiça. Se aceitamos as considerações acima, temos que admitir que as abordagens econômicas predominantes no Brasil representam apenas uma visão bastante parcial e com limitado poder explicativo das razões pelas quais o Brasil conta com longa história de `informalidade` e as políticas e práticas adotadas no país tem fracassado na busca da homogeneização do mercado de trabalho. Os argumentos aqui apresentados são o resultado inicial de uma pesquisa que busca entender os diferentes significados de formalidade e informalidade, bem como as noções mutantes de contratos de trabalho legítimos. Toma-se como pressuposto a existência de uma batalha entre diversos segmentos para redefinir novas noções de contratos de trabalho moralmente defensáveis no Brasil. O objetivo da primeira parte do paper é principalmente conceitual. Trata-se de redefinir informalidade de acordo com o entendimento de três ‘grupos’, i.e., economistas, juristas e a “opinião pública” ou, para sermos mais precisos, não Informal, Ilegal, Injusto: percepções do mercado de trabalho no Brasil Eduardo Noronha – [email protected] 3 especialistas diretamente envolvidos e interessados, tais como empregados e empregadores. Ao mesmo tempo tenta-se identificar os principais atores capazes produzir mudanças no entendimento de ‘informalidade’. A partir do quadro conceitual aqui proposto concluo apontando para a necessidade de diálogo entre economistas, sociólogos e juristas para um melhor entendimento de ‘informalidade’. A existência de uma ampla legislação do trabalho no Brasil levou à separação cada vez mais evidente de dois princípios (eficiência e justiça), parcialmente incongruentes, mas mutuamente contaminados, que guiam o debate sobre mercado de trabalho. Definindo o problema: o significado de ‘informalidade’: Uma versão bastante simplificada da história do mercado de trabalho no Brasil pode ser resumida da seguinte forma: No início do século XX, após o período escravagista, começa a desenvolver-se o mercado de trabalho, no sentido moderno do termo, como a forma predominante de produção de bens e serviços. Durante as primeiras três décadas o trabalho transformou-se numa mercadoria livremente negociada, já que leis e contratos coletivos de trabalho eram quase inexistentes1. Durante as décadas de 30 e 40 o corporativismo de estado de Vargas estabeleceu um amplo código de leis do trabalho, o qual marcou o mercado de trabalho nacional por todo o século XX. A partir do então, constrói-se lentamente as noções de formalidade e informalidade. As estatísticas indicam um longo processo de formalização das relações de trabalho, o qual sedimentou-se principalmente através de leis federais e apenas secundariamente por meio de contratos coletivos. A legislação do trabalho estabelecia, cada vez mais detalhadamente, quais eram as regras mínimas de relações de trabalho justas. Salário mínimo, jornada de trabalho, férias anuais e muitos outros direitos foram definidos por lei. Acordos coletivos ocuparam papel bastante secundário nesse processo. Muitos direitos sociais também foram garantidos aos trabalhadores através da condição de trabalhador formal, conformando um típico `welfare` ocupacional2. Genericamente, os servidores públicos foram os primeiros beneficiados por contratos de trabalho formais e, consequentemente, direitos sociais a ele associados. Gradualmente, trabalhadores 1 2 Ver (Lamunier 1988). Ferrara (1993 – 3o Cap.) distingue dois sistemas de Estado de Bem Estar, ocupacional e universal. França e Suécia são respectivamente os mais representativos de cada um desses modelos. Alemanha, Áustria e Bélgica também são classificados como ‘ocupacionais’. Outros países como Suíça, Itália, Holanda e Irlanda são considerados modelos mistos. Informal, Ilegal, Injusto: percepções do mercado de trabalho no Brasil Eduardo Noronha – [email protected] urbanos não industriais foram incorporados. Wanderley Guilherme dos Santos descreveu essa história como a do desenvolvimento de uma “cidadania regulada”, isto é, um processo no qual as diversas categorias de trabalhadores obtiveram direitos sociais (e do trabalho) de acordo com sua posição no mercado. A última categoria a ganhar sua cidadania foi o dos trabalhadores rurais na década de 60. Assim, especialmente a partir de 1930, o mercado de trabalho brasileiro e a questão da informalidade só podem ser entendidos como resultados da própria construção da noção de formalidade. Em meados de 80 o retrato do mercado de trabalho já era claramente dual: a maioria dos trabalhadores, especialmente industriais, haviam sido incorporados ao mercado formal, bem como expressiva parte dos trabalhadores do setor de serviços. Além disso, o processo simultâneo de urbanização diminuiu significativamente o número de trabalhadores rurais em poucas décadas, os quais encontravam-se fundamentalmente no mercado informal. A invenção peculiar da carteira de trabalho teve variados significados simbólicos. Durante muito tempo funcionou (e marginalmente ainda funciona) como uma verdadeira carteira de identidade ou como um comprovante para a garantia de crédito ao consumidor, como prova de que o trabalhador esteve empregado ‘boas empresas’, de que é ‘confiável’ ou de que é capaz de permanecer por muitos anos no mesmo emprego. Hoje seu maior significado popular é o compromisso moral do empregador de seguir a legislação do trabalho – juridicamente isso não é verdade, pois empregadores que assinam a carteira podem na prática desrespeitar parte da legislação e os que não assinam podem sofrer processos por não o fazerem. De todo modo, assinatura em carteira torna mais fácil ao empregado a comprovação da existência de um contrato de trabalho. Enfim, popularmente no Brasil, ter ‘trabalho formal’ é ter a carteira assinada. Em janeiro de 1991 os empregados com carteira representavam 55,0% da força de trabalho3. Além desses, quase 20,0% eram autônomos registrados e outros 4,5% empregadores. Os empregados informais representavam 20%, o que significa que a idéia prevalecente de que a informalidade era (ou é) predominante no Brasil não era (ou não é) muito acurada. Até o final dos anos 80 a informalidade é percebida principalmente como um problema endêmico pela maioria dos especialistas. Porém, as mudanças das décadas anteriores levaram os especialistas e políticos a preverem (e desejarem) expressiva redução do mercado 3 Média de 6 áreas metropolitanas -- IBGE-PNAD. 4 Informal, Ilegal, Injusto: percepções do mercado de trabalho no Brasil Eduardo Noronha – [email protected] 5 informal. Havia uma suposição, pouco discutida, mas generalizada, de que a informalidade era um legado de uma economia semiindustrializada, cujo fim era um questão de tempo e desenvolvimento. Contudo, em termos de mercado de trabalho, é razoável supor que o início dos anos 90 representou uma ruptura no movimento linearmente crescente de formalização do trabalho. Desde então, tem crescido a informalidade. A proporção de empregados sem carteira cresceu 8,1%: de 20% em janeiro de 1991 para 28,1% em janeiro de 2001; ao mesmo tempo, a proporção de empregados com carteira decresceu 12,8% - veja gráfico abaixo. Neste paper questiona-se se tal crescimento representa de fato uma reviravolta na história de um aparente caminho seguro em direção à equalização do mercado de trabalho, ou apenas o resultado da má performance macroeconômica da América Latina nos anos 90, ou ainda o reflexo da crescente internacionalização da economia. Esse quadro não é específico do Brasil. Muitos países sofreram mutações similares. Para alguns analistas, trata-se de um novo tipo de informalidade o qual representa uma ruptura com a ‘sociedade assalariada’4. Novos processos de trabalho e tecnologias demandariam novas formas de contratos. A nova informalidade derivaria de tais mudanças. No Brasil ‘velhas’ e ‘novas’ formas de informalidade misturam-se, tornando particularmente difícil a identificação das causas de seu recente crescimento. A incorporação de diversos segmentos ao mercado formal ainda estava em processo quando ‘novas’ informalidade surgiram. Além disso, a coincidência do crescimento da informalidade em muitos países reforça os argumentos daqueles que a vêem como resultados do aumento da competição internacional por mercados. Países na periferia do mercado internacional sofreriam as conseqüências de formarem o elo fraco das cadeias produtivas internacionais (Gereffi 1995). Sua vantagem competitiva é o baixo custo da mão de obra levando os países em desenvolvimento a competirem entre si. Não se pretende aqui medir a ‘velha’ e a ‘nova’ informalidade, mas discutir um tema que antecede tal avaliação; i.e. os diferentes significados de informalidade enquanto algo oposto a formal. Argumento que esse conceito é demasiadamente obscuro para ser usado para caracterizar o mercado de trabalho ou dividi-lo em duas partes claramente distintas. 4 Ver (Castel 1998). Informal, Ilegal, Injusto: percepções do mercado de trabalho no Brasil Eduardo Noronha – [email protected] 6 População empregada (15 anos ou mais) por posição na ocupação (%). Média de 6 áreas metropolitanas Fonte: IBGE 60,0 50,0 40,0 Empregado c/ carteira 30,0 Empregado informal (sem carteira) Autônomo 20,0 Empregador 10,0 0,0 ja ja ja ja ja ja ja ja ja ja ja n/ n/ n/ n/ n/ n/ n/ n/ n/ n/ n/ 91 92 93 94 95 96 97 98 99 00 01 De jan. 1991 a jan. 2001 Informal, Ilegal, Injusto: percepções do mercado de trabalho no Brasil Eduardo Noronha – [email protected] 7 Se esse conceito teve alguma um significado claro foi devido a certa abordagem econômica que vinculava a informalidade a atividades periféricas não rentáveis. Contudo, o uso coloquial do termo no Brasil é claramente vinculado à legislação: o trabalho é formal se, e somente se, o trabalhador possuir carteira de trabalho assinada ou registro de autônomo ou status de empregador. Uma terceira interpretação do fenômenos ‘informalidade’ é a adotada pelos juristas: rigorosamente, não há contratos formais ou informais, mas apenas ‘legais’ ou ‘ilegais’. Portanto, há 3 diferentes fontes de interpretação do fenômeno, popularizado na economia e na mídia como ‘informalidade’. A primeira é justamente a interpretação econômica. Contrastando-a, juizes e procuradores, por seu próprio ethos profissional classifica como ilegal a maior parte das situações entendidas como ‘informal’ pelos economistas. Sob a influência de ambos (bem como dos institutos de pesquisa) a população tende a identificar ‘informal’ com a ausência de carteira de trabalho e, como decorrência, com ‘injusto’. Desta forma há 3 pares contrastantes de conceitos através dos quais são percebidos os contratos de trabalho: formal e informal; legal e ilegal; justo e injusto. Embora ‘informal’ tenda a ser identificado com ‘sem carteira’ e este com ‘injusto’ a aderência dos conceitos não é linear. Esse paper visa identificar os diferentes significados de trabalho ‘informal’. Uso o termo econômico ‘informal’ para genericamente identificar esse conjunto de fenômenos mal definidos, à medida que ‘ilegal’, ‘não formalmente regulado’ ou ‘injusto’ ou qualquer outro termo não são tradicionalmente utilizados com referência aos mercados. A interpretação econômica de informalidade Não pretendo discorrer sobre a vasta literatura sobre economia ou trabalho informal. Há diversas revisões da literatura desde a primeira referência a fenômeno numa pesquisa sobre a África elaborada pela OIT. Meu objetivo é argumentar que o termo informalidade, a despeito das tentativas de depurá-lo, é ainda por demais impuro para ser utilizado sem adjetivos. As ambigüidades do conceito derivam de seu nascimento. Sua origem não é estritamente acadêmica, mas institucional5 e o termo foi cunhado para retratar uma sociedade não tipicamente urbana e industrial. A despeito disso, o termo tem sido usado para descrever uma ampla gama de situações urbanas-industriais, bem como para classificá-las e mensurá-las através de metodologias diversificadas de institutos de estatísticas nacionais e internacionais. 5 Mario Theodoro lembra-nos a história peculiar do termo, criado pela OIT e disseminado na comunidade acadêmica e entre os institutos de pesquisa. Informal, Ilegal, Injusto: percepções do mercado de trabalho no Brasil Eduardo Noronha – [email protected] 8 Outros autores já criticaram a natureza obscura do termo. Alejandro Portes apontou diversas visões simplistas tais como as que identificam informalidade com algum tipo de pobreza ou que não distinguem práticas criminosas (por exemplo venda de produtos ilegais) de outras situações ilegais não criminosas ou não prevista pela lei. Inspirado pela sociologia econômica, Portes argumenta que a informalidade depende de redes sociais. Sem elos comunitários, os contratos informais não seriam possíveis. O controle de um grupo étnico sobre determinadas atividades informais encontradas em muitas cidades do mundo, é um bom indício de que mecanismos sociais são requeridos para selar contratos informais. Sem a lei ou outros mecanismos formais de compromisso (por exemplo contratos coletivos) as identidades culturais são a base da confiança mútua, evitando situações Hobbesianas de mercado: “...the extent to which such opportunities (to profit with informal activities) are transformed into informal enterprise depends on the capacity of communities to mobilize the social resources necessary to confront state enforcement and ensure smooth market transactions”. (Portes 1994), pp. 434. Apesar das contribuições de Portes penso que ainda há muitas ambigüidades à medida que em sua análise não há separação clara entre economia informal e trabalho informal. A origem do trabalho informal e as razões que explicam sua disseminação diferenciada em cada país diferem daqueles relacionadas à economia informal. Desde (Polanyi 1957) sabemos que o contrato de trabalho distingue-se de outros contratos do mercado. Além disso, definições como ‘assalariado’, ‘autônomo’, ‘empregador’ são em si por demais complexas para serem descritas sob o quadro conceitual genérico de economia formal e informal. Se acreditamos é sempre institucionalizado seja pela lei, pelos acordos coletivos ou por práticas sociais (as quais estão também repletas de normas implícitas), por que deveríamos nos referir a informalidade dos mercados? A menos que entendamos ‘informal’ como ‘sem regra escritas’, o mercado será sempre formalizado. Por que precisamos de um par de conceitos (formal versus informal) que pode ser melhor expresso por ‘legal’ / ‘ilegal’ ou ainda por ‘contrato escrito’ ou ‘verbal’? Argumento que em primeiro lugar precisamos distinguir entre trabalho e economia informal e, em seguida, ter instrumento para clarificar o status jurídico e contratual das normas do trabalho, bem como sua legitimidade. As pesquisas sobre informalidade são normalmente motivadas por mudanças nas estatísticas de emprego. Mas a metodologia através da qual os dados são coletados são ainda menos claras que as teorias de informalidade nas quais as metodologias são baseadas – ver Portes. Assim, a partir de mudanças estatísticas nunca sabemos exatamente que tipo de fenômeno estamos captando. Se estamos interessados no aumento ou decréscimo da informalidade medida pelas estatísticas através do tempo e do espaço, o que exatamente estamos querendo entender? Seria e economia de subsistência de países ou regiões subdesenvolvidos? Ou as inevitáveis, e mais que isso, desejáveis, práticas informais como cultivar uma horta apenas por prazer? Ou vender cerâmicas produzidas em Informal, Ilegal, Injusto: percepções do mercado de trabalho no Brasil Eduardo Noronha – [email protected] 9 casa como um hobby? Ou alugar a vaga na garagem de seu prédio? Ou estamos falando de engraxates e meninos que vendem produtos feitos em casa nos semáforos? Ou de seu ‘colega’, na mesma esquina , vendendo produtos de uma multinacional? Ou falamos de empregados domésticos? E, nesse caso, podemos agrupá-los com os empregados domésticos com carteira? São eles diferentes dos faxineiros das empresas formais? Ou estamos falando de trabalhadores altamente especializados que decidem abandonar a condição salarial e estabelecer uma atividade voltada para apenas uma companhia? Ou médicos com preços com e sem recibos? Ou comércio de drogas? A listas de situações descrita acima não pretende ser exaustiva; busca penas mostras a variedade de realidades descritas sob o mesmo conceito. A especificidade do trabalho informal na economia informal Não pretendo definir conceitos capazes de abarcar todas as situações acima mencionadas. Restrinjo-me a tratar do mercado de trabalho urbano. Tal restrição visa evitar a complexidade das relações de trabalho rurais tradicionais, ao menos num primeiro momento da pesquisa. Limito-me à ‘sociedade salarial’ e póssalarial’, deixando de lado outras formas tradicionais de dependência em relação ao contratante. Similarmente, considerando apenas a informalidade do trabalho evitamos a complexidade da economia informal em geral. A evidentes interdependências entre economia e trabalho informal não justificam tratá-las como um mesmo fenômeno. A economia informal só pode criar empregos informais, mas a economia formal freqüentemente abre postos de trabalho informais – ao menos em São Paulo empresas formais com trabalhadores informais ou com parcela deles sem e outra com carteira assinada. A tradicional distinção entre empregado e autônomo, bem como entre autônomo e empregador, baseia-se no grau de subordinação ou dependência. O primeiro normalmente trabalha de acordo com regras definidas pelo empregador, é pago por hora de trabalho (e não por tarefa ou resultado), tem horário de trabalho ao menos relativamente definido e deve estar disponível ao empregador e subordinar-se a apenas um empregador nas horas contratadas. Essas características variam de acordo com as atividades. O ‘tipo ideal’ de assalariado, o qual agrupa todas elas, está aparentemente em declínio por diversas razões. Mudanças econômicas e administrativas do mundo empresarial podem explicá-las. Mas, ao mesmo tempo que o contrato de trabalho típico declina, juristas vem tentando atualizar a noção de contrato de ‘emprego’ através da definição de um conjunto de traços que distinguiriam os contratos de trabalho dos contratos de serviço. Isso ocorre em países tanto de tradição legislada (ou corporativa) como contratual (ou pluralista). Discutindo a legislação e a tradição jurídica britânica (Pitt 1995) opõe os ‘contract of service’ (empregados) aos ‘contract for service’ (autônomos). Informal, Ilegal, Injusto: percepções do mercado de trabalho no Brasil Eduardo Noronha – [email protected] 10 Raramente poderíamos confundir o status de empregador com o de empregado, mas 'autônomos' podem ser confundidos com ambos. Se alguém trabalha apenas para uma empresa ou pessoa, a justiça do trabalho tende a interpretar isso como um contrato de trabalho. Similarmente, se um autônomo passa a contratar ajudantes com certa freqüência e continuidade, a interpretação judicial tende a ir na direção oposta. De todo modo, os princípios de dependência e subordinação, enquanto guias das definições jurídicas e sociológicas dessas três categorias, também indicam claramente a distinção entre o contrato de emprego e os contratos entre empresas, nos quais a subordinação não está suposta. O compromisso moral observado por Portes entre empresários dominicanos atuantes nos EUA não ocorreria entre cidadão Norte Americanos plenos (e não imigrantes ilegais) em relações de subordinação (e não contratantes de mesmo status) num mercado de trabalho urbano tal como o descrito por Portes. Não fosse a condição de migrante ilegal o compromisso com a informalidade (ou ilegalidade) compartilhadas duraria apenas enquanto durasse a relação de trabalho. A prática no Brasil de ex-empregados informais processarem seus empregadores quando demitidos exemplifica os limites do acordo informal prévio entre contratantes desiguais6. A permanência e reprodução de acordos informais parecem depender de duas variáveis: a convivência prévia de um grupo de pessoas em posição socialmente inferior ou estigmatizada e a percepção de uma certa igualdade `contratual’, de forma a prevenir que um processe o outro devido a relação que mantiveram. Nos contratos de trabalho informais nas grandes cidades, os contratantes compartilham uma condição ilegal, mas dentro de um contrato de subordinação. Portanto, a relação de dependência é uma variável chave para distinguir contratos informais do contrato de trabalho. Três (ou seis) possíveis explicações para o trabalho infomal Ao reduzir nosso objeto ao trabalho informal muitos problemas conceituais podem ser evitados. Porém, muitas das questões acima expostas permanecem. Abaixo, procuro identificar três explicações principais para o fenômeno (bem como três outras explicações ‘irmãs’), cada uma delas mais apropriada para explicar um determinado tipo de informalidade. A primeira delas afirma que a informalidade deriva da condição de um país em desenvolvimento, onde muitas atividades não são suficientemente atrativas para investimento capitalista. Essa era a típica abordagem no Brasil dos anos 60 e 6 Citar entrevista Informal, Ilegal, Injusto: percepções do mercado de trabalho no Brasil Eduardo Noronha – [email protected] 11 70, a qual freqüentemente classificava o trabalho informal como subemprego7. Essa abordagem é exclusivamente econômica à medida que o investimento é a variável chave. Denominaremos essa abordagem como da velha informalidade. A segunda, vê o trabalho informal como o resultado natural da busca por maximização de lucros por empresas em países com extensivo código de trabalho e elevado custo indireto da folha salarial, especialmente em momentos de aumento da competição internacional por mercados – aqui designada como informalidade neoclassica8. Por fim, outros argumentam que a informalidade resulta de mudanças nos processos de trabalho, novas concepções gerenciais e organizacionais e novos tipos de trabalho os quais não exigem tempo nem locais fixos – podemos nos referir a esse tipo como ‘nova informalidade’ ou ‘informalidade pós-fordista’. A ‘velha informalidade’ buscava explicar o mercado de uma economia em transição, que começava a gerar uma massa de desempregados e subempregados, os quais rapidamente se aglomeravam nas cidades industrializadas, recém vindos do campo. Essa era a agenda dos anos 60. A abordagem ‘neoclassica’ disseminouse num momento diferente no Brasil, e retardatário em relação a outros países: no fim dos anos 80 quando os direitos do trabalho foram reforçados pela nova Constituição e, simultaneamente, intensificou-se o comércio internacional. A análise ‘pós-fordista’ também apareceu no Brasil no fim dos anos 1990, mas, diferentemente das outras, é mais apropriada para explicar a informalidade da classe média (e até operária) que a informalidade ‘pobre’ dos ambulantes e similares. Mas para cada um desse tipos de explicação da informalidade encontramos uma outra abordagem ‘par’, relativamente similar no diagnóstico, porém bastante diferente nos seus pressupostos e implicações. A abordagem da ‘velha’ informalidade, embora clara e consistente em si mesma, pode facilmente gerar interpretações menos ‘puras’ e consistentes do tipo ‘informalidade como trabalho precário’. Em países com grandes diferenças regionais e que enfrentam rápidas mudanças sociais, incluindo fluxos migratórios, é bastante difícil distinguir o trabalho informal derivado da economia tradicional da informalidade das grandes cidades, com trabalhos ao mesmo tempo modernos e pobres, típicos de relações capitalistas recém-deterioradas. A versão ‘neoclassica’ tem como contraparte uma abordagem que pode muito bem ser denominada como jurídica, e que nos leva a conclusões opostas às da primeira. Sua semelhança é o foco na regulação do trabalho e sua principal diferença é a maneira como a versão neoclássica culpa o excesso de regulação pela expansão da informalidade e a versão jurídica culpa a falência do setor público em 7 8 O melhor exemplo dessa abordagem é (Hoffmann 1980). Revisões da literatura foram feitas por (Jatobá 1990), (Tokman 1990), (Mesa-Lago 1990), (Cacciamalli 1983). Não se pode dizer que os economistas brasileiros tenham uma interpretação particular da abordagem neoclássica. (Pastore 1994) é o mais citado autor dentre os economistas críticos da legislação do trabalho. Informal, Ilegal, Injusto: percepções do mercado de trabalho no Brasil Eduardo Noronha – [email protected] 12 garantir o cumprimento da lei9 frente às forças do mercado. A primeira quer evitar a ‘falência do mercado’ devido à força da lei; a segunda quer evitar a ‘falência da lei’ devido à força do mercado. Finalmente, a nova informalidade também conta uma vertente positiva e outra negativa. A primeira diria que o contrato de trabalho tradicional não é mais apropriado com as novas tecnologias e práticas gerenciais enquanto seus críticos diriam que a realidade não mudou, isto é, as características da relação de emprego seguem sendo as mesmas; mudanças ocorreram devido ao aumento da concorrência internacional e da preponderância de princípios neoliberais no cenário mundial, causando muitos problemas sociais como o desemprego ou empregos ‘precários’ – podemos designar essa versão negativa com abordagem da globalização. No Brasil as 3 (ou 6) explicações têm algum grau de acerto. A velha informalidade ainda está em vigência em diversas regiões ou atividades; o argumento da informalidade neoclássica tem solo fértil no Brasil, dado o modelo legislado de relações de trabalho; por outro lado, o contra-argumento ‘jurídico’ é forte, à medida que o direito do trabalho é a fonte do direito social no país, e não o oposto -- uma eventual ’desregulamentação’ teria expressivos impactos sociais. Além disso o debate sobre ‘o fim do trabalho’ (ou variações mais brandas como o ‘trabalho pós-industrial’) tem considerável efeito simbólico sobre a classe média, ávida por uma explicação sobre seu próprio desemprego ou subemprego, a despeito da discutível disseminação real de relações de trabalho substantivamente novas e diferentes. Essa é a complexidade do trabalho informal no Brasil: as abordagens da ‘velha’ ou ‘pobre‘ informalidade, ‘neoclássica’ ou ‘jurídica’, ‘nova’ ou informalidade da ‘globalização’, todas elas possuem ao menos um bom argumento no debate. Todavia, eu sustentaria que no Brasil o principal debate gira em torno do eixo dos argumentos ‘neoclássicos’ versus ‘jurídicos’, dado o enraizado conceito de contrato de trabalho no Brasil. Neste texto, deixo de lado alguns tipos de trabalho informal por não serem propriamente atividades econômicas, podendo ser melhor descritos como atividades semi-econômicas. Por exemplo, aquelas atividades que se situam entre o hobby e o artesanato (tricotar, pintar colecionar moedas raras) ou ligadas a padrões familiares tradicionais (por exemplo alugar um quarto sobressalente para amigos), ou atividades transitórias e oportunistas em termos renda (um estudante ensinando – ajudando?- um colega em troca de dinheiro ou de ajuda em outra 9 Dois bons exemplos de interpretações que mostram ‘anomias estruturais’ dos estados Latino Americanos para fazerem as instituições governamentais (incluindo a lei) operarem propriamente são os trabalhos de (Malloy 1993) e de (Santos 1992). Porém, suas análises não tratam dos mercados de trabalho mas dos Estados. Economistas do trabalho como (Camargo and Amadeo 1990) , (Amadeo and Camargo 1996) e (Noronha 1999) tentam evitam explicações unilaterais, pró ou anti-regulação – mas, no Brasil, o debate acadêmico ainda é muito restrito. Informal, Ilegal, Injusto: percepções do mercado de trabalho no Brasil Eduardo Noronha – [email protected] 13 disciplina, e muitas outras atividades semi-econômicas nas quais o ganho econômico representa uma proporção bastante residual no orçamento individual ou em termos da motivação de sua ação. Os limites entre tais atividades semieconômicas e as atividades econômicas não são facilmente observáveis empiricamente mas podem ser teoricamente definidas como aquelas (a) irrelevantes do ponto de vista do orçamento fiscal público e (b) assim percebidas socialmente – por exemplo, ninguém acha injusto que tais atividades não paguem impostos. Tratam-se de atividades não problemáticas, nem para o economista, nem para o jurista. São atividades encontradas tanto em sociedade tradicionais como pós-modernas; são, na verdade, um tipo de fenômeno que prova a impossibilidade da monetarização completa das relações sociais. O contrato de trabalho ‘justo’ segundo o senso comum. O quadro sobre trabalho informal não se completa sem o entendimento do senso comum10 a respeito de um contrato formal, informal ou ilegal. Por sua própria natureza, a percepção popular não pretende criar um conjunto lógico de conceitos para classificar os tipos de trabalhos; seus conceitos são dialógica e difusamente construídos, mas fortemente informados pelas noções especializadas de juristas e economistas divulgadas pela mídia. Em sociedades democráticas a lei é , por definição, justa. Se não o for devese mudar a lei, mas nunca desprezá-la. Contudo, popularmente, o típico trabalho informal pode ser entendido, se não como ‘justo‘, ao menos como ‘aceitável’, e certamente não é entendido como ‘ilegal’ a menos que se trate de crime (em geral comércio de produtos ilegais) e não apenas um contrato ilícito. Certamente o tema é complexo e será tratado em outro momento. Cito neste artigo apenas um exemplo: O trabalho infantil pode ser popularmente visto no Brasil tanto como ilegal, como apenas informal ou pode nem mesmo ser reconhecido como trabalho, dependendo de variáveis culturais e econômicas das regiões do país. De todo modo, o que importa aos propósitos deste artigo é explicitar o quanto a construção econômica do conceito de informalidade luta contra o quadro jurídico que define as noções de ‘contrato de trabalho’. Na visão popular, os contratos legais opõem-se aos informais e não aos ilegais11, expressando a mistura de influências dos dois sistemas classificatórios concorrentes. Ambos os contratos, ‘legais’ ou ‘informais’ são entendidos como Com as expressões ‘senso comum’ ou ‘visão popular’ refiro-me às interpretações não especializadas da formalidade ou informalidade; isto é, excluo fundamentalmente as interpretações dos juristas e dos economistas, mas incluo no senso comum as interpretações dos empregados e dos empregadores em geral. 11 Não é minha intenção mensurar a quantidade de trabalho ilegal no Brasil no sentido de ‘criminoso’, até porque não há dados disponíveis. Mas, é certo que as atividades criminosas representam a menor parte da informalidade no Brasil. 10 Informal, Ilegal, Injusto: percepções do mercado de trabalho no Brasil Eduardo Noronha – [email protected] 14 legítimos. A escolha ou aceitação de um ou outro demanda uma complexa avaliação a qual inclui noções de ‘ideal’, ‘legal’, ‘justo’, ‘aceitável’, ‘injusto’, ‘ilegal’ e ‘inaceitável’. Essas noções são essenciais para entender os limites e parâmetros das escolhas dos empregados. Há alguns indícios que nos permitem supor (algo a ser testado em pesquisas futuras) que as noções populares de contrato de trabalho ‘ideal’ são fortemente influenciadas pela legislação do trabalho. Os cidadãos dos centros urbanos têm como parâmetro do ideal o contrato em carteira; alternativamente, sonha-se com um trabalho autônomo, mas nunca com um contrato de emprego informal. O ‘ideal’ varia entre a segurança do contrato de trabalho (cujos inconvenientes são os deveres a ele associado) e a liberdade do autônomo – atividade arriscada especialmente para não-profissionais12. Entre esses dois ‘ideais’, muitos contratos informais são percebidos como ‘aceitáveis’, isto é, nem ‘ideal’ nem ‘intolerável’. Entretanto, para ser ‘aceitável’ é necessário algum pacote mínimo de direitos, os quais são freqüentemente inspirados na legislação do trabalho, tais como 13o salário, vale-transporte e férias anuais13. Assim, os contratos formais inspiram os informais. Além disso, aquilo que o empregado entende como aceitável não se distingue tanto da percepção do empregador como poderíamos ser levado a crer, seja através de abordagens que sobrevalorizam o conflito capital-trabalho ou daquelas que vêem os atores como maximizadores racionais de suas preferências. Empregados e empregadores assumem, conscientemente ou não, um conjunto mínimo de direitos e benefícios. As diferenças dessas percepções são provavelmente maiores na comparação entre regiões que entre empregados e empregadores de um mesmo município e categoria. Há forte correlação entre o respeito a um dispositivo legal e sua legitimidade social, cuja expressão é seu respeito também no mercado informal. A idéia do ‘inaceitável’ está ligada a esse piso de direitos (incluindo nível salarial). Os trabalhadores não agem como maximizadores de preferências. Como disse Kerr, “the idea of ‘satisficing’ (explains) some individual decisions better than maximizing, such as when workers take the first available job that meets their minimum expectations (...)” -- (Kerr and Staudohar 1994), pp. 77. São tênues os limites entre o ‘justo’, o ‘aceitável’ e o ‘inaceitável’, ou aceitável apenas em situações extremas. Por exemplo, um contrato informal pode ser entendido como ‘justo’ se o empregado percebe que o empregador tem boas razões para não regularizar a situação (por exemplo, uma micro empresa em dificuldades financeiras). Ao contrário, quanto mais o trabalhador percebe que a informalidade é um meio de gerar um retorno extra para a empresa, mais ‘injusto’ será o contrato. Embora a percepções do justo e do injusto, do aceitável e do Dados do Sebrae, analisados por Elson Pires, mostram a alta proporção de colapso de pequenas empresas com menos de um ano de existência (CEBRAP and Desep-CUT 1994). 13 Tais informações são baseadas em informações iniciais da pesquisa “Informalidade e justiça nas relações de trabalho” (CNPq) por mim coordenada e com o apoio de Celine Godoy. 12 Informal, Ilegal, Injusto: percepções do mercado de trabalho no Brasil Eduardo Noronha – [email protected] 15 inaceitável sejam informadas por amplo conjunto de valores morais e de éticas, dois princípios gerais compõem a linha divisória básica entre o justo e o injusto: Primeiro, não ter direitos iguais a outros empregados da mesma empresa em posto similares; segundo, perceber que ganhos extras dos empregadores são alcançados através da restrição de seus direitos. Uma situação bastante diferente ocorre nos contratos informais de serviço, os quais não implicam nem na perda de direitos trabalhistas, nem em vantagens obtidas pelo contratante às expensas do contratado. Através da informalidade ambos se beneficiam às custas do setor público ao se auto-isentarem da taxas Portanto, os limites entre o contrato informal ‘justo’ e ‘injusto’ dependem tanto de uma noção de piso de direitos, quanto da percepção de quem será lesado com o não cumprimento da lei. Um trabalho pode ser inaceitável para uma pessoa devido a muitos fatores, tais como as tarefas requeridas (por exemplo, atividades inferiores às qualificações não são bem vistas pelos empregados, especialmente as ‘degradantes’), as condições do ambiente de trabalho (ex. , ambientes sujos e insalubres), ou relações pessoais (chefes autoritários), entre outros. Considerando a complexidade da matéria, não se pretende discuti-la aqui, mas apenas mencionar a existência de cláusulas verbalmente acordadas nos contrato informais, sem as quais o emprego é considerado ‘injusto’ ou, mais que isso, insuportável. Certamente o piso mínimo de direitos e benefícios para um contrato ‘justo’ ou ‘aceitável’ varia de acordo com o local14, com o padrão contratual aí prevalecente, com as experiências prévias de trabalho do indivíduo e de sua família, bem como frente às expectativas profissionais, o que por sua vez é definido por muitas outros elementos das histórias individuais, incluindo variáveis como sexo e idade. As linhas divisórias entre contrato de trabalho ‘ideal’, ‘justo’, ‘aceitável’ ‘pessoalmente inaceitável’, ‘injusto’ e ‘socialmente inaceitável’ são definidas por um misto de valores socialmente definidos (muitos deles de natureza tradicional, não problematizados), razões instrumentais individuais e familiares, e éticas. Um trabalho pode ser aceitável e injusto, ou ao contrário, inaceitável para um indivíduo, mas socialmente ‘justo’. O par ‘justo’ e ‘injusto’ diz respeito à esfera pública, enquanto as noções de ‘ideal’, ‘aceitável’ e ‘inaceitável’ referem-se às preferências individuais. As noções de justiça pública afetam as preferências individuais mas não as definem de forma linear ou mecânica. Embora a idéia do ‘socialmente aceitável’ não seja correlata de ‘justo’, dada a resignação pragmática à realidade do mercado de trabalho (expressa na frase: um emprego nunca é justo, mas assim é a vida), a idéia do socialmente inaceitável 14 Por ‘local’ refiro-me a noções de justiça típicas de uma região (país, estado, etc.), uma área (ex., emprego, saúde, etc.) ou uma instituição específica (uma empresa, um hospital, etc.) – veja o trabalho de (Elster 1992). Informal, Ilegal, Injusto: percepções do mercado de trabalho no Brasil Eduardo Noronha – [email protected] 16 tende a ser próximo de ‘injusto’. Assim, para o entendimento da forma como o ‘homem comum’ enfrenta o conflito entre a abordagem jurídica (ilegal X legal) e a econômica (informal X formal) é mais apropriado investigarmos a noção do ‘socialmente inaceitável’ que qualquer outro termo acima mencionado. Mas, ainda assim, num país com regiões que ainda enfrentam a transição de uma economia de subsistência para uma economia moderna e urbana, qualquer uma dessas noções está em permanente e rápida mutação. Uma rápida transição da ‘velha’ para a informalidade da ‘globalização’ Uma história rápida e simplificada de uma transição recente de um mercado de trabalho de um estado ‘pobre’ no Brasil pode ser assim resumida: Comparativamente, o Ceará é um estado pequeno, pobre, onde uma considerável parcela da população ainda vive de uma economia de subsistência e, muitas vezes, trocam mercadorias sem a referência monetária – embora Fortaleza (e muitos outros municípios) seja uma cidade turística, moderna, e com amplo mercado formal de trabalho. No final dos anos 80, o governo estadual iniciou um programa para atrair indústrias e desenvolver a economia local. Para isso, dois incentivos principais foram criados: primeiro, incentivos fiscais para a instalação de indústrias de mão de obra intensiva, os quais seriam mais generosos quanto mais distante de Fortaleza fossem as propostas de instalação das indústrias. Os incentivos fiscais visavam à instalação de indústrias nas áreas secas do Estado. O segundo atrativo era a permissão de criação de ‘cooperativas’, nas quais os trabalhadores poderiam vender o produto de seus trabalhos para indústrias de exportação (principalmente de calçados). O governo estadual incentivou a formação de tais ‘cooperativas’ somente para as indústrias exportadores argumentando que a redução do custo da força de trabalho era a forma mais eficiente de enfrentar a competição internacional em produtos de mão de obra intensiva. Cedo, os sindicatos estaduais denunciaram as ‘novas cooperativas como ‘falsas cooperativas’15 e, apesar da grande disputa criada em torno do tema, com o passar dos anos tornou-se claro que os trabalhadores ‘cooperados’, na grande maioria dos casos eram, rigorosamente, empregados das empresas exportadoras. Inspetores do trabalho16, procuradores públicos do trabalho17 e juizes18 recolheram evidência e Lei 8.949/94. Veja entrevistas realizadas pela pesquisa ‘Desenvolvimento e Upgrading de Cadeias Produtivas e Relações de Trabalho: A Cadeia de Calçados’, desenvolvida por Eduardo G. Noronha e Lenita Turchi. O relato sobre o caso do Ceará baseia-se essencialmente nessa pesquisa. 17 Veja artigo de José Antonio Parente da Silva in ‘Diário do Nordeste’, 20/10/1997. 15 16 Informal, Ilegal, Injusto: percepções do mercado de trabalho no Brasil Eduardo Noronha – [email protected] 17 argumentaram nesse sentido. Atualmente há processos jurídicos (já executados ou em andamento) que visam a transformação dos trabalhadores ‘cooperados’ em empregados CLTistas. No debate público, o governo estadual e empresários exportadores uniram-se na defesas das ‘cooperativas’ baseados em argumentos econômicos, admitindo indiretamente a inconsistência legal de seus argumentos e advogando a mudança da legislação nacional. Sustentavam que parte da população favorecida pelo programa nunca havia recebido qualquer salário, que o padrão de consumo e de vidas das populações locais havia melhorado consideravelmente, que a instalação de indústrias nessas regiões jamais teria ocorrido sem tais incentivos; em suma, superar a condição de pobreza seria mais relevante que observar a lei. Nos primeiros anos do programa, os inspetores do trabalho da DRT local não atuaram sobre as ‘novas cooperativas’ – para os propósitos iniciais dessa discussão, não importa se isso ocorreu por desatenção, tolerância, conivência ou simplesmente porque não foram chamados a agir19. Mais tarde, denúncias de sindicatos e procuradores (muitas vezes disfarçadamente aplaudidos por empresários não favorecidos pelas ’cooperativas’) levaram os inspetores locais a notificarem as empresas e informarem o Ministério do Trabalho. Os trabalhadores das cooperativas rapidamente aprenderam que aquele arranjo não respeitava a lei. O sentimento de ter sido ‘abençoado’ por indústrias de exportação no meio do mais seco sertão e de ter tido seu poder de compra elevado foi, no período de 10 anos, substituído pelo sentimento de ser excluído de direitos disponíveis para a maioria (vale lembrar, ainda a maioria) dos trabalhadores brasileiros. Pessoas que costumavam viver a ‘velha informalidade’ até o fim dos anos 80 experimentaram na década seguinte a ‘informalidade da globalização’ (e muitos dizem que estavam satisfeitos e agradecidos por isso20) e agora reclamam por viverem numa situação ilegal – a ‘informalidade jurídica’. Veja artigo de Almir Pazzianotto Pinto in ‘Correio Brasiliense’, 4/6/1997. Os inspetores das DRTs podem agir após (1) uma denúncia normalmente feita por trabalhadores ou sindicatos (2) um programa de ação definido pelo Ministério do Trabalho e do Emprego – ver (Mannrich 1991). 20 Ver entrevistas da pesquisa ‘Desenvolvimento e Upgrading de Cadeias Produtivas e Relações de Trabalho: A Cadeia de Calçados’, ( IPEA). 18 19 Informal, Ilegal, Injusto: percepções do mercado de trabalho no Brasil Eduardo Noronha – [email protected] 18 Considerações finais A partir dos relatos e argumentos acima, pode-se formular a hipótese de que juizes, procuradores e inspetores do trabalho são figuras chaves na definição (e mudança) da noção de contrato de trabalho, o que por sua vez, é um conceito central no debate, entre o mundo do direito e o mundo do mercado, sobre mercados de trabalho ‘formal’ e ‘informal’. Metodologicamente, os inspetores do trabalho são os mais expressivos atores do dilema entre mercado e lei, pois mais que qualquer outro grupo eles sofrem a dupla pressão: uma de sua formação ‘jurídica’21, bem com da natureza própria de suas tarefas profissionais; outra de seu contato direto com empresários, os quais justificam suas práticas ilegais a partir das pressões econômicas a que são expostos. A experiência dos inspetores sobre a informalidade resume o dilema entre a abordagem neoclássica (o excesso de normas é responsável pela falência dos mercados) e a ‘jurídica’ (o ‘excesso de mercado’ é responsável pela falência da lei), especialmente em regiões do país em transição da ‘velha’ informalidade para a da ‘globalização’. O trabalho informal é um grande problema no Brasil, mas o trabalho formal também é fortemente enraizado no país, até porque ele é condição para o acesso aos principais direitos sociais. No país, o contrato de trabalho é matéria de lei, mais que de contrato coletivo. Juizes do trabalho freqüentemente criticam a detalhada legislação nacional, mas a maioria deles não pretende que se abandone os princípios subjacentes à noção de ‘empregado’, particularmente a noção de subordinação. Economistas tentam abstrair a legislação trabalhista e propor um amplo programa de ‘desregulamentação’, mas eles têm pela frente um modelo de relações de trabalho não contratual, o que significa que a condição de ‘assalariado‘ é a base da cidadania. Sindicatos tentam manter o conjunto de direitos CLTistas e Constitucionais, mas para fazer valer seus argumentos eles precisam de propostas que solucionem a informalidade endêmica. Políticos locais podem tentar evitar a lei e incentivar a criação de novos padrões contratuais, mas eles vivem num estado federado onde a lei trabalhista sempre foi nacional. A legislação do trabalho é uma referência nacional e assim, a despeito das práticas, tradições e realidades regionais, a noção popular de ‘contrato justo’ tem sido influenciada pelos princípios legais, rapidamente assimilados pelas populações e, por outro lado, pela noção de eficiência que o mercado impõe com o aumento da competição nacional e internacional. Se os argumentos e as histórias relatadas neste paper conformam um retrato razoável do problema da informalidade no Brasil, penso que um programa de pesquisa sobre o tema deve, em primeiro lugar clarear as distinções entre economia informal e trabalho informal, e ,em seguida, investigar as noções em 21 Não necessariamente o fiscal do trabalho é formado em direito, mas ele é treinado a compreender e atua segundo o texto da lei. Informal, Ilegal, Injusto: percepções do mercado de trabalho no Brasil Eduardo Noronha – [email protected] 19 disputa sobre o tema, em duas direções: primeiro, distinguindo os tipos de informalidade que estamos tentando explicar bem como suas causas; segundo, distinguir a visão dos economistas, dos juristas e o ‘senso comum’ de contrato de trabalho ‘justo’. Sem o entendimento do ‘senso comum’ isto é, do cidadão não especialista, as abordagens jurídicas e econômicas perdem seu sentido principal. Um programa de pesquisa precisa entender as influências mútuas que o princípio econômico de eficiência exerce sobre a interpretação do contrato de trabalho, bem como os limites impostos pelas noções de legitimidade nos contratos econômicos. Bibliografia citada Amadeo, E. and Camargo, J.M. 1996. 'Instituições e o Mercado de Trabalho no Brasil' in Camargo, J.M. (ed.) Flexibilidade do Mercado de Trabalho no Brasil. Rio de Janeiro: Ed. Getúlio Vargas. Cacciamalli, M.C. 1983. 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