6º COLÓQUIO INTERNACIONAL MARX E ENGELS GT 2: ‘OS MARXISMOS’ “TEORIAS MARXISTAS DO RACISMO: SÍNTESE DO DEBATE CONTEMPORÂNEO.” Pedro C. Chadarevian1 Diferentemente de outros fenômenos econômicos, políticos e sociais, a análise crítica do racismo carece de uma obra de referência universal. Esta é uma das razões que têm dificultado o estabelecimento de um consenso sobre a ação política mais adequada para SE enfrentar o problema da discriminação nas sociedades contemporâneas. A crítica do racismo, apesar de já estar presente no marxismo desde o século XIX2, só encontraria uma versão teoricamente mais elaborada no pós-II guerra mundial, quando passa-se a analisar o racismo como uma forma específica de opressão, e a manutenção de desigualdades raciais no mercado de trabalho passam a ser entendidas como o resultado da ação de mecanismos de discriminação. Para se entender como foi possível chegar a este nível de discussão teórica, será necessária uma breve incursão pela gênese da análise marxista alternativa do problema racial. Deve-se a Trotsky o primeiro impulso no debate sobre a questão do negro nos Estados Unidos, chamando a atenção das organizações ligadas à IV Internacional pela falta completa de implicação na crítica ao racismo. A principal destas organizações é o Socialist Workers Party (SWP), fundado em 1938, e muito influente no pós-guerra até os anos sessenta3. A questão era que política adotar para os negros diante da ação progressista e de grande impacto que vinha defendendo o Partido Comunista daquele país (CPUSA) às vésperas da segunda grande guerra. Já a partir de 1939, o programa do SWP procura fazer uma análise objetiva dos mecanismos que condicionam o negro estadunidense aos mais baixos estratos da sociedade, enfatizando não tanto a sua especificidade em termos culturais, mas, sobretudo, com relação à “intensidade de sua exploração” e à “brutal discriminação (...) imposta pelo capitalismo (...) para aumentar os lucros através do barateamento da força de trabalho, e para enfraquecer os trabalhadores e camponeses através da incitação de rivalidades raciais”4. Na avaliação dos teóricos do partido, o “governo e os partidos capitalistas [partidos republicano e democrático] ajudam os patrões a segregar e discriminar o povo negro”5. Ao longo dos anos quarenta, este esforço teórico se mantém, e, possivelmente, o trabalho mais expressivo deste período é uma avaliação da proletarização do negro nos EUA como resultado do impacto da industrialização do período da II guerra mundial. Neste estudo, a autora atesta que, em regra geral, aos negros são oferecidos tão somente postos nos setores de trabalho pesado, como nas minas e na siderurgia. Conclui com uma crítica à visão segundo a qual a industrialização e a urbanização resolveriam o problema do negro, submetido, agora pela burguesia, a uma dupla opressão, “como trabalhador e como nacionalidade oprimida”6. 1 Professor do Curso de Ciências Econômicas da Universidade Federal de São Carlos (Campus Sorocaba). Doutor em Economia pela Universidade de Paris 3 – Sorbonne Nouvelle. 2 Veja-se Pedro C. Chadarevian, “Os precursores da interpretação marxista do problema racial”, Crítica Marxista, n. 24, 2008. 3 O SWP entraria em decadência nos anos setenta, após sofrer uma série de dissidências internas. Nos anos oitenta, a organização rompe com a IV Internacional. Consultar um relato deste processo Barry Sheppard, The Party: Volume I: The Sixties, A Political Memoir: The Socialist Workers Party 1960-1988, Resistance Books, Broadway, 2005. 4 George Breitman (org.), Document on the Negro struggle Bulletin of Marxist Studies, Pioneer Publishers, Nova Iorque, 1962, p. 24. 5 Albert Parker, “The Negro march on Washington”, Fourth International, vol. 2, n. 5, junho, 1941. 6 Raya Dunyaveskaya, “The industrialization of the Negro”, Fourth International, jan-fev. 1948. Ver igualmente George Breitman, “Negro ‘progress’: what the facts show’, Fourth International, vol. 13, n. 6, nov-dez, 1952; e 1 Se esta série de discussões internas no interior do movimento trotskista estadunidense a respeito do problema do negro denotava seu engajamento antiracista, ela refletia, por outro lado, a ausência de um trabalho teórico aprofundado sobre o racismo. Uma tentativa de preencher esta lacuna seria feita nos anos cinquenta, quando é publicada, em documento interno do SWP, uma das principais análises marxistas da questão negra até aquele momento no país, ao lado das contribuições de Du Bois e de Oliver Cox. Neste estudo – que representa uma posição minoritária no interior do partido – a crítica do autor dirige-se à concepção liberal do problema racial, liderada por Gunnar Myrdal, pela qual, na origem do problema, estaria um desvio moral da sociedade: o preconceito. O autor procura desconstruir este argumento, ao mostrar que o verdadeiro problema não é o preconceito, subjetivamente determinado, e sim o racismo institucionalizado na sociedade estadunidense. Frasier esforça-se, além disso, em definir o caráter específico da opressão racial7. A análise do racismo no movimento trotskista brasileiro Os trotskistas no Brasil se destacam, desde o início, pela elaboração de uma crítica marxista pertinente da realidade econômica nacional. A questão nacional, ou o caráter do desenvolvimento capitalista no país, suas consequências políticas e sociais internas, bem como a forma de relação com os países desenvolvidos, formaram, naqueles primeiros momentos, o eixo principal da análise econômica dos autores da seção brasileira da IV Internacional. Contrariamente, portanto, aos comunistas, aqui o modo de produção no campo era entendido como capitalista, e não feudal. 8 Nos anos 1940 surge um primeiro partido trotskista independente de caráter nacional no Brasil, o Partido Socialista Revolucionário (PSR), considerado pela IV Internacional como a sua seção brasileira9. É no PSR que militaria, nos anos quarenta, Florestan Fernandes, um dos principais nomes da sociologia brasileira, que se destacou, principalmente, por sua análise da questão racial. Sua contribuição para a crítica marxista do racismo é, contudo, muito controversa, dada a forte influência que exerceria a sociologia webberiana sobre o seu pensamento. O movimento trotskista brasileiro entra no período do pós-guerra profundamente dividido. A maior parte do grupo que se havia aglutinado em torno da LCI passa a militar em um movimento que se destacaria pela publicação de um periódico marxista, o Vanguarda Socialista, e que defendia a fundação de um partido socialista democrático no país, sem ligação com a burocracia trotskista internacional10. Assim, durante o ano de 1946, em uma série de artigos do Vanguarda Socialista, um autor procura fazer um balanço da participação dos negros na política brasileira. A argumentação principal denuncia o perigo de cooptação de figuras do movimento negro em “partidos burgueses”, e clama pela independência dos negros com relação ao sistema político tradicional, referindo-se especialmente à participação de negros no Partido Trabalhista Brasileiro11. Com relação à situação sócio-econômica dos afrobrasileiros, o mesmo autor afirmaria que o “problema do negro é uma questão de classe social”, e que o “desaparecimento do preconceito de cor [só será] possível com o advento do regime “When anti-Negro prejudice began”, Fourth International, vol. 15, n. 2, spring, 1954. 7 R S. Frasier, “The Negro struggle and the proletarian revolution”, Discussion Bulletin SWP, A-19, ago, 1954, p. 17-8. 8 Ver Fúlvio Abramo e Dainis Karepovs (org.), Na contracorrente da história. Documentos da Liga Comunista Internacionalista (1930-1933), Editora Brasiliense, São Paulo, 1987, p. 69. 9 Osvaldo Coggiola, “Trotskyism in Brazil (1928-1964)”, disponível no sítio www.marxists.org 10 Osvaldo Coggiola, “Trotskyism...”, op.cit. 11 Imperador Jones, “O negro e o socialismo”, Vanguarda Socialista, n. 57, 27/09/1946 e n. 63, 08/11/1946. O pseudônimo do autor – ao que tudo indica seria Luis Lobato – faz referência à peça em cartaz à época no Rio de Janeiro, do Teatro Experimental do Negro, dirigido por Abdias do Nascimento. 2 socialista.”12 A avaliação pode parecer simplista, mas denota um posicionamento radicalmente oposto com relação à leitura da questão negra propagada pelo PCB, que preferia associar o preconceito racial às reminiscências feudais da economia brasileira e defendia, portanto, uma solução reformista para o problema. No ano seguinte, o periódico faz campanha pela candidatura à assembléia de Sofia de Campos Teixeira, “candidata negra e socialista”13. A partir de 1974, o trotskismo passaria novamente a exercer uma influência política e teórica mais perceptível no Brasil. Integrantes oriundos de diversas organizações clandestinas de resistência ao regime militar fundariam, em 1978, a Convergência Socialista (CS), sob a bandeira de uma das tendências da IV Internacional14. A CS é talvez o movimento trotskista com a melhor estrutura no período da abertura política (1974-1984), contando com grande número de militantes e diversas publicações nas quais a questão racial aparece com freqüência, fruto da militância de negros no grupo trotskista, que em 1978 participariam igualmente na fundação do MNU (Movimento Negro Unificado). A discussão teórica no interior deste movimento trotskista dá lugar, assim, a uma série tentativas de se apreciar de forma crítica o problema racial brasileiro. A visão predominante procurava mostrar o caráter específico da opressão, diferenciando-a da lógica da exploração econômica, ao defini-la como: (...) uma categoria distinta da exploração econômica. a partir de determinadas desigualdades a um grupo oprimidas pelos homens porque são mulheres, por oprimidos por serem judeus; os negros por serem ultrapassa os limites de classe (...).15 Que a opressão é por em desvantagem social. Por exemplo, as mulheres são uma diferença sexual; os judeus são da raça negra. É um fenômeno que Especificamente com relação à opressão racial, a preocupação dos autores esteve em geral focada na reprodução dos mecanismos, ideológicos ou concretos, que a sustentam, no âmbito de uma economia capitalista: A ideologia racista nos países atrasados do desenvolvimento capitalista cumpre (...) o papel de selecionar aqueles que terão acesso aos benefícios do sistema econômico-político. (...) [A] luta pelo fim da ideologia racista é contra a dominação capitalista e pela união dos setores das classes dominadas. Em outras palavras, a luta contra o racismo implica na superação, através da negação, não só do sistema econômico capitalista, mas da ideologia racista como elemento antidemocrático da estrutura social brasileira.16 Neo-marxismo e racismo A tradição marxista acadêmica estadunidense de análise do problema racial receberia um forte impulso, nos anos sessenta, com o estudo desenvolvido por Baran e Sweezy no qual se descreve o processo de superexploração dos trabalhadores negros como uma das consequências naturais da dinâmica monopolística de acumulação de capital que havia assumido a economia estadunidense no pós-guerra. Partindo de uma crítica ao paradigma econômico liberal dos estudos das relações raciais, que tinha em Myrdal o seu precursor, os autores contestam a crença difundida pela qual a modernização da economia implicaria em uma melhora na 12 Imperador Jones, “O negro e o socialismo”, Vanguarda Socialista, n. 57, p. 6. Imperador Jones, “Candidata negra e socialista”, Vanguarda Socialista, n. 71, 03/01/1947. Vimos que o PCB teve negros como candidatos a cargos elegíveis, mas nunca para defender especificamente a causa negra, ou em nome do movimento negro. 14 Ricardo de Azevedo, “Qual é a tua, Convergência? (Entrevista com Valério Arcary)”, Teoria e Debate, n. 10, 1990. 15 Patricia Gomes, “Pela defesa intransigente da mulher trabalhadora”, Convergência Socialista – Caderno de formação n. 6, São Paulo, 1980, p. 36. 16 André Bocatto, “A questão nacional”, Versus, n. 19, abril-maio, 1978, p. 40. 13 3 condição dos negros dos EUA, e preferem explicar o racismo como o resultado da ação de forças sociais e de mecanismos institucionais. Dentre estes, destacam-se: interesses privados da burguesia e dos brancos das classes médias e altas, que se beneficiam da manutenção de um “subproletariado segregado”; a lógica competitiva e meritocrática do mercado de trabalho que intensificam as tensões raciais; o próprio desenvolvimento do capitalismo monopolista, cujo aumento da mecanização tende a diminuir a demanda por trabalho pouco qualificado, aonde se concentra grande parte dos trabalhadores negros17. De acordo com a abordagem neo-marxista o racismo se apresenta, na economia capitalista contemporânea, como um fenômeno que permite, essencialmente, o desenvolvimento de uma força de trabalho etnicamente diferenciada das classes dominantes. A importância desta “etnização” da força de trabalho, como define Immanuel Wallerstein, ou da “hierarquização racial” de uma sociedade, pode ser medida pelos seus sintomas mais visíveis no mundo do trabalho. O primeiro destes sintomas é que a parcela da população discriminada tende a apresentar uma taxa de desemprego e de subemprego mais elevada que entre os trabalhadores brancos. Assim, as pessoas nesta condição constituem importante exército de reserva, ajudando a manter a taxa média de salário em níveis reduzidos18. O segundo sintoma da divisão racial do trabalho que se manifesta na economia é uma remuneração da força de trabalho não branca abaixo dos salários de brancos em todas as categorias ocupacionais, o que revela a condição de superexploração a que está submetido este segmento da classe trabalhadora. Nos Estados Unidos, a sub-representação de negros nas classes dominantes tem levado autores marxistas a afirmar que este é o resultado da atuação de “mecanismos que alocam as pessoas em categorias de classe”19. Porém, de uma maneira geral, não há uma preocupação em explicitar teoricamente o funcionamento de tais mecanismos de discriminação, apenas de deduzir sua existência a partir dos efeitos que eles implicam sobre a estruturação da força de trabalho negra e mestiça. Esta dificuldade está igualmente presente dentre os autores brasileiros que procuraram teorizar a questão como trataremos mais adiante. Esta definição de racismo enquanto processo de hierarquização racial da sociedade, pode ser encontrada igualmente em diversos autores brasileiros, como em Costa Pinto, que é o primeiro a descrever o problema a partir desta perspectiva: (...) no Distrito Federal [RJ], mais visivelmente do que em qualquer parte, circunstâncias históricas particulares fizeram com que estratificação de raça e estratificação de classe não sejam duas realidades independentes – mas apenas dois ângulos pelos quais pode ser observada a configuração única e total das relações de classe e raça no Brasil.20 Alguns anos mais tarde, Ianni procuraria associar o racismo com a acumulação de capital, ao afirmar que: Todo país produz uma forma singular de hierarquização racial da sua população. (...) Tanto assim que não é por mero acaso que em cada país o exército industrial de reserva tende a ser formado pelos membros das raças discriminadas, ou subalterna. Em boa parte, a lógica da discriminação racial guarda alguma congruência com a lógica das relações de produção. 21 17 Paul A. Baran and Paul M. Sweezy, Monopoly capital: an essay on the American economic and social order, Pelican Books, Londres, 1968 [1966]. 18 Ver Étienne Balibar, Immanuel Wallerstein, Race, nation, classe, La Découverte, Paris, 1997, p. 49. 19 Erik Olin Wright, “Marxist class categories and income inequality”, American Sociological Review, vol. 42, n. 1, 1977, p. 49. 20 L. A. Costa Pinto, O negro no Rio de Janeiro. Relações de raça numa sociedade em mudança, Companhia Editora Nacional, São Paulo, 1953, p. 65. 21 Octavio Ianni, op. cit., p. 168. 4 Gorender retoma esta análise mais recentemente, ao conceber o racismo como uma forma de hierarquização racial dos trabalhadores, conforme se lê na passagem abaixo: A relação intrínseca entre o racismo atual e o capitalismo é uma tese que traz importantes esclarecimentos. Os capitalistas agrários e industriais, em nosso país, criaram o exército de reserva às custas da imigração européia e asiática nas regiões de forte dinamismo econômico e fizeram dos negros o que, a meu ver, constitui uma reserva da reserva. Classificar as pessoas segundo a cor tem sido vantajoso ao funcionamento do capitalismo, pois mantém a reserva de segunda linha dos discriminados, sempre disponível para o trabalho em troca de salários rebaixados.22 No paradigma crítico que analisamos aqui, procura-se evidenciar que o racismo se perpetua devido à existência de mecanismos de discriminação racial, presentes em diferentes esferas da sociedade, e que consistem em ações concretas resultando em barreiras à ascensão do negro. Tais mecanismos parecem pertencer a duas categorias distintas, referindo-se à esfera não-econômica (como a justiça, a educação, a política, a habitação e a vida social) de um lado, e, de outro lado, à esfera econômica. Com relação aos mecanismos de discriminação no mundo do trabalho, nota-se um esforço dos autores do paradigma marxista contemporâneo para identificá-los e, mais especificamente, apontar a sua relação com o processo de acumulação de capital. Estes mecanismos parecem atuar essencialmente interferindo na remuneração e na possibilidade de mobilidade do trabalhador negro. Moura, tratando dos mecanismos de discriminação de maneira mais geral, procura mostrar o seu impacto sobre a capacidade de ascensão econômica do negro na sociedade: (...) o negro brasileiro, (...) além de ter vindo da situação inicial de escravo, pertence a uma etnia que possui uma determinada marca, segundo os padrões brancos, o problema se agrava e surge, em consequência, uma série de barragens e razões justificatórias, capazes de impedir a sua ascensão social massiva.23 Mais especificamente, o autor considera tais mecanismos de “barragem étnica” no mercado de trabalho como “estratégias de seleção estabelecidas para opor-se” à ascensão do negro24, constituindo um “processo de peneiramento exercido pela sociedade competitiva”25. Hasenbalg, em sua crítica às teses da herança da escravidão como principal fator de marginalização do negro, aponta que as desigualdades raciais, na verdade, “refletem principalmente a operação contínua de princípios racistas de seleção social” e práticas discriminatórias que operam por meio de “mecanismos sociais que obstruem a mobilidade ascendente das pessoas de cor”26. A operacionalidade dos mecanismos seria assim detalhada por Hasenbalg: (...) a raça, como traço fenotípico historicamente elaborado, é um dos critérios mais relevantes que regulam os mecanismos de recrutamento para ocupar posições na estrutura de classes e no sistema de estratificação social. Apesar de suas diferentes formas (através do tempo e espaço), o racismo caracteriza todas as sociedades capitalistas multi-raciais contemporâneas. Como ideologia e como conjunto de práticas cuja eficácia estrutural manifesta-se numa divisão racial do trabalho, o racismo é mais do que um reflexo epifenomênico da estrutura econômica ou um instrumento conspiratório usado pelas classes dominantes para dividir os trabalhadores.27 22 Jacob Gorender, A escravidão reabilitada, Editora Ática, São Paulo, 1991, p. 203. Clóvis Moura, O negro. De bom escravo a mau cidadão?, Conquista, Rio de Janeiro, 1977, p. 29. 24 Clóvis Moura, Sociologia do negro brasileiro, Editora Ática, São Paulo, 1988, p. 8. 25 Idem, p. 51. 26 Carlos Hasenbalg, Discriminação e desigualdades raciais no Brasil, Graal, Rio de Janeiro, 1979, p. 198-9. 27 Carlos Hasenbalg, Discriminação..., op. cit., p. 118. 23 5 O próprio movimento negro tem apontado, desde sua refundação no final dos anos setenta, a seleção racial como um dos principais mecanismos que permitem perpetuar as desigualdades entre brancos e negros na economia brasileira: Dada a discriminação racial nas relações de trabalho, o Negro é transformado em exército de mão-de-obra barata nos serviços que exigem força física (...). Quando (...) consegue especializar-se, ele é rejeitado, na maioria das vezes, pelas empresas, na seleção de pessoal.28 Outra categoria de mecanismos de discriminação comumente identificada na literatura consiste na superexploração da força de trabalho negra, levando à manutenção histórica das desigualdades raciais de salário no mercado de trabalho. Hasenbalg procura descrever assim o seu funcionamento: (...) a população negra tem sido explorada economicamente (sic); os exploradores foram principalmente classes ou frações de classe economicamente dominantes brancas, indo de rentistas de terra até o capital monopolista.29 A ocorrência deste mecanismo foi melhor descrita por Moura e Gorender, como se pode ver nas passagens abaixo: (...) em determinadas condições históricas, o capitalismo não se inibe em herdar preconceitos e práticas racistas de formações anteriores. Dessa maneira, conserva e adapta tais preconceitos e práticas ao próprio funcionamento socioeconômico intrínseco e consegue aumentar as possibilidades de exploração da força de trabalho.30 As classes dominantes, através de uma série de mecanismos de defesa, inconscientes mas atuantes, conseguem, com o preconceito de cor, manter o equilíbrio de mão-de-obra, garantindo alta taxa de mais-valia e precatar-se contra possíveis reivindicações parciais ou globais dos trabalhadores que elas julgam mais radicais. A raiz do preconceito é justamente a essência competitiva da atual sociedade brasileira.31 Porcaro, por sua vez, aponta que o atual nível de desigualdade racial no mercado de trabalho deve-se a um mecanismo de discriminação específico, a divisão racial do trabalho, que torna possível a “alocação e segregação da força de trabalho negra em determinados mercados e seus segmentos”32. Analisando detalhadamente a concentração de trabalhadores negros em setores de baixo nível de remuneração, Porcaro demonstra a existência de um forte nível de segmentação racial no mercado de trabalho no país. A autora explica da seguinte maneira o resultado encontrado a partir da ação deste mecanismo de discriminação que afeta boa parte da força de trabalho negra: (...) a discriminação racial é inerente ao desenvolvimento econômico, cabendo aos negros uma inserção circunscrita a certos segmentos do mercado de trabalho (...) traduzidos nos setores de atividade de menor remuneração. 33 28 Movimento Negro Unificado (MNU), “O papel do aparato policial do estado no processo de discriminação do negro e a anistia” (1978), in: Clóvis Moura, Brasil: As raízes do protesto negro, Global Editora, São Paulo, 1983, p. 158. 29 Carlos Hasenbalg, Discriminação..., op. cit., p. 115. 30 Jacob Gorender, Brasil em preto e branco, Editora Senac, São Paulo, 2000, p. 70. 31 Clóvis Moura, O negro, op. cit., p. 88. 32 Rosa Maria Porcaro, “Desigualdade racial e segmentação do mercado de trabalho”, Estudos Afro-asiáticos, n. 15, 1988, p.200. 33 Idem, p. 196. 6 A autora posiciona-se criticamentediante das teses neoclássicas, cujos pressupostos teóricos estariam em contradição com as evidências de segmentação racial detalhadas em seu estudo: Esta visão de um mercado caracterizado por desigualdade e hierarquia se choca com a visão de um mercado competitivo, no qual os indivíduos se alocam e obtêm retornos em função de suas qualificações pessoais (como, por exemplo, seu investimento em capital humano), se beneficiando em maior ou menor grau das “oportunidades” que se apresentariam para todos.34 Em relatório publicado sobre as desigualdades raciais no mundo do trabalho no país, descreve-se ainda um outro mecanismo, a “demissão por motivos raciais”, e que resulta em taxas de desemprego sistematicamente maior para negros, independente da região, setor de emprego ou qualificação do empregado. Na realidade, o funcionamento deste mecanismo, pelo qual o trabalhador “negro é o último a ser admitido e o primeiro a ser demitido” numa empresa, foi ainda pouco explorado na literatura35. O detalhamento do funcionamento dos mecanismos de discriminação tem sido importante para mostrar o caráter endógeno do fenômeno em uma economia capitalista. A raiz do problema das desigualdades econômicas entre brancos e negros se desloca, assim, da psicologia dos agentes ou da capacidade em acumular capital humano – como pretende o paradigma neoclássico dominante –, para mecanismos presentes na economia e que se reproduzem simultaneamente ao processo de acumulação de capital. A partir desta constatação, os autores são naturalmente levados a indagar-se a propósito da perpetuação do racismo na sociedade brasileira. As hipóteses levantadas vão no sentido de considerar o fenômeno como, por um lado, benéfico ao capital; bem como, por outro lado, benéfico a setores privilegiados da classe média. São portanto categorias distintas de impacto sobre o processo de acumulação de capital; uma é monetária, e afeta a taxa de lucro do sistema; a outra concerne a garantia de privilégios de classe. Como exemplo da primeira categoria mencionada, tem-se o fato de que os negros formam uma “reserva de mão-de-obra não qualificada para forçar, no plano econômico, a segurança de níveis mínimos de salários aos trabalhadores já engajados no processo de trabalho.”36 Na segunda categoria, há a visão que considera que “as práticas racistas do grupo racial dominante, longe de serem meras sobrevivências do passado, estão funcionalmente relacionadas aos benefícios simbólicos e materiais que os brancos obtêm da desqualificação competitiva do grupo negro e mulato” 37. Ou seja, o racismo se reproduz não apenas por trazer um impacto positivo sobre a taxa de lucro, mas também por garantir privilégios inclusive a setores da classe trabalhadora branca, “servindo aos complexos e diversificados interesses do grupo racialmente dominante no presente”38. Conclusões Em uma tentativa de síntese desta interpretação marxista, poderíamos avançar que o racismo se mantém e se reproduz na economia devido à atuação de quatro tipos diferentes de 34 Ibidem, p. 199. Instituto Sindical Interamericano pela Igualdade Racial (INSPIR), Mapa da população negra no mercado de trabalho, DIEESE, 1999, p. 128. 36 Clóvis Moura, De bom escravo..., op. cit., p. 86. 37 Carlos Hasenbalg e Nelson V. Silva, Estrutura Social, mobilidade e raça, Vértice-IUPERJ, Rio de Janeiro, 1988, p. 166. 38 Carlos Hasenbalg e Nelson V. Silva, Relações raciais no Brasil contemporâneo, Rio Fundo Editora, Rio de Janeiro, 1992, p. 11. 35 7 mecanismos de discriminação que repercutem direta ou indiretamente na acumulação de capital, determinando: a divisão racial do trabalho; o desemprego desigual entre os grupos raciais; o diferencial de salários entre trabalhadores negros e brancos; a reprodução (física e intelectual) precária da força de trabalho negra. No primeiro item que identificamos, que determina a hierarquização racial dos postos no mercado de trabalho, o mecanismo de discriminação central é a seleção que se dá nas diversas fases de inserção da classe trabalhadora, na qual barreiras são impostas à entrada e à mobilidade dos não-brancos. Com relação ao desemprego, outro tipo de mecanismo parece atuar, especialmente em momentos de crise, levando os negros e mestiços a estarem mais propensos à demissão em momentos de crise. O terceiro tipo de mecanismo, a superexploração da força de trabalho negra, explica o diferencial de salários favorável aos brancos em setores determinados da economia. Enfim, o último dos mecanismos de discriminação traz um impacto importante sobre a capacidade de reprodução física e mental da força de trabalho negra, e pode atuar limitando o acesso à saúde, à educação de qualidade, e criando uma situação de segregação residencial nos centros urbanos; ou, o que é mais comum, tudo isto ao mesmo tempo. Evidentemente que seria demasiado simplista afirmar que a posição atual dos negros e mestiços no Brasil se explica de maneira exclusiva pela existência de tais mecanismos. A herança da escravidão tem um peso que de fato não se pode negligenciar – a “imigração” forçada de africanos não recebeu o mesmo incentivo que a imigração européia. A importância da esfera simbólica e ideológica tem sido igualmente de grande importância para compreender o fenômeno do racismo. Por outro lado, há inúmeros processos de concentração de renda afetando as camadas mais pobres, sem distinção de cor da pele. O que esta teoria pretende mostrar é que os mecanismos de discriminação se mantêm e se reforçam dado o seu impacto benéfico, muitas vezes indireto, à acumulação de capital. 8