A questão racial no brasil e as relações de gênero: um estudo

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Fazendo Gênero 8 - Corpo, Violência e Poder
Florianópolis, de 25 a 28 de agosto de 2008
A questão racial no brasil e as relações de gênero: um estudo do reflexo das desigualdades
sociais, políticas e econômicas no cotidiano da mulher negra
Fernanda da Silva Lima (UFSC), Louvani de Fátima Sebastião da Silva (UNESC)
Discriminação racial; gênero; mulher negra.
ST 1 – A questão racial no Brasil e as relações de gênero
1. Breves considerações do contexto sócio-histórico da mulher negra no Brasil.
O período escravocrata, enquanto sistema político e econômico vigeu no Brasil, entre os
séculos XVI e final do século XIX, sendo extinto legalmente apenas em 1888, fazendo com que este
país viesse a ser o último a abolir esse sistema extremamente excludente e desumanizador.
Conforme a historiografia brasileira, a escravidão da mão-de-obra africana se manteve devido ao
forte crescimento das navegações transantlânticas, que proporcionou por muito tempo a atividade
intensa do tráfico de escravos do Continente Africano para diversos paises, inclusive o Brasil.
Segundo Emília Viotti da Costa, às vésperas da Independência do Brasil, pouco antes de
1822, estima-se que a população que habitava o Brasil chegava aproximadamente 1 milhão e 347
mil brancos e 993 mil negros e mestiços. Contagem que abrangia a população cativa e a livre.1
Com a proibição definitiva do tráfico de escravos em 1831, em virtude de um acordo
celebrado entre Portugal e Inglaterra, assim como a aprovação da Lei do Ventre Livre, Lei nº 2.040
de 28 de setembro de 1871, que tornou todas as meninas e meninos negras(os) crianças livres,
podia-se dizer que a escravidão estaria fadada a sua extinção natural.
Acabar definitivamente com o sistema escravocrata no Brasil foi a proposta dos ideais
abolicionistas que ganharam força, sobretudo nas últimas décadas do século XIX, tendo a Inglaterra
como principal incentivadora, devido ao surto industrial que começou a se operar naquele país. Era
preciso substituir o modelo de trabalho servil (escravo) pelo trabalho livre (assalariado). O modelo
escravagista logo seria substituído pelo modo de produção capitalista, que visava alta lucratividade,
conquistar mercados consumidores e abertura dos mercados.
Nesse sentido, podemos vislumbrar que a escravidão deixou marcas também nas crianças e
adolescentes, uma vez que
[...] esse novo modelo econômico que se implantava no país continuou tão perverso
em exclusões e desigualdades quanto o anterior em nada alterando a situação de
milhares de crianças e adolescentes negros, que desamparados, muitos órfãos, e
outros vivendo com suas famílias em condições extremamente difíceis para
sobrevivência, foram sugados como mão-de-obra barata pelas fábricas. A troca do
sistema de servidão para o trabalho assalariado e livre pouco mudaria a situação
vivida por muitas crianças e adolescentes negros. Ao contrário, serviria para
legitimar mais uma vez o trabalho como única alternativa de dignidade humana que
as populações negras poderiam ter depois de séculos de escravidão.2
Foi preciso resgatar a historiografia da escravidão no Brasil para que possamos compreender
a atual situação de desigualdade social vivida pelos grupos sociais negros, especificamente as
mulheres negras. Conforme salienta Carlos Moore, as relações de discriminação racial e racismo
não iniciaram com a escravidão, vêm muito antes disso, nasce da necessidade que algumas “raças”3
têm de se sobreporem a outras. No entanto, para dar conta da discriminação racial vivenciada hoje
2
no Brasil, é imprescindível fazer um recorte do período escravocrata, enquanto grande modelo
incentivador de práticas discriminatórias e racistas que alcançam a nossa sociedade atual.
Fato que, somente nas últimas décadas do século XX as mulheres emergiram como sujeitos
sociais, históricos e econômicos. E, só, nos últimos trinta anos as mulheres tornaram-se a metade da
população economicamente ativa. Porém, a invisibilidade social, política e econômica dada às
mulheres, ainda é um fator a ser vencido. Esse fator se torna mais complexo, quando se trata das
mulheres negras, que carregam consigo a marca no cotidiano dos reflexos do sistema político
escravocrata que vigeu no Brasil por mais de três séculos.
2. As desigualdades sociais, políticas e econômicas do cotidiano da mulher negra no Brasil:
enfocando o termo gênero
Os movimentos de mulheres, da década de 1960 e 1970 que tinham como finalidade à
construção de uma sociedade mais igualitária para homens e mulheres trouxeram ao público a
problemática que envolve os processos construtivos de exclusão social da mulher no Brasil. Do
mesmo modo, a partir da década de 1970 os movimentos negros também ganharam força e
contribuíram para desmistificar o mito da democracia racial4 no nosso país.
Assim, percebemos que durante o processo de redemocratização do país, sobretudo a partir
da década de 1980 esses movimentos sociais, e tantos outros perseguiam veementemente uma nova
Constituição e a conquista de direitos civis e políticos. A promulgação da Constituição da
República Federativa de 1988 é representativa da luta desses movimentos sociais e assegura no rol
dos direitos fundamentais, inerentes a toda a pessoa humana, os direitos e garantias individuais e
igualitárias a todos sem distinção de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de
discriminação.
Neste viés, a trajetória das mulheres, foi descrita paulatinamente sobre os moldes das
atividades de mobilização social, desenvolvidas pelos movimentos sociais feministas, que de forma
contundente denunciaram a intensa disparidade em que a mulher havia sido inserida.
Com isso, verifica-se que ao longo da história, a mulher foi descrita e considerada como um
ser inferior ao homem, sem pretensões, apenas com inclinação estritamente para o lar, de pouca
capacidade intelectual e, destinada ao casamento e a maternidade.
Contudo, o cerceamento da mulher em espaços privados deve à cultura de sociedades
patriarcal e sexista. Corroborando com essa idéia, colhe-se de Isaura Rufino Ficher
As relações entre homens e mulheres, ao longo dos séculos, mantém caráter
excludente. São assimiladas de forma bipolarizada, sendo designada à mulher a
condição de inferior, que tem sido reproduzida pela maioria dos formadores de
opinião e dos que ocupam as esferas de poder na sociedade. [...] Rousseau vê a
mulher como destinada ao casamento e à maternidade, Kant a considera
3
pouco dotada intelectualmente, caprichosa indiscreta e moralmente fraca. Sua
única força é o encanto. Sua virtude á aparente e convencional. Esses são alguns
atributos imputados à mulher, que reforçam a base da exclusão do feminino
na sociedade e cuja reversão tem tomado longo tempo das feministas na sua busca
por construir conceitos de eqüidade entre os dois sexos, e tentado, dessa forma,
tirar a mulher do ambiente propenso à exclusão. Essa iniciativa faz parte de uma
guerra no campo das idéias que avança de forma heterogênea nas conjunturas
sociais, econômicas, políticas e culturais em diversas partes do planeta.5 (Grifouse).
Assim, na conjuntura social em que se desenvolveu a exclusão de parcela significativa da
população, tem sua definição e conceituação no termo gênero. Que, por meio desse pode-se formar
e distribuir os papéis sociais a homens e mulheres, levando-se em conta as características sexuais
como meio de valorização social de um sexo em detrimento de outrem. E assim, foi construída a
exclusão das mulheres nas dimensões culturais, sociais e políticas. De acordo com Alessandro
Baratta:
[...] as pessoas do sexo feminino tornaram-se membros de um gênero subordinado,
na medida em que, em uma sociedade é culturalmente determinada, pela posse de
certas qualidades. E, o acesso a certos papéis vem percebido como naturalmente
ligados somente a um sexo biológico, e não a outro. Esta conexão ideológica e não
‘natural’ (ontológica) entre os dois sexos condiciona a não repartição dos recursos
e a posição vantajosa de um dos dois gêneros. 6
Disso se infere, que os efeitos sociais formados a partir da existência dos papeis sociais,
criou-se às desigualdades socioeconômicas, que por vezes pode ser identificada por meio da cultura
educacional da sociedade que absorve mulheres e homens, como indivíduo de características
biológicas diferenciadas, sujeitos de direitos igualitárias, entretanto, ainda não assimila a mulher
como sujeito a ascender socialmente, economicamente e politicamente.
Já que nosso objeto de estudo é a mulher negra e seu processo duplo de exclusão, o primeiro
por ser mulher, e o segundo por ser negra, é importante trazer para este estudo a conceituação de
preconceito racial, racismo e discriminação racial, pois representam significações diversas. O
preconceito racial é considerado um sentimento negativo que uma pessoa possa ter em relação a
outra, levando em consideração o próprio grupo social na qual pertença. Assim a pessoa tem
preconceito racial quando enxerga nos outros características que lhe desaprovem porque têm como
parâmetro as características do grupo social em que está acomodada. O racismo também é uma
atitude que, do olhar do racista, adota uma postura contrária a certas pessoas pelos seus traços
físicos levando em comparação o padrão do seu próprio grupo social.7
De outra maneira, não é possível confundir o preconceito racial e o racismo com a
discriminação racial. O preconceito e o racismo são atitudes e modos como se vêem certos grupos
sociais. Já a discriminação racial é a manifestação dessas atitudes preconceituosas e racistas.
Quando a ação ou manifestação desses pensamentos vir “[...] a prejudicar alguém é que se diz que
4
houve discriminação. Enfim, quando o racista ou preconceituoso externaliza sua atitude, agora
transformada em manifestação ocorre a discriminação”8.
Diante desse contexto, observa-se que na história de desenvolvimento da sociedade, foi
reservada, de igual forma que ainda tem-se mantido e se reproduzido esta concepção, a de que o
espaço público é destinado ao homem, na seqüência, a mulher branca, posteriormente ao homem
negro, sendo ao final às mulheres negras. E, isso, deve-se, as justificativas para as desigualdades
sociais, políticas e econômicas das representações femininas, principalmente das mulheres negras,
que além de ter de vencer, as desigualdades de gênero, manifestada de forma negativa a todas
indistintamente. No entanto, para que a mulher negra consiga ultrapassar as barreiras naturais da
sociedade enquanto mulher, terá ainda de vencer o racismo, o preconceito e a discriminação racial.9
Podemos destacar que, no entendimento de Ricardo Henriques, “dentre os fatores de
reprodução das desigualdades raciais, a educação ocupa lugar privilegiado pelo peso decisivo que
tem[...], sobre ela está as chances de integração do indivíduo na sociedade e de sua capacidade de
mobilidade ou ascensão social”.10
Não obstante, observa-se que ao longo da história social do Brasil a mulher negra enfrenta
um luta ainda maior contra a discriminação, o preconceito racial e, sobretudo contra a conjugação
desses à questão de gênero, pois, para ela as manifestações sociais do preceito gênero é duplamente
suportado. Guacira Lopes Louro entende que é preciso
Demonstrar que não são propriamente as características sexuais, mas é a forma
como essas características são representadas ou valorizadas, aquilo que se diz ou se
pensa sobre elas que vai constituir, efetivamente, o que é feminino ou masculino
em um dado momento histórico. Para que se compreenda o lugar e as relações de
homens e mulheres numa sociedade importa observar não exatamente seus sexos,
mas sim tudo o que socialmente se construiu sobre os sexos.11
Assim diante dos critérios da política escravagista vigente no período colonial, permanece
inalterado o cenário político, social e econômico que engloba as mulheres negras.
Referências
BARATA, Alessandro. O paradigma do gênero: da questão criminal à questão humana. In:
CAMPOS, Carmen Hein de (org.). Criminologia e feminismo. Porto Alegre: Sulina, 1999.
COSTA, Emília Viotti da. Da senzala à colônia. 3. ed. São Paulo: Fundação Editora da UNESP,
1998.
CUSTÓDIO, André Viana. LIMA, Fernanda da Silva. A implementação das ações afirmativas para
a concretização dos direitos de crianças e adolescentes negros no Brasil. Monografia. Graduação
em Direito pela Universidade do Extremo Sul Catarinense, Criciúma, 2007.
FICHER, Isaura Rufino. Trabalho para discussão: gênero e exclusão social. Fundação Joaquim
Nabuco, 2001. Disponível em http://www.fundaj.gov.br/tepd/113.html. Acesso em 29 de abril de
2005.
HENRIQUES, Ricardo. Raça e Gênero no sistema de ensino: os limites das políticas universalistas
na educação. Brasília: UNESCO, 2002, p. 06.
5
LOURO, Guacira Lopes. Gênero, sexualidade e educação: uma perspectiva pós-estruturalista.
Petrópolis, RJ: Vozes, 1997.
MOORE, Carlos. Racismo e Sociedade: novas bases epistemológicas para entender o racismo. Belo
Horizonte: Mazza Edições, 2007.
SANTOS, Hélio. A busca de um caminho para o Brasil: a trilha do círculo vicioso. São Paulo:
Editora SENAC, 2001.
1
COSTA, Emília Viotti da. Da senzala à colônia. 3. ed. São Paulo: Fundação Editora da UNESP, 1998, p. 19.
CUSTÓDIO, André Viana. LIMA, Fernanda da Silva. A implementação das ações afirmativas para a
concretização dos direitos de crianças e adolescentes negros no Brasil. Monografia. Graduação em Direito pela
Universidade do Extremo Sul Catarinense, Criciúma, 2007, p.18.
3
Temos adotado em nossos trabalhos a utilização da terminologia “raça” para estudar os diferentes grupos sociais,
ressaltando que o termo “raça” utilizado neste trabalho exprimi o significado de construção social e é elucidativo dos
diferentes grupos étnicos que compõe a sociedade brasileira. Não pretendemos utilizar a categoria “raça” como um
conceito científico, já que não mais é utilizado nas Ciências Biológicas, para a qual não existem raças humanas. O que
resta agora compreender é que para as Ciências Sociais a categoria “raça” ainda é utilizável.
4
A afirmação de que o Brasil vive uma democracia racial coincide com a idéia de que o povo brasileiro é mestiço e que
sofreu a mistura de três raças: portugueses, índios e negros. As teorias de mestiçagem do povo brasileiro ganharam
força no Brasil a partir dos escritos de Gilberto Freyre. No entanto, a partir da década de 1970, sob influência de alguns
sociólogos, dentre eles Florestan Fernandes, foi possível encarar essa democracia racial como um mito, uma vez que os
diferentes grupos sociais existentes no nosso país, não convivem harmoniosamente como se pensava.
5
FICHER, Isaura Rufino. Trabalho para discussão: gênero e exclusão social. Fundação Joaquim Nabuco, 2001.
Disponível em http://www.fundaj.gov.br/tepd/113.html. Acesso em 29 de abril de 2005, p. 03.
6
BARATA, Alessandro. O paradigma do gênero: da questão criminal à questão humana. In: CAMPOS, Carmen Hein
de (org.). Criminologia e feminismo. Porto Alegre: Sulina, 1999, p. 21-22.
7
SANTOS, Hélio. A busca de um caminho para o Brasil: a trilha do círculo vicioso. São Paulo: Editora SENAC,
2001, p. 108-110.
8
SANTOS, Hélio. A busca de um caminho para o Brasil: a trilha do círculo vicioso. São Paulo: Editora SENAC,
2001, p. 110.
9
LOURO, Guacira Lopes. Gênero, sexualidade e educação: uma perspectiva pós-estruturalista. Petrópolis, RJ: Vozes,
1997, p. 22.
10
HENRIQUES, Ricardo. Raça e Gênero no sistema de ensino: os limites das políticas universalistas na educação.
Brasília: UNESCO, 2002, p. 06.
11
LOURO, Guacira Lopes. Gênero, sexualidade e educação: uma perspectiva pós-estruturalista. Petrópolis, RJ:
Vozes, 1997. p. 21.
2
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