Platão e o mundo das essências Marilena Chauí Platão dedicou a sua obra à resolução do impasse filosófico criado pelo antagonismo entre o pensamento de Heráclito de Éfeso e o de Parmênides de Eleia. Platão considerou que Heráclito tinha razão no que se refer3e ao mundo material e sensível, mundo das imagens e opiniões. A matéria, diz Platão, é, por essência e por natureza, algo imperfeito, que não consegue manter a identidade das coisas, mudando sem cessar, passando de estado para outro, contrário ou oposto. O mundo material ou de nossa experiência sensível é mutável e contraditório e, por isso, dele só nos chegam aparências das coisas e sobre ele só podemos ter opiniões contrárias e contraditórias. Por esse motivo, diz Platão, Parmênides está certo ao exigir que a filosofia deva abandonar esse mundo sensível e ocupar-se com o mundo verdadeiro, invisível aos sentidos e visível apenas ao puro pensamento. O verdadeiro é o Ser, uno, imutável, idêntico a si mesmo, eterno, imperceptível, puramente inteligível. Eis por que a ontologia* platônica introduz uma divisão do mundo, afirmando a existência e dois mundos inteiramente diferentes e separados: o mundo do sensível, da aparência, do devir dos contrários, e o mundo inteligível da identidade, da permanência, da verdade, conhecido pelo intelecto puro, sem nenhuma interferência dos sentidos e das opiniões. O primeiro é o mundo das coisas. O segundo, o mundo das ideias ou das essências verdadeiras. O mundo das ideias ou das essências é o mundo do Ser; o mundo sensível das coisas ou aparências é o mundo do Não Ser. O mundo sensível é uma sombra, uma cópia deformada ou imperfeita d mundo inteligível das ideias ou essências. Notamos, aqui, uma diferença ente a ontologia de Parmênides e a de Platão. Para o primeiro, o mundo sensível das aparências é o Não Ser em sentido forte, isto é, não existe, não tem realidade nenhuma, é o nada. Para Platão, porém, o Não Ser não é o puro nada. Ele é alguma coisa. O que ele é? Ele é o outro do ser, o que é diferente do Ser, o que é inferior ao Ser, o que nos engana e nos ilude, a causa dos erros. Em lugar de ser um puro nada, o Não Ser é um falso ser, uma sombra do Ser verdadeiro, aquilo que Platão chama de pseudo-Ser. O Não Ser é o sensível. Há mais uma outra diferença importante entre a ontologia de Parmênides e a de Platão. O primeiro afirmava que o Ser, além de imutável, eterno e idêntico a si mesmo, era único e uno. Havia o Ser. Qual o problema dessa afirmação parmenidiana? Se, do lado do devir heraclitiano, havia uma multiplicidade infinita de seres contrários uns aos outros e contrários a si mesmos, multiplicidade contraditória que não poderia ser pensada nem dita, visto que o pensamento exige a identidade do pensado, no entanto, do lado da identidade uma-única de Parmênides, que restava para a filosofia? Só lhe restava pensar e dizer três frases: “o ser é”. O “Não Ser não é” e o “Ser é uno, idêntico, eterno e imutável”. Em suma, a filosofia começa a terminava nessas três frases, nada mais podendo dizer ou pensar. Parmênides paralisara a filosofia. Se esta quisesse prosseguir como investigação da verdade e se tivesse mais objetos a conhecer, era preciso quebrar a unidade-unicidade do Ser de Parmênides. Foi o que fez Platão. Que disse ele? Em primeiro lugar, seguindo Sócrates e os sofistas, Platão distinguiu três sentidos para a palavra ser: o sentido de substantivo, isto é, de realidade existente; o sentido verbal forte, em que é significa “existe” e o ser que quer dizer “existência”; e o sentido verbal mais fraco, em que o verbo ser é o verbo de ligação, isto é, o verbo que permite ligar um sujeito ao seu predicado. Distinguiu, assim, além do sentido substantivado (“o ser”, “um ser”), dois sentidos para o verbo: o sentido existencial e o sentido predicativo. Por exemplo: “O homem é” (existe) e “O homem é mortal” (possui um predicado como parte de sua essência). Em segundo lugar, afirmou que, no sentido forte de ser (insto é, como substantivo e como verbo existencial), existem múltiplos seres e não um só, mas cada um deles possui os atributos do Ser de Parmênides (identidade, unicidade eternidade, imutabilidade). Esses seres são as ideias ou formas inteligíveis, totalmente imateriais, que constituem o mundo verdadeiro, o mundo inteligível. Em terceiro lugar, afirmou que, no sentido mais fraco do verbo ser, isto é, como verbo de ligação ou da predicação, cada ideia é (existe) e uma ideia é uma essência ou conjunto de qualidades essenciais que a fazem ser o que ela é necessariamente. Por exemplo, a justiça é (há a ideia de justiça) e há seres humanos que são justos (possuem o predicado da justiça, como parte da sua essência). Dessa maneira, cada ideia, em si mesma, é como o Ser de Parmênides: uma, idêntica a si mesma, eterna e imutável – uma ideia é. Ao mesmo tempo, cada ideia difere de todas as outras pelo conjunto de qualidades ou propriedades internas e necessárias pelas quais ela é uma essência determinada, deferente das demais (a ideia de homem é diferente da ideia de cavalo, de planeta, que é diferente da ideia de beleza, que é diferente da ideia de coragem etc.) Para Platão, a tarefa da Filosofia é dupla: 1. Deve conhecer que as ideias existem, isto é, que ideias são; 2. Deve conhecer quais são as qualidades ou propriedades essenciais de uma ideia, isto é, o que uma ideia é, sua essência. As ideias ou formas inteligíveis (ou essências inteligíveis) diz Platão, são seres perfeitos e, por sua perfeição, tornam-se modelos inteligíveis ou paradigmas inteligíveis perfeitos que as coisas sensíveis materiais tentam imitar imperfeitamente. O sensível é, pois, uma imitação imperfeita do inteligível: as coisas sensíveis são imagens das ideias, são Não Seres tentando inutilmente imitar a perfeição dos seres Inteligíveis. Cabe à filosofia passar das cópias imperfeitas aos modelos perfeitos, abandonando as imagens pelas essências, as opiniões pelas ideias, as aparências pelas essências. O pensamento, empregando a dialética, deve passar da instabilidade contraditória das coisas sensíveis à identidade racional das coisas inteligíveis, à identidade das ideias que são a realidade, o ser, o tò on. Os diálogos de Platão põem em marcha a dialética, isto é, o caminho seguro (méthodos) que nos conduz das sensações, das percepções, das imagens e das opiniões à contemplação intelectual do ser real das coisas, à vida verdadeira, que existe em si mesma no mundo das puras ideias ou no mundo inteligível. Toemos um diálogo para acompanharmos o procedimento platônico. O Banquete busca a ideia ou a essência do amor. Numa festa, oferecida por um poeta que ganhou um prêmio por sua poesia, conversam cinco amigos e Sócrates. Um deles afirma que todos os deuses recebem hinos e poemas de louvor, mas nenhum foi feito ao melhor dos deuses, Eros, o amor. Propõe, então, que cada um faça uma homenagem a Eros dizendo o que é o amor. Para um deles, o amor é o mais belo dos deuses, porque nos leva ao sacrifício pelo ser amado, inspira-nos o devotamento e o desejo de fazer o bem. Para o seguinte, é preciso distinguir dois tipos de amor: o amor sexual e grosseiro e o amor espiritual entre as almas, pois o primeiro é breve e logo acaba, enquanto o segundo é eterno. Já o terceiro afirma que os que o antecederam tinham limitado muito o amor, tornando-o apenas como uma relação entre duas pessoas. O amor, diz ele, [e o que ordena, organiza e orienta o mundo, pois é ele que faz os semelhantes se aproximarem e os diferentes se afastarem. O amor é uma força cósmica de ordem e harmonia do Universo. O quarto prefere retornar ao amor entre as pessoas e narra um mito. No princípio, os humanos eram de três tipos: havia o homem duplo, a mulher dupla e o home-mulher, isto é, o andrógino. Tinham um só corpo, com duas cabeças, quatro braços e quatro pernas. Como se julgavam seres completos, decidiram habitar o céu. Seus, rei dos deuses, enfureceu-se, tomou de uma espada e os cortou pela metade. Decaídos, separados e desesperados, os humanos teriam desaparecido se o Eros não lhes tivesse dado órgãos sexuais e os ajudasse a procurar a metade perdida. Os que eram homens duplos e mulheres duplas amam os de mesmo sexo, enquanto os que eram andróginos amam a pessoa do sexo oposto. Amar é encontrar a nossa metade e o amor é esse encontro. Finalmente, o poeta, anfitrião da festa, toma a palavra dizendo: “Todos os que me precederam louvaram o amor pelo bem que faz aos humanos, mas nenhum louvou o amor por ele mesmo. É o que farei. O amor, Eros, é o mais belo, o melhor dos deuses. O mais belo porque sempre jovem e sutil, porque penetra imperceptivelmente nas almas, o melhor, porque odeia a violência e a desfaz onde existir; inspira os artistas e poetas, trazendo mais beleza ao mundo”. Resta Sócrates. “Não poderei falar”, diz ele. “Não tenho talento para fazer discursos tão belos”. Os outros, porém, não se conformam e o obrigam a falar. “Está bem”, retruca ele. “Mas falarei do meu jeito.” Com essa pequena frase, Platão mudará todo o tom do diálogo, pois “falar do meu jeito” significa que “não vou fazer elogios e louvores às imagens e aparências do amor, que não vou emitir mais uma opinião sobre o amor, mas que vou buscar a essência do amor, o ser do amor, vou investigar a ideia do amor”. Sócrates também começa com um mito. Quando a deusa Afrodite nasceu, houve uma grande festa para os deuses, mas esqueceram-se de convidar a deusa Penúria (Pênia). Miserável e faminta, Penúria esperou o fim da festa, esgueirou-se pelos jardins e comeu os restos, enquanto os deuses dormiam. Num canto do jardim, viu Engenho Astuto (poros) e desejou conceber um filho dele, deitando-se ao seu lado. Desse ato sexual nasceu Eros, o amor. Como sua mãe, Eros está sempre carente, faminto, miserável; como seu pai, Eros é astuto, sabe criar expedientes engenhosos para conseguir o que quer. Qual o sentido do mito? Nele descobrimos que o amor é carência e astúcia, desejo de saciar a fome e a sede, desejo de preenchimento, desejo de completar-se e de encontrar a plenitude. Amar é desejar o amado como o que nos completa, nos sacia e satisfaz, nos dá plenitude. Amar é desejar fundir-se na plenitude do amado e ser um só com ele. O que pode completar e dar plenitude a um ser carente? O que é em si mesmo completo e pleno, isto é, o que é perfeito. O que é perfeição? A harmonia, a proporção, a integridade ou a inteireza da forma. Desejamos as formas perfeitas. O que é uma forma perfeita? A forma perfeita, acabada, plena, inteiramente realizada, sem falhas, sem defeitos, sem necessidade de transformar-se, isto é, sem necessidade de mudar de forma. A forma perfeita é o que chamamos de beleza. O amor é o desejo de beleza. Onde está a beleza nas coisas corporais? Nos corpos belos, cuja união engendra uma beleza: a imortalidade dos pais através dos filhos. Onde está a beleza nas coisas incorporais? Nas almas belas, cuja beleza está na perfeição de seus pensamentos e ações, isto é, na inteligência. Que amamos quando amamos corpos belos? O que há de imperecível naquilo que, por natureza, é perceptível, isto é, amamos a posteridade ou a descendência. O que amamos quando amamos almas belas? O que há de imperecível na inteligência. Isto é, as ideias. O amor pelos corpos belos é uma imagem ou uma sombra do amor pelo imperecível, mas o amor pelas almas belas é o amor por algo que é em si mesmo e por si mesmo imperecível e absolutamente perfeito. Se o amor é desejo de identificar-se com o amado, de fundir-se nele tornando-se como ele, então a qualidade ou a natureza do ser amado determina se um amor é plenamente verdadeiro ou uma aparência de amor. Amar o perecível é tornar-se perecível também. O perecível é o mutável são sombras, copias imperfeitas do ser verdadeiro, imperecível e imutável. As formas corporais belas são sombras ou imagens da verdadeira beleza imperecível. Abandonando-as pela verdadeira beleza, amamos não esta ou aquela coisa bela, mas a ideia ou a essência da beleza, o belo em si mesmo, único, real. As almas belas são belas porque nelas há a presença ainda que invisível à primeira vista, de algo imperecível: o intelecto, parte imortal de nossa alma. Que ama o intelecto? Um outro intelecto que seja mais belo e mais perfeito do que ele e que, ao ser amado, torna perfeito o belo quem o ama. O que um é intelecto verdadeiramente belo e perfeito? O que ama a beleza perfeita. Onde se encontra a tal beleza? Nas ideias. O que é a essência ou a ideia do amor? O amor é o desejo da perfeição imperecível das formas belas, daquilo que permanece sempre idêntico a si mesmo, daquilo que pode ser contemplado plenamente pelo intelecto e conhecido plenamente pela inteligência. Sendo o amor intelectual pelo inteligível ou pelas ideias, o amor é o desejo de saber: philosophiia, “amor pela sabedoria”. Pelo amor, o intelecto humano participa do inteligível, toma parte no mundo das ideias ou das essências, conhecendo o ser verdadeiro. A ontologia é, assim, a própria filosofia e o conhecimento do Ser, isto é, das ideias; ´[e a passagem das opiniões sobre as coisas sensíveis mutáveis rumo ao pensamento sobre as essências imutáveis. Passar do sensível ao inteligível – tarefa da filosofia – é passar da aparência ao real, do Não ser ao Ser. Questões 1. Explique a divisão platônica entre o mundo sensível e o mundo inteligível. 2. Qual a principal diferença entre o pensamento de Platão e o de Parmênides? 3. Quais as três principais atitudes com as quais Platão resolveu o impasse filosófico deixado por Parmênides, que reduzia a filosofia à afirmação “o ser é e à negação “o Não Ser não é”? 4. Quais são as ideias ou formas inteligíveis? Quais suas principais características ou qualidades? 5. Explique como e por que, para Platão, a filosofia consiste em passar da aparência sensível à essência inteligível das coisas, da opinião à ideia.