Desafios Éticos

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DESAFIOS ÉTICOS
1a Edição
2006
capa_desafios_eticos.indd 1
15/12/2006 11:50:06
Conselho Regional de Medicina
do Estado do Rio Grande do Sul
DESAFIOS
ÉTICOS
Porto Alegre
1a Edição - 2006
© 2006, Conselho Regional de Medicina do Estado do Rio Grande do Sul
Direitos Reservados
1a Edição: 2.000 exemplares
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Projeto e Produção Gráfica
Editora Stampa
Direção Geral
Eliane Casassola
Capa
Leandro Camiña
Editoração
Ana Paula Almeida e Thiago Pinheiro
Ilustrações
Leandro Camiña
Revisão
Raul Rubenich
Ilustração da Capa
Curare - escultura da fachada de La Facultad de Medicina de la Universidad de Buenos Aires (UBA)
- Arte sobre foto de Leandro Camiña.
D441
Desafios éticos / Conselho Regional de Medicina do Rio Grande
do Sul. ‒ 1. ed. ‒ Porto Alegre : Stampa, 2006.
178 p. : il. ; 21 cm.
1. Medicina ‒ Ética. I. Conselho Regional de Medicina do Rio
Grande do Sul.
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Gestão 2003/2008
Diretoria
Junho 2005/Janeiro 2007
PRESIDENTE
Luiz Augusto Pereira
VICE-PRESIDENTE
Fernando Weber Matos
1o SECRETÁRIO
Joaquim José Xavier
2o SECRETÁRIO
Flávio José Mombrú Job
TESOUREIRO
Marco Antônio Becker
CORREGEDOR
Martinho Reis Álvares da Silva
Conselheiros
Antônio Celso Koehler Ayub  Carlos Antônio Mascia Gottschall
Céo Paranhos de Lima  Cláudio Balduino Souto Franzen
Ércio Amaro de Oliveira Filho  Fernando Weber Matos
Flávio José Mombrú Job  Isaias Levy  Ismael Maguilnik
Ivan de Mello Chemale  João Pedro Escobar Marques Pereira
Joaquim José Xavier  José de Jesus Peixoto Camargo
José Pio Rodrigues Furtado  Luiz Augusto Pereira  Marco Antônio Becker
Marineide Gonçalves de Melo  Martinho Alexandre Reis Álvares da Silva
Newton Monteiro de Barros  Regis de Freitas Porto  Rogério Wolf de Aguiar
Alberi Nascimento Grando  Cláudio André Klein  Cléber Ribeiro Álvares da Silva
Douglas Pedroso  Enio Rotta  Euclides Viríssimo Santos Pires
Fernando Antônio Lucchese  Geraldo Druck Sant’Anna  Ibrahim El Ammar
Iseu Milman  Izaias Ortiz Pinto  Jefferson Pedro Piva
José Pedro Lauda  Luciano Bauer Gröhs  Magno José Spadari
Marco Antônio Oliveira de Azevedo  Maria Lúcia da Rocha Oppermann  Mário Antônio Fedrizzi
Moacir Assein Arús  Silvio Pereira Coelho  Tomaz Barbosa Isolan
Apresentação
Esta publicação de resumos das 12 primeiras edições do Programa
Desafios Éticos, iniciado em setembro de 2005 constitui mais uma obra
da série Coleção Cremers (quatro em 2006) e consolida a política da atual
gestão de colocar cada vez mais informações para a sociedade em geral
e os médicos em particular.
O Programa Desafios Éticos, que tem como principal objetivo integrar as
diferentes áreas da sociedade na discussão de assuntos contundentes e atuais,
é realizado na última sexta-feira de cada mês na sede do Cremers. Nada
seria possível se não fosse o trabalho de muitos, em especial o dos membros
da Comissão de Ética e Bioética do Cremers - Dr. Magno José Spadari,
Dr. Marco Antônio Oliveira de Azevedo, Dr. Douglas Pedroso - e dos
membros do Ministério Público Estadual, destacando-se o Procurador-Geral,
Dr. Roberto Bandeira Pereira, e o Promotor Dr. Mauro Luis Silva de Souza,
coordenador do Centro de Apoio dos Direitos Humanos do Ministério
Público, aos quais aqui manifesto o meu agradecimento.
Este livro é fruto de um novo modelo de gestão que valoriza mais
o conhecimento global e a inserção do médico na sociedade.
Muito obrigado a todos que ajudaram a concretizar esta obra. 
Luiz Augusto Pereira
Coordenador
Autores
Eutanásia
Marco Antônio de Azevedo  médico e conselheiro do Cremers, Doutor em Filosofia
Douglas Pedroso  médico urologista e conselheiro do Cremers
Jairo Othero  médico intensivista e membro da Câmara Técnica do Cremers
Morte
Pedro Leite Júnior  professor de Filosofia na PUCRS
Ivan de Mello Chemale  neurocirurgião, conselheiro do Cremers e professor da FFFCMPA
Marco Antônio de Azevedo  médico e conselheiro do Cremers, Doutor em Filosofia
Terminalidade
Délio José Kipper  pediatra, membro da Câmara Técnica do Cremers, professor da PUCRS
José Roque Junges  Doutor em Teologia e professor da Unisinos
Moacir Assein Arús  médico cirurgião, conselheiro do Cremers e professor universitário
Transplante e Doação de Órgãos
José de Jesus Peixoto Camargo  cirurgião torácico, conselheiro do Cremers e professor da FFFCMPA
Nélson Boeira  PhD em Filosofia e reitor da Uergs
Aborto
Antônio Celso Ayub  ginecologista e obstetra, conselheiro do Cremers e professor universitário
Luiz Fernando Barzotto  professor de Direito da PUCRS
Rúbia Abs da Cruz  coordenadora-geral da ONG Themis
Dom Dadeus Grins  Arcebispo de Porto Alegre
Planejamento Familiar
Antônio Celso Ayub  ginecologista e obstetra, conselheiro do Cremers e professor universitário
Marinês Assmann  promotora de Justiça do Ministério Público Estadual
Eunice Flores  presidente do Conselho Estadual dos Direitos da Mulher
Maus-Tratos na Infância
Magno Spadari  cirurgião pediatra, conselheiro do Cremers e professor universitário
José Antônio Daltoé Cezar  Juiz da Infância e da Juventude
Joelza Mesquita Andrade Pires  médica pediatra
Aids e Hepatite na Atividade Profissional
Alcino Antônio Golegã  cirurgião-dentista e membro da Associação Brasileira de
Odontologia para Pacientes Especiais (Abope)
Maria da Graça Piva  enfermeira, presidente do Conselho Regional de Enfermagem
Ana Catarina Gíria  enfermeira
Tomaz Barbosa Isolan  urologista, conselheiro do Cremers e professor universitário
Ética nas Emergências
Luiz Alexandre Alegretti Borges  médico intensivista, membro da Câmara Técnica
do Cremers e professor universitário
João Albino Potrich  diretor-médico do Pronto Socorro Municipal de Canoas
Antônio Carlos Luzzi Fortis  médico anestesiologista de serviços de emergência em Porto Alegre
Internações Psiquiátricas
Rogério Wolf de Aguiar  psiquiatra, conselheiro do Cremers e professor universitário
Paulo César Geraldes  médico psiquiatra e presidente do Cremerj
José Francisco Seabra Mendes Júnior  promotor do Ministério Público Estadual
Ética e Saúde do Idoso
João Senger  médico, presidente da Sociedade Brasileira de Geriatria e Gerontologia/RS
Marianela Flores Hekman  presidente da Sociedade Brasileira de Geriatria e Gerontologia
Ximena Cardozo Ferreira  promotora do Ministério Público Estadual
Ética e Saúde nos Presídios
Magno Spadari  cirurgião pediatra, conselheiro do Cremers e professor universitário
Djalma Gautério  superintendente da Superintendência de Serviços Penitenciários - Susepe
Cynthia Feyh Jappur  promotora de Justiça do Ministério Público Estadual
Sumário
Eutanásia................................................................................................13
Morte ....................................................................................................25
Terminalidade ........................................................................................37
Transplante e Doação de Órgãos ..........................................................55
Aborto ...................................................................................................69
Planejamento Familiar ...........................................................................85
Maus-Tratos na Infância..........................................................................97
Aids e Hepatite na Atividade Profissional ............................................113
Ética nas Emergências .........................................................................125
Internações Psiquiátricas .....................................................................135
Ética e Saúde do Idoso ........................................................................151
Ética e Saúde nos Presídios .................................................................163
Eutanásia
Coordenação: Magno Spadari
Palestrantes: Marco Antônio de Azevedo, Douglas Pedroso e Jairo Othero
Setembro/2005
Marco Antônio de Azevedo 
Médico e conselheiro do Cremers, doutor em Filosofia
Argumento pela legitimidade moral da eutanásia. Critico a tese de que a vida é
um bem indisponível, tese esta adotada pela doutrina jurídica brasileira.
Existe uma tese filosófica para a qual a vida é uma bem intrinsecamente
bom. Essa tese é defendida, entre outros, por Tomás de Aquino e Immanuel
Kant. Poderia, entretanto, a vida deixar de ser um bem para alguém? A filósofa britânica Philippa Foot acredita nessa idéia: ainda que a vida seja um
bem intrinsecamente valioso, ela poderá deixar de ser benéfica para alguém.
Proponho que adotemos essa idéia como uma suposição. De fato, se alguém
provar que é implausível a vida deixar de ser um bem, então meu argumento
cairá por terra.
Segundo Tomás de Aquino, porém, temos o dever incondicional de preservar
a própria vida.
“A passagem dessa vida para outra mais feliz não se
acha sujeita ao livre arbítrio do homem, mas sim ao
poder de Deus”,
afirma Tomás de Aquino na Suma Teológica. Se Tomás de Aquino estiver correto,
segue-se que nenhum ser humano tem o direito de dar fim à própria vida. Ao
supormos, porém, que nenhum ser humano tem poder sobre a própria vida, deve
haver alguma outra entidade com esse poder – no caso de São Tomás, essa outra
entidade é justamente Deus. Ora, isso é insustentável. Por que Deus teria direitos
sobre suas criaturas? Faria sentido afirmar-se que, se Deus é nosso criador, Ele
tem direitos sobre nós? Teria Victor Frankenstein direito sobre a vida de “sua”
criatura? Ora, mesmo sendo verdadeiro que Deus é nosso criador, disso não se
segue que Ele tenha quaisquer direitos sobre nossas vidas.
Para que compreendamos isso, é preciso clarear o que entendemos por um
“direito”. Considere-se a polêmica entre Benjamin Constant e Immanuel Kant
sobre o suposto “dever de veracidade”. Kant certa vez afirmou:
“Se alguém bater à minha porta perguntando se um amigo
meu se encontra em minha casa, e eu sei que quem bate
é um inimigo, tenho o dever de dizer a verdade”.
Desafios Éticos  Cremers  15
A conclusão de Kant é polêmica e de fato pouco aceita entre os filósofos.
Ela foi rebatida na época por Constant, que afirmou:
“Eu só tenho o dever de dizer a verdade àquele que tem
direito à verdade”.
Ora, que suposto direito é esse de ser honesto com todo e qualquer um em
toda e qualquer circunstância? Segundo Constant, nossos deveres são intrinsecamente relacionados aos direitos de alguém – não existem deveres incondicionais. Se tenho o dever de fazer algo, então deve haver alguém com um direito
a que eu o faça.
No meio jurídico, afirma-se usualmente que o suicida não pode ser condenado por tentar pôr fim à própria vida. Logo, não obstante Kant e Tomás
de Aquino, o suposto “dever” do suicida de manter a própria vida não tem
base moral ou legal. Afinal, se acreditarmos que é plausível, ou compreensível,
que a vida possa deixar de ser um bem para mim, não passando, portanto,
de sofrimento, e se não for um crime tentar tirar a própria vida, que razões
alguém poderia erguer para criticar-me? De qualquer modo, continuo tendo
um direito sobre os demais a que ninguém ameace minha vida. Em outras
palavras, todos têm a meu respeito um dever. Ora, deveres são ausências de
permissões. Mas e se eu tiver um poder sobre mim a ponto de poder alterar
os deveres dos demais? Sendo eu o detentor próprio do direito, não faria
sentido dizer que cabe em última instância a mim, e talvez somente a mim,
manter ou suspender essa proibição sobre os demais?
Veja-se o caso do direito ao trabalho, um dos direitos humanos mais clássicos. Uma das características da escravidão é negar poder ao escravo sobre
sua própria força de trabalho. Escravos não podem, por exemplo, deixar de
trabalhar para seus senhores. Assim, libertar-se da escravidão é conquistar
um poder sobre si mesmo, no caso, sobre sua própria força de trabalho.
Ora, em uma sociedade livre é fundamental que tenhamos não somente
poder sobre nossa capacidade de trabalho, mas essencialmente poder sobre
nossas próprias vidas, a fim de que não sejamos escravizados por ninguém,
isto é, submetidos involuntariamente aos desígnios e interesses de outrem.
De fato, impedir que exerçamos poderes sobre nossas próprias vidas é o
mesmo que nos escravizar. Minha tese é que devemos evoluir politicamente
e admitir a inclusão em nosso sistema legal de autorizações, certamente sob
16  Cremers  Desafios Éticos
certos requisitos, a que se possa ajudar outrem a dar fim à sua vida, caso
esta tenha deixado de ser um bem a seu portador. Note-se que não estamos
diante de um tema ou problema médico, e sim de um tema político. Não
estou propondo nenhuma conduta médica, ou mesmo que se autorize os
médicos a desenvolver meios adequados para ajudar as pessoas a morrer.
Não estou propondo a criação de nenhuma nova “especialidade” médica (tal
como Jack Kevorkian uma vez chegou a propor). O que estou sustentando:
é injusto proibir que alguém possa permitir a outrem ajudá-lo a morrer nos
casos em que há um consenso razoável de que a vida deixou de lhe ser um
bem. Em outras palavras, trata-se de descriminalizar, nesses casos, a ajuda ao
suicídio. Penso que este é um tema sobre o qual devemos evoluir. De qualquer modo, para que isso se torne possível, é preciso haver instrumentos
jurídicos seguros e adequados. A eutanásia voluntária e o suicídio assistido
são temas que deveríamos enfrentar - certamente com coragem, mas também com muita prudência. 
Douglas Pedroso 
Médico Urologista e Conselheiro do Cremers
Procuro apresentar um panorama geral da eutanásia através dos tempos.
O significado etimológico demonstra que eutanásia é uma palavra de origem
grega, que significa “boa morte”. Foi colocada no dicionário Oxford a partir de
1646 e até então não possuía o significado de encurtar ou tirar a vida. O pesquisador Diego Gracia dividiu em três os tipos de eutanásia praticados ao longo da
história da humanidade:
Eutanásia Ritualizada
O ser humano foi o único que ritualizou a morte, como uma forma de tornar
mais tolerável esse evento tão temido. A morte é algo que abominamos, ela é
uma desconhecida. A ritualização, portanto, tem o objetivo de provocar uma
morte em paz, sem dor consciente. A morte de César Augusto foi descrita
Desafios Éticos  Cremers  17
como “a eutanásia que merecia”. É importante ressaltar a dificuldade que nós,
médicos, temos quanto à questão da morte. É mais fácil encontrar apoio na filosofia e no clero do que entre os médicos. Encaramos a morte como inimiga, lutamos
contra ela, o que não deveria ser verdade. O médico luta pela vida.
Eutanásia Medicalizada
Este tipo de eutanásia, defendida por Platão no seu livro A República, seria imposta pelo Estado às pessoas que não merecem viver. Baseado na cultura grega do
belo e do são, Platão defende o extermínio dos que têm doenças crônicas. Essa idéia
foi derrubada por Hipócrates, que se dedica ao tratamento das doenças. A idéia de
Hipócrates serviu ao judaísmo e ao cristianismo. Na Bíblia não existe uma referência
sequer à eutanásia, ou a qualquer prática de extermínio dos doentes.
Sêneca, filósofo romano contemporâneo de Cristo, era um defensor da eutanásia medicalizada.
“Quando a dor impede tudo aquilo pelo que se vive,
prefiro matar-me a ver como se perdem as forças
estando morto em vida.”
Segundo Sêneca, a pessoa deve ser aconselhada ao suicídio quando do sofrimento, da dor atroz.
A difusão do cristianismo e do judaísmo desqualificou a eutanásia. Ela voltaria a tomar força com Francis Bacon. Segundo ele, os médicos deveriam prestar
atenção nos doentes, e não só nas doenças. A medicina hipocrática, por exemplo,
aproveitava as doenças para aprender melhor sobre elas.
Thomas Morus defende a eutanásia na sua obra Utopia.
“Se a doença não é tão-somente incurável mas também
um sofrimento contínuo, deve-se encerrar com a vida que
é tormentosa.”
É uma tentativa de reconhecer o momento da morte, o que se torna cada vez
mais difícil com o avanço da tecnologia. Nós não temos ainda critérios morais,
filosóficos e legais para agir sem medo na hora da medicação do moribundo.
18  Cremers  Desafios Éticos
Eutanásia Autônoma
É baseada no direito do paciente sobre a sua própria vida. É relacionada
muito com a bioética, a relação do paciente, a relação da justiça com a beneficência. Não pode ser confundida com a eutanásia voluntária, segundo Pedroso,
“abominável”, pois ocorre quando o médico decide matar o paciente.
Em 1973, a Associação Americana de Hospitais criou a famosa “Carta dos
Direitos dos Enfermos”, relacionada ao direito do paciente moribundo de morrer em paz. O mais importante do debate deste tema é refletir sobre o momento em que é necessário intervir. Vou encerrar esse tema com a seguinte frase:
“A morte é o último ato de viver, e quem não reconhece isso
está sujeito a passar pela vida sem nunca ter vivido”. 
Jairo Othero 
Médico intensivista, membro da Câmara Técnica do Cremers
Desafios Éticos – A Terminalidade Humana em Ambientes Intensivos
A maturidade é importante para avançar na discussão da Terminalidade Humana em ambientes intensivos. É uma questão que vai além do médico. Gostaríamos de ser os líderes dessa discussão, trazendo novas atitudes, mas acima de tudo
é uma questão inerente ao ser humano.
Nos últimos 15 anos a literatura médica tem mostrado que os pacientes morrem nos hospitais. Dados dos EUA mostram que um em cinco americanos morre
em uma UTI, e dados brasileiros que 85% de nossos óbitos já são hospitalares.
As famílias levam o paciente para o hospital e quando se agrava ele vai para a UTI.
Sabe-se que metade dos pacientes que morrem nos hospitais passou pela UTI,
sendo que um terço deles por mais de uma semana, e apenas 5% com autonomia
para discutir e decidir sobre o como seria e por que seria tratado. Portanto, é uma
situação em que o poder de decisão do paciente está muito reduzido. Na qual
há uma vivência familiar no momento da morte bastante limitada, estreita. Um
cenário onde a comunicação precisa melhorar.
Desafios Éticos  Cremers  19
No Canadá, 70% das mortes na UTI foram precedidas de alguma decisão de
negar alguma possibilidade terapêutica. Em Israel, de cada 100 pacientes de UTI
apenas nove receberam tratamento pleno, incluindo a reanimação. Um estudo
europeu com 504 intensivistas mostrou que 93% das vezes em que um médico
intensivista encontrou um paciente terminal, não ofereceu ou suspendeu algum
tratamento para ele. Um estudo norte-americano com seis mil pacientes terminais demonstrou que apenas 24% destes receberam tratamento pleno. Esses dados demonstram que levar o familiar para o hospital e para a UTI não significa que
ele receberá, necessariamente, tudo o que poderia ou que a família esperaria.
Existe uma mudança de mentalidade, que se espraia para mais profissionais e pacientes. Num estudo com 220 pacientes com mais de 60 anos, foi
apresentado o seguinte quadro hipotético: um paciente em fase terminal cujo
tratamento possível poderia resultar em um maior tempo de vida, mas com
risco elevado de uma seqüela funcional – como não poder engolir ou falar, não
mexer um membro, não poder levantar-se, por exemplo – 75% dos pacientes frente a esse cenário preferiram não aceitar o tratamento proposto. Se o
mesmo tratamento oferecido aumentasse o tempo de vida mas com considerável risco de uma seqüela cognitiva – como perda de memória, dificuldade de
raciocínio, alteração da consciência, por exemplo – quase 90% dos pacientes
recusaram o tratamento.
Embora nos últimos 15 anos predomine uma mudança da atitude médica no
trato de pacientes terminais que morrem em UTI na direção de reconhecer a finitude humana de forma mais natural, de reconhecer as limitações da tecnologia
e seus resultados, do ônus de algumas opções terapêuticas, ainda assim alguns
estudos mostram que, entre os médicos, em algumas circunstâncias, há uma
tendência de acreditar-se que mesmo os pacientes considerados como nãoreanimáveis possam ser reanimados com sucesso.
Então eu me pergunto: será que nós médicos não usamos muito mais os
equipamentos de sustentação da vida e de reanimação porque eles estão ali? Por
seu efeito plástico? Seu sentido estético? Ou será mesmo que os utilizamos por
estarmos seguros - com considerável precisão e acurácia - de que esta é a hora
de usar? Que o benefício para o paciente poderá ser mesmo alcançado?
O desenvolvimento da ordem de não-reanimação foi um marco bem claro
nos cuidados médicos de pacientes graves dos últimos anos. Pela primeira vez
uma ordem médica de “não dar” se definia como assistencial para uma prática
médica de elevada qualidade. Um fato realmente novo, pois a Medicina se fun20  Cremers  Desafios Éticos
damenta especialmente no “dar”. Foi em 1974 que a Associação Americana de
Medicina [AMA] propôs que a decisão de não-reanimação de um paciente fosse
formalmente registrada no prontuário, a partir da aceitação de que a reanimação
não estava indicada em certas situações médicas, tais como doenças terminais,
onde a morte era esperada como desenlace final e natural para aquele paciente. Interessante notar que o princípio da beneficência está diretamente ligado ao
“dar”, enquanto que o da não maleficência ao “não dar”.
A ordem de reanimação foi criada por dois residentes de cirurgia geral e foi
inicialmente prescrita para paradas assistidas em ambiente cirúrgico com a presença do anestesista. Os resultados então foram muito bons. Porém, a questão da
reanimação foi banalizada desde então. Já na década de 60 – quando as técnicas
de reanimação nem haviam chegado ainda no Brasil – apareceram estudos sobre
pacientes nos quais a técnica da reanimação teve resultados negativos. Esses estudos descreviam a agonia daqueles que não obtinham a vida após a reanimação,
e sim um prolongamento da morte sofrida. Naquela época, os médicos já sabiam
que alguns pacientes não eram reanimáveis. Mas ninguém falava nisso. O assunto
era tratado sigilosamente dentro da medicina. Dessa maneira, famílias e pacientes
não conheciam as dificuldades dos médicos em nada ajudavam. A situação dos
pacientes não era esclarecida, não sendo possível uma atitude de consenso.
Em 1974 a Associação Médica Americana se posicionou, exigindo a documentação do processo de reanimação e das decisões de não-reanimação. Dessa forma, as famílias e pacientes passaram a compartilhar com os médicos essas
situações. Ainda assim, em muitas ocasiões, a reanimação tem sido usada para
pacientes terminais, surgindo a necessidade de definir quem reanimar.
Para se ter uma idéia dessa dificuldade, em 1978, um hospital formulou a seguinte questão na corte americana:
“Pode uma ordem de não-reanimação ser prescrita para
um paciente terminalmente enfermo? Pode o médico
fazer isso sem obter autorização da Corte?”.
Ao que o magistrado da Corte respondeu:
“Afinal, o que deve se fazer, em termos médicos, com
alguém que está morrendo? Não é esta uma resposta
própria da arte e da ciência médica?”.
Desafios Éticos  Cremers  21
Ou seja: a decisão de reanimar deve ser do médico, acima da Corte. Desde
então, todo hospital que assiste à população deve possuir protocolos de reanimação e não-reanimação, documentos esses que ainda não são usuais no Brasil.
Ressalto duas citações para ilustrar esse argumento. A primeira:
“Corpos não sofrem, pessoas sofrem”,
ressaltando a necessidade de tratar dos doentes, como afirmava Francis Bacon.
E a segunda:
“A tecnologia é uma oportunidade, e não uma obrigação”,
ressaltando a necessidade do médico de pensar e decidir sobre a reanimação antes de utilizar a tecnologia do desfibrilador, da ventilação artificial,
da hemodiálise, seja ela qual for, apenas como uma obrigação para com o
paciente terminal.
Desde 2000, a Suprema Corte norte-americana reconhece o direito dos
pacientes terminais a recusar tratamentos – sem considerar isso suicídio ou eutanásia – e há um consenso geral de que a medicina intensiva não deve prolongar
um “morrer” sem sentido. Muitas pesquisas médicas contemporâneas nos têm
revelado que a maior parte dos pacientes internados em UTI foram submetidos
a alguma forma de limitação do suporte vital em sua terminalidade. Nesse mesmo ano uma pesquisa americana apontou que 60 a 70% da população acredita
que o médico deva ser legalmente capaz de, em algumas circunstâncias, abreviar
o morrer de um paciente terminal.
Às vezes as diferenças entre a vida biológica e vida humana não ficam
claras para nós. Talvez o repto fosse identificar algum diferencial entre vida
biológica e vida humana, e a partir daí lutar pela vida humana. Uma das coisas
que pode identificar a natureza humana, sobrepondo a condição biológica, é
a questão da dignidade humana. É reconhecido, do ponto de vista filosófico,
que existem situações em que o ser humano é humilhado, tem a sua dignidade
violada. Aos poucos nos damos conta de que são várias as dimensões que
criam conceito valorativo para a vida. Não só a questão médica, mas e acima
dela a questão cultural, institucional, inter e intrapessoal, em constantes transformações e que precisam ser contempladas e apreendidas por nós médicos
no entendimento desse enigma.
22  Cremers  Desafios Éticos
Existe uma base filosófica para a questão da dignidade humana, que hoje
referencia documentos fundamentais como a Declaração Universal dos Direitos do Homem. Um deles é o conceito “kantiano” da autonomia do homem,
base de um grande número de constituições de países ocidentais no pósguerra. A dignidade da pessoa humana vista aqui como a capacidade da livre
escolha, da escolha racional, do livre arbítrio construtivo, enquanto que ao
estado se remete como limite e tarefa uma condição de assegurar ao cidadão
uma dimensão defensiva desta autonomia, coletivamente prestacional, qualidade comum a todos, enquanto que ligados num coletivo social. Eu, como
parte de uma sociedade que valoriza a dignidade do homem, devo prestar
ajuda a quem tiver “corrompida” esta dignidade. Essa pretensão é necessária
e benigna, portanto parabenizo essa discussão como uma iniciativa que vai ao
encontro desse ideal. Acredito que já estamos em condição de encontrar as
respostas para um melhor cuidado ao paciente terminal, que resulte em reais
benefícios aos pacientes e seus familiares. 
Desafios Éticos  Cremers  23
Morte
Coordenação: Marco Antônio de Azevedo
Participantes: Marco Antônio de Azevedo, Pedro Leite Júnior
e Ivan de Mello Chemale
Outubro/2005
Pedro Leite Júnior 
Professor de Filosofia na PUCRS
Lecionei para turmas da área da saúde e sou interessado no tema da bioética. Começo minha exposição relatando as dificuldades de estabelecer-se uma
visão filosófica sobre a morte e o morrer, pois as posições variam de acordo
com as escolas e os pensadores. Sócrates, por exemplo, se posicionou pela
morte, mesmo podendo optar pelo exílio:
“Se não houver outra vida depois desta, terei uma noite
de sono eterna cuja tranqüilidade nem o rei Xerxes teve.
Se houver uma vida depois desta continuarei exercendo
minha atividade como perguntador”.
Através dos tempos foram construídas diversas perspectivas sobre a morte.
As representações da morte, por exemplo, quase sempre são coisas esteticamente feias para sua época. Vejo como importante a necessidade de trazer a noção de
morte como uma questão fática, a partir do debate sobre um caso específico. Se
percebo com atenção, as discussões que envolvem a questão dos bebês anencéfalos e da doação de órgãos são dois pontos de vista quanto ao conceito efetivo
de morte. Segundo alguns, o critério cerebral de morte tem como base a falência
absoluta dos hemisférios e do tronco cerebral. Outros sustentam que o conceito
deveria incidir sobre a morte do neocórtex, cérebro superior. Deixo essas questões para os especialistas, mas observo que o esclarecimento desse impasse é um
elemento importante para o debate.
Apresento o caso do bebê Teresa. Teresa nasceu na Flórida, EUA, em 1992, e
tinha anencefalia. Seus pais, sabendo que o bebê não poderia viver por muito tempo, ofereceram os órgãos dela para transplante. Os médicos concordaram com a
decisão. Mesmo assim, os órgãos do bebê não foram retirados, pois a lei da Flórida
não permite a doação até o doador estar morto. Nove dias depois, Teresa morreu,
e o transplante dos seus órgãos ficou inviável devido ao estado de deterioração em
que se encontravam. Estaria certa a doação ou seria esta uma proposta horrenda?
Um dos argumentos utilizados para contradizer a decisão dos pais é que as
pessoas não podem ser usadas como meio. O bebê Teresa, desse modo, seria um
meio para o fim da sobrevivência das outras pessoas. Essa idéia de que não devemos usar pessoas é apelativa, porém é uma noção vaga. O que significa ao certo
Desafios Éticos  Cremers  27
usar uma pessoa? Violar sua autonomia, ou seja, tirar sua capacidade de decidir
por si mesma como viver sua vida conforme seus desejos e valores. A autonomia
de uma pessoa é violada por manipulação, impostura, fraude ou coerção. Retirar
os órgãos de Teresa envolveria algum desses casos?
A idéia deste questionamento está no fato de o bebê Teresa não ser autônomo, não ter desejos, e na sua incapacidade de tomar decisões. O que seria melhor
para os seus interesses? Os interesses dela não estariam afetados, dada a sua incapacidade autônoma. Quais seriam suas preferências? Ela não tem preferências por
alguma coisa e nunca terá interesse por nada. Estas seriam respostas plausíveis.
Um segundo argumento se expressa no erro de matar. O princípio deste argumento é o erro de matar uma pessoa para salvar outra vida. É sempre errado
tirar a vida do outro? Desta forma, uma ação de legítima defesa seria inviável.
A resposta para esse argumento pode ser a de que “ela morrerá de qualquer
jeito, não existe perspectiva de vida”. Há também o argumento da santidade da
vida, que implica em elementos religiosos. Assim, qualquer vida teria um valor
intrínseco independente da deficiência que possa apresentar. Um argumento,
favorável à doação, se expressa através da noção de benefício. Logicamente
montado, é permitido a P beneficiar S2 sem fazer mal a S1. Transplantar órgãos
de S1 beneficia S2 sem prejudicar S1, portanto devemos fazer o transplante.
Estaria correto designar os transplantados como S2 e Teresa como S1? Teresa não seria prejudicada de fato, uma vez que morreria? Os defensores dessa
tese afirmam que estar viva de nada serve para Teresa. Viver só é um benefício
quando é permitido a alguém realizar atividades, ter sentimentos e estabelecer
relações com outras pessoas. Estar vivo é ter uma vida de relações. A mera
existência biológica não apresenta valor algum, na ausência destas condições.
Acredito que as discussões em torno destes temas remetem ao conflito
relativo à tipologia da noção de morte. Uma das opções seria encarar o bebê
Teresa como morto mesmo antes de nascer; outra seria redefinir o conceito
de morte; outra, ainda, seria estabelecer uma legislação específica para o caso,
uma vez que bebês anencéfalos constituem um percentual muito pequeno de
nascimentos. Dessa forma, caímos no problema da generalização da lei aos casos particulares. A idéia então seria pensar uma legislação típica ao caso dos
anencéfalos porque este caso não se enquadra nem na morte encefálica nem no
estado vegetativo permanente.
A partir do exposto estou aberto às discussões, as quais, me parece, serão
bem mais frutíferas do que esta apresentação. Obrigado. 
28  Cremers  Desafios Éticos
Ivan de Mello Chemale 
Neurologista, neurocirurgião do HPS e professor da FFFCMPA
Morte Encefálica
O sistema nervoso humano, especialmente o encéfalo, torna possível tudo
que podemos fazer, tudo que conhecemos e tudo que podemos vivenciar. Sua
complexidade é imensa e a tarefa de estudá-lo e compreendê-lo minimiza todas
as explorações já realizadas anteriormente por nossa espécie (Cartson, NR).
Será que o cérebro humano chegará à compreensão sobre seu próprio funcionamento? As fronteiras do conhecimento do cérebro humano estão longe de
ser ultrapassadas, mas muito se evolui no entendimento de seu funcionamento.
Dagi, em publicação sobre morte encefálica, discute duas especiais funções do
encéfalo, integração interna e externa, observa também que na morte encefálica estas funções são perdidas, no entanto apenas a primeira pode ser mantida
temporariamente por suporte médico.
Descartes refere-se às elaboradas funções cerebrais, especialmente aquelas relacionadas com as “integrações externas” de forma elegante e singela:
“Cogito, ergo sum” – eu sinto logo eu existo.
Muitas culturas antigas, incluindo a egípcia, hindu, chinesa e a grega, consideravam o coração como o lugar do pensamento e das emoções, porque seu
movimento era necessário para vida e porque as emoções faziam que ele batesse
mais forte. Foi Hipócrates há quase 2500 anos o primeiro a atribuir este papel ao
cérebro. Escreveu no livro “Doença Sagrada” o texto que segue:
“O homem deveria saber que nada mais além do cérebro originam-se as alegrias, os encantamentos, os risos,
os esportes, as tristezas, as mágicas, as desesperanças
e as lamentações. E por isso, de um modo especial nós
adquirimos sabedoria e conhecimento, vemos e ouvimos
e sabemos o que é tolice e o que é justo, o que é ruim e o
que é bom, o que é doce e o que é insípido. E pelo mesmo
órgão nos tornamos insensatos e delirantes, e os medos e
o temores nos assaltam. Todas estas coisas nós devemos
ao cérebro quando ele não está saudável.”
Desafios Éticos  Cremers  29
O neurônio é unidade anatomofuncional do qual depende toda atividade do
sistema nervoso central. É uma célula perene, incapaz de se reproduzir, que tem
uma atividade intensa, onde se originam impulsos que são a base dos processamentos e transmissão das informações. Ele é constituído pelo soma (corpo celular) que
produz todos os mecanismos vitais para seu funcionamento. Os dendritos que
são receptores importantes dos impulsos que passam de neurônio para neurônio transmitidos através das sinapses, e o axônio uma extensão saindo do corpo
celular, coberto de mielina que termina numas vesículas chamadas de botões terminais. Estes botões ativados pelos impulsos gerados pelos potenciais de ação,
liberam neurotransmissores que vão provocar novos impulsos através das sinapses. Um neurônio pode receber informações de dezenas ou mesmo centenas
de outros neurônios. Não existem determinações precisas da quantidade destas
células presentes no sistema nervoso humano, apenas estimativas que variam de
cem a novecentos bilhões.
Senso latu podemos classificar os neurônios do sistema nervoso em três grandes grupos, os sensoriais, que veiculam as informações em forma de luz, ondas
sonoras, odores, sabores e tácteis captadas do exterior; os motores, que controlam os movimentos e entre os dois, totalmente localizados no SNC os interneurônios que são os responsáveis pela percepção, aprendizagem, memória, decisão
e controle do comportamento complexo. Desta forma, o potencial de aprendizado e evolução da espécie humana é infinto. Ela depende das conexões sinápticas
que são desenvolvidas ao longo da vida, a partir dos neurônios neurosensoriais e
motores integrados ao nível cortical pelos interneurônios, formandos circuitos
baseados em nossas vivências, forjando nossa individualidade.
Das remotas convicções espirituais e religiosas dualistas, que o corpo e a mente estão separados, e que o corpo é constituído de matéria comum e a mente
seria algo inatingível, uma alma ou espírito, ao pragmatismo monista, que todo
universo é constituído de matéria e energia e a mente é um fenômeno produzido pelo trabalho do cérebro, estamos ainda, longe de compreender o completo
funcionamento do sistema nervoso humano. Embora à luz dos conhecimentos
científicos atuais seja pretensioso localizar fisicamente a alma e o pensamento,
pode-se afirmar que tudo o que fazemos, a comunicação, a lógica, a conduta e ética estão integrados ao SNC, especialmente em nível cortical, através de impulsos
que formam circuitos determinantes de nosso comportamento.
Tamanha atividade demanda muita energia. Como o neurônio depende quase
exclusivamente de metabolismo aeróbico para manter sua atividade, exige aporte
30  Cremers  Desafios Éticos
constante e adequado de oxigênio e glicose, combustível veiculado pelo sangue
através do sistema carotídeo e vertebrobasilar.
Correspondendo a apenas 2% do peso corporal o encéfalo recebe 15% de
todo volume de sangue de cada sístole cardíaca, passando em 1 minuto o volume equivalente a seu peso. A este aporte chamamos de fluxo sanguíneo encefálico (FSE) que é a quantidade de sangue que passa por minuto em 100 gramas
de cérebro. Corresponde em média a 55ml/100mg/min, sendo em torno de
80ml/100mg/min na substância cinzenta e 20ml/100mg/min na branca. Este fluxo depende da pressão arterial sistólica e da resistência cerebrovascular (RCV).
A RCV é determinada principalmente pelo calibre dos vasos, viscosidade sanguínea e pressão intracraniana. Em condições fisiológicas, quando a pressão arterial
aumenta ou diminui, mecanismos bioquímicos nervosos modificam o calibre dos
vasos e com isso mantém a pressão de perfusão relativamente constante. A autoregulação é um dos mecanismos compensatórios que permitem regular o fluxo
sanguíneo encefálico. A queda de pressão arterial sistólica provoca uma vasodilatação e o aumento uma vaso constrição, provavelmente por um efeito direto na
musculatura lisa dos vasos encefálicos. Este mecanismo não funciona quando a
pressão sistólica for menor que 60mmHg ou maior que 160mmHg. O aumento
da pressão intracraniana também pode diminuir a perfusão cerebral.
Quando o fluxo sanguíneo encefálico diminuir abaixo de 20ml/100mg/min começa a haver sofrimento neuronial importante. A ausência completa de FSE por 7
segundos provoca perda da consciência, entre 3 e 5 minutos lesão irreversível dos
neurônios. Quando isto acontece se materializa a morte encefálica.
A filosofia secular dominante de nosso tempo, o humanismo, enfatiza a
importância da individualidade, da capacidade de reconhecer a verdade e o
valor da vida, o que torna igualmente importante estabelecer ou definir quando ela termina.
O conceito moderno de morte encefálica foi introduzido em 1959 quando
Mollaret e Gouln utilizaram o termo “Coma Depassé” para caracterizar a irreversibilidade do coma. Em 1968 foi criado um comitê especial em Harvard para
estudar e estabelecer com segurança os critérios de definição de morte encefálica. Desde então várias comissões no mundo aprimoraram estes parâmetros que
são na atualidade universalmente aceitos. O Conselho Federal de Medicina, pela
resolução 1.480/97 considerando que parada total e irreversível das funções encefálicas equivale a morte, conforme critérios já bem estabelecidos pela comunidade
científica mundial, normatizou estes parâmetros.
Desafios Éticos  Cremers  31
Resolução do CFM 1.480 de 08/08/1997
Causa do coma:
Não se enquadraram no coma
* Hipotermia
* Uso de drogas depressoras do SNC
Coma aperceptivo
Pupilas fixas e não reativas
Ausência de reflexo córneo palpebral
Ausência de reflexos óculocefálico
Ausência de respostas às provas calóricas
Ausência de reflexo de tosse
Apnéia
Exame deve ser repetido em intervalos mínimos conforme idade
7 dias a 2 meses incompletos
48 horas
2 meses a 1 ano incompleto
24 horas
1 ano a 2 anos incompletos
12 horas
Acima de 2 anos
6 horas
Uma das mais claras expressões da função do funcionamento do encéfalo é a
consciência. A consciência pode ser definida, no sentido amplo, como o completo
conhecimento de si mesmo e do meio ambiente. Plum e Posner a dividiram em
conteúdo da consciência (atenção, sensório, memória, orientação, consciência,
percepção, linguagem, inteligência, afeto, conduta) e despertar da consciência,
que seria o ciclo sono vigília. Segundo os mesmos autores o substrato anatomofuncional do conteúdo da consciência seria o córtex e do despertar tronco-encefálico. No tronco, o Sistema Reticular Ativador Ascendente (SRAA) grupo de
células e fibras difusamente arranjadas, dispostas na porção central do tronco encefálico, caudalmente no terço anterior da ponte até o hipotálamo anterior, tálamo e área septal, origina impulsos que atuando sobre o córtex cerebral provocam
a vigília. O coma, ou impossibilidade do despertar da consciência, significa grande
comprometimento funcional do encéfalo.
Os parâmetros clínicos a serem observados para constatação de morte
encefálica são o coma aperceptivo com ausência de atividade motora supraespinhal, e apnéia.
32  Cremers  Desafios Éticos
Como as reações oculares reflexas de origem labiríntica e proprioceptiva são
integradas ao nível do tronco encefálico, e as reações automáticas e os movimentos voluntárias ao nível cortical, a pesquisa dos reflexos foto motor, córneo
palpebral, oculocefálico, labirínticos e da tosse nos dão uma avaliação segura da
extensão da lesão encefálica.
O centro respiratório do tronco encefálico é estimulado principalmente pelo
aumento da pressão de CO2 no sangue. Quando o paciente está em coma o estímulo para desencadear a respiração é alto, necessitando-se de pCO2 de até 55mmhg.
A prova da apnéia tem o objetivo de determinar se existe algum resquício de função
respiratória no tronco. Consiste na oxigenação com concentração de 100% de O2
durante 10 minutos e após o ventilador é desligado, a seguir é administrado 6 a 8
litros O2 por cateter nasal, a ausência de esforço ventilatório depois de até 10 minutos, significa comprometimento irreversível do centro respiratório.
Estão excluídos do protocolo de morte encefálica aqueles pacientes em coma
por causas decorrentes do uso de drogas depressoras do sistema nervoso central
e hipotermia.
A presença de atividade reflexa medular não afasta o diagnóstico, uma vez que
a arreatividade supraespinhal é que caracteriza a morte encefálica.
Conforme a resolução do Conselho Federal de Medicina, o exame clínico
deve ser acompanhado por um exame complementar que demonstre de forma
inequívoca a ausência de circulação sanguínea intracraniana ou de atividade elétrica ou metabólica cerebral. Embora a avaliação clínica estabeleça com segurança o diagnóstico de morte encefálica, o exame paraclínico facilita a aceitação do
diagnóstico pela família e reforça seu aspecto legal. A angiografia por cateterismo
femural é o exame “ouro”, a ausência de circulação demonstrada angiograficamente caracteriza irreversibilidade das lesões encefálicas, mesmo naqueles casos
de coma não incluídos no protocolo (hipotermia e uso de drogas depressoras do
SNC). Outros exames como ecodoppler transcraniano, tomografia computadorizado com xenônio, cintilografia radioisotópica, SPECT, eletroencefalograma, PET,
monitorização de pressão intracraniana, também podem ser utilizados.
Com os conhecimentos correntes sobre as alterações fisiológicas como instabilidades cardiovasculares, variabilidades térmicas, insuficiências pituitárias, necessidades nutricionais é possível manter um paciente com morte encefálica por tempo prolongado, procedimento justificado em raras situações, como por exemplo,
permitir a viabilidade fetal em mulheres com lesão encefálica irreversível. Ao contrário, existem inúmeras razões para declarar a morte encefálica. A ética, pois, ao
Desafios Éticos  Cremers  33
se prolongar o suporte médico dos pacientes nesta situação podemos criar uma
falsa expectativa para a família e ocupar recursos que poderiam ser utilizados por
pacientes viáveis em termo de recuperação, em um extremamente carente de
investimento em saúde, em contraste com a grande quantidade de pessoas que
dependem deles para sua sobrevivência.
A doação de órgãos é outra razão para declarar a morte encefálica. Quando se
torna insustentável a possibilidade de ser, declarar a morte encefálica passa a ser
também um ato pela vida, pois o recente avanço nas técnicas de transplantes de
órgãos de doadores mortos permite manter a esperança de milhares de pessoas
que estão à espera desta oportunidade. 
Marco Antônio de Azevedo 
Médico e conselheiro do Cremers, Doutor em Filosofia
Anencéfalos e Transplantes
Vou abordar especialmente os argumentos que basearam uma resolução
recente do CFM, que autorizou o uso de órgãos ou tecidos de anencéfalos
para transplante mediante autorização prévia dos pais. A resolução foi relatada
pelo Dr. Marco Antônio Becker e aprovada por unanimidade pelos membros do
CFM presentes na reunião. É uma posição nova dentro da área da ética profissional médica – o médico que participa de uma operação de retirada de órgãos
de anencéfalos não infringe a ética médica.
Os argumentos fundamentais da Resolução nº 1.752, de 13/09/04, indicam que:
anencéfalos são natimortos cerebrais, por sua inviabilidade vital são desnecessárias
as aplicações dos critérios de morte encefálica; o anencéfalo é resultado de um processo irreversível de causa conhecida e sem qualquer possibilidade de sobrevida.
O caso do bebê Teresa nos faz pensar sobre grandes questões, tais como:
um bebê portador de anencefalia – má formação congênita grave incompatível
com a vida após o nascimento – é uma pessoa? Se não é, o que é?
É difícil responder que o anencéfalo não tem vida. Ele não só tem a vida
no sentido de qualquer animal, mas também no sentido da vida dos neurô34  Cremers  Desafios Éticos
nios, células, tecidos. No conceito de morte encefálica, podemos lidar com
a situação em que uma pessoa pode não estar viva ainda que seus órgãos e
células estejam vivos.
Uma boa pergunta é se o anencéfalo é uma pessoa ainda viva. São duas
perguntas: o anencéfalo seria uma pessoa e uma pessoa ainda viva – ele
poderia não ser uma pessoa ainda que tenha vida, ou uma pessoa não viva.
O CFM não chegou a nenhuma conclusão sobre isso, mas podemos inferir:
quando existe a afirmação de que os anencéfalos são natimortos cerebrais,
não podem ser pessoas ainda vivas. O anencéfalo já foi uma pessoa? Pode-se
dizer do feto que teve uma morte intra-uterina que foi uma pessoa que morreu – porém, é controverso aplicar o conceito de pessoa aos fetos. Azevedo
está disposto a admitir a hipótese de que seres não nascidos são pessoas
– mesmo assim, o feto poderia ser uma pessoa já morta.
Temos o dever de respeitar o corpo de uma pessoa morta, ainda que
seja estranho o fato de respeitar uma pessoa sem existência atual. Sendo
plausível que o anencefálico esteja morto e tenhamos de respeitá-lo, ele tem
de doar seus órgãos – ou a sua família – para que possamos usá-los. Se pensarmos ser um desrespeito aos mortos usar os seus corpos, não poderíamos
usar os defuntos das aulas de anatomia. Mesmo que o anencéfalo seja um
natimorto cerebral, usar o seu corpo seria então um fim, e não um meio.
A Dra. Aline Albuquerque de Oliveira, que escreveu um artigo contestando a decisão do CFM, erra na argumentação quando diz que usar órgãos
de anencefálicos seria utilizar uma pessoa exclusivamente para os fins de
outra. Sendo o anencéfalo considerado um natimorto, não poderia ser uma
pessoa a ser utilizada como meio. O conceito kantiano indica como errada a
utilização de pessoas apenas e tão-somente como meio; mas considerando
o anencéfalo uma pessoa morta, e respeitando a sua dignidade como tal,
utilizá-lo não significa fazê-lo exclusivamente como meio.
Uma das objeções feitas à Resolução é a possibilidade de tratar da
mesma forma as pessoas que se encontram em estado vegetativo permanente. Mas uma pessoa nesse estado ainda sobrevive – é muito provável
que ela tenha uma lesão grave no córtex cerebral, mas não é absolutamente certo, como no caso do anencefálico. A resolução do CFM então
busca construir uma nova tipologia sobre a morte. O anencéfalo pode ser
utilizado desde que seus interesses sejam preservados – interesses esses
representados pelos seus pais. 
Desafios Éticos  Cremers  35
Terminalidade
Coordenação: Douglas Pedroso
Participantes: Délio José Kipper, José Roque Junges e Moacir Assein Arús
Novembro/2005
Délio José Kipper 
Pediatra, membro da Câmara Técnica do Cremers e professor da PUCRS
Vou falar sobre a Bioética e o fim da vida no mundo ocidental. Falamos
aqui sobre os conceitos ocidentais de morte, que são bem diferentes e bem
menos complexos que os conceitos orientais. No Ocidente, trabalhamos com
a morte biológica. Há um livro muito interessante, de Philippe Aries (Western
Attitudes toward Death from the Middle Ages to the Present, by Phillipe Aries,
John Hopkins University Press, 1974), que disserta sobre a história da morte no
Ocidente. O livro traz um histórico das atitudes do homem ocidental frente à
morte, demonstrando como ocorreu a passagem lenta e progressiva da morte “domesticada” da Idade Média para a morte repelida, maldita, “interdita”
da atualidade. A morte era um fenômeno presente na vida dos povos antigos,
como ilustra a imagem renascentista. Havia no início da Idade Média uma familiaridade com a morte, que era um acontecimento público. Ao pressenti-la,
o moribundo se recolhia ao seu quarto, acompanhado por parentes, amigos e
vizinhos. O doente cumpria um ritual: pedia perdão por suas culpas, legava seus
bens e esperava a morte chegar. Não havia um caráter dramático ou gestos de
emoção excessivos. A partir do século 18, segundo Aries, a morte tomou um
sentido dramático, exaltado. Passou a ser encarada como uma transgressão que
roubava o homem de seu cotidiano e sua família. A partir da segunda metade do
século 19, a morte se transformou em tabu: os parentes do moribundo passaram
a tentar poupá-lo, esconder a gravidade do seu estado. A partir dos anos 1930, a
medicina mudou a representação social da morte: já não se morre em casa, entre
parentes, mas no hospital, sozinho. Os avanços da ciência permitem prolongar
a vida ou abreviá-la. Pacientes podem ser condenados a meses ou anos de vida
vegetativa, ligados a tubos e aparelhos.
As estatísticas a respeito da morte nos hospitais são raras ou pouco confiáveis.
É muito difícil saber se o paciente chegou ao hospital ainda com alguma possibilidade de sobreviver. Sabe-se que nos Estados Unidos, por exemplo, 20% das
mortes ocorrem no ambiente hospitalar. No Brasil, há certo receio de se fazer o
registro dessas mortes devido a um artigo do Código de Ética Médica que estabelece que o profissional deve utilizar todos os meios de diagnóstico e tratamento ao
seu alcance em favor do paciente. O artigo é o número 57, que prevê punição ao
médico que “deixar de utilizar todos os meios de diagnóstico e tratamento a seu
alcance em favor do paciente”. O artigo 135 do Código Penal também causa teDesafios Éticos  Cremers  39
mor aos médicos, pois fala em omissão de socorro - Deixar de prestar assistência,
quando possível fazê-lo sem risco pessoal, a criança abandonada ou extraviada,
ou pessoa inválida ou ferida, ao desamparo ou em grave e iminente perigo, ou
não pedir, nesses casos, o socorro da autoridade pública. Pena - Detenção, 1 a 6
meses, ou multa. Esses artigos são a representação de uma revisão histórica que
aconteceu sobre os tratamentos da morte, protagonizada pelo cristianismo. Sabese que na Grécia Antiga, por exemplo, as pessoas que exerciam a profissão da medicina sequer poderiam atender aos doentes terminais, pois sua função dentro da
sociedade poderia ser comprometida com essa atitude. Esta idéia foi confrontada
pelos princípios cristãos, da sacralidade da vida, da vida como um bem indisponível
aos seres humanos. Mesmo os avanços científicos protagonizados pelo Iluminismo
não conseguiram confrontar o problema dos médicos em relação à morte.
Esse tema também foi abordado por uma reportagem especial da revista
“Veja”, cuja capa falava sobre os médicos que escolheram entre a vida e a
morte. Nessa reportagem há uma citação do teólogo Leonard Martin:
“Não há dúvida que é mais fácil tratar a morte como
um fenômeno puramente biológico. A dificuldade é que
a morte dos seres humanos recusa simplificações desta
natureza. Aspectos jurídicos, sociais, psicológicos, culturais
e religiosos insistem em se “intrometer” e “complicar” a
situação. O objeto biológico constantemente se transforma num sujeito pessoal, reivindicando direitos, dignidade e respeito. Nesta insistência do “eu” em incomodar
o objetivo científico, surgem os parâmetros éticos e as
questões vitais.”
Este fato gera mais uma grande dificuldade aos médicos, pois o médico tem de
tomar uma decisão que envolve esses aspectos complicados e muito caros a todos
os espectros da sociedade. Temos tipos de morte com conotações morais diferentes. A idéia da vida como bem supremo provoca tratamentos como a distanásia, em que qualquer tratamento, ainda que cause um grande sofrimento por ser
fútil ou desproporcional, é válido para manter a vida. Levando em consideração
a dignidade do ser humano, temos a ortotanásia, que traz a morte no momento
certo, com conforto e alívio do sofrimento. As idéias de preservação suprema da
dignidade da vida trazem o tratamento da morte por eutanásia e suicídio assistido.
40  Cremers  Desafios Éticos
A eutanásia é a abreviação da vida, sem dor ou sofrimento; o suicídio assistido traz
essa abreviação da vida ajudada por um terceiro elemento. Analisando o Código
de Ética Médica dos quinze países latino-americanos, podemos ver que a opinião
é maciçamente contrária à eutanásia e ao suicídio assistido pelo médico. O Código
de Ética Médica do Uruguai, no entanto, traz artigos bastante interessantes.
O artigo 42 desse Código, por exemplo, afirma: “A eutanásia ativa, o matar intencionalmente, é contrária à ética da profissão”. O artigo 43 traz um argumento
fundamental em relação à terminalidade:
“Em caso de morte encefálica o médico não tem
obrigação de usar técnicas, remédios ou aparelhos cujo
uso sirva apenas para prolongar este estado”.
Em doentes terminais, aliviar sofrimentos físicos e mortificações artificiais, ajudando a pessoa a morrer dignamente, é a decisão eticamente apropriada.
Um pouco sobre a evolução da medicina intensiva. Podemos dizer que o pioneirismo na medicina intensiva acontece no início dos anos 1950, quando da grande epidemia de poliomielite. Essa epidemia pôde colocar à prova um invento de
Drinker e Shaw nos anos 40, o chamado “pulmão de aço”. O pulmão de aço era um
grande equipamento cilíndrico que mais lembrava um mini-submarino, no qual o paciente era introduzido, ficando apenas a sua cabeça do lado de fora. Os recursos de
ventilação do pulmão de aço eram limitados, além de ser um objeto extremamente
desconfortável. A prática, porém, não deixa de ser um marco inicial da medicina
intensiva. Nos anos 50 novas técnicas apareceram, como a ventilação com pressão
positiva, mas o advento da cirurgia cardíaca nos anos 60 protagonizou um novo
conceito para a medicina intensiva. Novas técnicas fizeram com que a parada cardiorrespiratória não mais significasse necessariamente a morte do paciente, através
da atuação dos cuidados na circulação, no meio interno do paciente, bem como da
vigilância instrumental de parâmetros fisiológicos. Este avanço na medicina intensiva
pôde redefinir o conceito de paciente crítico: paciente crítico, desde então, é aquele
que sofreu uma ameaça vital potencialmente reversível.
Os pacientes hoje presentes na UTI enquadram-se nas seguintes modalidades:
risco de morte reversível, pacientes em neoplasia endócrina múltipla, estado vegetativo (persistente/permanente) e pacientes terminais. É necessário avaliar o impacto
da Bioética no contexto da medicina intensiva, para que a dignidade da vida humana
seja respeitada. João Paulo II, na encíclica Evangelium Vitae, afirmou:
Desafios Éticos  Cremers  41
“Distinta da eutanásia é a decisão de renunciar ao
chamado excesso terapêutico, ou seja, há certas intervenções
médicas já inadequadas à situação real do doente, porque
não proporcionais aos resultados que se poderiam esperar
ou ainda porque são demasiado graves para ele e sua família. Nestas situações, quando a morte se anuncia iminente
e inevitável, pode-se em consciência renunciar a tratamentos que dariam somente um prolongamento precário
e penoso da vida, sem, contudo, interromper os cuidados
normais devidos ao doente em casos semelhantes”.
E conclui:
“A renúncia a meios extraordinários ou desproporcionados
não equivale ao suicídio ou à eutanásia, antes, à aceitação da condição humana diante da morte.”
Essa afirmativa demonstra um avanço, no campo da religião, a respeito da
preservação da dignidade do ser humano.
Os principais modos de óbitos nas UTIs são a neoplasia endócrina múltipla, registro de patologia comparativa, ONR, RSV (respiratory syncytial virus) e NSV, todas essas fazendo parte do LTF. Um relatório de Prendergast e Claessens, datado
de 1998 e que avaliou 6.303 pacientes que morreram em 110 UTIs de 38 estados
norte-americanos, demonstrou que 393 destes pacientes morreram por morte
encefálica. Nos demais 5.920 pacientes, 26% receberam todos os cuidados de
UTI, 24% receberam cuidados de UTI, sem registro de patologia comparativa,
14% não receberam suporte vital e 36% tiveram o suporte vital retirado.
Para decidir acerca da manutenção do suporte vital ao paciente, é necessário obter consenso na equipe de saúde, e isso implica: a possibilidade de certeza
do diagnóstico e prognóstico - que deve ser alta; o respeito à conduta científica
padrão; a legalidade da conduta; a autonomia do médico ou equipe; as normas
da instituição; os valores da equipe e a expectativa da sociedade. Tudo isso gera
conflitos morais que devem ser solucionados pelos comitês de bioética. A vontade do paciente obedece a critérios de juízo substantivos, subjetivos e baseados nos melhores interesses. A figura descrita abaixo demonstra os princípios da
Bioética ao longo da Linha da Vida:
42  Cremers  Desafios Éticos
José Roque Junges 
Doutor em Teologia e professor de Bioética na Unisinos
O Princípio do Duplo Efeito e a
Suspensão de Tratamento em Doenças Terminais
Vou abordar o tema do princípio do duplo efeito em sua aplicação na
suspensão do tratamento em pacientes terminais. Qual é a origem desse
princípio clássico da ética médica? Na questão LXIV, artigo 7 da Suma Teológica de Tomás de Aquino, ao tratar do homicídio, encontra-se a resposta
para a seguinte pergunta:
“É lícito matar a outrem para nos defendermos?”
Tomás de Aquino responde:
Desafios Éticos  Cremers  43
“Nada impede que um mesmo ato tenha duplo efeito,
dos quais só um está em nossa intenção, estando o outro
fora dela. Ora, os atos morais se especificam pela nossa
intenção e não pelo que está fora dela, que é acidental,
como do sobredito resulta. Ora, do fato de quem se
defende pode resultar um duplo efeito: um, a conservação
da vida própria; o outro, a morte do atacante. Portanto,
tal ato, enquanto visa à conservação da vida, não é, de
natureza, ilícito, pois, a cada um é natural conservar
a existência, na medida do possível. Um ato, porém,
embora procedente de uma boa intenção, pode tornar-se
ilícito se não for proporcionado ao fim. Portanto, age
ilicitamente quem, para defender a vida própria,
empregar violência maior que a necessária. Mas se
repelir a violência moderadamente, a defesa será lícita...”
O argumento moral da legítima defesa é a origem do Princípio do Duplo
Efeito É lícito realizar um ato moralmente bom ou indiferente do qual decorram
dois efeitos - um, bom, e o outro, mau - se existe uma razão proporcionada,
se o fim último do agente é bom e se o efeito mau não é meio para alcançar o
bom. De acordo com a moral tradicional, a aplicação do princípio de duplo efeito
é moralmente justificável quando:
1) a ação seja boa ou indiferente;
2) o fim seja honesto;
3) o efeito bom não seja alcançado através do mal;
4) e exista uma razão proporcionada grave para aceitar o efeito mau.
Existem correções e aperfeiçoamentos em relação a esta formulação
tradicional, que se encontram no Princípio da Totalidade explicitado pelo
Papa Pio XII (Nolan 1970), que indica: “As partes estão submetidas ao todo.
É lícito (e às vezes até obrigatório) amputar uma das partes do organismo a
fim de evitar a morte da pessoa. Pode-se extrair um braço que está gangrenado, um apêndice que está infeccionado, um útero que está canceroso, a
fim de salvar o organismo”.
Algumas condições para a aplicação do princípio da totalidade:
44  Cremers  Desafios Éticos
1) que se trate de uma intervenção sobre a parte doente ou que é diretamente a causa do mal, para salvar o organismo são;
2) que não haja outros modos ou meios para fugir da doença;
3) que haja boa chance, proporcionalmente grande, de sucesso;
4) que se tenha o consentimento do paciente.
Outro aperfeiçoamento do princípio do duplo efeito foi a introdução do conceito “voluntarium in causa” voluntariedade do ato quanto à causa, mas não quanto
ao efeito, pensamento protagonizado pela Escola de Salamanca para justificar por
que se pode aceitar a produção de um efeito mau.
Modernamente houve uma crítica, por parte do teólogo católico italiano
Leandro Rossi (1973), à visão mecanicista do agir moral que está na base do
princípio do duplo efeito e à mentalidade fixista que determina a sua interpretação. O jesuíta alemão Peter Knauer (1967) tenta uma interpretação do princípio
a partir de novos pressupostos de compreensão do agir moral, citando a razão
proporcionada como condição central e preponderante.
Knauer produziu uma nova hermenêutica do princípio de duplo efeito, tentando contextualizar adequadamente a ação humana de duplo efeito. Para ele, a
existência humana total e a totalidade do contexto real deve ser o horizonte de
compreensão para avaliar o ato com dois efeitos. Só na perspectiva da totalidade
e da complexidade da ação pode-se julgar a razão ou o motivo proporcionado da
ação de duplo efeito. A moralidade do ato exige que seja proporcional ao valor
moral que se pretende realizar e obtido na maior medida possível. O caráter direto
ou indireto de uma ação não é tanto o efeito material em si, mas o contexto total.
Por isso é importante o critério complementar da contraprodutividade da ação.
Assim chega-se, segundo Knauer, a uma formulação hermenêutica do princípio do
duplo efeito, a saber: Pode-se permitir ou causar um efeito mau (prejuízo ou dano):
a) se existe uma razão proporcional para isso (se não existe razão proporcional a ação será intrinsecamente má);
b) se a ação não é usada como meio para tornar possível uma outra ação que
seja intrinsecamente má (por faltar uma razão proporcionada);
c) se não se utiliza uma outra ação já intrinsecamente má (por faltar razão
proporcional) para tornar possível a ação intencionada como boa.
Mas o que é esta “razão proporcional”? Segundo Rossi (1973)
Desafios Éticos  Cremers  45
“o motivo para permitir um efeito mal deve ser tanto
mais grave quanto pior é o efeito, quanto mais seguro de
que se produzirá, quanto mais imediatamente for causado, quanto mais graves forem as obrigações pessoais de
evitar o efeito e quanto mais provável resulte que, em não
se colocando a ação, não se dê o efeito”.
Knauer explica da seguinte forma:
“Um ato é mau porque sua razão não é proporcional. Ora,
que uma razão não seja proporcionada significa que, levando
em consideração a realidade total, impede-se, pela maneira
de aspirar, a realização plena do valor visado: o ato não é
proporcionado à sua própria razão. Por outro lado, existe razão
proporcionada quando se aspira verdadeiramente à realização
máxima do valor visado ao nível de sua realidade total”
A partir deste princípio, pode-se defender uma relativização do tratamento ao doente terminal a partir da norma prática da proporcionalidade
terapêutica. Segundo Pessini (2001), existe obrigação moral de implementar
todas as medidas terapêuticas que tenham uma relação de proporção entre
os meios empregados e o resultado previsível. As intervenções em que esta
relação de proporção não se cumpre são consideradas desproporcionais e,
portanto, não são moralmente obrigatórias. Alguns elementos que sempre
deveriam ser levados em conta na hora de se julgar a proporcionalidade de
uma intervenção médica:
a) utilidade ou inutilidade da medida;
b) alternativas de ação, com seus respectivos riscos e benefícios;
c) prognóstico com ou sem a implementação da medida;
d) custos, de ordem física, psicológica, moral ou econômica impostos ao
paciente, à família e à equipe de saúde.
Para aplicar com justiça os preceitos sobre a terminalidade da vida, precisamos agregar novos princípios morais ao clássico de duplo efeito (Botero Giraldo
2003). O princípio da totalidade, isto é, sacrificar a parte em vista do todo, entendido em seu sentido físico e existencial, mas não compreendido como tota46  Cremers  Desafios Éticos
lidade social e política como foi o caso do nazismo. O princípio da gradualidade
do agir que se aproxima por passos gradativos possíveis da realização mais plena
do valor almejado com a ação. O princípio do valor prevalente que pretende
ser uma evolução e revisão do princípio de duplo efeito, pois o valor prevalente
identifica-se, em outras palavras, com a razão proporcionada. Em um conflito
de valores é necessário identificar qual é o valor preponderante de incidência
moral que servirá de razão proporcionada para justificar a ação. O princípio do
mal menor aplicável em situações em que todas as opções de ação produzirão
efeitos maus. Escolhe-se o mal menor que, no fundo, é o bem possível.
Outros propõem o princípio do compromisso ético, preconizado pela teologia luterana, que é a tentativa de obter o bem possível nestas circunstâncias
concretas (Weber 1976). Em todo agir sempre existe um compromisso ético,
porque não se consegue realizar o bem total e sempre é necessário fazer as
contas com as limitações e com o mal inevitável. Mas é um mal entendido aqui
em sentido pré-moral ou físico. É importante também ter presente o princípio
da ecologia da ação defendido por Edgar Morin (2005):
a) os efeitos da ação dependem não apenas das intenções do autor, mas também das condições próprias ao meio onde acontece (riscos da boa intenção);
b) impossibilidade de prever os resultados (incerteza do resultado).” 
Referências Bibliográficas
AQUINO, T. Suma Teológica, 2ª parte. Questões 1-79. Volume V. Porto Alegre: Ed. Sulina/ EST/UCS, 1980.
BOTERO, G. De la norma a la vida: Evolución de los principios morales. Madrid: PS Editorial, 2003.
JUNGES, J. Bioética: Casuística e hermenêutica. São Paulo: Ed. Loyola, 2006.
KNAUER, P. “Das rechtverstandene Prinzip von der Doppelwirkung als Grundnorm jeder
Gewissensentscheidung” Theologie und Glaube 57. 1967, 107-133.
MORIN, E. O Método 6. Ética. Porto Alegre: Ed. Sulina, 2005.
NOLAN, M. El Princpio de Totalidad en Teología Moral. In: Ch. Curran (Org.) ¿Principios absolutos
en Teología Moral? Santander: Sal Terrae, 1970, 235-251.
PESSINI, L. Distanásia. Até quando prolongar a vida? São Paulo: Ed. Loyola, 2001.
ROSSI, L. Doble Efecto (Principio del). In: ROSSI, L. / VALSECCHI, A. Diccionario Enciclopedico de
Teología Moral. Madrid: Ed. Paulinas, 1973, 233-247
WEBER, H. Il compromesso etico. In: T. Goffi (Org.) Problemi e Prospettive di Teologia Morale.
Brescia: Queriniana, 1976, 199-219.
Desafios Éticos  Cremers  47
Moacir Assein Arús 
Médico, conselheiro do Cremers e professor universitário
Terminalidade
A partir da década de 1970, observou-se rápido envelhecimento da população brasileira, devido basicamente à queda da fecundidade e não à queda da mortalidade.Os
autores diferenciam aumento de longevidade e envelhecimento de uma população.
A longevidade é definida como o número de anos que, em média, as pessoas
de uma mesma geração (conjunto de recém-nascidos em determinado momento
ou mesmo intervalo de tempo) viverão.
O envelhecimento populacional refere-se à mudança na estrutura etária da população. No Brasil, considera-se 60 anos a idade que separa idosos e não idosos.
Ao compararmos a distribuição da população brasileira em 1970 (figura 1) e
2000 (figura 2), observamos um claro aumento do número de idosos, identificado
pelo alargamento do ápice da pirâmide, em 2000 (Fonte IBGE).
A participação percentual da população com 60 e mais anos cresce de 5%
em 1970 para 8,5% em 2000. Nos próximos anos, com a redução da mortalidade, espera-se um incremento ainda maior da proporção de velhos, o que representará uma sobrecarga adicional aos serviços de saúde (Magno de Carvalho
JA, Garcia RA – Caderno de Saúde Pública 2002; 19(3):725).
48  Cremers  Desafios Éticos
Analisemos as estatísticas de mortalidade, por grupos de causas, no Rio Grande
do Sul entre 1970 e 1999 (Tabela 1).
GRUPOS
1970
1980
1990
1999
Circulatório
30.1
34.6
35
33.6
Neoplasias
11.7
14.0
16.3
18.9
Respiratório
9.4
10.1
12.1
12.7
Causas Externas
6.8
9.5
10.0
9.4
Digestivo
2.9
3.7
4.3
5.2
16.1
10.2
8.0
5.0
Endócrinas
2.9
2.5
2.1
4.1
Infecciosas
9.7
4.7
2.8
3.6
Mal Definidas
Há uma mudança do perfil da mortalidade no Rio Grande do Sul, nos 30 anos
considerados:
1) Diminuíram:
• A mortalidade por doenças infecciosas e parasitárias. Há aumento nos últimos anos com a inclusão da Aids;
• A mortalidade infantil, embora mantidas as desigualdades regionais;
• As causas mal definidas, o que pode significar maior acesso da população
aos serviços de saúde.
2) Aumentaram:
• A expectativa de vida ao nascer;
• A mortalidade por doenças crônico-degenerativas;
Neoplasias – pulmão, mama, próstata.
Cardiovasculares – infarto do miocárdio em mulheres;
• A mortalidade por causas externas: homicídios, suicídios, acidentes de trânsito;
• A mortalidade por doenças respiratórias em idosos.
Desafios Éticos  Cremers  49
O gráfico n° 1 mostra os principais motivos de internação no Hospital de Clínicas de Porto Alegre, pelo SUS, em 2002. O maior número de pacientes internados são os oncológicos.
Principais motivos de internação HCPA – SUS 2002
A prevalência de doenças crônicas e incapacitantes aumenta com o envelhecimento da população, o que gera grande pressão sobre os serviços
de saúde.
Em conferência sobre “A morte e o morrer”, o Prof. Carlos Francisconi
cita publicação do Hastings Center Report (26:6, 1996), em que são definidos
os quatro valores nucleares da Medicina, quais sejam:
1. Prevenção da doença e do dano; promoção e manutenção da saúde.
2. Alívio da dor e do sofrimento causado pelas doenças.
3. Cura e cuidado dos doentes e cuidados para aqueles que não podem
ser curados.
4. Evitar a morte prematura e procurar a morte tranqüila.
50  Cremers  Desafios Éticos
O mesmo Hartings Center Report define morte tranqüila como sendo
“aquela em que a dor e o sofrimento são minimizados
por paliação adequada, na qual os pacientes não são
abandonados ou negligenciados, e na qual os cuidados
com aqueles que não vão sobreviver são avaliados, tão
importantes como aqueles que são dispensados a quem
irá sobreviver”.
A definição de morte tranqüila nos leva ao de medicina paliativa.
Segundo o Oxford Text Book of Palliative Medicine, a medicina paliativa é
definida como
“o estudo e manejo de pacientes com doença ativa, progressiva, muito avançada, e para as quais o prognóstico é
limitado e o foco dos cuidados é a qualidade de vida”.
A medicina paliativa tem por objetivo o cuidado paliativo, entendido como
“o cuidado ativo e total de pacientes cuja doença não mais responde ao tratamento curativo”. O objetivo é o controle da dor e outros sintomas, bem
como de problemas psicológicos, sociais e espirituais. O cuidado paliativo visa
alcançar a melhor qualidade de vida possível para pacientes e familiares.
Todos os pacientes com doença avançada, progressiva, ativa e incurável
e não apenas os idosos ou aqueles com câncer, necessitam uma abordagem
holística, focada na qualidade de vida. Por serem os idosos o segmento que
atualmente mais cresce na população brasileira, nos referimos, inicialmente,
ao envelhecimento da população brasileira.
O adequado cuidado paliativo exige trabalho interdisciplinar, no qual
a equipe se familiarize com as diversas etapas pelas quais o paciente e a
família passam, desde o diagnóstico da doença até a morte do paciente e
o luto da família.
Seguindo a Organização Mundial da Saúde, o cuidado paliativo:
• Afirma a vida.
• Não acelera nem retarda a morte.
• Entende a morte como um processo natural.
• Busca o alívio da dor e de outros sintomas.
Desafios Éticos  Cremers  51
• Integra aspectos psicológicos e espirituais do cuidado.
• Oferece sistema de suporte para ajudar os pacientes a viverem tão ativamente quanto possível até a morte.
• Oferece um sistema de suporte para ajudar a família durante a doença do
paciente e em seu próprio luto.
Ao lidar com a morte, o cuidado paliativo busca evitar ou diminuir o sofrimento do paciente diante dos mais variados desafios que lhe são propostos,
tais como:
De ordem social: comunicação com a equipe de saúde, relações com a família e amigos, alterações na sexualidade e afeto, problemas financeiros e previdenciários, dificuldades no trabalho e na escola;
De ordem física: dor, incapacidade funcional, fadiga, caquexia, distúrbios, do
sono e do apetite, náusea, dispnéia, etc..
De ordem psicológica: diminuição da auto-estima, alteração da imagem corporal, ansiedade, depressão, raiva, medo, irritabilidade, isolamento, hostilidade,
desespero.
De ordem espiritual: valores pessoais como ser humano, significado da dor,
da doença, da vida, perspectivas existenciais e efeito das crenças religiosas.
O atendimento correto do paciente tem por pressupostos a competência
técnica, científica e ética do médico e dos demais componentes da equipe
multidisciplinar.
A ética e a medicina são inseparáveis. A preservação da vida e o alívio do
sofrimento são objetivos da atuação médica, segundo os Professores Jefferson
Piva e Paulo A. Carvalho (Bioética 1993; 1:129-38). Estes dois princípios se complementam na maior parte das situações de trabalho médico; por vezes, porém,
são antagônicos. Quando frente a dilemas, quatro princípios éticos guiam o cuidado médico:
• Respeito pela autonomia do paciente (autodeterminação);
• Beneficência (fazer o bem);
• Não maleficência ( não causar dano);
• Justiça.
Os autores anteriormente referidos abordam de maneira didática a hierarquização e a aplicação dos princípios relacionados acima frente ao paciente terminal e à família deste.
52  Cremers  Desafios Éticos
Ressalte-se também que o enfrentamento de dilemas como não iniciar tratamentos ou suspender tratamentos, pode causar desconforto e estresse na equipe
de saúde. Aqueles que trabalham em cuidados paliativos devem encontrar tempo
para reuniões de discussão dos casos e reflexão sobre a prática desenvolvida.
O Código de Ética Médica (Resolução CFM nº 1.26/88), orienta o médico
quanto ao respeito aos direitos fundamentais dos pacientes terminais:
1) O direito de decidir e o direito à verdade.
É vedado ao médico:
Art. 46 – Efetuar qualquer procedimento médico sem o esclarecimento e o
consentimento prévios do paciente ou de seu responsável legal, salvo em iminente
perigo de vida.
Art. 48 – Exercer sua autoridade de maneira a limitar o direito do paciente de
decidir livremente sobre a sua pessoa ou seu bem-estar.
Art. 56 – Desrespeitar o direito do paciente de decidir livremente sobre a
execução de práticas diagnósticas ou terapêuticas, salvo em caso de iminente perigo de vida.
Desafios Éticos  Cremers  53
Art. 59 – Deixar de informar ao paciente o diagnóstico, o prognóstico, os riscos e
objetivos do tratamento, salvo quando a comunicação direta ao mesmo possa provocar-lhe dano, devendo, nesse caso, a comunicação ser feita ao seu responsável legal.
São artigos que obrigam o médico a respeitar e estimular o direito do paciente à autodeterminação (autonomia) e criam o dever da informação adequada ao
paciente para que o mesmo possa tomar decisão.
2) O direito ao alívio da dor e do sofrimento.
Art. 5° – O médico deve aprimorar continuamente seus conhecimentos e
usar o melhor do progresso científico do paciente.
É vedado ao médico:
Art. 57 – Deixar de utilizar todos os meios disponíveis de diagnóstico e tratamento a seu alcance em favor do paciente.
Ambos os artigos são passíveis de interpretação conflituosa, mas o melhor pensamento médico e o humanismo solidário levarão ao correto uso do progresso científico
e à definição do que realmente significa atuar em benefício e em favor do paciente.
3) Direito a não ser abandonado pelo médico.
É vedado ao médico:
Art. 61 – Abandonar paciente sob seus cuidados.
§ 1° Ocorrendo fatos que, a seu critério, prejudiquem o bom relacionamento
com o paciente ou o pleno desempenho profissional, o médico tem o direito de
renunciar ao atendimento, desde que comunique previamente ao paciente ou
seu responsável legal, assegurando-se da continuidade dos cuidados e fornecendo
todas as informações necessárias ao médico que lhe suceder.
§ 2° Salvo por justa causa, comunicada ao paciente ou a seus familiares, o
médico não pode abandonar o paciente por ser este portador de moléstia crônica
ou incurável, mas deve continuar assisti-lo ainda que apenas para mitigar o sofrimento físico ou psíquico.
O conhecimento de que a doença é incurável e a certeza de que a morte é
inexorável devem despertar no médico os sentimentos de compaixão e solidariedade, fazendo-o acompanhar o paciente até a morte e trabalhar para minimizar o
sofrimento do paciente, banindo o “não tenho mais o que fazer pelo senhor”.
A equipe multidisciplinar, além de procurar o bem-estar físico, psicológico,
social e espiritual do paciente terminal, deve voltar seu olhar para a família, no
sentido de ajudá-la e elaborar um luto normal.
54  Cremers  Desafios Éticos
Transplante e
Doação de Órgãos
Coordenação: Marco Antônio de Azevedo
Participantes: José de Jesus Peixoto Camargo e Nélson Boeira
Dezembro/2005
José de Jesus Peixoto Camargo 
Cirurgião torácico, conselheiro do Cremers e professor da FFFCMPA
Aspectos Éticos – Transplante de Pulmão
Nesta apresentação pretendemos abordar aspectos éticos e técnicos do
transplante pulmonar, uma prática restrita a poucos países, na América do Sul,
visto que apenas Colômbia, Argentina e Brasil realizam o transplante pulmonar.
Uma revisão mostrou que entre maio de 1989 e outubro de 2005, foram
realizados 328 transplantes de pulmão na América do Sul, 233 dos quais em
Porto Alegre, ou seja, foram realizados, na nossa Santa Casa, cinco transplantes a mais do que a soma de todos os transplantes feitos na América do Sul,
incluindo o restante do Brasil.
Indicações mais freqüentes: enfisema, fibrose, fibrose cística, hipertensão pulmonar, o que está de acordo com a experiência internacional.
Nesta sessão que deve abordar aspectos éticos, vamos discutir inicialmente dois casos de transplantes, um por enfisema, outro por fibrose, duas das
indicações mais freqüentes, para que se tenha uma idéia dos procedimentos e
da evolução usual nesses casos.
No primeiro caso, uma mulher, transplantada em 1994, quando tinha 58
anos de idade; curiosamente no pulmão removido para o transplante havia
um carcinoma pequeno, insuspeitado radiologicamente. Dois anos depois, em
1996, apresentou uma hiper-insuflação progressiva do pulmão nativo que foi
tratada com cirurgia de redução de volume desse lado, com excelente resultado. Onze anos depois segue bem, com função pulmão normal.
O outro caso é de uma médica do Piauí, com apenas 1,45 m de altura e
uma importante redução do tamanho da caixa torácica provocada pela fibrose
pulmonar severa. Foi considerada muito improvável a obtenção de um doador tão pequeno, mas três dias depois de completada a avaliação, surgiu um
doador de apenas 13 anos, cujo pulmão só servia para ela. Sete anos depois
o pulmão nativo desapareceu por causa da fibrose, mas a função pulmonar se
manteve inalterada no pulmão transplantado.
Uma terceira indicação: hipertensão pulmonar. Existem vários parâmetros
clínico-funcionais para se indicar o transplante em hipertensão, mas atualmente
o elemento mais importante para se pensar em transplante nesses casos é a falta
Desafios Éticos  Cremers  57
de resposta dos vasodilatadores. Algumas drogas novas mudaram completamente
o enfoque do paciente com hipertensão pulmonar, de modo que só na falência do
tratamento vasodilatador se cogita o transplante. Quando indicado o transplante,
porque não houve resposta aos vasodilatadores, ou, o que também pode ocorrer,
a resposta deixou de existir depois de algum tempo (tolerância medicamentosa),
a tendência atual é que o transplante seja bilateral, visto que no unilateral o pósoperatório costuma ser muito complicado: a extrema rigidez da circulação do
pulmão nativo faz com que toda a perfusão se dirija ao pulmão transplantado.
Sendo assim, se ocorrer algum problema precoce com o órgão recém-implantado
(injúria de reperfusão, rejeição, infecção etc.), ele continuará a receber toda a
perfusão, o que obviamente determinará um shunt severo. Em função desse pósoperatório complicado no transplante unilateral, a tendência atual é preferencialmente transplantar os dois pulmões em hipertensão pulmonar.
Esta nova tendência é ilustrada neste caso: um paciente com severa hipertensão pulmonar (havia mais pressão na artéria pulmonar do que na aorta), com o
coração muito dilatado. O transplante dos dois pulmões reduziu a pressão para os
valores normais e o coração reassumiu a sua configuração anatômica original.
As indicações clássicas de transplante duplo de pulmão são as doenças supurativas; e as indicações modernas são o enfisema em paciente jovem e hipertensão pulmonar. O nosso primeiro transplante duplo foi em 1993, paciente com
pulmões destruídos por enfisema e bronquiectasias. O doador foi um jovem de
15 anos de idade e o transplante foi um sucesso.
O transplante cardiopulmonar é uma indicação em declínio - só existe um
paciente na nossa lista de espera, entre 55 casos. A indicação está restrita a pacientes com uma cardiopatia grave, sem possibilidade de correção cirúrgica, e
acompanhada de uma hipertensão pulmonar severa.
O desafio mais recente dos transplantes é o transplante intervivos, que foi
proposto em 1990 na Califórnia, pelo Dr. Starnes, devido à grande demanda de
órgãos e à escassa oferta, especialmente em se tratando de pacientes pediátricas.
O transplante intervivos possibilita que lobos pulmonares de adultos substituam
pulmões inteiros de crianças ou adolescentes. Os receptores não podem ter o
tórax tão pequeno que os lobos não caibam, nem ser tão grandes que os lobos
não consigam preencher o espaço. Por isso, na maioria dos casos, os receptores
têm entre 10 e 15 anos de idade, dependendo um pouco do grau de subdesenvolvimento provocado pela doença. A recomendação é de que os doadores sejam preferentemente familiares (em geral pai e mãe), e presumível vantagem por
58  Cremers  Desafios Éticos
compatibilidade imunológica se confirmou na observação de menores índices de
rejeição crônica nesta população.
Em 1999, na Santa Casa de Porto Alegre, realizamos o primeiro transplante de pulmão intervivos, que foi o primeiro transplante intervivos ocorrido
fora dos EUA. O paciente, um menino de Curitiba, de 13 anos, tinha apenas
12% de capacidade respiratória, uma bronquiolite obliterante severa – os
seus pulmões estavam hiper-insuflados. Recebeu um lobo do pai e outro da
mãe, o que permitiu que em dois meses o garoto tivesse 97% de capacidade
respiratória. Em dois anos e meio ele cresceu 11 centímetros e o pulmão
aumentou 390 cm³, mostrando que apesar de serem órgãos maduros, porque
foram retirados de adultos, quando colocados num receptor que ainda possui
o hormônio do crescimento, estes órgãos voltam a crescer. Decorridos sete
anos a atividade pulmonar continua preservada.
Este outro exemplo é um caso de fibrose cística, em um garoto de 14 anos,
de Belo Horizonte, que usava máscara de oxigênio havia 45 dias e só tinha 23%
da capacidade pulmonar. Os pais doaram os lobos pulmonares – é necessário que
duas pessoas façam a doação. Uma das grandes vantagens desse modo de transplante é que o paciente pode ser preparado do ponto de vista clínico. O garoto
teve uma alimentação adequada, ganhando seis quilos de peso, e foi submetido a
uma terapia múltipla de antibióticos. Assim, foi transplantado na melhor condição
possível. Decorridos cinco anos este paciente segue em vida normal.
Aprendeu-se que o transplante deve ser bilobar, ainda que a doença não
seja supurativa, porque um lobo de adulto, ainda que possa ocupar o espaço de
um pulmão inteiro da uma criança, será apenas um lobo do ponto de vista de
unidades respiratórias e isso pode ser insuficiente para superar as dificuldades
pós-operatórias precoces. As rejeições agudas são freqüentes em virtude de o
mecanismo imunológico das crianças ser muito ativo, mas a rejeição crônica é
rara. Isso faz com que a sobrevida em cinco anos seja de 79%, enquanto que
nos receptores de órgãos de cadáveres, a expectativa de vida em cinco anos mal
ultrapassa os 50 por cento.
A perda funcional dos doadores de lobos é de 18%, aproximadamente, o
que só faz diferença para superatletas. Relatos recentes destacam que 508 lobectomias de doadores de lobos foram realizadas sem óbitos, ainda que algumas
complicações tenham sido descritas..
A experiência atual da Santa Casa de Porto Alegre indica 252 transplantes
pulmonares, a maior parte por enfisema e fibrose pulmonar. A maioria destes é
Desafios Éticos  Cremers  59
unilateral; e entre os 36 transplantes bilaterais realizados, 23 foram transplantes
bilobares com doadores vivos. A mortalidade cirúrgica é de 18%, com sobrevida
global em um ano de 72,7 por cento. Nos últimos três anos, foram realizados 78
transplantes na Santa Casa com 83,3% de sobrevida. No Registro Internacional a
sobrevida média no primeiro ano é de 71 por cento.
Existem alguns aspectos éticos que são muito importantes para o entendimento
da sociedade.
Primeira questão: Quando surge o doador, como se selecionam os receptores?
O primeiro critério de seleção é a tipagem sangüínea. O segundo critério é
a relação de tamanho entre o órgão doador e a caixa torácica do receptor, e em
terceiro lugar a necessidade do receptor para o transplante unilateral. Muitas vezes o doador não tem os dois pulmões aproveitáveis, e assim se, por exemplo, o
doador tem algum problema no pulmão direito, todos os receptores candidatos
a receber o pulmão direito, por ser o mais afetado pela sua doença, estarão fora
dessa triagem inicial.
A soma desses três fatores resolve na imensa maioria das vezes a questão de
quem pode receber o órgão. Um outro elemento bastante razoável é a expectativa de sobrevida do paciente. Existem doenças em que a expectativa de vida sem
o transplante é menor, e se pode então priorizar este receptor.
O tempo na lista de espera é um elemento importante, mas não decisivo,
considerando-se a tendência de selecionar o receptor pelo critério de gravidade
de doença. Em 218 pacientes transplantados com doador cadavérico, apenas duas
vezes o item tempo na lista de espera foi determinante para a seleção do receptor.
Numa situação de dois pacientes com enfisema, um portador de enfisema seco
e o outro bronquítico, com o mesmo grau de dispnéia, o portador de enfisema
seco deverá ser o escolhido, considerando-se que tenderá a viver menos do que
o bronquítico se não for transplantado logo. Quando o paciente tem uma pressão
na artéria pulmonar acima de 30 mm/Hg, a sua expectativa de vida em cinco anos
é de apenas 15 por cento. Observação interessante: em um grupo de 108 pacientes que em determinado momento tiveram CO2 acima de 51mmHg, metade
dessa população estava morta em dois anos.
Dois pacientes com graus idênticos de dispnéia e diferentes tempos na lista
de espera. Um deles tem enfisema, e o outro, fibrose pulmonar. Inverte-se a
ordem ou se respeita o tempo na lista? É uma questão ética muito importante.
Sem dúvida, o fibrótico nessa situação tem uma expectativa de vida muito menor, até porque as séries que compararam tempo de sobrevida dos pacientes
60  Cremers  Desafios Éticos
com enfisema com os que foram transplantados mostraram que o transplante
não consegue aumentar de maneira significativa a expectativa de vida de quem
recebeu o órgão. Não se discute aqui qualidade de vida, e sim tempo de vida.
Nesta situação, transplantaria o paciente com fibrose, ainda que estivesse na
lista há menos tempo.
Outra questão importante usada como tentativa de minimizar o problema
de escassez de doadores: usar os dois pulmões do doador em dois receptores
diferentes. Do ponto de vista prático, parece injustificável que se desperdice um
pulmão normal, com tantos pacientes necessitando de um transplante. Ou seja,
as equipes devem se estruturar de modo que, em seqüência, os dois transplantes
sejam feitos, para não se desperdiçar nenhum pulmão aproveitável.
Aqui dois pacientes para exemplificar esta situação:
1) uma mulher de 64 anos, enfisema grave, capacidade expiratória de 26%,
O2 contínuo, pulmão direito menos participativo, hipertensão pulmonar, tipo
sangüíneo B.
2) homem, de 59 anos, 19% de capacidade, também usa oxigênio contínuo,
mas o seu pulmão menos participativo é o esquerdo e não tem hipertensão pulmonar; grupo sangüineo B. Doador: jovem de 20 anos, 1,80m – pulmões servem
para os dois, pois a caixa torácica é aumentada pelo enfisema - morte cerebral de
acidente de trânsito, intubação curta, sem secreção, raio X de tórax normal, tipo
B, um doador ótimo. É um caso em que o doador serve para os dois receptores,
mas um deles tem hipertensão, o outro, não.
Outra questão ética: Qual dos pacientes deve ser transplantado em primeiro lugar, considerando-se que há uma equipe única e que o tempo de isquemia
maior aumenta o risco de morte? Esta é uma decisão técnica em que é melhor
começar pelo transplante de quem tem hipertensão pulmonar, pois hipertensão e
tempo de isquemia somados representam um risco significativo para este paciente. Por esta razão a mulher foi transplantada antes? Ambos saíram muito bem, 36
meses depois ela tinha 57% de capacidade pulmonar e ele, 69 por cento.
Outra situação complicada: uma paciente de 45 anos, com linfangioliomiomatose, tinha 17% de capacidade pulmonar, e dependia de O2 há três anos. Foi
transplantada do pulmão esquerdo em 2002. Ainda estava bem dois anos depois.
Em função da imunossupressão, ela fez um linfoma, e teve que reduzir a imunossupressão para tratar essa intercorrência. Logo depois, devido à redução das droDesafios Éticos  Cremers  61
gas anti-rejeição, aconteceu a perda do órgão transplantado por rejeição crônica.
Então ela viveu o terrível drama de voltar a depender do O2.
Uma questão ética surge nesse momento: se apresenta um doador jovem,
22 anos, dois pulmões normais compatíveis com o tipo sangüíneo e tamanho,
etc., e se questiona: seria ético usar os pulmões num retransplante com chances
de sucesso 40% menores? Ou seria mais razoável usá-los em receptores virgens, com maior chance de sucesso?
No retransplante, as chances de sucesso são menores, a expectativa de
vida também, os doadores escassos e a demanda, grande. Por outro lado, há
o compromisso afetivo da equipe com a paciente, que o longo tempo de convívio só fez aumentar. Um julgamento frio pode recomendar que se abandone
esta paciente que já teve a sua chance e infelizmente evoluiu mal, mas o que
é ético fazer?
Esta é uma discussão muito importante. O retransplante tem duas indicações definidas:
1) a perda precoce do enxerto e
2) a situação crônica, que é a rejeição por bronquiolite (situação da paciente).
Considera-se razoável que um paciente com bronquiolite, que ainda preserva sua
condição ambulatorial não tem outras comorbidades, e tem mais de 18 meses do
transplante original, possa ser candidato ao retransplante, com base na experiência de 191 casos coletados dos registros internacionais.
Com estes critérios preenchidos, decidimos retransplantar esta paciente, considerando que havia um compromisso com a família. Foi realizado um transplante
duplo, porque ela estava colonizada por pseudomonas. Ela está tendo, nesse momento, uma evolução espetacular.
Outra situação complicada foi a de uma paciente com sete anos de idade,
vítima de fibrose cística. Foi cogitado o transplante intervivos. O pai não podia ser
doador porque o lobo inferior era maior que a caixa torácica inteira. Então, havia
sua irmã menor, de 14 anos. A primeira questão surgida era de ordem legal: não
é suficiente o consentimento dos pais, necessitamos da autorização do Juizado
de Menores. É uma questão eticamente complicada, aceitar um menor de idade
como doador voluntário. Mas quando conversei com a menina ela me pareceu
muito madura para sua idade, e me disse uma coisa que pareceu definitiva: “Não
vou conseguir viver se minha irmã morrer porque eu não doei o pulmão”. Foi uma
excelente doadora, com uma atitude muito semelhante às mães doadoras. Então
62  Cremers  Desafios Éticos
foram doados os lobos, direito da mãe e esquerdo da irmã. Agora ela tem 92%
de capacidade respiratória, uma evolução excelente.
O transplante intervivos tem algumas peculiaridades: risco pequeno, mas não
desprezível dos doadores, e a angústia do médico em submeter uma família inteira à
cirurgia, o que faz desta uma experiência devastadora do ponto de vista emocional.
Outro aspecto comovente é o desprendimento dos pais para salvar o filho, questões que colocam tudo num nível supra-ético. Do ponto de vista médico, um fracasso
nessa situação é horrível, especialmente se a morte do receptor acontece precocemente, porque ainda temos de conviver com o pós-operatório dos doadores.
Exemplo: paciente de cinco anos, que recebeu lobos maiores que o tamanho
da sua caixa torácica. Os lobos foram diminuídos com ressecções em cunha, mas
ocorreu edema dos lobos com compressão cardíaca, o que implicou em mais
edema pulmonar e terminou em morte por choque refratário, no segundo dia de
pós-operatório. Uma experiência inesquecível pela intensidade do sofrimento da
equipe multidisciplinar envolvida.
Outro caso interessante e dramático: uma menina de 12 anos, com
fibrose cística, com expectativa de vida muito diminuída e candidata a um transplante intervivos. O problema é que o pai não era do mesmo grupo sangüíneo.
A mãe, desesperada com a impossibilidade do transplante, queria doar os seus
dois lobos inferiores. Que atitude tomar? Do ponto de vista técnico a questão
pode ser assim resumida: o somatório das perdas com a retirada dos dois lobos
significaria uma pneumonectomia.
Há muitos anos se demonstrou que a retirada de um lobo (lobectomia) não
reduz a expectativa de vida do operado, mas um paciente pneumonectomizado
tem uma expectativa de vida menor. Então, expliquei para essa mãe que não podíamos fazer esse transplante, porque ela viveria menos do que era lhe destinado,
pois a doação que ela propunha, significaria a perda de um pulmão inteiro. Em
nenhum lugar do mundo esse transplante seria feito.
Quando expliquei que isso era impossível, ela me fez uma pergunta crucial:
“Doutor, se a minha filha morrer porque não foi possível fazer esse transplante,
o que será da minha vida com esse excesso de pulmões que Deus me deu? Doutor, dê uma utilidade para meus pulmões, diga pra que servirá o meu fôlego?”.
A paciente morreu 13 meses depois, na lista de espera, uma lista de espera inútil.
Lembro que choramos abraçados por um longo tempo, sem dizer uma palavra.
Uma dessas situações de sofrimento tão grande, em que o mais sábio a fazer é
desistir mesmo das palavras. 
Desafios Éticos  Cremers  63
Nélson Boeira 
PhD, Yale University, Professor de Ética e Filosofia Política, UFRGS e Reitor da UERGS
As posições morais e os dilemas humanos do paciente, do doador e da equipe médica são distintos. Não podemos identificá-los e aplicar a eles os mesmos
critérios. Em cada caso, as responsabilidades são diferentes, os tipos de decisão
distintos, os direitos e deveres são diversos. O tratamento da questão é dificultado pela enorme dramaticidade que envolve as experiências que servem de pano
de fundo aos problemas éticos que cada um desses agentes enfrenta.
É preciso lembrar que a prática da medicina contém uma multiplicidade de
problemas éticos, por exemplo, os relacionados com o consentimento informado,
com a eutanásia ou morte assistida ou com o aborto. Presentemente, talvez a medicina seja a área profissional que apresenta o maior número de conflitos morais,
conflitos que possuem grande densidade e complexidade. Isto porque a medicina
lida com dois bens fundamentais dos seres humanos, a manutenção da vida e a
disponibilidade de tempo. Os problemas morais associados aos transplantes são
igualmente complexos, pois tratam da distribuição de recursos escassos, fonte de
conflitos agudos em todas as sociedades humanas.
A tomada de decisão sobre matéria ética na medicina deve, inicialmente, contemplar todas as necessidades e interesses de pacientes, doadores,
familiares envolvidos e equipe médica. Não se trata apenas de recorrer à
teorias, por relevantes que sejam, mas desenvolver atitudes e argumentos
que possam auxiliar a tomada de decisões críticas por parte dos envolvidos.
A prática das decisões éticas sobre matéria controvertida é distinta – repito:
distinta – de uma reflexão ou especulação estritamente filosófica, por mais
elaborada que essa seja.
Desejo examinar brevemente um desses problemas de bioética, o da lista
de transplantes. Do ponto de vista prático, trata-se de um problema de distribuição de bens escassos. Como se trata de um problema de distribuição, está
submetido a uma legislação pública e deve ser considerado como um problema
de interesse público. No caso, nossa discussão deve contribuir para auxiliar – e
não mais que modestamente auxiliar - a equipe médica na formatação de uma
cronologia que organize racional e moralmente a lista de transplantes. Formular
regras para determinar quem deve receber prioridade na lista supõe o estabelecimento de critérios nítidos, aplicáveis a todos os candidatos ao benefício.
Tais critérios, portanto, não podem ser as convicções morais particulares do
64  Cremers  Desafios Éticos
paciente, do doador ou da equipe médica. Esses critérios comuns devem ser
aceitáveis para a comunidade médica e para a sociedade em geral. Tais critérios
são diferentes daqueles que podemos legitimamente escolher para decidir os
rumos da própria vida. Toda e qualquer argumentação em favor de um candidato a ou b deve assentar-se em tais critérios mais gerais. Argumentos que
não levem em consideração tais critérios - que resultarão, necessariamente de
estudo e reflexão coletiva e pública - não serão pertinentes, isto é, passíveis de
serem levados em conta.
Tais critérios devem ser nítidos e também revisáveis, pois, na vida humana
em geral e medicina em particular, há um constante acréscimo de experiência
e o permanente aparecimento de novas alternativas e soluções. É inadequado,
portanto, uma compreensão puramente religiosa e estática a respeito desses
dilemas éticos. Para que tais critérios possam funcionar a contento e oferecer alternativas de ação eticamente responsáveis, é preciso que eles sejam absorvidos
na cultura e na prática das instituições pertinentes, por exemplo, pela comunidade médica relevante. Devem ser transformados em princípios e hábitos ativos
da conduta profissional. Para se tornarem realmente operativos, tais critérios
devem fazer parte da formação profissional dos médicos. Somente assim, tais
critérios de decisão se tornarão parte ativa - seja na compreensão, seja na deliberação, seja na ação dos profissionais. Evidentemente, tais critérios devem ser
explicados e negociados com a opinião pública e constantemente relembrados
à sociedade em geral e mais particularmente aos beneficiários e suas famílias e
aos envolvidos na formulação das listas
O problema da doação de órgãos é um problema de racionamento. Em
casos de racionamento, fazemos a distribuição seletiva dos bens racionados
entre aqueles beneficiados potenciais que têm uma pretensão plausível ao
atendimento de suas pretensões. Só há racionamento quando mais de uma
pessoa pretende ser beneficiada, isto é, receber o mesmo bem escasso. No
caso da formulação da lista cronológica de atendimento dos pretendentes é
preciso avaliar os argumentos que justificam os pedidos de cada um dos inscritos nesse certame.
Os desejos e as necessidades humanas são sempre superiores aos bens disponíveis para satisfazê-las. Este fato básico da existência humana já seria suficiente
para tornar qualquer distribuição controversa. Mas, para além das pretensões individuais, é preciso considerar também as conseqüências de qualquer distribuição
dada. Nesse sentido, no caso da lista dos transplantes, é indispensável examinar
Desafios Éticos  Cremers  65
também as questões estritamente técnicas para chegar-se a uma identificação dos
que primeiro irão receber os órgãos disponíveis. O Dr. Camargo apresentou com
grande clareza e profundidade inúmeras dessas questões técnicas. As questões
técnicas determinam que é possível favorecer A se A têm mais chances de sucesso que B. O problema moral surge quando A e B têm pretensões legítimas
e A é favorecido em detrimento de B. Além das expectativas de sucesso, outras
considerações ainda devem ser levadas em conta.
A primeira delas é que, a meu juízo, os filósofos não estão preparados a definir linhas de conduta médica, a menos que tenham um claro entendimento das
questões técnicas envolvidas. A segunda consideração a fazer é que alguns problemas morais de racionamento não permitem uma solução ótima ou incontroversa.
Nem mesmo os filósofos, muito deles pretensiosos, possuem soluções razoáveis
para todos os problemas morais e nem os problemas éticos são, na esfera da vida
social, passíveis de uma solução nítida e consensual.
Uma das dificuldades inerentes ao problema que estamos discutindo decorre
da impossibilidade de dividir certos bens, no caso, órgãos humanos. É impossível,
portanto, evitar uma distribuição desigual de um lote escasso de órgãos disponíveis. Na melhor das hipóteses, a desigualdade estará na distribuição desigual na
linha do tempo. Um dos maiores dramas humanos na área dos transplantes ocorre quando um dos candidatos ao benefício apresenta argumentos suficientes para
ser beneficiado, mas acaba preterido por argumentos ainda mais fortes de outro
pretendente. Nesse caso, ele será preterido em razão da inexistência de uma
distribuição que possa ser perfeitamente igualitária. Freqüentemente, os pretendentes recorrem ao Poder Judiciário para garantir suas pretensões, no nosso caso,
para “furar a fila”. Mas se todos os inscritos na lista, passíveis de morte iminente,
recorrerem à Justiça, a própria idéia de uma lista de pacientes preferenciais se
tornará inviável e inaplicável.
É importante lembrar que todos os critérios que têm sido propostos – muitos
deles baseados em princípios gerais da bioética ou em doutrinas filosóficas – são
esquemáticos. Esquemáticos no sentido em que se aplicam apenas genericamente
a conflitos particulares em situações particulares. Veja-se, por exemplo, o critério, em geral considerado auto-evidente, de que “todas as pessoas têm direitos
iguais”. Tais princípios genéricos (e obscuros) devem ser necessariamente complementados com outros de menor generalidade, que nos permitam decidir conflitos particulares em contextos concretos. Por exemplo, uma parcela importante
da literatura médica norte-americana mostra que os transplantes devem aconte66  Cremers  Desafios Éticos
cer seguindo o critério conjunto das fair chances, best outcomes - oportunidades
justas, melhores resultados.
Um exemplo para exame: a decisão de destinar um órgão para transplante
em um jovem de 18 anos ou um senhor de 50 anos, ambos com características
patológicas idênticas. Uma alternativa seria decidir em favor do jovem de 18 anos,
por conta da sua maior expectativa de vida. Trata-se de um critério bastante
questionável, pois é possível que forma de vida levada pelo jovem apresente
uma quantidade de riscos tal que possa diminuir a sua expectativa de vida –
como uso de drogas, inserção no mundo do crime – a idade cronológica passará
a ter bem menos peso. Além disso, a vida do senhor de 50 anos pode ser “mais
útil” para uma sociedade determinada do que a do jovem de 18 anos. Outros
tantos argumentos podem ser apresentados, de parte a parte, todos dificilmente decidíveis em termos estritamente morais ou filosóficos
É preciso ter presente que, neste momento, carecemos de princípios éticofilosóficos ou religiosos suficientemente nítidos para enfrentar muitas questões
relacionadas com a distribuição de bens escassos - neste caso: a distribuição de
órgãos humanos. A filosofia deve ainda avançar muito para conseguir formular
critérios mais específicos, capazes de esclarecer esses conflitos morais e oferecer regras de decisão plausíveis para eles. Esses princípios morais para orientar
as decisões da comunidade médica jamais serão satisfatórios se não levarem
em conta os contextos profissionais e as informações técnicas que moldam o
exercício profissional da medicina. Na formulação desses princípios morais, os
filósofos devem ser não mais que auxiliares bem-intencionados da comunidade,
a eles cabendo, acima de tudo, examinar racionalmente todos os argumentos e
pretensões em jogo em um determinado momento. 
Desafios Éticos  Cremers  67
Aborto
Coordenação: Marco Antônio de Azevedo
Participantes: Antônio Celso Ayub, Luiz Fernando Barzotto,
Rúbia Abs da Cruz e Dom Dadeus Grins
Janeiro/2006
Antônio Celso Ayub 
Ginecologista e obstetra, conselheiro do Cremers e professor universitário
“Os assuntos polêmicos devem ser abordados por sectários
de todos os matizes para que a platéia possa escolher o
que está de acordo com o seu jeito de ser e de pensar.”
Nessa questão do aborto existe um envolvimento emocional significativo, pois o tema mexe com crenças de raiz, valores, fatores extremamente
fortes que nos dominam e que são capazes de nos fazer sacrificar nossa vida
e a dos outros.
Tanto aborto quanto eutanásia são questões que abordam o morrer, quando,
por que e de qual forma. Na Bíblia, numa passagem do Levítico “aquele que mata um homem deve ser punido com a morte”.
Numa outra passagem do Velho Testamento, encontramos o quinto mandamento - não matarás. Em outras passagens, existem fatos não tão dogmáticos
como em Eclesiastes:
“Existe um tempo para nascer e um tempo para morrer;
um tempo para matar e um tempo para curar”.
No Gênesis,
“Deus deu ao homem domínio sobre tudo que está vivo e
se move sobre a Terra”.
As tradições religiosas, especialmente a cristã, vedaram o aborto, o que provoca contradições. Um dos questionamentos mais importantes é: quando o ser
humano adquire a animação, a alma? Santo Agostinho falava em 10 dias após a
concepção; São Tomás de Aquino, 40 dias. Para a Faculdade Gregoriana, até dez
anos atrás, a alma tinha o seu substrato anatômico no sistema nervoso central, que
termina de ser formado pela décima semana da gestação. Muitos cientistas dessa
faculdade, portanto, admitiam a possibilidade de abortar antes da 10ª semana,
embora isso nunca fosse divulgado publicamente.
Desafios Éticos  Cremers  71
Em priscas eras, o feto só era considerado como um ser novo quando iniciavam os seus movimentos - a partir de 20 semanas de gravidez. O avanço tecnológico, porém, fez com que quase toda a ciência imaginasse que existe vida logo
a partir da fertilização, embora o feto seja um ser em potencial apenas. Inclusive
foi criado um termo, ‘microaborto’, para o aborto realizado antes da implantação
do ovo no útero. Porém, mesmo nessa etapa se encontram trocas de substâncias
entre a mãe e o futuro embrião.
A partir de quando ele é um indivíduo? É um mau termo, pois se relaciona
aquilo que não se pode dividir. O ovo pode se dividir, dando a gemelidade por
monozigotia. A discussão sobre a existência da vida é caduca, pois a vida existe
mesmo no espermatozóide e no óvulo. Portanto, é necessário falar do bebê como
um novo ser, um novo cidadão, protegido pela legislação.
O fundamental é mostrar que, independente do que é discutido, as mulheres
continuam abortando de forma ilegal. Não interessa o local, o tempo, a pena
prevista, as mulheres se fazem abortar. Abortos clandestinos, em condições altamente precárias, que podem levar à morte ou a seqüelas graves. Se o aborto
fosse liberado, seria possível fazer às claras, com profissionais competentes, como
ocorre em 37 países. Mais de 70 tem restrições rígidas quanto ao aborto e 33 só
permitem em condições especiais.
Fazendo às claras, o aborto deve ser o procedimento cirúrgico mais seguro da história da medicina. Segundo o CDC (órgão de controle epidemiológico dos Estados Unidos), um aborto tem menos riscos do que um tratamento
dentário. A técnica evoluiu - uma vacuoaspiração em torno de 12 semanas é
extraordinariamente segura. A mortalidade das mulheres que abortam é muito baixa. O sangramento, com o uso de misoprostol e mifepristone associados à
vácuo-aspiração, pode diminuir até menos de 40ml de sangue por operação.
Dizem que o aborto pode provocar uma cicatriz emocional indelével na
alma. O mito da seqüela psicológica é contestado por diversas publicações.
As seqüelas não existem, desde que o médico explore a motivação da mulher
para essa decisão, e que essa decisão seja por ela tomada conscientemente,
em um ambiente que respeite o direito dela, livre de restrições e constrições
externas inclusive socioeconômicas. Assim como pode se dizer em contrário
que não existe indicação psiquiátrica de aborto. Nunca uma doença psiquiátrica da mãe foi justificativa de aborto.
Evitar o bem-estar da mulher é algo que viola o direito constitucional. A legislação brasileira não permite o aborto, à exceção do aborto praticado por médico,
72  Cremers  Desafios Éticos
feito quando não há outra forma de salvar a vida da gestante, o que é cada vez
menos freqüente. Também é permitido o aborto em caso de estupro desde desde
que a grávida o deseje.
Importante salientar que é considerado aborto a interrupção da gravidez
antes de atingida a vitabilidade. No momento se diz que a vitabilidade se atinge na vigésima semana de gravidez. Depois de vinte semanas, pode ser parto
prematuro - para os médicos, não é considerado aborto. Juridicamente, não
importa a idade da gestação - interrompendo a gravidez e morrendo a criança,
está caracterizado o aborto.
O jurista José Paulo Bisol dizia que qualquer diploma legal tem de ser eficaz
e justo. Não existe isso no caso da vedação ao aborto no código penal. As
estimativas mais freqüentes falam em 1,5 milhão de abortos que não foram
evitados pela legislação. Quase ninguém está sendo punido. Pior: quem vai
ser punido por crime de aborto geralmente é a mulher negra, pobre, quem
sabe canhota. Certamente não é a maioria branca e certamente não serão as
pessoas ricas. O mesmo Bisol já dizia que
“se é para ter piedade de alguém, que se tenha ao menos
piedade dos juízes”.
Como é no caso da ré confessa de aborto que reclama judicialmente do médico ‘carniceiro’ que realizou o procedimento. Denunciando, ela é condenada e o
médico ‘carniceiro’ pode pagar bons advogados para livrá-lo. Desse modo, quase
ninguém é condenado.
Os iluministas eram simpáticos ao aborto, talvez por influência de
Montesquieu “A lei muito rija empalidece o prestígio e a efetividade
do direito”.
Cada um de nós tem uma moral altamente respeitável, porém absolutamente
subjetiva. Já a ética, embora estejamos aqui distribuindo códigos de ética, ela não
pode ser codificada. O código que temos é de procedimentos. O processo ético
regula as morais conflitantes - nesse ambiente, por exemplo, temos pessoas cujos
valores são os mais diversos. O que não é certo é quando uma mulher está grávida
e quer abortar e não poder fazê-lo porque eu sou contra.
Desafios Éticos  Cremers  73
Não existe fim que não seja justificado pelos meios. Em tudo que a gente
deseja, utilizam-se meios para obter o fim que se quer. A pergunta é: um fim bom
justifica meios piores? Se não há um fim melhor que outro e as duas situações são
ruins, pode se utilizar o princípio canônico do mal menor. O aborto não pode ser
definido como um bem, mas é um mal menor diante de uma gravidez indesejada,
segundo alguns defensores da prática. Estou tentando defender a interrupção nessas circunstâncias por que as mulheres vão continuar abortando, então é melhor
que façam nas condições ideais de segurança.
Sempre se falou das seqüelas emocionais sofridas pela mulher por praticar o
aborto, mas e o que acontece quando a mulher quer e não pode se fazer abortar?
As conseqüências de uma gravidez indesejada é a ausência de pré-natal, ou o prénatal negligente; conflitos emocionais; maior número de complicações na gestação; tentativa e prática do aborto clandestino. Em sua maioria, as mulheres que
têm complicações na gestação são jovens, negras e pobres. O aborto clandestino
é a quarta principal causa de morte materna, segunda causa de insuficiência renal
e tem seqüelas importantes, como a perda do útero.
A gestação indesejada com parto pode ocasionar distúrbios e má-formação na
relação entre mãe e filho. As conseqüências desses distúrbios podem ser a síndrome de negligência pediátrica e os maus-tratos contra as crianças. Caplan, em 1954,
relatou os problemas que podem acontecer na relação mãe e filho quando existe
uma tentativa não exitosa de aborto durante a gravidez. Hook, em 1963, estudou
213 crianças nascidas de mulheres que tiveram aborto negado e constatou os
prejuízos físicos e mentais sofridos por estas. Os suecos Forssman e Thuwe em
1966, seguiram por 21 anos 120 crianças nascidas após a solicitação de aborto ser
recusada. Na comparação com outras 120 crianças de mesmo sexo, nascidas no
mesmo hospital e no mesmo dia, todas apresentaram maior incidência de doenças
psiquiátricas, delinqüência, comportamento criminal e alcoolismo. Mais freqüentemente foram excluídos do serviço militar, necessitaram de assistência pública e
tiveram menor escolaridade. Os pesquisadores recomendaram que estes fatores
fossem seriamente considerados - pesquisas posteriores sobre violência contra
criança e negligência infantil repetiram estes alertas.
O juramento de Hipócrates diz:
“De acordo com meu poder e discernimento, promoverei
práticas para o benefício do doente e evitarei o prejudicial
e o errado”. 
74  Cremers  Desafios Éticos
Luiz Fernando Barzotto 
Professor de Direito da PUCRS
Eu adoraria debater os aspectos jurídicos, mas estou aqui para falar sobre os
aspectos filosóficos. Peço desculpas por não argumentar de uma forma reflexiva,
deixando fluir a passionalidade que existe nas minhas veias.
Em uma passagem de Dostoiévski, no livro Irmãos Karamazov, os irmãos
Aliosha (o cristão) e Ivan (o humanista ateu), que discutem sobre as questões do
mundo, abordam a questão do ser humano. Ivan pergunta para Aliosha:
“Responde-me com franqueza; se os destinos da humanidade estivessem em tuas mãos para fazer definitivamente
felizes todos os homens e mulheres, para levar todos os seres humanos à paz e tranqüilidade, tivéssemos de torturar
apenas uma pessoa, essa menina que está diante de ti, a
fim de fundar sobre as lágrimas dessa menina a felicidade
futura de todas as gerações, você se prestaria a isso?”.
Aliosha responde:
“Não, eu não me prestaria.”
Aqui nós vemos um fanatismo, um absolutismo da pessoa. Quem vos fala é um
fanático da pessoa, representado por Aliosha Karamazov nesse romance. Não me
prestaria a atentar contra a dignidade de qualquer pessoa em nome de qualquer
fim. Os traumas da mãe, o crescimento demográfico, o crescimento econômico,
são fatores irrelevantes. Se alguém entendeu a idéia de pessoa humana - que não é
simples - definindo o ser humano, definimos qual o tipo de ética a ser adotada.
Toda idéia ética é baseada numa antropologia. Não se enganem: não estamos
discutindo o que é certo ou errado, estamos discutindo o que é o ser humano.
Vários autores dizem que quem fala em ética sem falar em antropologia é desonesto. A concepção que eu tenho de homem influencia o tempo todo o que eu
digo ser certo ou errado. O papel da filosofia é explicitar o que está por trás das
colocações, o que pode levar o homem a negá-las. O conceito de pessoa sempre
nos impõe deveres. Ronald Dworkin, o filósofo do direito mais famoso do planeta
Terra hoje, defensor do aborto, rejeita o conceito do feto como pessoa. Uma vez
Desafios Éticos  Cremers  75
admitindo este conceito, Dworkin está perdido, pois a questão de matar o feto já
não é mais uma questão da consciência individual da abortista. Esse argumento de
deixar o outro fazer o que quer era utilizado pelos escravocratas no século 19. O
pessoal do sul dos Estados Unidos dizia assim: “Nós queremos ter escravos, vocês
não querem, é uma questão de consciência, é um problema nosso! Os abolicionistas eram tratados pelos escravocratas como fundamentalistas da moral. Não há
nenhum critério para distinguir entre os seres humanos quem são pessoas e quem
não são. Era claro para os escravocratas que eles estavam escravizando seres humanos, pois ninguém escravizou árvores ou peixes. O que eles não reconheciam
era os escravos como pessoas, sujeitos. Faziam então destes objetos, meios.
Dado isso, a primeira coisa que se pode definir sobre a pessoa é que ela
é um mistério. Não se pode defini-la através de critérios, não é um problema
científico a ser resolvido. No momento que se discute o critério para dizer
quem é pessoa ou não, o contexto está decidido - quando alguns espanhóis
perguntavam se os índios tinham “alma”, já queriam desconsiderar os índios
como pessoas. Posso estar cometendo um “parricídio filosófico”, ao contestar
a antropologia naturalista de Aristóteles. Ao definir que o homem é um animal
racional e político, definiu critérios de exclusão que limaram as mulheres, escravos, trabalhadores braçais e estrangeiros do conceito de pessoa. Os critérios
para definir quem é humano são critérios de exclusão. Os governos totalitários são baseados na antropologia naturalista, com a pretensão de estabelecer
cientificamente quem são as pessoas, tanto o nazismo quanto o comunismo - o
primeiro baseado na biologia, o segundo na história.
Os critérios científicos são critérios para excluir, oprimir, degradar, hierarquizar os seres humanos, como aconteceu na história. A antropologia naturalista,
como não tinha a idéia de pessoa (que só viria depois, pois tem origem teológica),
é personalista, identifica o ser humano com a natureza humana, e o ser humano
que não entra nessa definição de natureza está fora. A pessoa não é uma natureza,
ela tem uma. Só um “que” pode ser definido, um “quem” não pode. É possível
definir qualidades, não uma identidade.
Pois bem, a pessoa humana também é um absoluto. Não é relativa. O reconhecimento do outro como pessoa é anterior a qualquer dever - está acima dos
argumentos. A razão prática, moral, ética, tem como pergunta: “O que eu devo
fazer?”. Baseado nisso, pode se dizer que não se deve matar - mas existe a legítima
defesa. Porém, o conceito de pessoa é absoluto, não existe exceção, deve ser
colocado sempre. Antes de pensar o que se deve fazer, é preciso reconhecer o
76  Cremers  Desafios Éticos
outro como um igual, mesmo na guerra ou na legítima defesa. É um ato de percepção, reconhecimento, não deliberação.
Dado este ser humano como mistério, absoluto, ele também se torna sagrado.
Baseado na Sociologia da Religião de Emile Durkheim, o ser sagrado é o ser separado, posto à parte. O que é sagrado é retirado do mundo das coisas disponíveis - o
altar é uma mesa que não pode ser usado como toda mesa. Não se pode dispôr da
criança, por exemplo, para evitar o sofrimento da mãe - isso não interessa! A mãe
pode sofrer pelo sol na sua cabeça, o que a faz procurar sombra; o pai pode sofrer
por uma deficiência de renda. Tanto o dinheiro como o sol são coisas disponíveis, ao
contrário do ser humano. Ele é incomparável, incomensurável. Se não concordaram
com a visão do Dostoiévski, tudo que eu disse está errado. Quem não aceita a idéia
da pessoa como um absoluto e sim como um fator relativo - relativização baseada
na idade, na renda, na cor, ou qualquer outro tipo de qualidade feito para excluir
alguns - vai discordar do que eu disse. Se meu argumento tem algum fundamento,
tudo que eu disse tem de ser inteligível. A partir da experiência de Dostoiévski, todo
discurso filosófico personalista tem sentido. Fora dela, o discurso fica solto, incapaz
de mover a crença da pessoa numa direção. 
Rúbia Abs da Cruz 
Coordenadora-geral da ONG Themis
É fundamental a presença de mulheres no debate sobre o aborto, uma vez que
são diretamente atingidas pelo problema. Efetivamente, nem nos casos amparados
pela lei o aborto acaba sendo garantido, por questões religiosas, éticas, morais e
culturais. E é claro que qualquer argumento ou fundamentação a respeito estará de
acordo com as concepções de quem interpreta. Entendo que o princípio da proporcionalidade deve sempre ser considerado neste contexto. Quando colocamos o
ser humano como um todo, temos que nos perguntar o valor que damos para esse
ser humano. O que fazemos, por exemplo, para modificar a situação da criança que
pede esmolas na rua e o que isso tem a ver e com o direito à vida?
Muitas destas crianças são vítimas indiretas da violência sofrida pela mãe. Uma
mãe que muitas vezes, após ter vários filhos sem a assistência digna necessária,
tentou fazer um aborto clandestino e morreu. Talvez as mulheres abortassem
Desafios Éticos  Cremers  77
menos se a responsabilidade da criação do filho nascido de uma gravidez indesejada fosse também compartilhada pelo homem. Já ouvi pessoas colocarem a culpa
nas mulheres, dizendo que elas não param de engravidar - mas que apoio, que
ajuda pode ter uma mulher sem acesso à educação, saúde, planejamento familiar
adequado, alimentação, lazer? É importante que possamos olhar o outro ser humano, com todas as dificuldades e problemas que enfrenta.
O princípio da laicidade é um dos principais fundamentos da democracia.
Segundo este princípio, as religiões não teriam tanta influência acerca das decisões dos seres humanos e inclusive nas decisões do governo. As políticas
públicas, decisões e legislações com esta forte influência violam o princípio.
Outro princípio importante na análise deste tema é o princípio da proporcionalidade, que tem uma importância enorme na esfera jurídica. É um recurso
hermenêutico baseado nos diferentes sujeitos do direito. Quando falamos nisso, é importante pensarmos sobre as mulheres enquanto sujeitos de direitos,
como indivíduo, efetivamente.
É muito fácil colocar o bebê, o feto ou o embrião como sujeito, mas e as
mulheres, que têm de tomar essa decisão que põe a sua vida em jogo, são sujeitos
de direitos? Qual é o valor do ser humano se não importa o que ele sente ou as
coisas que ele faz? Por este princípio, a mulher tem o direito de exercer a sua
decisão, a sua vontade com liberdade, entretanto no nosso país esbarramos na
ilegalidade. Debates como este Desafios Éticos sobre o tema do aborto são importantes para pensarmos de acordo com cada indivíduo a cada momento, visto
que a aprovação ou não do aborto dependerá da situação vivida no momento.
O aborto não deverá ser uma regra e muito menos algo feito com prazer, mas
em algumas circunstâncias é absolutamente necessário e a única possibilidade. É
possível mudar a legislação, desde que haja vontade política para isso, desde que
a sociedade seja ouvida. O problema do aborto é um problema de saúde pública,
e enquanto continuar sendo um crime as mulheres não vão procurar assistência e vão continuar morrendo nos hospitais. Se o poder público realmente está
preocupado com a saúde da população, deve tentar, através de políticas públicas
efetivas, impedir que as mulheres pobres, negras e brancas continuem morrendo.
O princípio da igualdade também é violado: há uma desigualdade nas condições
de acesso à saúde de acordo com as condições sócio-econômicas das mulheres.
Mulheres com condições econômicas favoráveis procuram uma boa clínica para
realizar aborto e as pobres morrem ou ficam com seqüelas físicas decorrentes da
mesma prática. Não há eqüidade neste sentido.
78  Cremers  Desafios Éticos
É também necessário mencionar os princípios da privacidade, da liberdade
e da autonomia reprodutiva. São princípios históricos reivindicados pelo movimento feminista, devido às constantes violações. Estamos distantes, porém,
da igualdade efetiva destes direitos, ainda que haja evolução neste sentido nos
últimos séculos. O aborto é considerado crime, mas na prática quase não há
processos entre as mulheres que abortam. Inclusive o aborto legal muitas vezes
acaba não sendo garantido. Como o caso que foi amplamente divulgado da menina de Bagé que tinha 13 anos quando foi estuprada pela primeira vez por um
homem de 36 anos. Sem saber o que fazer, com medo e sendo ameaçada foi
estuprada mais três vezes. Ela engravidou e sempre pairou a dúvida quanto ao
seu consentimento, uma vez que a trama foi recheada de chantagens e dramas
morais. Entretanto ela declarou que foi violentada e tinha medo do sujeito, não
desejando ter o filho. Acreditou que o sistema de justiça garantisse em caso de
estupro o aborto legal, afinal a própria legislação declara presumida a violência
nos casos de menor de 14 anos. Ela conseguiu a decisão judicial (que não seria
necessária, pois bastava apresentar o registro de ocorrência à época - agora
sequer o registro é necessário de acordo com a Norma Técnica para Prevenção
dos Agravos Resultantes de Violência Sexual de 2005), entretanto os médicos
da cidade se recusaram a executar o procedimento, pois “acreditavam” que
poderia ser um relacionamento de fato o que havia entre a menina e o homem
agressor. Sabe-se que a grande maioria dos casos de violência sexual acontece
exatamente assim, de forma velada, onde a vítima reluta em denunciar, por
medo ou vergonha. Entretanto nada disso foi considerado pelos profissionais de
saúde. As mulheres, por essa questão cultural que normalmente as responsabiliza e culpabiliza pela própria violência sofrida, se imobilizam para procurar ajuda
nos casos de violência sexual.
Voltando ao caso, o juiz nada fez em relação à não-garantia da lei na aplicação
do aborto com a recusa dos médicos; houve a possibilidade de encaminhar-se o
procedimento para ser realizado em Porto Alegre ou Pelotas, onde haviam equipamentos necessários para a prática, mas nesse intervalo o Ministério Público ingressou com um recurso em relação à vida do feto, conseguindo a suspensão do
processo até a decisão de mérito. A menina então aborta de forma espontânea.
A delegada tratou a situação de forma lamentável, agindo com truculência em
algumas situações, não permitindo inclusive que a mãe ou o advogado acompanhasse a filha nos depoimentos no inquérito policial, sempre colocando dúvidas
na palavra da vítima. Não indiciou o suspeito e ainda abriu uma investigação criDesafios Éticos  Cremers  79
minal para verificar se o aborto acontecido havia mesmo sido espontâneo – de
fato era. Este caso é passível de ser encaminhado à Comissão Interamericana de
Direitos Humanos, pois o Estado brasileiro não garantiu o direito ao aborto legal,
assegurado pelo Brasil mesmo com a ratificação de tratados internacionais sobre
a descriminalização do aborto – tratando o problema como de saúde pública. O
país se responsabiliza mas não as efetiva na prática.
O direito penal não está sendo efetivo em relação a este problema. As pesquisas demonstram que não há um número expressivo de condenações penais
sobre aborto clandestino, ainda que milhares de mulheres sofram as seqüelas
desta prática. O princípio de adequação social da pena é violado. Nenhum tipo
penal é neutro e existem conceitos diferentes do que é lícito ou ilícito. Está
nascendo na nossa sociedade um novo paradigma de consenso internacional,
que vincula os direitos sexuais e direitos reprodutivos aos direitos humanos. Não
existe nenhuma convenção específica ainda, mas abrange o direito à vida, saúde,
liberdade, autonomia, a escolher quando deve ou não ter filhos. A dificuldade
referente à subordinação feminina acontece em todas as classes e em todos os
países do mundo. É importante ressaltar que o Brasil é signatário das convenções resultantes das conferências do Cairo e Beijing, que obrigam os Estados a
revisar a legislação punitiva em relação ao aborto. É importante também mencionar o artigo 4° do Pacto de San José da Costa Rica, da Convenção Interamericana de Direitos Humanos, ratificada pelo Brasil, que menciona que o direito à
vida começa na concepção, entretanto diz o seguinte:
“Toda pessoa tem direito a que se respeite à vida. Este
direito está protegido por lei, em geral, a partir do momento da concepção. Ninguém tem direito de retirar a
vida arbitrariamente.”
Não haveria nenhum interesse em colocar o termo “em geral” entre vírgulas não fosse o desejo de relativizar este direito. Como um país não poderia ser
signatário desse artigo se nas suas leis está embutido o direito à legítima defesa, à
eutanásia, ou o aborto legal?
A minha idéia era problematizar um pouco sobre o tema do aborto. A expectativa do debate é desenvolver um olhar respeitoso que minimize o problema
sofrido pelas mulheres com esta prática. Em algumas mulheres não causa problemas, mas em outras eles existem: mulheres que perdem o útero e outras seqüelas
80  Cremers  Desafios Éticos
físicas, além de conflitos morais, psicológicos e religiosos referentes à culpa, o
pecado, que são fatores impostos pela sociedade para designar a prática. Entretanto a prática para algumas mulheres é um alívio, pois seria mais um, entre tantos
outros filhos, sem condições de ser criado. Enfim, finalizo esperando que seja possível vermos no tema do aborto também os direitos humanos das mulheres. 
Dom Dadeus Grings 
Arcebispo de Porto Alegre
Trago uma série de concepções filosóficas e teológicas acerca da vida. A ciência
pesquisou desde o infinito, com os estudos do universo, até o infinitamente pequeno,
com a nanotecnologia, e o infinitamente complexo, com o estudo da vida humana. A
vida é mistério, no que tange ao seu princípio vital. Assisti a uma exposição de orquídeas, quando diante de uma flor extraordinariamente bela, alguém afirmou que, em
face daquilo só não acredita em Deus quem não quer. Impossível não transcender
quando se aborda a grandeza da vida. Ateu não é o que nega a idéia de Deus, e sim
aquele que não consegue ver além das aparências. Ele pára na superfície. Então nós
percebemos que o princípio vital, o que nos dá a característica e o dinamismo, é um
mistério. Tríplice princípio: sensitivo, capacidade de agir, capacidade de conhecer e
amar – e conseqüentemente, transcender à matéria situada no espaço e no tempo.
O espaço nos leva ao infinito, o tempo vai até a eternidade.
Há diferença entre o ser que existe e o ser idealizado, uma vez que o ser não
é exatamente o que se espera dele nem um arrazoado de moléculas. Lembro a
frase célebre que inspirou Sócrates:
“conhece-te a ti mesmo”.
Este princípio, lido no frontispício do templo de Apolo em Delfos, baseou
toda a sua filosofia. A idéia que fazemos de nós mesmos, assim como do ser humano em geral e em particular, raras vezes corresponde à realidade.
A falta de conhecimento traduz a falta de auto-estima, que acarreta problemas mesmo de ordem médica. É preciso, portanto, descobrir quem nós somos,
uma vez que somos matéria mas não apenas matéria. Temos um princípio vital,
Desafios Éticos  Cremers  81
espiritual, que nos dá a capacidade de sentir e amar, algo que transcende às leis
da matéria e do tempo. Sabemos que este espírito humano não é puro, como
dos anjos, mas é um espírito encarnado, que nos molda e que se exprime através
do corpo. Ao ver uma pessoa, vejo que existe algo além da aparência. O homem
busca esta interioridade além da aparência.
Vendo uma pessoa, penetramos no seu íntimo, onde se situa o meu eu e
o eu dele. Chegamos à sua subjetividade, onde a descobrimos conhecedora
e amante. Liga-nos algo mais profundo do que os dois corpos - sentimos uma
empatia, que revela nossa intersubjetividade: eu nele, ele em mim. É um dos
grandes temas desenvolvidos pela filosofia, a intersubjetividade. Nós não nos
conhecemos como objetos, mas sim como sujeitos. Olhamos para uma criança
que nunca se viu no espelho, mas ela conhece as pessoas. Se sorrimos para ela,
ela sorri também. Mas como ela pode saber sorrir? Há uma interpenetração dos
espíritos, uma empatia que se transmite.
O ser humano, se não convive, não vive. O ser humano não é um indivíduo, é
uma abstração. Nós somos famílias. Quando alguém morre, não lamentamos apenas por quem morreu, mas especialmente pelos que ficaram. Ninguém vive por si,
para si só. Eu tenho o outro diante de mim não como um objeto, mas como um eu
tão significativo quanto eu mesmo. Esse alguém tem um nome próprio, inclusive.
Numa palestra no Dia do Médico, um médico da Pastoral da Saúde afirmou que
o ser humano por dentro é muito bonito, pois tudo funciona em simetria e perfeição. Também poderíamos dizer que assim só não crê em Deus quem não quer.
Porém, essa beleza física não traduz as idéias, o amor, e tantos outros conceitos
abstratos. Isso não podemos tirar, operar no ser humano. Não bastam, portanto,
os métodos técnicos, que não revelam nem o amor nem as idéias.Há algo mais
profundo dentro de nós, um invisível, que queremos conhecer, penetrar nos segredos da consciência humana. É preciso dar um salto de qualidade, para ver o
invisível. Quando vemos o resultado da inteligência humana neste mundo, nossas
conquistas são fantásticas, como a luz elétrica. Conseguimos coisas fantásticas
nessa capacidade invisível que temos. Esta consciência que deve ser desvendada,
e para isso é necessário transcender à matéria. Assim como vivo no mundo e me
aposso de uma série de bens, minha vida é devedora a muitas contribuições de
outros, com quem convivo. A individualização é uma abstração, alheia ao contexto
de vida. Há outras pessoas: eu vivo nelas e elas vivem em mim. Minha realização
depende deles e eles dependem de mim – se faltarem, eu sofro. O ser humano é
mais filho da cultura do que da natureza.
82  Cremers  Desafios Éticos
O ser humano é extremamente frágil, e essa fragilidade é aumentada
em relação às crianças. Há uma necessidade de cuidar delas fisica e psicologicamente. Por isso ela nasce e é acolhida por uma família. O modo
pelo qual a criança será tratada pela família é uma abordagem cultural. No
Império Romano, por exemplo, o pai tinha o direito de vida e morte sobre
seus filhos, banalizando o infanticídio. O Cristianismo opôs-se a isso, defendendo a dignidade humana como fim em si mesma. Toda criança deveria ter
um tutor, por natureza os seus pais, quando não, a sociedade. Exige-se dos
pais que recebam com amor o filho que lhes é dado pela natureza. O útero
materno, até algum tempo atrás, era o melhor lugar para abrigar a vida, por
que a natureza capricha ali. O ambiente externo é demasiado agressivo,
o útero é aconchegante. Esta vida concreta começa na concepção, se liga
imediatamente à fecundação. Começa de uma forma bem rudimentar, quase
imperceptível, e sua trajetória de formação dura 18 anos fisicamente, mas
também a vida inteira, pois o nosso destino é eterno. Hoje, o útero materno, devido ao avanço da medicina, é um ambiente vulnerável e exposto às
intervenções da sociedade. Também é o local onde mais se destrói a vida.
Por isso, a bioética levanta a sua voz pelo respeito à vida humana. Podemos distinguir diversos tipos de aborto, alegar mil motivos para eliminar o
feto. No fundo, porém, a concepção de vida humana se reduz à matéria, à
composição das moléculas. Nisso intervém a bioética. Não é uma questão
apenas religiosa, ainda que defendamos a vida com sagrada, como um dom
de Deus. A questão é humana. Vemos a vida humana, ainda que em embrião
– é vida em formação, ninguém se arroga o direito de eliminá-la impunemente. Não existe o direito de tirar a própria vida, através do suicídio, mas
todos entendem que isso é uma anomalia, pois a vida nos foi entregue para
desenvolvê-la em solidariedade. Muito menos é permitido eliminar uma vida
alheia, que nos foi confiada para cuidar. No momento que a vida inicia sua
trajetória própria, na fecundação, não nos cabe mais decidir o seu destino.
Concluindo, nós queremos ver o invisível, não podemos olhar a vida apenas
como um acúmulo de moléculas, que pode ser retirada como o pus de uma
ferida. Esta vida tem a ver com a natureza.
Gandhi tinha uma frase muito bonita:
“Se nos matarem, viveremos para sempre. Mas se nós
matarmos, não viveremos jamais”.
Desafios Éticos  Cremers  83
Existe na vida uma corresponsabilidade. Com tanta violência que há, onde
está a concepção de vida que temos? Com essa intersubjetividade, todo o
mundo é uma grande vida, eu sou importante para ele, ele é importante para
mim. È por isso que o ser humano não nasce sozinho, nasce de duas pessoas
diferentes que vão ampará-lo até que ele possa decidir o seu futuro. Quero
insistir, ao final, que a vida não é apenas física ou biológica. É acima de tudo espiritual. A pessoa precisa mais de amor do que de comida. A criança não chora
apenas por que tem fome – às vezes, quando recebe colo ela sossega. Fiz uma
cartilha recentemente, a Cartilha do Amor, dizendo que esta é a essência da
vida humana e a vida cristã. O que há de especial no céu? A abundância? A
comodidade? O que há, principalmente é Deus. A sensação de estar envolvido
pelo amor de Deus, nos sentirmos plenamente amados por Deus. Mais felizes nós somos na companhia de pessoas, onde podemos ser amados, onde o
amor é plenamente realizado. O preço para ir ao céu é muito alto, temos que
morrer – mas não é preciso morrer para ir para o céu. Podemos construir o
segredo do céu, o amor de Deus, aqui na Terra. São João afirmou:
“Quem ama, conhece Deus”.
Não é possível apenas encontrar isto nos livros. Para conhecer Deus, é
preciso experimentá-lo através do amor. Não basta apenas teorizar sobre
isso. A experiência de Deus é se sentir amado por ele. 
84  Cremers  Desafios Éticos
Planejamento
Familiar
Coordenação: Magno Spadari
Participantes: Antônio Celso Ayub, Marinês Assmann e Eunice Flores
Fevereiro/2006
Antônio Celso Ayub 
Ginecologista e obstetra, conselheiro do Cremers e professor universitário
Segundo José Formiga,
“após extensas discussões ao longo dos últimos anos,
felizmente podemos observar cada vez mais a contextualidade do Planejamento Familiar como ação básica de
saúde e não como instrumento de política demográfica”.
O planejamento familiar se diferencia do controle de natalidade por abordar a
questão da saúde das pessoas e da sociedade, não por uma imposição do Estado
a fim de reduzir a população, sem priorizar o indivíduo. Ação básica de saúde
significa atenção primária à saúde, respeitando a atividade dos profissionais que se
encontram na ponta do sistema de saúde, pois são profissionais em contato direto
com grupos populacionais - comunidades.
Os princípios de uma ação básica de saúde são reconhecer que a saúde
resulta essencialmente do desenvolvimento socioeconômico; identificar as
desigualdades econômicas e sociais dentro de um mesmo país e entre países
e supor que o Estado garanta saúde a todos; acomodar, tecnologicamente, as
políticas às necessidades da população, considerando a validade econômica
mais do que a validade técnica.
Os objetivos do planejamento familiar como ação básica de saúde são ampliar
a cobertura de assistência à população; produzir impacto favorável nos indicadores de saúde; melhorar a qualidade de vida dentro de um custo suportável. As
atividades propostas pelos agentes de saúde em relação ao planejamento familiar,
a fim de viabilizar sua execução pelo governo: educação sobre questões atinentes
à saúde, promoção de nutrição adequada, fornecimento de água potável e saneamento, um programa de saúde materno-infantil que inclua planejamento familiar,
trabalho de imunização por meio de campanhas de vacinação, prevenção e controle das grandes endemias, promoção da saúde mental, tratamento das doenças
comuns, provisão de medicamentos essenciais. Essas políticas públicas de saúde
podem trazer um grande avanço na qualidade de vida das famílias.
A definição de planejamento familiar consiste em um conjunto de ações de
regulação da fertilidade. Direitos iguais de constituição, limitação e aumento da
prole para homem e mulher. O planejamento familiar faz parte do conjunto de
Desafios Éticos  Cremers  87
ações de atendimento global e integral à saúde garantido pelo Estado. Essas ações
básicas, conforme a Lei 9.263, de 12 de janeiro de 1996, são:
I - a assistência à concepção e contracepção
II - o atendimento pré-natal
III - a assistência ao parto, ao puerpério e ao neonato
IV - o controle das DSTs
V - o controle e prevenção do câncer cérvico-uterino, de mama e do pênis.
O essencial nestas ações básicas de saúde são métodos e técnicas de concepção e contracepção, a fim de garantir a liberdade de opção do casal.
Contexto da Saúde Reprodutiva: Regulação da Fecundidade ou Fertilidade
A fecundidade é a capacidade de engravidar; a fertilidade é a capacidade
de procriar. A fecundidade seria, portanto, parte da fertilidade. Os fatores
dos quais esses dois conceitos dependem são vida sexual ativa, uso de métodos contraceptivos, prevalência de doenças, esterilidade. A regulação da
fertilidade pode ser pré-concepcional e pós-concepcional, mas a regulação da
fecundidade só pode ser pré-concepcional. A Lei 9.263 trata da regulação da
fertilidade, e estende as ações de planejamento familiar ao atendimento prénatal, ao atendimento ao parto e ao atendimento ao puerpério.
Fertilidade é a expressão da capacidade reprodutiva. Na mulher, começa na puberdade e finda na menopausa; no homem, começa na puberdade
e não tem um fim exato, definido. A anticoncepção é a forma mais eficaz
de controlar a fecundidade. O uso de métodos contraceptivos depende de
orientação médica e acompanhamento. As políticas públicas de saúde devem
estimular a freqüência aos centros de planejamento familiar. Estes centros
devem estar equipados para anticoncepção, prevenção do câncer cérvicouterino, prevenção e tratamento de DSTs, prevenção do aborto espontâneo,
prevenção da prematuridade, prevenção da natimortalidade e prevenção da
mortalidade materna.
Os aspectos-chave do planejamento familiar como ação básica de saúde são:
I - Milhões de pessoas adotam o planejamento familiar.
II - A demanda por planejamento familiar está aumentando.
88  Cremers  Desafios Éticos
III - A saúde reprodutiva é um direito humano reconhecido, mas ainda não
concretizado.
IV - A anticoncepção protege a vida das mulheres.
V - O uso de contraceptivos é uma das maneiras mais eficazes de melhorar a
saúde infantil, especialmente pelos custos.
VI - O planejamento familiar contribui decisivamente para que as mulheres
tenham melhores opções de vida.
VII - Os programas de planejamento familiar bem orientados reduzir a prevalência de doença.
VIII - Os programas de planejamento familiar podem contribuir efetivamente
para desacelerar o crescimento populacional
Milhões de pessoas adotam o planejamento familiar. A demanda mundial
está mais assistida, aumentaram as variedades de métodos contraceptivos e
mais comunidades estão sendo atendidas. É importante ressaltar, porém, que
há uma demanda reprimida.
A demanda por planejamento familiar está aumentando. No Brasil, 77%
dos casais usam contraceptivos, a média nos países em desenvolvimento é de
55 por cento. No Brasil, 13% desses casais têm necessidade insatisfeita, a média dos países em desenvolvimento é de 20%. No mundo, são 570 milhões
as pessoas que usam contraceptivos, e cerca de 350 milhões no mundo têm
uma necessidade insatisfeita. Os casais querem ter poucos filhos e a partir daí o
uso de contraceptivos modernos torna-se imprescindível. A saúde reprodutiva
é um direito humano reconhecido, mas ainda não concretizado. Os serviços de
atenção à saúde reprodutiva devem ser acessíveis a todos. As pessoas devem
ser capacitadas a tomar decisões bem fundamentadas, planejar os nascimentos
e evitar gestações involuntárias. A anticoncepção protege a vida das mulheres,
pois evita o aborto em condições de risco e previne a gravidez involuntária,
assim como abortos clandestinos.
Levando em consideração as mulheres de 15 a 44 anos que engravidaram,
49% destas em países de desenvolvimento - como o Brasil - planejaram a
concepção, frente a 47% no restante do mundo. Em ambos os espectros a
quantidade de nascimentos não planejados é de 16 por cento. Cerca de 20%
das mulheres nos países em desenvolvimento já fizeram um aborto induzido
e 15% tiveram um aborto espontâneo. O índice de mortalidade materna no
Brasil é de 220 mulheres a cada 100 mil nascidos vivos, frente a 480 nos países
em desenvolvimento e apenas 27 nos países desenvolvidos, onde existem poDesafios Éticos  Cremers  89
líticas de planejamento familiar. A anticoncepção protege a vida das mulheres,
pois limita os nascimentos aos anos mais apropriados, evitando abortos espontâneos. O período de procriação mais seguro para a mulher é dos 20 aos 40
anos de idade. Limita também o número de nascimentos, pois o risco à saúde
da mulher aumenta muito após o quarto parto.
O uso de contraceptivos é uma das maneiras mais eficazes de melhorar a saúde infantil, especialmente pelos custos, pois aumenta o espaço
entre as gestações, proporcionando maior atenção às crianças e melhores
condições para o aleitamento materno. A mortalidade das crianças com
menos de um ano no Brasil é de 37 a cada 100 nascidos vivos. Os países
em desenvolvimento têm média de 65 mortes e os países desenvolvidos,
apenas seis. Nas crianças menores de cinco anos, o número aumenta para
44 no Brasil, 96 nos países em desenvolvimento e apenas sete na média dos
países desenvolvidos. Estudos demonstram que a mortalidade de lactentes
é muito maior quando o intervalo intergenésico é menor que dois anos,
sendo 142 na África subsaariana - 72 quando o intervalo intergenésico é
entre 2 e 3 anos. A mortalidade das crianças menores de 5 anos também
demonstra grande diferença. A cada 1000 crianças, 87 morrem analisando
intervalo intergenésico de menos de dois anos, e 51 quando esse intervalo
é entre dois e três anos.
As crianças nascidas de mães com idade entre 20 e 40 anos apresentam
menores incidências de afecções que as demais, segundo o estudo de Shane,
no seu livro “Planejamento Familiar Salva Vidas”. Nas mães adolescentes existe
maior probabilidade de RN prematuro, de complicações obstétricas. Existe uma
menor atenção ao pré-natal e ao RN.
O planejamento familiar contribui decisivamente para as mulheres terem
mais opções de vida. A revolução sexual trouxe uma maior liberdade feminina,
o acesso feminino a carreira outras que não dona de casa e mãe, a possibilidade
de postergar o primeiro filho a fim de completar os estudos, atingir carreiras
mais valorizadas, competir com o homem pelos melhores postos de trabalho. A
gestação na adolescência traz evasão escolar, e o nível de instrução da mãe tem
profunda relação com a sobrevivência e a saúde dos filhos. Em famílias menores
a tendência é ter crianças com mais escolaridade.
Os programas de planejamento familiar bem orientados podem reduzir a
prevalência de doenças como câncer de cérvice, DST/Aids, reduzem a possibilidade de aborto, a prematuridade, a mortalidade do bebê e da mãe.
90  Cremers  Desafios Éticos
Os programas de planejamento familiar podem contribuir efetivamente
para desacelerar o crescimento populacional. È previsto que na Terra em 2050
existam 127 bilhões de pessoas, e isso implica em alta demanda de recursos
naturais, pressões sobre o meio ambiente. O equilíbrio ecológico é essencial à saúde. As duas formas básicas de reduzir o impacto provocado pela
humanidade sobre o meio ambiente são utilizar os recursos eficientemente
e desacelerar o crescimento da população. Podemos concluir dizendo que
o planejamento familiar é o único recurso eticamente correto para evitar a
necessidade do controle de natalidade. 
Marinês Assmann 
Promotora de Justiça do Ministério Público Estadual
Diz a Lei 9.263/96:
Art. 1° O planejamento familiar é direito de todo cidadão, observado o disposto nesta Lei.
Art. 2° Para fins desta Lei, entende-se planejamento familiar como o
conjunto de ações de regulação da fecundidade que garanta direitos iguais
de constituição, limitação ou aumento da prole pela mulher, pelo homem ou
pelo casal.
Parágrafo único - É proibida a utilização das ações a que se refere o caput para
qualquer tipo de controle demográfico.
Art. 3° O planejamento familiar é parte integrante do conjunto de ações de
atenção à mulher, ao homem ou ao casal, dentro de uma visão de atendimento
global e integral à saúde.
Parágrafo único - As instâncias gestoras do Sistema Único de Saúde, em todos
os seus níveis, na prestação das ações previstas no caput, obrigam-se a garantir,
em toda a sua rede de serviços, no que respeita a atenção à mulher, ao homem ou
Desafios Éticos  Cremers  91
ao casal, programa de atenção integral à saúde, em todos os seus ciclos vitais, que
inclua, como atividades básicas, entre outras:
I - a assistência à concepção e contracepção;
II - o atendimento pré-natal;
III - a assistência ao parto, ao puerpério e ao neonato;
IV - o controle das doenças sexualmente transmissíveis;
V - o controle e prevenção do câncer cérvico-uterino, do câncer de mama
e do câncer de pênis.
Art. 4° O planejamento familiar orienta-se por ações preventivas e educativas e pela garantia de acesso igualitário a informações, meios, métodos e
técnicas disponíveis para a regulação da fecundidade.
Parágrafo único - O Sistema Único de Saúde promoverá o treinamento de
recursos humanos, com ênfase na capacitação do pessoal técnico, visando a
promoção de ações de atendimento à saúde reprodutiva.
Art. 5° É dever do Estado, através do Sistema Único de Saúde, em associação, no que couber, às instâncias componentes do sistema educacional, promover condições e recursos informativos, educacionais, técnicos e científicos que
assegurem o livre exercício do planejamento familiar.
O artigo 226 da Constituição garante o planejamento familiar definido
na lei como “um conjunto de ações do Estado para regular a fecundidade,
abrangendo a contracepção e concepção”. O trabalho do MP é fazer valer
esses direitos, através da interação com médicos e demais profissionais envolvidos com o tema, para garantir o acesso dos programas de planejamento
familiar à população. Porto Alegre já tem uma política firmada nesse sentido,
algo que começa a se esboçar em nível estadual. Outra das preocupações do
MPE é evitar conflitos ideológicos que podem se desenhar, especialmente
em relação á Igreja Católica, ao mesmo tempo em que buscamos espaço
para o diálogo.
Desejamos implementar a organização dos poderes públicos, em termos
de ações e serviços, para que seja garantido o método anticoncepcional desejado, a orientação na unidade de saúde e as pessoas tenham acesso à vasectomia ou à ligadura tubária, se for o caso, e, também, abordagem sobre se92  Cremers  Desafios Éticos
xualidade na escola. verificado a existência de um grande número de abortos
clandestinos. Tudo porque não houve planejamento familiar e a contracepção
adequada. Os abortos acabam acontecendo e, por conta deles, complicações
de saúde, o que torna esta questão um problema de saúde pública. Hoje,
quando uma menina de 12 anos engravida, a primeira coisa que faz é sair da
escola. Uma estatística comprova que 80% delas, nessa faixa de idade, abandonam os estudos.
A mídia e as novelas tratam do tema da gravidez na adolescência, mas é
fundamental uma política de ações permanentes. As classes alta e média fazem
planejamento porque possuem informações e condições, mas nas camadas mais
pobres não acontece esse esclarecimento. O importante é que esses programas
cheguem nas vilas e não só nos shoppings. Estamos em um país onde 10% das
meninas engravidam antes dos 15 anos. Em Porto Alegre, 7,7% das meninas
que freqüentam a escola com idade entre 10 e 14 anos, engravidam.
Porém, as iniciativas não estão, ainda, sistematizadas. A Promotoria Especializada vem trabalhando a questão do planejamento familiar, mas precisa
avançar muito mais. O Ministério Público, em determinadas ocasiões, chegou
a reunir as Secretarias Estaduais da Saúde e Educação. A meta é organizar
melhor o aproveitamento de ações em todo o Estado, já que algumas medidas
já foram efetuadas, como na Promotoria Especializada de Rio Grande.
Não queremos entretanto impor medidas, não pretendemos o controle
da natalidade. A família é um núcleo da sociedade e essa noção está um pouco
perdida, merecendo ser resgatada. Portanto, a idéia é buscar um planejamento com paternidade responsável. O controle de natalidade, através da
esterilização cirúrgica involuntária, é proibido e constitui crime pela legislação brasileira, além de ser ineficaz nos países onde é adotado. Percebese, nas grandes cidades, a desestruturação da família e crianças nas ruas.Por
isso, precisamos congregar a sociedade em torno de valores como dignidade,
solidariedade e despertar a questão do afeto. Temos que chamar a atenção
da sociedade para que as famílias passem a refletir sobre a questão da abordagem da sexualidade no seio familiar. Em Porto Alegre o Ministério Público
pode ser acionado para a obtenção de métodos contraceptivos, através da
promotoria de justiça. As unidades básicas de saúde também oferecem aconselhamento sobre planejamento familiar. Porém, o fundamental é debater
essas questões nas escolas e na família, para que a população se conscientize
da necessidade destas práticas. 
Desafios Éticos  Cremers  93
Eunice Flores 
Presidente do Conselho Estadual dos Direitos da Mulher
O planejamento familiar é um dos maiores desafios da sociedade atual.
O tema está na pauta de discussão de vários segmentos sociais, mas falta
coragem para enfrentar as diferenças e efetivar as mudanças necessárias. A
sociedade tem um papel fundamental na exigência de políticas públicas junto
aos governantes que, na sua grande maioria, têm medo de contrariar determinadas doutrinas religiosas.
Na década de 1960, com o advento da pítula anticoncepcional, vários setores sociais se opuseram ao planejamento familiar. Muitos interesses estavam
em jogo. Quanto mais crianças nascessem, mais fácil seria ocupar os espaços
disponíveis no território nacional. Os militares defendiam a ocupação dos vazios demográficos. A igreja, por sua vez, se manifestava contrária à utilização
de métodos contraceptivos, que “contrariavam a vontade de Deus”.
Quarenta anos se passaram e ainda nos deparamos com a ausência de
políticas publicas buscando o planejamento familiar. Hoje, a nossa principal
preocupação é com a situação das mulheres de comunidades carentes onde,
muitas vezes, existe a dificuldade de informação, o que dificulta o acesso
aos métodos contraceptivos, às políticas de saúde pública que visam ao planejamento familiar. Esta questão da informação é muito importante, pois
não há como fazer planejamento familiar no Brasil desconsiderando uma
educação básica relevante. Atualmente, há uma redução no número de filhos
nas famílias mais ricas e de classe média que têm a sua disposição modernos
métodos contraceptivos. Enquanto isso, as famílias mais carentes continuam tendo dificuldades de acesso a estes métodos, constituindo famílias com
quatro ou cinco filhos sem condições de lhes oferecer uma vida digna com
perspectiva de futuro.
É difícil acreditar que mulheres ainda tenham gestações indesejadas pela
ausência de informação e falta de estrutura, equipamentos e profissionais capacitados para prestar atendimento à população. É lamentável, mas ainda nos
deparamos com situações em que muitas mulheres não sabem usar corretamente a pílula anticoncepcional e não utilizam preservativos nas relações sexuais ficando vulneráveis às DST - doenças sexualmente transmissíveis. Ainda
há muito que caminhar nesse sentido, para alcançar uma política de planejamento familiar relevante e eficiente.
94  Cremers  Desafios Éticos
Quase sempre as discussões acerca do direito da mulher em planejar a sua
gravidez, optar pela hora certa de engravidar, remetem à questão da legalização do aborto, algo polêmico em todos os níveis de discussão. O aborto, muitas vezes, é considerado a única solução do problema da falta de planejamento
familiar. Mas o aborto não pode ser a única solução, pois isso nos remete a
abortos malfeitos e à mortalidade materna.
Quando não existe uma política pública de planejamento familiar acontece
um grande prejuízo, especialmente em relação às mulheres, pois estas muitas
vezes têm de criar os filhos sem ajuda do pai, sem a presença da figura paterna. Também pela cultura social construída a mãe é apontada como responsável pela criação dos filhos eximindo o pai de uma responsabilidade que deve
ser compartilhada. Esse tipo de atitude cria uma série de riscos para a vida da
criança que crescerá em ambiente familiar desestruturado.
Quando o nascimento da criança não é planejado, a sua criação se torna improvisada, muitas vezes sem o cumprimento das premissas básicas de
educação, saúde, valores morais. A criança fica vulnerável a fatores de riscos
para o seu crescimento e desenvolvimento, como a violência intrafamiliar, as
drogas e a negligência, comprometendo o seu futuro e até mesmo a própria
vida numa sociedade cada vez mais competitiva, violenta e desigual.
É importante que a sociedade civil se organize e crie grupos para fazer o
controle social da implementação, ou não, das políticas públicas para o planejamento familiar, não colocando apenas sobre os ombros dos setores públicos
a responsabilidade dessa decisão. 
Desafios Éticos  Cremers  95
Maus-Tratos
na Infância
Coordenação: Douglas Pedroso
Participantes: Magno Spadari, José Antônio Daltoé Cezar e
Joelza Mesquita Andrade Pires
Março/2006
Magno Spadari 
Cirurgião pediatra, conselheiro do Cremers e professor universitário
Quanto tempo pode alguém olhar para o lado, fingindo
não enxergar. - Bob Dylan, Blow’n the wind, 1963
A questão da criança molestada por aqueles que dela deveriam cuidar é
uma doença social que existe desde há muito tempo, remetendo a fatores
históricos, religiosos, culturais, antropológicos e sociais e atingindo a todas as
idades e todas as classes sociais. No Império Romano, por exemplo, o infanticídio ou o abandono da criança era uma prática comum, usada para regular
a oferta de alimento. Os valores cristãos foram incorporando as crianças às
famílias, ainda que permissivamente fossem tratadas como propriedade dos
seus pais cujo poder sobre elas era ilimitado e não questionado. Até pouco
tempo atrás, o comum ao lidar com crianças era o castigo físico e psíquico
como punição, muitas vezes de forma violenta, com a finalidade educativa.
Mesmo nos Estados Unidos, em Massachusetts, no século XVI, o infanticídio
era uma prática aceita em situações especificas. Tal tolerância social fez com
que a primeira denúncia de maus-tratos infantis de que se tem registro date
apenas de 1963, demonstrando quão recentes são as políticas de proteção infantil. Hoje, as mudanças sociais e culturais criaram valores que não compactuam mais com essa pedagogia e esse comportamento, mobilizando a sociedade para o problema e criando todo um lastro de denúncias, conhecimento
e políticas de proteção à criança levando à falsa impressão de que apenas nos
nossos dias tais casos ocorram. Entretanto, é preciso ressaltar que chega aos
órgãos de saúde pública e à Justiça apenas a ponta de um imenso iceberg, visto
que a parte submersa é representada pela imensa maioria de casos não denunciados e não detectados ou registrados pelas estatísticas desses serviços,
sem falar nas pessoas de condição social privilegiada que resolvem a situação
dentro da própria família.
Ressaltamos também, que à medida que a sociedade se aperfeiçoa, paradoxalmente, aparecem situações outras mais complexas, diferenciadas e
até bizarras, traduzidas como as várias formas de violência física, psíquica,
exploração sexual variada (inclusive pela Internet), prostituição, meninos de
rua, criança soldado, cada uma delas com suas particularidades e abordagens.
Sem falar na violência infantil de motivação política, quando crianças são toDesafios Éticos  Cremers  99
madas como reféns, por exemplo. Esses fatores são agravados por conta da
negligência familiar e institucional que vigora, quando as famílias não fornecem
educação e proteção suficiente por não terem ou por não quererem, assim
como a violência do Estado, traduzida na negligência ao não disponibilizar uma
estrutura mínima razoável para atendimento social, de saúde e educação. Seria necessário um maior número de abrigos, de escolas e de hospitais com
possibilidade de tratamento pediátrico, enfim, um maior cuidado do Estado
em relação às crianças. Tudo isso sem esquecer questões fundamentais da
sociedade tão importantes quanto a violência física, embora não tão chamativas como a questão do trabalho infantil, a exploração econômica e sexual das
crianças pelos genitores, assim como a problemática das drogas, onde cada
vez mais crianças são drogaditas e também são utilizadas em atividades do tráfico e, mesmo, como escudo nos confrontos com a polícia e quadrilhas rivais.
Embora o nosso enfoque seja médico, o assunto interessa a todos os segmentos das profissões da área da saúde, interessa as varias especialidades que
atendem crianças e não apenas ao pediatra, bem como a todos os operadores do
Direito, pois algumas circunstâncias desembocam em áreas jurídicas não diretamente envolvidas com a criança.
O médico entra em contato com este tipo de paciente de duas formas: uma,
como médico assistente em consultório ou enfermaria, já com a suspeita, quando
a criança é referenciada por profissionais de saúde da área ambulatorial ou quando
ela é conduzida pelas autoridades ou pelo conselho tutelar ou pela comunidade (familiares, vizinhos, professores). Outra, quando está atendendo em serviços ambulatoriais, consultório ou emergência e depara com sintomas e sinais compatíveis com
violência física, psíquica ou sexual. Sob o ponto de vista ético, o problema necessita
de uma abordagem mais ampla do que aquela da simples questão legal ou deontológica, muito mais baseada em Virtudes, Deveres e Princípios, no exato espírito da
Bioética. A virtude básica seria a da prudência, fundamental tanto nos casos evidentes quanto nos casos suspeitos. Os princípios norteadores do envolvimento do médico com as crianças devem ser o da proteção da criança e o da moderação. Aquele
razão maior da existência da Pediatria e das especialidades pediátricas e embutidas
no próprio ordenamento filosófico e jurídico da sociedade ocidental; este último
fundamental na abordagem deste problema tanto no sentido do não agravamento
de uma situação já definida quanto no trato dos casos duvidosos.
Em relação aos deveres, o Estatuto da Criança e do Adolescente preconiza a
punição administrativa do profissional que não comunicar às autoridades um caso de
100  Cremers  Desafios Éticos
violência. O Código de Ética Médica, embora não trate especificamente da questão
permite o seu enquadramento em vários artigos relacionados ao exercício profissional, impondo obrigações ao médico, como em todas as outras doenças, quanto
ao diagnóstico e tratamento das situações. Embora sejam raros os casos de responsabilização do profissional pelo não diagnóstico ou não comunicação, cremos nós, é
questão de tempo para que tais problemas aconteçam. Cito como exemplo, o caso
reportado de morte de uma criança após comunicação de recurso ao Conselho
Tutelar sem que este encaminhasse as soluções pertinentes. Nesse sentido, ficam
implícitos o dever e a responsabilidade profissional, ética, moral e legal do médico
e, cremos nós, diferenciada em relação a estar ele no ambulatório ou serviço de
urgência e estar ele em consultório privado, hospital ou serviço de referência. Diferenciada também a situação particular de cada paciente: lesões gritantes (gerando
responsabilidade maior) e lesões sutis (gerando responsabilidade menor).
Nos ambulatório e serviços de urgência, em função das condições de trabalho
não serem as ideais e, muitas vezes, da grande quantidade de atendimentos, acreditamos que o dever a ser cumprido é apenas o da suspeita. Para os médicos de
referência, de enfermaria ou de consultório privado, fica o dever da comprovação
diagnóstica. Tal nível de exigência, que a priori pode parecer demasiado, se impõe
porque os episódios não são isolados, a repetição é a regra, com morbidade e
mortalidade expressivas. Existe um padrão de comportamento em que o nexo
de causa e efeito precisa ser estabelecido e que pode ser resumido em um alvo (a
criança), um agente (alguém da família, da casa ou das proximidades) os efeitos (as
lesões, quase sempre características) e as conseqüências (dano e seqüelas tanto
físicas quanto emocionais ou mesmo a morte).
Violência física geralmente acomete crianças em idade pré-escolar muitas vezes com doenças crônicas ou recorrentes. Fácil de explicar, pois o habitat do préescolar, que mal caminha, é a sua casa e a influência do agente agressor, portanto,
muito grande e constante. Este fato é tão marcante que, quando nos depararmos
com traumatismo múltiplo nessas crianças e elas não estiverem envolvidas em acidente de trânsito ou queda de grande altura, a violência deverá ser encarada como
única alternativa possível. No escolar, que consegue escapar devido a sua maior
autonomia, encontramos apenas algumas lesões de partes moles (tipo castigos) ou
então, lesões graves que levam ao óbito como ruptura de víscera abdominal. Classicamente, a violência sexual prefere as adolescentes do sexo feminino, embora
ressaltemos que esta afirmativa não condiz com a realidade, pois como já referimos, esses são os casos que chegam ao hospital. É no abuso sexual, escondido e
Desafios Éticos  Cremers  101
mascarado nos cantos mais escuros dos lares e, quase sempre, sem deixar marcas
visíveis, que descansa a impunidade máxima.
Em relação aos agentes agressores, encontramos com muita freqüência pais
que muito jovens, membros de uma família cuja unidade se rompeu, um histórico
de violência física e abuso no passado, portadores de alcoolismo, drogadição e
psicoses. O equilíbrio familiar muitas vezes se rompe em situações de crise, como
a perda do emprego ou a morte de um ente querido.
A probabilidade de violência é grande quando encontramos lesões como equimoses e hematomas disseminados (algumas vezes referidos como coagulopatias
que não se enquadram no quadro clínico destas); fraturas incompatíveis com a
história, havendo desproporção entre a gravidade da lesão e a importância da
queda (suspeitar da história de queda do berço) ou quando a história não combina
com o achado clínico; marcas de castigos, evidenciadas por lesões provocadas
por cordas, cintos, cigarros etc.; traumatismos múltiplos em crianças que não se
envolveram em acidentes de trânsito ou quedas de grandes altitudes; fraturas antigas coexistindo com novas fraturas; queimaduras repetidas, em locais diversos
do corpo; situações aberrantes (arrancamento do lobo da orelha, por exemplo);
lesões perineais e genitais. Pobreza de higiene e desnutrição, embora não características, muitas vezes demonstram uma situação de risco. Tais lesões podem gerar
uma responsabilidade clara e definida sobre o profissional, pois são conspícuas e
peculiares, e devem facilmente conduzir a suspeita.
Embora a literatura norte-americana reporte com freqüência sintomas e sinais
genéricos e incaracterísticos como sendo produzidos pela violência, achamos que
não podem, em principio, gerar o mesmo tipo de responsabilidade profissional
como as que acima referenciamos. São de difícil comprovação e, regra geral, não
podem ser tomados isoladamente como significativos quanto ao diagnóstico de
abuso. Entre esses sinais, timidez, distorção de fala, atraso no desenvolvimento,
comportamento arredio, corrimento vaginal, lesões dentárias, manipulação genital e síndrome de Münchausen, (os sintomas e sinais são induzidos para que a
investigação e tratamento médicos sejam responsáveis pelo castigo).
Capítulo à parte é a questão do abuso sexual. Se a penetração vaginal forçada de uma criança pequena por um adulto quase sempre é desastrosa sob o
ponto de vista físico deixando marcas grosseiras e perceptíveis, as situações sutis
demandam atenção especial. Aqui, mesmo a literatura especializada é confusa e
conflitante e ocorrem os principais enganos de diagnóstico. Este fato é agravado
pelo desconhecimento, pelos profissionais envolvidos - pediatras, ginecologistas
102  Cremers  Desafios Éticos
e mesmo legistas - tanto das particularidades anatômicas do hímen das crianças
quanto da técnica adequada de exame. O exame ginecológico de uma criança
suspeita de violência sexual deve ser efetuado sempre com sedação ou, preferentemente, com anestesia geral, pelo método da tração labial, com coleta de
material e, eventualmente, colposcopia. Cuidado com os entalhes congênitos e,
como regra geral, somente as rupturas himeneais inequívocas, sejam elas recentes
ou tardias, devem ser referidas como comprovação da penetração. As situações
duvidosas devem ser enquadradas como tal e os casos tratados com abordagem
indicada para esses casos duvidosos ou de risco. Grande desvantagem, neste sentido, levam os legistas, que em geral não dispõem, nos seus locais de trabalho,
das melhores condições para este exame e por isso é que, nestes casos, o seu
desempenho fica prejudicado e a prova por ele produzida facilmente questionada.
Lembrar também, que a penetração oral ou anal pode ser efetivada sem marcas
visíveis mesmo em crianças menores e que a grande população de violência sexual
é a manipulação genital que, geralmente, não deixa marcas.
Ainda na esfera sexual, merece comentário a questão das verrugas anugenitais
que, segundo alguns especialistas, entre eles Lisieux de Jesus, Oscar Lima Cirne
Neto e Leila Nascimento, concluíram como muito sugestivas de abuso sexual,
embora no âmbito legal, exista uma dificuldade muito grande entre algumas autoridades e legistas de que assim sejam elas consideradas.
Como deve o médico da linha de frente, seja ele pediatra, neurologista, ortopedista, cirurgião, etc., lidar com aqueles casos suspeitos? A regra de ouro, acreditamos, para lidar é internar a criança, mesmo que ela não necessite de cuidados
hospitalares. Desta forma, é possível afastá-la do agente agressor e coletar provas
que caracterizem a materialidade do fato, como a confirmação por entrevista, o
achado de repetividade de violência (como fraturas antigas e novas ou hemorragias
retinianas antigas e novas, etc.) evidenciados pela radiografia de todo o esqueleto
e pelos exames obrigatórios do fundo de olho e neurológico. Buscar os indícios de
abuso sexual, por meio do exame genital pelo método clássico da tração labial (sob
anestesia ou sedação), exame do hímen, coleta de material para pesquisa de esperma e infecções sexualmente transmissíveis. Dentre os procedimentos hospitalares,
é fundamental descrever as lesões de forma correta e fiel, não opinativa e sem adjetivação, constando as dimensões e, preferencialmente, utilizando de imagens (fotos
datadas, com a identificação do paciente) e remetendo-as para as autoridades.
Devemos ressaltar que a abordagem hospitalar deve ser multidisciplinar e multiprofissional. A criança além de receber tratamento físico e apoio psíquico, deve ser enDesafios Éticos  Cremers  103
trevistada de forma a que os danos da própria entrevista sejam minimizados (programa
de dano mínimo ou reduzido) pela utilização de técnicas adequadas. Com relação aos
responsáveis ou suspeitos, é necessária uma abordagem profissional e, mesmo cordial
e respeitosa, com o máximo de privacidade. É fundamental e necessário coletar informações aproveitáveis, e os diversos profissionais envolvidos produzirem relatórios
conjuntos ou individuais coerentes desprovidos de emoção ou revolta. Tentar evitar
o furor acusatório, pois não compete a nós substituir a autoridade policial ou judicial e
muito menos temos o direito de tomar a justiça em nossas mãos, por maior que seja o
sentimento de revolta ou indignação. Caso não seja possível assim proceder, o melhor
é delegarmos o atendimento a outro colega menos evolvido.
Além do dever profissional da suspeita, do diagnóstico e do tratamento, temos o
dever explicito da comunicação às autoridades. O ideal é que essa comunicação seja
institucional, evitando o papel de denunciante direto. Nesta questão legal, temos a
obrigação de prestar os esclarecimentos que se fizerem necessários, quando instados a tal pelas autoridades competentes. Quando solicitado ao médico testemunhar
diante de um caso de abuso infantil, é necessário evitar frustrações, afirmar apenas
o que implica em absoluta certeza, dissertar de forma sucinta e objetiva, sem divagações e, naqueles casos em que os cônjuges estão se digladiando, não tomar partido.
Idealmente, tanto a comunicação quanto os esclarecimentos devem ser prestados
pela instituição, que deveria criar um grupo multiprofissional ao qual seriam referenciados os casos suspeitos. Também devem ser preservados residentes e estagiários,
ficando esses esclarecimentos a cargo do preceptor ou médico assistente.
Além disso, a violência doméstica pela sua importância social determina ao
médico envolvido outros deveres, principalmente os da prevenção e o da educação, tanto de outros profissionais quanto das pessoas em geral.
Naqueles casos suspeitos, em que mesmo após varias tentativas não é possível
estabelecer com segurança a relação de violência doméstica, deve a instituição ou o
médico assistente (dentro do principio de proteção à criança e atendendo ao dever
de prevenção) estabelecer estratégias para isso. Dentre estas, está o acompanhamento freqüente e atento programado para ambulatório ou consultório que, muitas
vezes, se não consegue comprovar a violência, serve para inibi-la. Esse mesmo mecanismo pode ser utilizado através de visitas programadas e de surpresa pelo conselho tutelar ou equipes de saúde da família e, mesmo por familiares ou vizinhos.
No cumprimento do dever de prevenção, podem estar envolvidos outros
profissionais ainda que de forma mais genérica. É o caso da gravidez indesejada
por parte dos obstetras, por exemplo, na prevenção da gravidez na adolescência,
104  Cremers  Desafios Éticos
bem como dos pediatras em relação a cuidado com os filhos de pais muito jovens,
alcoolistas, drogaditos ou psicóticos. Torna-se fundamental um aconselhamento
a fim de “administrar” os problemas, um envolvimento no sentido de manter a
estrutura familiar e sugerir tratamento dos pais alcoolistas, dependentes químicos
e doentes mentais, travestindo-se, muitas vezes, o médico de educador tanto dos
familiares quanto da sociedade. É papel do Estado, igualmente, por suas políticas
de saúde pública, manter a população informada dos riscos do uso de drogas,
da alta possibilidade de gravidez indesejada, regras básicas de educação sexual, e
explicar à criança o que são gestos “bons” e gestos “maus”, pois a criança abusada,
muitas vezes, só vai perceber que foi abusada quanto chegar à idade adulta.
Para os profissionais, são indispensáveis uma formação aprimorada e uma
educação continuada nestas questões além da capacitação de recursos para programas relacionados. “O treinamento para proteção da criança é essencial a todos
os profissionais da saúde engajados no serviço às crianças. Não é um opcional,
mais um extra”, afirma B. Capon, um especialista nesta área.
Finalizando, devemos dizer que, muitas vezes, o resultado de todo esse envolvimento e trabalho desgastante é apenas a punição do agente agressor, fato que, frequentemente, a própria criança não deseja. A sociedade, de certa forma, adota uma
posição “tipo Pilatos” com essa punição, lavando as mãos e considerando a sua obrigação cumprida. Sabemos que as instituições oficiais pouco podem fazer além disso,
mas é fundamental e importante que nos conscientizemos que a nossa obrigação enquanto médicos é primordialmente com a suspeita; que quando estamos examinando
uma criança com lesões possíveis, temos uma oportunidade única e privilegiada de
interromper um ciclo brutal de sofrimento e humilhação, além de prevenir situações
graves como o óbito e tendo uma chance única de restaurar a dignidade e devolver à
palavra cidadania, nos dias de hoje, mal utilizada, o seu verdadeiro sentido. 
José Antônio Daltoé Cezar 
Juiz da Infância e da Juventude
Vou falar um pouco sobre o projeto Depoimento Sem Dano, em que as crianças e adolescentes vítimas de abuso ou exploração sexual relatam o fato em sala
especial apenas com a presença de psicólogo ou assistente social. A necessidade
Desafios Éticos  Cremers  105
deste projeto surgiu da grande dificuldade de conseguir informações de crianças
a respeito dos maus tratos cometidos contra elas, pois os depoimentos das crianças são muito influenciados pela presença dos pais e responsáveis. A partir disso
surgiu então a necessidade de criar uma sala especial para estes depoimentos,
quando especialistas conseguem abordar a criança sem a expor a eventuais riscos
que poderia causar uma eventual delação.
Esta sala fica próxima à sala de audiências, mas à parte dela. Nesta sala especial permanecem a criança e o técnico (psicólogo ou assistente social). Ela é
interligada em som e imagem à sala de audiências, onde permanecem o juiz, o
promotor e o advogado. Eles assistem a tudo que se passa na sala especial por
um monitor de vídeo. Mediante intercomunicadores, o operador de Direito
fala com o técnico, que conversa com a criança e esta responde à pergunta,
facilitando a fala da criança. Em 2004, o Depoimento Sem Dano ingressa em
sua segunda etapa com a implantação de equipamentos de áudio e vídeo de
tecnologia avançada, para fazer audiências com vítimas de abuso sexual. Uma
televisão 29 polegadas com zoom, oferecendo melhor qualidade de imagem e
de som. Da sala de audiências, por exemplo, pode-se usar o controle remoto
para movimentar a câmera instalada no local das inquirições.
Os aparelhos interligam a sala de audiências a ambiente reservado, em que
as inquirições são realizadas com acompanhamento de psicólogos ou assistentes
sociais. Juiz, promotor e defensor seguem o interrogatório pelo sistema, com a
possibilidade de enviar perguntas ao técnico que estiver trabalhando como interlocutor. Simultaneamente é feita a gravação de som e imagem em CD, posteriormente anexado aos autos do processo judicial.
Dentre os aspectos jurídicos que na maior parte das vezes estão em jogo,
como a liberdade, o poder familiar - o antigo pátrio poder - e a guarda dos filhos, não é possível afastar o contraditório e a ampla defesa da cena decorrente
dessa investigação. O que podemos fazer é qualificar as intervenções nos mais
diversos segmentos da investigação do fato e aqui se inclui também o processo,
para que a criança não venha a ter danos maiores do que o próprio abuso, o dito
dano secundário, e também para que consigamos, na maior parte dos casos,
responsabilizar o abusador, o que não é muito freqüente, porque para muitas
provas falta a materialidade necessária para incriminar o abusador. Como foi
demonstrado anteriormente, em muitos casos de abusos infantis acontece a
suspeita do abuso, diante de evidências que a moléstia possa ter ocorrido. Essas
evidências em geral são comportamentais, ainda que também existam algumas
106  Cremers  Desafios Éticos
evidências físicas mas que não são diretamente relacionadas a uma situação de
abuso. O depoimento reservado, portanto, é uma forma de obter as informações necessárias para o inquérito, fazendo com que a criança possa por si descrever a situação da provável moléstia física.
Foi implantado um Centro Integrado de Atendimento em Porto Alegre.
Todos os casos de abuso e exploração sexual infanto-juvenil são encaminhados
para o local, dando mais efetividade ao atendimento. O Judiciário tem tentado
fazer os encaminhamentos das vítimas e dos familiares. Mas é bom deixar
claro que essa não é função institucional nem da polícia nem do Judiciário,
pelo menos não está entre nossas atribuições. Assim, falta capacitação e faltam
recursos para um trabalho mais efetivo. Existe, entretanto, uma separação
entre o que se deve fazer com as vítimas, constatado o abuso, e o que se deve
fazer com os infratores. No caso dos infratores, é obrigação do Ministério
Público adiantar as investigações a fim de concluir o caso, com vistas a penas
de reeducação e ressocialização. Mas no caso das vítimas, nem a Polícia, nem o
Judiciário e nem o Ministério Público são diretamente responsáveis por aquilo
que pode acontecer com estas. Estamos assim diante dos deveres do Estado,
que deve se responsabilizar pelas vítimas por meio de programas de ressocialização, a fim de garantir àquela criança que sofreu abuso uma maior proteção
para não prejudicar o seu crescimento.
É importante responsabilizar o abusador, mesmo que para isso seja necessário
decretar sua prisão, como fator inibidor do abuso sexual. O sentimento de impunidade é um dos elementos que incentivam o abusador a permanecer autoritário,
explorando as crianças que tem sob seu jugo, repetindo os abusos contra estas
sistematicamente, a despeito das punições legais. A legislação brasileira, entretanto, é bastante desatualizada no que diz respeito aos crimes de costumes, aos
crimes sexuais: algumas vezes ela é por demais rigorosa; outras vezes, mostra-se
por demais branda com o agressor.
É necessário criar políticas públicas para que as vítimas de abuso sexual
tenham um efetivo tratamento e solidariedade de toda a sociedade no enfrentamento do seu problema. Se for nossa vontade enfrentar o problema,
devemos criar políticas públicas, mas não só no papel, porque o Brasil é rico
em criar políticas públicas para ficar no papel e nada funcionar depois. A
melhor política de prevenção é discutir abertamente essa questão, porque
o abuso e a exploração de crianças e adolescentes são problemas da própria
natureza do homem. 
Desafios Éticos  Cremers  107
Joelza Mesquita Andrade Pires 
Médica pediatra
Herodes mandou assassinar todas as crianças na época de Cristo. Hoje em
dia vemos situações que muito se assemelham a essa época de barbárie. Em
1949 chegou-se à conclusão de que as crianças eram as maiores vítimas de violações de direitos, sendo que a partir da década de 50 foi introduzido o conceito
dos direitos da criança e do adolescente, nos Estados Unidos. No Brasil, um
relatório de 2004 do Unicef indica que 27 milhões de crianças vivem abaixo da
linha da pobreza, 44 milhões de pessoas vivem em condições sanitárias aquém
do necessário, 14 mil adolescentes por ano, entre 12 e 19 anos, são vítimas de
mortes violentas, por drogas, por trânsito, por violência. Esses mesmos adolescentes podem ser penalizados pela diminuição da idade penal. Foram vítimas de
violência por muito tempo, agora apenas reproduzem aquilo que aprenderam
por tantos anos. Uma pesquisa feita no ano passado pela Ufrgs indicou que há
cerca de 640 meninos nas ruas de Porto Alegre - 98% meninos, apenas 2%
meninas. Deles, 77% tinham mães e 71% avós - apenas a referência feminina, já
que praticamente todos não tinham pai. Padrasto, 23% dessas crianças tinham,
mas nenhuma delas reconheceu o padrasto como referência paterna. Já 90%
têm residência e voltam para casa depois das 18 horas. Vemos a partir daí que é
preciso trabalhar necessariamente a estrutura da família.
A grande maioria do nosso atendimento, assim como do serviço de proteção à criança, é em função da violência doméstica que predomina. Os
papéis são trocados, com mãe e pai não conseguindo assumir as respectivas
funções. Isso é um grave problema de acordo com a OMS, um problema de
natureza médica, social e legal, que exige um atendimento multiprofissional
e multidisciplinar. Temos de começar a desconstruir conceitos relativos à sagrada família, onde a mãe aparece com o dom de proteger as suas crias. Esse
tipo de conceito faz com que as mães protejam os filhos acima de qualquer
situação, relegando a partir daí o papel paterno. A baixa escolaridade, entre
todos os fatores que evidenciam as raízes sociais do problema – outros são:
álcool, drogas, desemprego, tráfico, má-distribuição de renda, perda dos
valores morais -, é um dos mais evidentes no problema do tratamento às
crianças. Não são apenas as crianças a apresentar baixa escolaridade, mas
também os seus pais e avós, que muitas vezes fazem com que a violência
persista no ambiente infantil.
108  Cremers  Desafios Éticos
A definição de violência seria:
“É todo ato ou omissão contra crianças ou adolescentes
praticado por adultos que se aproveitam da sua relação
de força para causar dano físico, sexual, e/ou emocional,
negando o direito de serem tratados como sujeitos de direitos
e pessoas em condição peculiar de desenvolvimento”.
A criança e o adolescente são sujeitos de direitos, Exigem proteção integral,
São prioridade absoluta, tem garantia de defesa, tem cidadania garantida. O Estatuto da Criança e do Adolescente, criado em 1990, indica que é necessário
notificar ao Conselho Tutelar mais próximo os casos de violência contra a criança.
Quando comecei a trabalhar, 15 anos atrás, estudávamos os casos clássicos de
abusos; a partir do momento em que começamos a estudá-los, vimos que outras
formas de violência são proeminentes.
Algumas das formas de maus-tratos mais relevantes hoje em dia são a violência física, sexual, negligência e abandono emocional, síndrome de Münchausen
por procuração, exploração do trabalho infantil, exploração sexual, pedofilia na
internet. Existem muitas situações de alerta que fazem com que o médico pelo
menos suspeite que a criança não passa bem, como nas histórias contraditórias,
em que é preciso ficar a sós com a criança.
Sinais de Alerta
* Histórias vagas e contraditórias
* Demora em procurar ajuda
* Lesão incompatível com o acidente
* Despreocupação com o ocorrido
* Histórias de acidentes e intoxicações
* Aparência negligenciada / vestuário inadequado
O nosso papel não é de punição nem de investigação, mas é muito mais de
proteção.
Uma questão relevante a abordar: as lesões que acontecem nas crianças são
maus-tratos ou acidentes?
Vemos queimaduras de 2° e 3° graus em locais bizarros, pois sabemos que
em um acidente, em um contato com objeto quente, a reação do ser humano é
Desafios Éticos  Cremers  109
de retirada, impossibilitando as queimaduras acima de 1º grau (no períneo, nas
nádegas, nos pés e nas mãos), marcas de objetos utilizados na agressão (cinto,
fivelas, cordas, cigarro, ferro, mordidas). Fraturas de costelas em crianças com
menos de dois anos são visualizadas muitas vezes de forma informal, através de
um raio X feito por outra causa. Vemos daí que a criança pode ter várias fraturas
consolidadas em lugares diferentes,.
Vemos também fraturas em diferentes estágios de consolidação, fraturas ósseas (espiral/lasca metafisária/ torção ), fraturas de diáfise, evidenciam abuso porque a força necessária para tal é maior do que numa simples queda ou acidente,
assim como as fraturas de metáfise /epífise.
Nas mordeduras humanas, é fundamental que se dê uma atenção maior, principalmente nas costas, genitais, coxas e nádegas. É muito comum alegar que foi o
irmão mais novo, por exemplo. É preciso ter a sensibilidade de observar o tamanho da arcada dentária. Não raro também vemos lesões de pele como contusões,
lacerações e equimoses. É importante considerar a coloração das lesões, pois podem indicar repetição e duração da agressão.
Uma outra evidência freqüente é a síndrome do bebê sacudido, ocorrida
em crianças menores de seis meses que convulsionam com freqüência devido
a sacudidas fortes. A síndrome do bebê sacudido (shaken baby syndrome) é responsável por aproximadamente 50% das mortes traumáticas não acidentais de
crianças e as mais graves seqüelas de abuso. Tem três componentes essenciais:
lesão craniana fechada com alteração da consciência/coma/convulsão ou morte;
lesão do SNC evidenciada por hemorragia intracraniana, laceração, contusão ou
concussão; hemorragia retiniana. Outras lesões que evidenciam maus-tratos são
hematoma subdural, fraturas de costelas, hemorragias de retina.
Um capítulo triste nos casos que atendemos é o dos maus-tratos sexuais.
Cerca de 75% dos nossos atendimentos decorrem de violência sexual. As meninas são as vítimas mais freqüentes. Uma de cada quatro meninas, assim como um
de cada oito meninos, sofre abuso sexual antes dos 18 anos, segundo dados de
2003 e 2004. Um milhão de crianças no mundo e 100 mil no Brasil são exploradas
sexualmente, segundo o Unicef. No Brasil há cerca de 240 redes de tráfico e
exploração sexual de meninas (CPI).
Registramos então o envolvimento de crianças em situações sexuais para as
quais não estão preparadas e não consentem, mas estão sendo levadas. Há uma
sedução, que leva ao segredo e à ameaça, pois é muito freqüente o agressor ameaçar a pessoa agredida e a sua família. Tudo começa por uma forma de sedução.
110  Cremers  Desafios Éticos
Por que a criança muitas vezes não reclama? Porque em muitas situações o abuso
sexual é a única forma de demonstração de carinho, de interação do pai com a
criança. Não se tem noção de que isto está errado, essa noção só vem com as
ameaças e as coações. É necessário daí dar credibilidade à palavra da criança, pois
não se lida com provas concretas.
Os fatores que caracterizam o abuso sexual são envolvimento sexual sem a
permissão da criança, pela sedução, que envolve a preservação de um segredo
muitas vezes sob ameaça do criminoso. Incesto, exploração sexual, estupro e pedofilia, agora disseminada pela internet, são formas de abuso sexual. Oitenta por
cento dos abusadores são conhecidos da criança - quase todos, pessoas acima de
qualquer suspeita. Existem pais que são pedófilos e montam um esquema para
abusar da criança, assim como os que não são pedófilos e aproveitam uma situação de falta de estrutura familiar.
Quinze por cento dos casos de abuso sexual apresentam abuso físico associado,
mas a maioria não apresenta sinais físicos, dificultando então a materialidade da prova. É preciso estar alerta para a questão do juízo de valores presente na adolescência, quando muitas vezes se condena o comportamento sexualizado da adolescente
sem saber que este comportamento tem base numa história anterior.
É necessário suspeitar e denunciar abusos contra crianças quando estamos
diante dos seguintes casos: hematoma subdural sem história compatível; fratura
de crânio com história suspeita; fratura de costela em crianças menores de um
ano; fraturas múltiplas ou em localização posterior; queimaduras em locais bizarros; fraturas de ossos longos com história incompatível.
O condiloma combinado não é uma doença de contaminação sexual, mas de
provável abuso. Quando a história demonstra o abuso, é fácil detectar a doença.
É muito difícil a denúncia do crime sem a colaboração da criança. Outros fatores
que indicam abuso sexual: múltiplas contusões com colorações diferentes, lesões
mostrando a marca do instrumento usado, lesões por disciplina em maiores de
um ano, lesões em coxas e genitais (hematomas/escoriações) e exploração sexual
de crianças e adolescentes.
O roteiro de atendimento para denunciar os maus-tratos segue determinadas etapas, entre elas a revelação da agressão ao profissional responsável.
Não precisa necessariamente ser o médico. Muitos profissionais deparam
com essas situações e precisam demonstrar a notificação ao Conselho Tutelar,
quando no hospital temos o amparo institucional, pois, conforme o Artigo 245
do ECA, “é infração administrativa o médico não notificar”. Mas quando não há
Desafios Éticos  Cremers  111
uma estrutura de controle dentro da instituição, a assistente social ao lado da direção hospitalar também tem de fazer parte, num trabalho em equipe. Não se deve
deixar “o serviço social que resolva”. Registrar ocorrência na delegacia especializada, não em delegacia comum, pois muitas vezes os profissionais da polícia não
estão preparados para lidar com esse tipo de denúncia. Perícia no Departamento
Médico Legal, encaminhamento para serviço de referência, acompanhamento
sistemático dos casos, ir atrás do juiz, dos promotores. Nem sempre os casos
vão para o Deca, são encaminhados para delegacias de municípios que não estão
preparadas. Vigilância dos casos uma vez encaminhados para a delegacia.
Encerro falando sobre dois casos que me chocaram: um menino que foi
institucionalizado na FASE por abusar de uma menina de seis anos. Foi liberado
aos 18 anos e, aos 21, estuprou e matou uma criança. Não foi feito nenhum
trabalho psicoterápico de prevenção. Isso poderia ter sido evitado. é preciso
assumir essa responsabilidade. Parece que existe um pacto de silêncio na nossa
sociedade, fechamos os olhos para estes casos cada vez mais freqüentes. As
estatísticas comprovam que a cada oito minutos uma criança é vítima de abuso
sexual, 200 mil crianças moram em abrigos e o Rio Grande do Sul é campeão
em denúncias de abuso infantil
A sociedade também se calou diante da gravidez de uma menina. O médico
diz que o casal vivia maritalmente, sendo que a criança tinha 10 anos e a reportagem indicava todos os fatores de risco para abuso sexual. O caso passou pelo
Conselho Tutelar, que não se importou com o fato dela conviver com um rapaz
de 18 anos. Ela foi trabalhar em uma casa para cuidar de um casal que tinha um
filho e esse filho abusou sexualmente ela, mas ninguém suspeitava disto. No
Brasil, 18 mil crianças são vítimas de espancamentos por dia, segundo dados do
Unicef. Não adianta fazer de conta que não está do nosso lado, a violência deixa
marcas na sociedade.
“É possível que o traumatismo inicial de uma criancinha
passe despercebido, porém ele retornará, para nos perseguir.” - James Garbarino 
112  Cremers  Desafios Éticos
Aids e Hepatite
na Atividade Profissional
Coordenação: Fernando Weber Matos
Participantes: Alcino Antônio Golegã, Ana Catarina Gíria e Tomaz Barbosa Isolan
Abril/2006
Alcino Antônio Golegã 
Cirurgião-dentista e membro da Associação Brasileira de Odontologia
para Pacientes Especiais (Abope)
A Odontologia Preventiva do Século 21
Para o cirurgião-dentista, é muito difícil aprender a trabalhar em equipe,
pois a nossa profissão é muito fechada, e é difícil trabalhar em equipe inter e
multidisciplinar. Mas, eventos como este nos fazem crescer ainda mais, para
poder fazer muito pela classe e pela população brasileira. Moro em Santos, trabalho em Santos com DST/Aids desde 1989, atendi o primeiro caso de Aids e
me contagiou a evolução desta doença, que é extremamente interessante. A
ética refere-se em geral a princípios morais dos comportamentos de todos os
indivíduos. O Código de Ética descreve regras de conduta aceitáveis em relação
a outras pessoas, como definidas em determinadas profissões. Embora a prática de saúde esteja incontida no conceito moral, podem acontecer confrontos
sobre valores ou opções a tomar. Devemos então abordar aspectos éticos que
estão presentes em atos clínicos de todas as profissões.
O cirurgião-dentista tem certa dificuldade em lidar com o sexo e a morte, não
está preparado para isso, especialmente com a morte. Quando falamos de Aids e
de hepatite, falamos sobre isso. O cirurgião-dentista também não está acostumado a lidar com o paciente terminal, ainda que muitos dos pacientes com Aids hoje
sejam extremamente saudáveis. O que influencia, na verdade, é o preconceito
social. Temos hoje pessoas com relacionamentos estáveis, mudando o perfil da
epidemia. Inclusive pessoas de terceira idade estão contraindo Aids. A informação
e o ensino em relação à doença constituem obrigação do profissional de saúde,
que deve orientar o paciente. O teste de HIV deve ser feito somente em condições extremamente benéficas, não dá para pedir o teste para se sentir seguro em
qualquer situação. Outra coisa: só o paciente pode divulgar a sua patologia. Não
é o profissional da área de saúde que deve divulgar o que o paciente tem ou não.
Mais: o profissional deve encorajar atividades sociais e profissionais do soropositivo. O paciente não está inutilizado para a sociedade por conta disso: na maior
parte das vezes ele pode continuar trabalhando e tendo outras atividades.
O paciente precisa continuar prestando sua contribuição à sociedade, porque,
quanto mais ele pensa na doença, mais ele se deprime. A notificação da doença
Desafios Éticos  Cremers  115
não é quebra de sigilo profissional, ao contrário do que muitos pensam. Por omitir
essas notificações temos uma carência de dados confiáveis em relação à saúde. O
principal é não discriminar nem abandonar o paciente. Ele deve ser atendido da
melhor forma possível.
São muitos os profissionais que pedem o exame de HIV do paciente para se
sentirem seguros, esquecendo que o paciente pode ter HIV negativo mas ser
hepatite B ou C. Geralmente, com esse tipo de “precaução” o profissional diminui os cuidados e aumenta o seu risco. O profissional de saúde nunca pode quebrar o sigilo. Se o profissional pede o exame para o paciente, o paciente também
pode pedir o exame ao profissional. Isso foi muito comum inclusive em Miami,
onde aconteceu um caso absurdo de um dentista homossexual e soropositivo
que foi acusado de contaminar uma moça, mas depois se descobriu que a moça
fazia orgias sexuais. Depois deste caso o dentista nunca mais conseguiu exercer
sua profissão, foi totalmente discriminado. Alguém conhece algum profissional
com HIV? Eu conheço vários, até porque a gente acaba atendendo. Vocês acham
que ele não divulga por quê? Porque será discriminado, vai ser pressionado pelo
afastamento, sua carreira acaba. Isso também tira a segurança do paciente, que
se preocupa com o soropositivo, mesmo que não se preocupe com outras DSTs
ou com hepatite. O paciente que é HIV positivo ou tem hepatite faz uma série
de exames de rotina, então não é necessário. Importantes são outros dados,
como a carga viral, a parte de plaquetas, que é extremamente importante numa
intervenção cirúrgica. Também é fundamental saber a medicação que ele está
tomando, pois podemos receitar algo que vá causar uma interferência no seu
tratamento. Logo, o prontuário tem de ser aberto para a equipe multidisciplinar.
Às vezes se erra por uma série de “frescuras” do tipo “paciente é meu e você
não tem que saber nada sobre ele”.
O soropositivo é extremamente instável, temos que saber como abordar esse
paciente. Antes lidávamos com prostitutas, usuários de drogas e homossexuais.
Hoje, o HIV está espalhado em toda a sociedade. Precisamos saber qual é o grau
de compreensão da doença, da parte do paciente. O dentista conversa muito com
o paciente, então este às vezes desabafa bastante. O profissional pode colaborar
nesse sentido. É preciso também saber qual é a relação que o paciente soropositivo tem com os outros profissionais da saúde, como médico, enfermeira, psicólogo, assistente social. Se o paciente confia mais em você do que nos outros, você
pode ajudar bastante a ele e aos outros profissionais. Precisa promover reuniões
de equipe, para discutir os casos clínicos. Isso é que é ética profissional.
116  Cremers  Desafios Éticos
O cirurgião deve comunicar ao paciente se ele é ou não soropositivo. No
artigo 66 do Código de Defesa do Consumidor está escrito que todo fornecedor de serviços não deve omitir informações relevantes para a segurança
do consumidor. No nosso Código de Ética, artigo 3°, parágrafo 4°, diz o seguinte: “Segundo as normas de biossegurança, não há a menor necessidade
de cirurgião-dentista revelar a sua condição sorológica”. Se o paciente usar
todo o equipamento de biossegurança, não há possibilidade de ele contaminar ninguém. Também não será possível ser contaminado. O Código de Ética
é preciso em relação às normas: qualquer procedimento deve ser feito vestindo-se o equipamento completo. Quem garante que o paciente não tem
uma doença contagiosa? E tanto faz se a entidade é pública ou privada. Se o
serviço público não dá luvas, não trabalhe, faça greve, enfrente a diretoria.
Não dá para fingir que fazemos saúde, temos que trabalhar com o equipamento necessário, em qualquer local. No nosso consultório, então, nem se
fala. Ser profissional é se recusar a trabalhar sem as condições. Os materiais
têm de ser totalmente esterilizados ou descartáveis. Sem isso, se recuse a
trabalhar. Fale isso para o paciente, ele provavelmente vai ficar ao seu lado.
O nosso Código de Ética também diz que nenhum profissional deve ocupar
o lugar de outro profissional que foi demitido por fazer greve. Muitos não
cumprem isso, mas é fundamental. O Parecer 29 do Cremerj, em 1995,
indica que qualquer profissional dentro das condições de segurança pode
exercer sua profissão sem revelar sua condição sorológica. De acordo com
estudos, usando o equipamento de biossegurança, não existe a menor chance de contaminação do HIV entre paciente e profissional. Sem usar, o risco
existe, sim, mesmo sendo pequeno.
É preciso fazer prevalecer os benefícios sobre os riscos e relevar a dignidade do ser humano. Eu acho um absurdo o fato de a maior indústria em crescimento na área de saúde ser a dos pet shops. Hoje é o melhor mercado que
existe. E nós com essas filas imensas na previdência, nos hospitais... cuidando
mais de animais do que de pessoas! Vamos ter uma justiça distributiva, vamos
tentar fazer saúde ao invés de fingir. São necessárias formação e capacidade
de análise para a excelência do desempenho do profissional de saúde. Serve
para qualquer profissão da área de saúde: o principal é ser responsável pelos
pacientes. Nós, cirurgiões dentistas, temos de ser mais rígidos conosco mesmos, antes que a sociedade, pela mídia, o seja. Temos de trabalhar praticando
a odontologia preventiva do século 21. 
Desafios Éticos  Cremers  117
Maria da Graça Piva 
Enfermeira, presidente do Conselho Regional de Enfermagem
“A Enfermagem sempre trabalha pela vida.”
Eu trabalhava em UTI no início da minha carreira e sempre ficava muito feliz
quando passava o plantão com os meus pacientes todos vivos, porque os profissionais de Enfermagem são preparados para serem perfeitos, para serem eficazes.
Existem alguns médicos que afirmam que a Enfermagem tem mais preparo para
lidar com a morte, talvez sim, mas isso também acontece pelo número de pacientes a que assistimos. Atualmente eu leciono uma disciplina chamada Cuidados
Paliativos no curso de pós-graduação e um dos objetivos é preparar o estudante
de Enfermagem para lidar com a morte. Trabalhar com pacientes terminais é
extremamente complicado, pois mexe com nossas perdas pessoais e nem sempre
estamos preparados para isso. Para elaborarmos essa palestra que aborda o tema
“A contaminação do vírus HIV e da hepatite nas atividades dos profissionais de
saúde”, elaboramos questionários com perguntas abertas e fechadas e realizamos
uma pesquisa junto a 641 profissionais de Enfermagem com o objetivo de avaliar
o que estão sentindo ao trabalhar com pacientes HIV e portadores de hepatite, se
eles se sentem seguros na realização de suas atividades e se acreditam ter informação suficiente sobre as patologias e métodos de prevenção.
Nós somos hoje no RS 92 mil profissionais de Enfermagem. Temos muitas
coisas em comum entre nós e uma delas é o trabalho com pacientes de risco. Na
nossa pesquisa elaboramos três blocos de questões.
No primeiro, perguntamos como as pessoas se sentem ao lidar com pacientes
aidéticos e questionamos sobre a proteção que esses profissionais têm disponível
para a realização de seu trabalho (se a instituição oferecia EPIs); 89% das pessoas
responderam que sim, embora 54% tenham informado usar o EPI, sem ter recebido a devida orientação, ou seja, a maioria dos profissionais usa o EPI sem realmente
saber para que serve. Num outro bloco perguntamos como os profissionais se sentem em relação à proteção, tendo 81% respondido afirmativamente. E quanto à
instituição? Será que tem implantado o seu Regimento do Serviço de Enfermagem,
Normas e Rotinas escritas e disponibilizadas à consulta do profissional? Aqui, 74%
dos entrevistados disseram que existem rotinas nas suas instituições de trabalho,
mas 50% destes informaram que a empresa não prepara adequadamente o profissional para o cumprimento das rotinas, principalmente no uso de EPIs.
118  Cremers  Desafios Éticos
Nas respostas em campo aberto, pudemos avaliar: aqueles profissionais que
atuam em contato com pacientes acreditam que é muito difícil ocorrer acidentes com eles porque se consideram muito bem preparados; são muito confiantes e acham que o cuidado com os soropositivos deve ser o mesmo que com os
outros doentes; conhecem bem o risco e como se proteger; na instituição não
há repasse de informação sobre as coisas negativas, é oferecido o EPI, mas não
há orientação nem rotina; sentem-se protegidos por seus conhecimentos, mas
não por conta das orientações da instituição.
Muitos deles disseram que não trabalham com soropositivos - como eles
podem garantir isso?
No segundo bloco: que tipo de conhecimento eu tenho e se foi adquirido com a
profissão? Quem se considera bem informado? Dos consultados, 80% se consideram
bem informados, e 77% por cento disseram que queriam saber mais se pudessem.
Os enfermeiros querem saber quantas pessoas estão adoecendo, se há uma divulgação do número de profissionais contaminados, querem se atualizar sobre proteção e
prevenção, pesquisa, atualização de medicamentos. Alguns comentários:
“Sei apenas do básico, gostaria de saber muito sobre
este assunto.”
“Verdade que a contaminação pega por meio externo,
usando a toalha do aidético, por exemplo?”.
A abordagem social e a questão política apareceram muito também. O que
está sendo feito de campanha para a prevenção? Hoje em dia pouco se vê, depois
da onda da campanha contra a Aids que aconteceu na televisão. Pouco se vê além
da distribuição de camisinhas no carnaval, quase nada se vê em relação ao trabalho
dos profissionais de saúde.
Terceiro bloco: conhece alguém ou já conviveu com aidéticos? Se não, qual
era a expectativa dos profissionais em relação a isso?
A maioria disse que convive e tem um sentimento de proteção em relação ao
convívio com estas pessoas. Dos respondentes, 85% sentem-se muito preocupados em relação ao crescimento da doença. As respostas mais significativas foram
relacionadas à preocupação sobre quantos profissionais estão se contaminando e
o que está sendo feito em relação a isto. Também houve uma preocupação em
relação aos colegas soropositivos e que atitude tomar:
Desafios Éticos  Cremers  119
“Tenho que tirar meus colegas soropositivos da assistência”?
“Tenho que afastá-los do bloco cirúrgico ou do centro
obstétrico e transferi-los para o serviço burocrático?”
Alguns colegas comentam que existe um descaso na área da saúde em relação
à proteção da doença, a impressão que passa é que todos conhecem alguma coisa,
mas pouco se fala, não se quer ouvir e muito menos prevenir. 
Ana Catarina Gíria 
Enfermeira
Se Pudéssemos Puxar o Futuro para o Agora...
Nossas Atitudes Seriam as Mesmas? Por quê?
A Enfermagem constitui-se na maior força de trabalho nas Instituições de Saúde
e é uma das principais categorias profissionais à exposição a material biológico, por
ser o maior grupo profissional nos serviços de saúde, ter mais contato direto na
assistência aos pacientes e maior freqüência e número de procedimentos realizados.
É uma profissão exercida basicamente por mulheres que assumem dupla jornada de
trabalho, fator que aumenta sua exposição aos riscos ocupacionais. Os profissionais
de Enfermagem lidam diariamente nas instituições em que trabalham, com divisão
fragmentada de tarefas, rígida estrutura hierárquica, cumprimento de rotinas, normas e regulamentos, dimensionamento quantitativo e qualitativo insuficiente de pessoal, premissas que também favorecem um número maior de acidentes de trabalho.
Quando um profissional de enfermagem sofre lesão por instrumento cortante contaminado, existe o risco de infecção por hepatite B de um em cada 3 trabalhadores;
por hepatite C um a cada 30 trabalhadores; e por HIV um em cada 300 trabalhadores. EM 1997, ocorreu no Brasil o registro do primeiro caso de contaminação de um
profissional de enfermagem pelo vírus HIV com confirmação de Aids, decorrente de
um acidente de trabalho com material perfurocortante, ocorrido em 1994. Será que
todos os profissionais de enfermagem conhecem esta realidade, os riscos aos quais
estão expostos no seu ambiente de trabalho?
120  Cremers  Desafios Éticos
Dados publicados em 2005, pelo Conselho Internacional de Enfermagem,
revelam que os trabalhadores de saúde sofrem um milhão de ferimentos causados por agulhas por ano, e 40% destes afetam os profissionais de enfermagem. Foi constatado no Brasil que 88,8% dos acidentes de trabalho notificados afetam os profissionais de enfermagem, e ocorreram por exposições
percutâneas. Como esses acidentes aconteceram? Durante o recapeamento
de agulhas, retirada da agulha no paciente, manipulação da agulha no paciente,
descarte inadequado, auxílios na sutura, movimentações dos pacientes e colisão com materiais perfurantes, estão entre os mais freqüentes. E quais são os
maiores fatores de risco para a enfermagem?
Negamos que estamos expostos ao risco de nos contaminarmos - a percepção de risco nos gera medo, mas a necessidade que temos de executar as nossas
tarefas contrapõe-se à emergência da manifestação do medo. É melhor não ficar
pensando na iminência do perigo, é uma forma de se proteger e de trabalhar
com tranqüilidade, como são também:
* Acreditar que temos experiência suficiente para não nos acidentar;
* Desconhecer a patologia do paciente por informações não prestadas pelo
mesmo, pela equipe responsável pelo tratamento ou por familiares;
* Não se conscientizar da necessidade de incorporar à prática profissional o
uso de equipamentos de proteção;
* Manusear o material usado antes do descarte;
* Descartar inadequadamente os materiais e fluidos;
* Não usar equipamentos de proteção. A falta de equipamentos aos profissionais é um fator de risco;
* Desconhecimento das normas de precaução.
* Não ter recursos materiais disponíveis para trabalhar adequadamente.
* Não participar dos treinamentos oferecidos pela instituição, assim como a
mesma não oferecer treinamentos adequados.
* Insuficiência de profissionais, causando sobrecarga de trabalho.
* Iluminação deficiente dos locais de trabalho.
* Pacientes agitados e agressivos.
* Desatenção e descuido.
A Aids não é mais a mesma de 19 anos atrás. Novos tratamentos que
resultam em significativas melhoras nas condições de saúde e aparência física
dos soropositivos resultam numa menor preocupação da equipe, em comparação com a época do surgimento da doença. Um outro fator de risco é não
Desafios Éticos  Cremers  121
considerar todos os pacientes potencialmente contaminados, e consequentemente utilizar as precauções padronizadas em todos os procedimentos e
em todos os pacientes.
Prevenção: o objetivo é proteger o trabalhador e eliminar ou reduzir
todas as condições que geram os acidentes. Quais os meios? Fazer a conscientização se transformar numa atitude. Usar equipamentos de proteção
individual. Educação continuada dos profissionais para um trabalho seguro e
prática das precauções básicas universais. Número adequado de profissionais,
a fim de executar uma ótima assistência. Condições ambientais que propiciem
a realização do trabalho, equipamento seguro, principalmente iluminação.
Manutenção preventiva dos equipamentos - principalmente os utilizados no
manuseio e transporte de pacientes. Imunização ativa dos trabalhadores - exames de saúde periódicos.
Comunicação do Acidente: a comunicação deve ser imediata na ocorrência
de qualquer ferimento. O acidente de trabalho deve ser notificado através de
protocolo de comunicação de acidentes de trabalho (CAT), por via impressa ou
eletrônica. O empregador é obrigado a comunicar à previdência social a ocorrência do acidente de trabalho. Essa notificação deve acontecer até o primeiro dia útil
posterior à ocorrência do acidente. No caso de falta da comunicação da empresa,
o próprio acidentado, seus dependentes, o médico que o atender ou a entidade
sindical competente podem fazer a notificação.
Motivos alegados para o profissional não notificar: falta de tempo, dificuldades burocráticas, desconhecimento do fato, pois alguns não julgam necessário por que não dão importância “às pequenas lesões”.
Conclusão: a cada ano milhares de profissionais de saúde são afetados por traumas psicológicos que perduram dias e meses, por conta da espera pelo resultado
dos exames sorológicos. Como poderemos agir? As campanhas educativas e preventivas veiculadas pela mídia não devem ser focadas apenas para a comunidade em
geral, devem estar focadas também de forma específica nos profissionais de saúde,
a fim de conscientizar a todos sobre a importância de proteger e ser protegido. Os
cursos profissionais e técnicos devem despertar no estudante a importância do conhecimento sobre modos de transmissão das doenças ocupacionais, sintomas, risco
de contágio e prevalência na população atendida. A real adoção das medidas de
biossegurança para melhoria na qualidade da assistência à saúde, criando ambiente
seguro para profissionais e usuários de saúde, é fundamental.
Temos que ser a mudança que queremos ver no mundo. 
122  Cremers  Desafios Éticos
Tomaz Barbosa Isolan 
Urologista, conselheiro do Cremers e professor universitário
Todo Cuidado com a Aids é Pouco
Procuro trazer algo do ponto de vista acadêmico. Sou professor de urologia na Ufpel e fui durante 14 anos consultor do Ministério da Saúde na área
de DSTs. Segundo estatísticas mundiais, o descuido nos leva a entender que
a epidemia de Aids está debelada, mas não está de modo algum. Os cuidados
em relação a acidentes de trabalho passaram a ser aperfeiçoados a partir do
aparecimento do vírus HIV. Segundo o Ministério da Saúde, temos 600 mil
pacientes com HIV, em compensação temos sete milhões de pacientes com
hepatite C. Desses 600 mil pacientes com HIV, 385 mil nem sabem que estão
doentes. E os 215 mil que estão em acompanhamento são, digamos, a ponta
do iceberg. Nos países ricos, a terapia tripla “baixou a guarda” da população,
que pensava que a epidemia havia sumido, quando na verdade estava apenas
parcialmente controlada. A epidemia de Aids já matou 20 milhões de pessoas
desde 1984, e segundo um executivo da Unaids, até o ano 2020, 68 milhões
de pessoas poderão morrer de Aids.
Fontes de contágio: sangue, secreções vaginais, sêmen, líquido amniótico. No Brasil temos apenas um caso de paciente profissional comprovadamente contaminado no exercício da profissão. No mundo todo, 56 casos foram
confirmados até hoje e 136 casos são considerados possíveis. Os confirmados
são aqueles pacientes aos quais a pessoa teve acesso à fonte de contágio - nos
possíveis, não se sabe se isso aconteceu. No nosso serviço SAE, da Faculdade
de Medicina, tem uma estatística de 45 pacientes atendidos para quimioprofilaxia- 35 deles profissionais da saúde, a maior parte enfermeiros, auxiliares e
atendentes. Recentemente saiu um trabalho de Ribeirão Preto que dava entre
as mulheres a maior incidência de pacientes contaminados - nada contra as
mulheres, pois trabalham mais que os homens. Desses 45 casos, 30 pacientes
eram profissionais da área de saúde, 15 casos eram de pacientes que não usavam preservativos, casos de estupro e o “caso da agulha” de Pelotas – nove
pessoas. O caso mais dantesco foi de uma criança que mordeu outra e a mãe
forçou uma quimioprofilaxia - felizmente às vezes conseguimos interferir no
Ministério da Saúde para suspender tratamentos desnecessários.
Desafios Éticos  Cremers  123
Em relação aos acidentes perfurocortantes, o vírus da hepatite B chega a
ficar uma semana com possibilidade de contágio, o vírus da hepatite C apresenta
contágio imediato. A possibilidade é menor com o HIV. Riscos de transmissão:
o compartilhamento de agulha apresenta 67% de risco; transfusão de sangue
não-testada, 95%; acidente com agulha intravenosa, 0,67%; perfurocortante,
0,3%; envolvendo mucosa, 0,09%, e envolvendo pele íntegra, não quantificado.
Maneiras de contaminação: percutânea, cutânea, mucosa e pele íntegra (ainda
que não quantificada, existe a possibilidade). Em relação às medidas utilizadas,
em todos os pacientes devem ser aplicados os mecanismos de proteção, independentemente do diagnóstico presumido ou definido de doença infecciosa.
Importante ressaltar que qualquer coisa ativa o vírus do HIV. Outra coisa importante é saber usar o EPI - não adianta usar o avental aberto, por exemplo.
Para examinar pacientes sem contato com sangue, fluidos corporais,
mucosa ou pele íntegra, a simples lavagem de mãos é suficiente como prevenção. O contato com todos esses fatores torna obrigatório o uso do EPI.
Quanto maior o risco, maior o número de EPIs - isso inclui ambientes de
alto risco de contaminação. Alguns cuidados, para reforçar: máximo de atenção na manipulação de materiais. As agulhas, mesmo que descartáveis, não
devem ser reencapadas, entortadas, quebradas ou retiradas da seringa com
as mãos. Todo material perfurocortante deve ser descartado em recipientes
resistentes à perfuração e com tampa. Nunca ultrapassar o limite de dois
terços do descartex - um recipiente cheio pode perfurar os dedos na hora
de abrir. Evitar sutura por dois cirurgiões no mesmo ato cirúrgico. Cansei de
fazer isso, e existe perfuração por agulhas nesse caso, aumentando o risco.
Evitar agulhas retas de sutura, porque são mais rápidas. Ficção científica: a
passagem de material perfurocortante no bloco cirúrgico deve ser através
de cubas após aviso verbal. Já viram isso? Seria o certo. A melhor prevenção,
na verdade, é não se acidentar. 
124  Cremers  Desafios Éticos
Ética nas Emergências
Coordenação: Magno Spadari
Participantes: Luiz Alexandre Alegretti Borges, João Albino Potrich e
Antônio Carlos Luzzi Fortis
Maio/2006
Luís Alexandre Alegretti Borges 
Médico, membro da Câmara Técnica do Cremers e professor universitário
Mais importante do que começar a falar na formação do emergencista é
falar sobre como estão as emergências, pegando exemplos, vendo quem são
os profissionais e entendendo como está a questão da emergência em geral.
Vou colocar duas situações. Primeira: vocês imaginem um paciente chegando com infarto agudo do miocárdio numa emergência. Existem medidas que
diminuem o seu risco de vida que devem começar já na sala de emergência,
como dar ácido acetilsalicílico, betabloqueador, um trombolítico e eventualmente ir para um ACTP, uma angioplastia de resgate, dependendo do serviço
e da urgência. Por que coloco isto? Por que o médico que está na emergência
tem de saber que estas medidas têm de ser empregadas imediatamente. Mas
antes disto, o médico tem de saber interpretar um eletrocardiograma e as
enzimas. Nós que vivemos nas emergências sabemos da dificuldade que é
encontrar esse tipo de profissional nestes setores dos hospitais. Outra situação bem típica do dia-a-dia é a daqueles pacientes que chegam com broncopneumonia, asma severa, edema agudo de pulmão. Casos que acontecem
a qualquer momento. Aí nos deparamos com a situação: intubar ou não o
paciente? Este é o divisor de águas, pois vemos a dificuldade do médico ao
lidar com esse tipo de procedimento. Por medo de sedar o paciente e este
sofrer uma parada respiratória; por falta de habilidade para intubar, por medo
das complicações; ou por simplesmente não saber o que fazer após a entubação - mandá-lo para a UTI? E se estiver lotada? Se posterga uma intubação
por estas dificuldades, mas isso é ruim para o doente, pois ele pode ter uma
parada cardíaca sem a rapidez do procedimento.
Hoje no Brasil o que vemos é que temos custos, mortes súbitas por
dia, pacientes seqüelados pelo mau tratamento, pois estamos no alvoroço do
atendimento e não nos damos conta do “macro”. Hoje vemos o esforço do
governo federal em melhorar os equipamentos das emergências, mas o pessoal, o treinamento, isso não importa? Não adianta ter um avião supersônico
sem piloto. Hoje o médico emergencista é recém-formado, pouco valorizado, inexperiente, sem especialização, baixa remuneração e não-identificado
com a área. A maior parte das pessoas que trabalha na emergência não tem
vocação para isto, está fazendo um trabalho na emergência antes de se especializar. Com isso, o médico não busca a informação, não estuda a literatura
Desafios Éticos  Cremers  127
da emergência que é riquíssima. O colega que está na emergência está diante
de uma situação súbita, onde o paciente não conhece o doente e em poucos
minutos tem de resolver o problema dele, ou simplesmente evitar problemas
maiores. Mesmo que a quantidade de óbitos dos pacientes não seja suficiente, é bem relevante o número de pacientes que saem das emergências com
seqüelas do mau tratamento.
O Colégio Americano de Médicos Emergencistas coloca que é difícil definir a missão pelo tipo de atividade do emergencista. Afinal, ele tem de definir
uma doença inesperada e tem de fazer tudo o que o outro profissional faz,
numa situação rápida e sem conhecer o paciente. O emergencista assume
compromissos específicos que o distinguem das outras áreas. Segundo o Código de Ética do Emergencista, servir eficientemente aos pacientes requer
competência técnica e científica, com conhecimento das práticas e da moral.
Vemos claramente que é uma atividade de característica própria, que precisa
de treinamento, competência, certificação, experiência e vocação. Nenhum
desses itens, segundo o Colégio Americano, pode estar fora da formação do
emergencista. Dentro do atendimento, muitas coisas acontecem na primeira
hora, que é definitiva para a evolução do doente no meio do hospital. O funcionamento deficiente de uma sala de emergência tem vários fatores, sendo
um dos primordiais a qualificação do emergencista. Não há formação específica como médico emergencista, o que prejudica muito a qualidade da função.
O médico emergencista deve estar à frente de uma série de medidas, desde
os estudos básicos de diagnóstico às decisões terapêuticas.
Vejamos que tudo gira em torno da educação continuada dos profissionais
e da residência médica. Tanto faz se ele vai trabalhar numa área só de programas de prevenção ou se ele vai fazer um atendimento hospitalar, é fundamental ter essa formação. O emergencista deve ser a pessoa que vai gerenciar um
cenário, uma vez que ele vai participar de emergências em todos os setores.
Como mudar esta realidade? Poderiam acontecer inúmeros fóruns para debater isto e diagnosticar os problemas. Mas algumas coisas a médio e longo prazo
poderiam ser feitas, como o reconhecimento da especialização em emergência, que deveria ser obrigatória, é uma necessidade social. O credenciamento
e a certificação dos novos programas de residência em emergência também
precisam ser implementados. 
128  Cremers  Desafios Éticos
Dr. João Albino Potrich 
Diretor-médico do Pronto Socorro Municipal de Canoas
Quero fazer um paralelo entre duas emergências, a do Hospital Conceição e a
do Pronto Socorro de Canoas, assim como traçar um panorama das emergências
como um todo. Em 1976 foi inaugurado o prédio do ambulatório do Conceição,
com apenas 12 leitos para emergência ou sala de observação. Eu era residente nesta
época. Conseguíamos trabalhar com esses 12 leitos, pois não havia toda essa superlotação. Dez anos depois, na segunda inauguração, eu estava na direção do hospital,
e nos foi solicitado observar a recém-inaugurada emergência do Hospital de Clínicas,
para verificar os novos equipamentos e estrutura. Na ocasião o diretor do Hospital
de Clínicas disse que pouco tempo antes, havia feito uma inspeção na emergência
do Conceição com o mesmo fim. Esse caso nos serve para observarmos o quanto
é sempre necessário buscar a melhora nas instalações. Na segunda inauguração, em
1986, a emergência do Conceição aumentou sua capacidade para 50 leitos. Recentemente, na terceira inauguração, chegamos a cerca de 80 leitos.
Mas os gestores, o governo, têm se envolvido com essa questão, têm pensado
novas soluções? O cenário é muito confuso, muito complexo.
A Portaria 2.048, de 2002, estabeleceu o Samu-Salvar, é uma portaria extensa
que determina até mesmo a quantidade de recursos humanos das emergências.
Olhando a situação das emergências, entretanto, vimos que a maior arte das
emergências não estava adaptada a esta portaria. Na seqüência veio outra portaria, a n° 1.101, que fala sobre os parâmetros da cobertura assistencial do SUS para
orientar gestores de hospitais que atendem o SUS. Alguns dados: cada habitante
tem direito a duas ou três consultas normais por ano: 15% do total das consultas
médicas seriam de urgência/emergência. Porém, as estatísticas demonstram que
na realidade 27% dessas consultas são de emergência. O que vemos então é uma
desorganização, pois a portaria não reflete a realidade dos fatos.
O HPS de Canoas foi inaugurado em dezembro e uma das dificuldades que
teríamos seria o atendimento à população, dada a dificuldade dos demais hospitais.
Então um dos trabalhos que fizemos foi a conscientização da população, mostrando
aos habitantes de Canoas o que era o Hospital de Pronto-Socorro o tipo de atendimento que prestaria. Depois, esse trabalho foi feito com a rede básica, em 26 postos
de Canoas, porque temíamos que os postos de saúde mandassem pacientes para o
HPS sem necessidade, superlotando rapidamente o hospital. Como está se refletindo isto? Nestes 100 dias de trabalho, tivemos números bastante razoáveis.
Desafios Éticos  Cremers  129
No total, 55 mil atendimentos, 20 mil no laboratório, 48% na emergência,
ainda que nosso ambulatório seja muito pequeno e atenda apenas egressos. As
internações adultas têm 68% e a UTI 19% de lotação cada uma, assim como a
internação pediátrica tem 19%. Fizemos um trabalho bastante intenso de acolhimento, colocando assistente social, psicólogo, enfermeiro e técnico de enfermagem, que fazem a classificação de risco. No Serviço Social foram atendidos 5,6
mil pacientes. Temos uma boa interligação com os postos de saúde, 91% dos
pacientes são classificados pelo enfermeiro.
Avaliado o risco, dividimos o grau de risco do paciente em cores, vermelho,
amarelo e verde. Oito por cento dos pacientes são de alto risco (vermelho), 26%
dos pacientes são classificados como de risco médio, são os pacientes que podem
aguardar (amarelo) e 66% dos pacientes apresentam grau pequeno de risco, representados pela cor verde. O referencial é a Portaria 1.101, que afirma que 63%
das consultas devem ser reprogramadas.
Temos uma média de 300 atendimentos por dia. O atendimento geralmente
é clínico e traumático. O perfil do trauma em maioria apresenta atropelamentos,
violência e acidentes. A taxa de ocupação é crescente. A UTI de dez leitos está
sempre lotada, a enfermaria costuma lotar. Temos dificuldade de dar alta para
muitos pacientes que vêm de outros municípios, pois a reabsorção é difícil. Estamos começando a trabalhar a questão da referência e contra-referência, um dos
fatores pelos quais passa a lotação das emergências.
Vou tentar apresentar algumas propostas. Uma delas é o incentivo à medicina preventiva, o PSF, o atendimento básico, para não deixar que alguns problemas se agravem. A adequação da rede básica é outra proposta, não só na assistência como nas instalações, equipamentos, para possibilitar boas condições
de trabalho ao profissional a fim de suprir as necessidades de atendimento do
paciente. Isso demanda muito investimento, nossos governos pensam nisso mas
ainda não há uma solução.
Outro fator importante é a questão do PA, pronto-atendimento, que se
bem instalado, com condições de oferecer atendimento digno, consegue reter
o paciente. Mas há um fato importante: na Ulbra, o PA tem pediatria e adulto.
A pediatria tem 26 leitos mas o adulto tem apenas 5 de observação. Esses leitos
começam a ter permanência alta, o que é prejudicial porque não há um hospital
de suporte. Esses PAs devem ser bem pensados para não dificultar a capacidade dos demais hospitais. O sistema de referência e contra-referência é muito
complicado, pois até agora só vi a referência. É muito difícil contra-referenciar
130  Cremers  Desafios Éticos
o paciente, como demonstra a minha experiência no Conceição. É muito difícil
mandar os pacientes de volta à sua cidade, por exemplo. Outra proposta é a
central de regulação, que deve ter capacidade, domínio da situação, com um
poder de resolução pelo gestor. Não adianta só a plaquinha na porta, como
temos em Porto Alegre.
A qualificação dos recursos humanos é muito importante também, não só
na área médica, com a qualificação dos emergencistas, como na área de enfermagem. O fortalecimento dos hospitais é fundamental, mas especialmente para
as pessoas terem conhecimento do que atende aquele hospital. Uma política
de cargos e salários também é fundamental para valorizar os profissionais que
trabalham na emergência. A conscientização da população também é muito importante, embora seja difícil, pois o paciente tem de saber o que buscar numa
emergência. Esse debate certamente não se esgota aqui, pois ainda há muitas
propostas a serem discutidas. 
Antônio Carlos Luzzi Fortis 
Médico anestesiologista de serviços de emergência em Porto Alegre
Adotando como parâmetro salarial a referência do Dieese: R$ 1.556,36 por
mês, para garantir o preceito constitucional (em maio de 2006) de preencher o
custo para uma família, com 44 horas de trabalho por semana, a bolsa do médico residente – R$ 1.474,00, para 60 horas de trabalho semanais, há mais de sete
anos sem reajuste, representa, sem dúvida, em condições de trabalho muito
aquém das desejáveis. Entretanto, o piso salarial reivindicado pela Federação
Nacional dos Médicos (Fenam) corresponderia, se aprovado pelo Congresso e
referendado pelo presidente, a R$ 3.353,33 por 20 horas semanais de trabalho,
para este ano de 2006 (baseado na Lei 3.999/61, do salário do médico e do
cirurgião dentista, atualizado pelo IGP-M, por quatro horas diárias de trabalho
(ou vinte horas semanais).
O Hospital de Pronto Socorro de P. Alegre (HPS) é um dos poucos locais
de trabalho onde o plantonista é valorizado; percebe-se uma gratificação de
110% sobre o salário básico. valor este que é independente do número de
plantões e não incidente sobre o plantão extra, de modo que ao realizarmos
Desafios Éticos  Cremers  131
um plantão extra, recebemos a menor que um plantão habitual. Nos postos
de saúde essa gratificação é ainda menor: só de 25%.
Um grave problema que enfrentamos é a tentativa de fracionar os plantões em duração a menor que 12 horas, alguns hospitais de Porto Alegre
já impuseram. No HCR, judicialmente, através de documentação do Shop
Trauma Center de Maryland-EUA, um dos maiores centros de trauma do
mundo, conquistamos a manutenção dos plantões de doze horas.
Desde 2001, através de Convenção Coletiva de Trabalho, cuja Comissão
de Negociação Trabalhista é por nós presidida, representando a categoria
médica (através do Sindicato Médico) acordamos com o Sindicato dos Hospitais (Sindihospa) alguns benefícios para os médicos como:
1) Pagamento como extra com 100% para o trabalho em domingos, ou
dias de descanso semanal remunerado e feriados, quando não compensado
por outro descanso em dia útil da semana imediata anterior ou posterior,
independente de remuneração legal deste dia.
2) Remuneração das reuniões (ou cursos) de trabalho como extra quando realizadas fora do horário normal de trabalho, desde que convocadas
pelo empregador e de comparecimento compulsório.
Recentemente em 29 de setembro de 2006 concluímos a 6ª Convenção
Coletiva de Trabalho com o Sindihospa, em seqüência, conseguimos reposição salarial com pequeno ganho real, parcelamento de férias em dois períodos (um de 10 dias, outro de 20 dias ou 2 de 15 dias), também auferimos
liberação de 12 dias para eventos científicos internacionais, ou 10 dias para
nacionais por ano.
Quanto à remuneração a maior para os que trabalham com urgência ou
pronto socorro pouco conseguimos. É nossa pretensão:
a) 25% de remuneração a maior sobre o salário básico para o trabalho
em pronto socorro, UTI (CTI ou CO);
b) 30% àqueles que trabalham com politraumatizados;
c) 20% sobre o básico para acompanhamento, transporte ou atendimento em ambulâncias;
d) 30% de adicional sobre o básico àqueles que lidam diretamente com
pacientes drogados, dependentes químicos, doentes mentais, doentes com
Aids ou presidiários.
132  Cremers  Desafios Éticos
Quanto à qualificação no atendimento ao paciente é nossa pretensão
antiga que o médico atenda três pacientes por hora, ou 12 pacientes por
quatro (4) horas de trabalho. Isto é adotado em alguns postos, noutros sobrecarregam o médico, alegando urgência, com o já afamado “acolhimento”
que prejudica o paciente. Portaria 3.046 do MPAS (de 20/7/1982) estabelece
os parâmetros assistenciais para serviços próprios e conveniados: 4 (quatro)
consultas por hora para cada médico. Não podemos nos esquecer do Código de Ética Médica (artigos 2° e 27): “O médico deverá agir com o máximo
de zelo e o melhor de sua capacidade profissional, dedicando ao paciente,
quando trabalhar com relação de emprego, o tempo que sua experiência
profissional recomendar, evitando que o acúmulo de encargos ou de consultas (atendimentos) prejudique o paciente”.
Outra reivindicação nossa é criar Comissão Técnica por local de trabalho, para avaliar condições de trabalho, e de repouso nos intervalos legais.
Comissão esta constituída por dois representantes da Comissão de Ética
Médica, um delegado sindical, o Diretor do Corpo Clínico e pelo Diretor
Técnico da instituição.
A jornada de sobreaviso é uma das maiores preocupações porque a responsabilidade do médico é como se plantonista fosse. Caso resulte em dano
ao paciente o penalizado pela justiça será sempre o médico que crê seja
cômodo permanecer em sua residência e perceber 1/3 do valor da hora. 
Desafios Éticos  Cremers  133
Internações Psiquiátricas
Coordenação: Douglas Pedroso
Participantes: Rogério Wolf de Aguiar, Paulo César Geraldes
e José Francisco Seabra Mendes Júnior
Junho/2006
Rogério Wolf de Aguiar 
Psiquiatra, conselheiro do Cremers e professor universitário
Começo por uma apresentação geral das internações psiquiátricas. Temos
hoje um conjunto de instrumentos para lidar com a saúde mental. O programa
de saúde mental abrange os Centros de Atenção Psicossocial (Caps), os serviços residenciais terapêuticos, centros de convivência, ambulatórios de saúde
mental, hospitais gerais e hospitais especializados. Há política de desinstitucionalização. Atualmente há cerca de 850 Caps no Brasil e, ao mesmo tempo,
uma redução significativa de leitos em hospitais psiquiátricos, de 120 mil para
20 mil nos últimos 25 anos.
As diretrizes da necessidade de internação na área de psiquiatria e saúde mental são os seguintes: quando se caracteriza uma situação de alto grau de risco de
vida, ou dano físico, ou dano mental/moral grave para si ou para terceiros; para
investigação diagnóstica e recuperação terapêutica de pessoas com transtornos
refratários, que com os vários métodos disponíveis de tratamento se mostram
inadequados, insuficientes ou pouco esclarecedores; e em certas circunstâncias
especiais. Uma situação crescente, por exemplo, é o tratamento aos alcoolistas e
dependentes em outras drogas, com programas de desintoxicação e os tratamentos especiais, que necessitam de grande atenção. Mas há vários tipos de diagnósticos que têm assistência em consultórios e ambulatórios. A orientação indica que
a pessoa internada, tão logo amenizado o problema, possa retornar ao convívio
social o mais breve possível. No Hospital de Clínicas, a média de internação para
esses casos é de 30 dias, mesmo que as pessoas possam retornar outras vezes,
em situações de reagudização..
Isso tudo tem uma expressão legal e firmado em instrumentos como a Declaração de Caracas, organizada pela Opas (Organização Mundial de Saúde), de
1990. É uma reorientação na atenção aos portadores de transtornos mentais, cuja
ênfase é destacar o atendimento extra-hospitalar sempre que possível, evitando as
internações e os métodos invasivos. A primeira lei brasileira que norteou a reforma psiquiátrica é originária do Rio Grande do Sul e foi promulgada em 7 de agosto
de 1992. Temos algumas leis estaduais que seguiram essa lei, em outros estados.
Temos também duas resoluções do CFM de 1994 que acompanham essa orientação. A lei federal data de 2001, sucedendo-se algumas portarias do Ministério da
Saúde: 2002, 2004 e outras que regulamentam a aplicação legal dos programas de
saúde mental e de proteção às pessoas portadoras de transtornos mentais.
Desafios Éticos  Cremers  137
Destaquei da lei federal o artigo 6°, que fala que a internação psiquiátrica só
será realizada diante de um laudo médico circunstanciado, que caracterize os seus
motivos. São caracterizados a partir daí os seguintes tipos de internação psiquiátrica:
a internação voluntária, que se dá com o consentimento do usuário, a internação
involuntária, sem o consentimento do usuário e a pedido de terceiros, e a compulsória, que é determinada pela justiça. O artigo 7° indica que o doente que consentiu
em ser internado deve assinar no momento da admissão uma declaração de que
optou por esse tipo de tratamento. O parágrafo afirma que o término dessa internação voluntária acontece por solicitação escrita do doente ou por determinação do
médico atendente. O artigo 8° fala que a internação voluntária ou involuntária deve
ser autorizada pelo médico devidamente registrado no CRM. Depois da lei de 2001,
essa portaria de 2002 regulamentou alguns dos desdobramentos desta lei federal,
insistindo na orientação de que a internação só deve acontecer se esgotados todos
os métodos possíveis e pelo menor tempo possível.
Desdobra aquele item da internação voluntária, na possibilidade de que ela
se torne involuntária, naqueles casos em que o médico assistente considera que
o desejo de alta apenas acentua o risco da pessoa que está pedindo. Portanto,
abre essa possibilidade que não seja obedecido o pedido, sendo transformada em
uma internação involuntária, determinando que a partir daí aconteçam os mesmos
processos da internação involuntária, como a comunicação ao ministério público,
mediante termo especial, em até 72 horas, devidamente assinado pelo paciente.
Neste ponto há uma polêmica. A portaria do MS de 2002 estipula que a internação seja avaliada por uma comissão revisora, nomeada pelo Ministério Público.
Nesta comissão revisora deve haver sempre um médico, mas dela podem constar
outros profissionais da saúde (não médicos). Há polêmica sobre a legalidade desta
portaria, pois a internação é ato médico, que não está sujeito à interferência técnica de outras profissões.
Por que isso ocorre dessa maneira, havendo leis que regulamentam esse tipo
de assistência, as discussões que envolvem pontos de vista político, filosófico, ideológico, técnico? Não existem leis equivalentes em outras áreas. Temos algumas
especificidades na nossa área de trabalho, na psiquiatria e na saúde mental em geral que se apresentam historicamente com alguns dilemas, a serem discutidos pela
sociedade e pelos técnicos. Partindo do principialismo, uma das vertentes da ética,
beneficência/não-maleficência, autonomia e justiça. A tradicional beneficência e
não maleficência do código hipocrático tinha uma característica essencialmente
paternalista: o cuidador decide o que é melhor para o paciente. Progressivamente
138  Cremers  Desafios Éticos
foram aceitos outros princípios, como a autonomia e a justiça. A autonomia que se
refere ao direito da pessoa que está se servindo de um serviço de saúde qualquer
de decidir ou de ser uma parte que também decide e negocia o atendimento ao
qual ele vai se submeter. Que passe a ser mais sujeito do seu próprio tratamento
e menos um objeto. Que tenha também o poder de aceitar ou não, de procurar
alguma outra opinião. A questão que implica na nossa área é a extensão desta
autonomia, que está em jogo na área da saúde mental e da psiquiatria. Lidamos
com pessoas que devem obedecer alguns tipos de critérios para que essa autonomia seja legitimada – ela deve estar bem informada e estar em pleno uso das suas
faculdades mentais. Essa definição nem sempre é fácil, pois implica em propostas
de tratamento de pessoas que estão vivendo sob risco pessoal, ou ameaçando a
vida, a segurança ou o bem-estar de terceiros mas muitas vezes não conseguem
perceber que têm algum tipo de problema. Aí entra a questão da autonomia. Estamos quase sempre envolvidos decisões que afetam a autonomia da pessoa em
poder decidir o seu tratamento. Isso tem uma implicação técnica, pode obedecer
a um diagnóstico, mas tem outras implicações – legais, sociais, de várias ordens.
No momento que a pessoa tem impedida a sua capacidade de ir e vir, algum fenômeno além da questão técnica está acontecendo. Assim entramos nos dilemas
éticos da internação psiquiátrica involuntária.
A legitimidade de uma decisão exige que ela seja informada, voluntária e
competente. È uma questão que se apresenta para nós no campo da ética – até
quando esses critérios são seguidos? Os psiquiatras lidam frequentemente com
indivíduos gravemente afetados por alterações no humor ou no pensamento e
com abuso ou dependência de drogas. Quais são as legitimidades e limites da autonomia? Quem decide? Qual a formação ideológica, técnica, política que decide
que tal pessoa está no uso pleno das suas faculdades mentais? São, todos, aspectos
que permeiam a atividade do psiquiatra.
Algumas questões fundamentais:
Direitos e Deveres do Indivíduo X Direitos e Deveres da Coletividade
Em comportamentos violentos e de risco ou de contaminação, epidemias
e assim por diante, o direito do indivíduo submete-se ao interesse da coletividade. Se uma pessoa é portadora de qualquer germe vivo que ameaça a
coletividade toda, a coletividade vai exercer métodos de isolamento dessa
Desafios Éticos  Cremers  139
pessoa mesmo que ela não concorde. É uma notificação compulsória, onde
a vigilância sanitária interfere: algo que tem uma série de conseqüências para
a vida do indivíduo. Então, teremos o conflito entre os direitos da pessoa e
os direitos da coletividade. Muitas vezes é cobrada a existência da hierarquia
entre os princípios. Os recursos atualizados são alcançados por uma minoria numa sociedade onde a distribuição de renda é muito desproporcional.
Temos então a questão da justiça, pois a preocupação com a distribuição
e o acesso das pessoas aos recursos é um outro dilema a ser discutido nos
programas de saúde mental.
Existem programas que confrontam o tradicional recurso psiquiátrico intra-hospitalar, de isolamento do paciente, contra a tendência atual. Estamos
em um período de transição, nenhuma das duas tendências está plenamente
definida, mas às vezes observamos que podemos ter de um lado o confinamento excludente e de outro lado uma desassistência, pois a assistência hospitalar muitas vezes não é suficiente para atender à demanda proporcionada
pela desativação dos manicômios.
Conflitos Corporativistas mais Interesse dos Financiadores Públicos
e Privados X Interesses dos Pacientes, Clientes e Usuários
Nem sempre essas questões são colocadas num clima acadêmico isento de
conflitos de interesses. Tanto planos de saúde, com suas metas, interesses, objetivos e regras, como o serviço público, as corporações profissionais e instituições,
acabam se misturando nessa discussão que não é purista, eis que permeada por
vários tipos de interesses. Quero colocar essas questões gerais para abrir essa discussão, para mostrar os instrumentos dos quais dispomos, alguns tipos de dilemas
que explicam a necessidade de tantas leis, os aspectos históricos do tratamento
manicomial, onde muitas vezes a orientação terapêutica se perdeu, com as instituições se transformando em depósitos de pessoas.
A tendência hoje não é de esconder esses problemas, que ainda estão presentes no nosso meio, em alguns setores menos mobilizados. Tivemos alguns avanços
no terreno da neurociência, na própria área médica e neuropsiquiátrica, que nos
permitem tratar pessoas de maneira muito diferente do passado. A própria psiquiatria hoje, na aplicação prática do seu conhecimento, não necessita dessas ins140  Cremers  Desafios Éticos
tituições. Isso está superado pelo conhecimento psiquiátrico, ainda não por alguns
programas de saúde mental que insistem em debater essas questões. É certo,
entretanto, que a psiquiatria atual não está ligada à permanência das pessoas nas
grandes instituições manicomiais. Repetindo o que Esquirol disse há 200 anos:
“Olhando para essas pessoas, não sabemos mais onde está o efeito da doença
e o efeito do confinamento”.
A psiquiatria hoje tem tantos recursos para que isso não seja feito dessa forma,
o que temos que batalhar então é para que esses recursos sejam de fato empregados a serviço do público. 
Paulo César Geraldes 
Médico psiquiatra e Presidente do Cremerj
Reforma Psiquiátrica no Brasil - Realidade e Caos
Sou psiquiatra, formado em 1972, pela Faculdade de Medicina da Universidade
Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), antiga Faculdade Nacional de Medicina. Cursei
a especialização em 1973, no Instituto de Psiquiatria da UFRJ. Desde então estou
ligado à área. Dirigi os hospitais públicos do Ministério da Saúde no RJ - Hospital
Pinel, Centro Psiquiátrico Pedro II e Colônia Juliano Moreira(como substituto)
- e adquiri experiência em gestão de saúde. O que aprendi, nessa vivência e no
contato com as demais especialidades sobre a doença mental, é que esta é a pior
das doenças. Refiro-me às psicoses, não aos transtornos de personalidade, mas
às intercorrências psicóticas. Existe uma série de vertentes nas quais há a afecção
mental, mas não da mesma forma como na doença psicótica, que descola o indivíduo da realidade. Se for necessária a internação psiquiátrica, é para este tipo de
doença. Porque, no momento de crise, esse indivíduo deve estar privado do convívio com a sociedade por conta de seu potencial de auto e heteroagressividade. A
internação psiquiátrica deve ser proibida para o maluco beleza, ele não precisa de
internação nenhuma. Já vi o uso da internação psiquiátrica por pessoas e famílias a
fim de conseguirem benefícios sociais, a famosa “carteirinha de maluco”. Assim, o
Desafios Éticos  Cremers  141
indivíduo peregrinava pelos hospitais psiquiátricos e, quando desconfiavam da sua
doença, ele se embriagava com o objetivo de parecer debilitado para se internar.
Existem também os casos criminais, em que as pessoas alegam doença mental
para desqualificar seus crimes, o que é muito comum. Essas são situações absurdas para as quais se utilizou a internação psiquiátrica.
A reforma psiquiátrica se fazia necessária. Impossível o tratamento da forma
como era feito, especialmente com o avanço dos recursos farmacológicos. Temos
psicofármacos de última geração - infelizmente caros, mas é possível barateá-los,
ainda que para isto se quebre a patente do medicamento. Continuaremos precisando de internações em situações de crise, quando não é possível evitar o processo. E isso introduz o assunto das questões motivadoras da internação: como
ela é feita; qual foi o grande avanço da Lei n° 10.216, que instituiu a reforma da
assistência psiquiátrica, e as más interpretações desta lei feitas pelo Ministério da
Saúde. O MS tenta subestimar o trabalho do médico, se possível desconsiderá-lo
e anulá-lo. Costuma fazer programas de saúde que ignoram o médico como se ele
fosse absolutamente dispensável. Há motivos para isto. Vem ocorrendo claramente desde 1986, portanto, é algo que não se prende a governos ou partidos políticos, sob a direção de figuras cristalizadas na burocracia do Ministério da Saúde que
propõem essas idéias e às vezes conseguem alcançar seus objetivos.
O caso da internação é claro. A adesão à reforma como foi feita pelo Ministério
da Saúde leva em consideração especialmente a questão do custo. Quanto menor
o custo, melhor a chance de aprovação. Da mesma forma, não indica fechar exclusivamente os hospitais ou leitos desnecessários, mas sim implementar uma rede
social e comunitária que consiga suprir as demandas. Isto, porém, não foi feito pelo
Ministério da Saúde, gerando uma grande desassistência. O médico não sabe para
onde mandar o paciente - muitas vezes não há vagas no Caps ou é impossível a
internação. Esse é o drama atual do doente psiquiátrico e da sua família.
No Cremerj temos recebido várias demandas relacionadas à assistência psiquiátrica, e algumas, a meu ver, são básicas, por exemplo, a equipe multiprofissional, que é mandatória para uma boa assistência. Uma equipe em que cada um
tem a sua atividade, composta por todas as áreas da saúde, mas não uma “geléia
geral” como propôs o governo, quando estabeleceu a “Residência em Saúde”.
Seria uma Residência na qual ficariam todos os profissionais ao mesmo tempo,
ao invés de fazer programas setoriais por profissão, como na Residência Médica.
O MS inventou essa Residência em Saúde para inovar, pois teoricamente “todos
fariam tudo”. Cada profissional tem as suas atribuições. Um caso recente enviado
142  Cremers  Desafios Éticos
ao Conselho foi de um paciente que sofreu uma crise convulsiva e foi atendido
num hospital psiquiátrico público. Uma assistente social o atendeu na recepção
e, vendo o caso, encaminhou para um hospital psiquiátrico, a fim de continuar
o tratamento ambulatorial. Na realidade, o paciente não tinha apenas uma crise
convulsiva, mas sim um tumor cerebral expansivo. Houve a queixa ao Conselho:
por que o paciente não foi atendido pelo médico? Por que a assistente social encaminhou o caso ao atendimento psiquiátrico, se não era atendimento psiquiátrico?
O Conselho então retornou com o seguinte parecer: cada profissional tem a sua
função dentro da equipe, trabalhando em conjunto para o paciente, fazendo a sua
atividade específica e assim colaborando para o atendimento do paciente.
Um decreto de 1932, que ainda está em vigor, afirma que os institutos hospitalares de natureza pública ou privada, ou institutos de psicoterapia, devem
estar sob a responsabilidade da direção técnica de médicos, ou seja, o diretor do
hospital pode ser um profissional de qualquer área, mas a direção técnica deve
ser obrigatoriamente exercida por médicos. A lei 3.999, de 15 de dezembro
de 1961, no seu Artigo 15, que ainda está em vigor, declara: “Os cargos ou
funções de chefias\serviços de chefia de serviços médicos somente poderão ser exercidos por médicos, devidamente habilitados na forma da lei.”
Da mesma forma que o enfermeiro só pode ser chefiado por enfermeiro, e
outros tantos exemplos. A Resolução Cremerj nº 186/2003, no seu artigo 2º,
diz: “Art. 2º As Unidades Assistenciais de Saúde para se registrarem e/ou
cadastrarem no Cremerj deverão indicar um médico como Responsável
Técnico, que será o responsável por assegurar à Instituição as condições
mínimas para o desempenho ético-profissional da Medicina.” Compete ao
Conselho verificar a questão ética do desempenho da medicina sob a ótica do
médico. Ou seja, não fazemos vigilância sanitária, trabalhamos sobre a função
do médico. E no seu “Art. 3º Os Setores das Unidades Assistenciais de Saúde, que tenham profissionais médicos desempenhando atos médicos, serão,
obrigatoriamente, chefiados por profissionais médicos.” Tudo parece muito
óbvio, ainda que na prática não o seja.
A Resolução Cremerj nº 115/97, criada no clima da reforma psiquiátrica, considerou relevante instituir em toda Unidade Assistencial de Saúde do Estado do
Rio de Janeiro que efetue internações psiquiátricas, a Comissão Revisora de Internação Psiquiátrica. Uma iniciativa para frear o abuso, tanto por parte de quem se
interna para conseguir algum tipo de benefício, quanto para as internações feitas
sem necessidade ou mesmo nas situações de fraude. Como a história de Francis
Desafios Éticos  Cremers  143
Farmer, atriz de cinema, que tinha atitudes extravagantes e cuja família foi alertada de que a carreira dela iria terminar se ela mantivesse tais atitudes. A solução
encontrada pela mãe, que dependia economicamente da atriz, foi interná-la num
hospital psiquiátrico. No final acontece o caso citado pelo Rogério Aguiar: não
sabemos se ela tinha realmente uma doença ou se acabou ficando doente graças
ao ambiente de segregação do manicômio.
Voltando à Resolução do Cremerj: como essa comissão funciona? O paciente
é internado involuntariamente e tem de ser examinado uma semana depois pela
comissão, não interessando quem o internou. A comissão então confirma ou não a
internação. Se confirmada, 30 dias depois o prosseguimento da internação é novamente revisto. Entendemos que da mesma forma que a lei determina a internação
como responsabilidade do médico, assim como a alta (ainda que no caso da alta
a família possa solicitar, assumindo a responsabilidade, ou mesmo a justiça), essa
comissão deveria ser formada por médicos, sendo o diretor técnico um dos integrantes dessa comissão. Dessa forma o diretor técnico jamais poderia dizer que
não sabia que foi internado um paciente que dessa internação não precisava – ou
seja, uma fraude. O diretor técnico como participante da comissão evita qualquer
tentativa de eximir a sua responsabilidade. A comissão é formada também por
mais três psiquiatras e dois suplentes - porque o psiquiatra jamais poderia revisar
uma internação que praticou.
A Resolução CFM nº 1.598/2000 reafirma a necessidade da Comissão Revisora. O ponto discordante nessa resolução é que o médico psiquiatra pode
ser de outra unidade, o que é complicado em termos de remuneração. Afinal,
o médico pode ser convocado a revisar uma internação sem receber por este
trabalho. A lei promulgada depois de uma extensa discussão nacional, que durou
cerca de 12 a 15 anos, estabeleceu o que foi definido nas resoluções anteriores.
Mas o Ministério da Saúde não gostou da lei e quis fazer outra, a Portaria 2.391.
Ela diz o seguinte:
“Art. 6°. Estabelecer que ao Ministério Público caberá o registro da notificação das internações psiquiátricas involuntárias (IPI), bem como das voluntárias
que se tornam involuntárias (IPVI), para controle e acompanhamento destas até
a alta do paciente.
Art. 7°. Determinar que, se no decurso de uma internação voluntária o paciente exprimir discordância quanto à sua internação, após sucessivas tentativas
de persuasão pela equipe terapêutica, passando a caracterizar-se uma internação
involuntária, o estabelecimento de saúde envie ao Ministério Público o Termo de
144  Cremers  Desafios Éticos
Comunicação de Internação Involuntária, até 72 horas após aquela manifestação,
devidamente assinado pelo paciente.”
Uma normatização ou qualquer documento legal que procure normatizar
uma lei não pode fugir ao espírito dela. Não pode criar coisas que a lei não criou.
Então, essa notificação é uma invenção do Ministério da Saúde. Então, é necessário enviar um laudo médico ao Ministério Público. O sigilo médico com isto é
violado, pois é impossível mantê-lo enviando um laudo destes para uma repartição
pública. A Lei n° 3.268/57, que criou os Conselhos, determina que estes têm de
zelar pelo trabalho ético do médico, e este trabalho na área da psiquiatria determinou a necessidade da Comissão de Revisão das Internações. O Ministério da
Saúde, entretanto, criou essa comissão para regulamentar a lei. A Comissão criada
pelo Ministério da Saúde é composta pelo Ministério Público Estadual, por um psiquiatra ou clínico geral (como se ambos tivessem condições idênticas de avaliar),
por um profissional especializado na área de saúde mental (não necessariamente
o psiquiatra), sendo desejável representantes de associações de direitos humanos
ou de usuários de serviços de saúde mental e familiares. Essa portaria está dentro
daquele espírito que norteou algumas idéias como “a doença mental não existe, é
uma invenção dos psiquiatras, para que certos membros da sociedade sumissem
ou não incomodassem. Isso evidentemente feito com o conluio da família que
quer se afastar do doente. Os médicos são torturadores medievais e sádicos, pois
afastam o paciente do convívio da sociedade e o torturam”. Isso é absolutamente
inexeqüível, não é feito em lugar algum. Em um debate no Rio de Janeiro com um
promotor, falei exatamente isto e na semana seguinte ele me convocou, via ofício,
para que eu respondesse por que essa portaria era absurda. Fiz isso por escrito e
fui ao Ministério Público depor. Agora provavelmente ele deve saber o porquê do
absurdo, porque, se ele começou a receber essa montoeira de papel de pessoas
internadas todos os dias, tendo 72 horas para revisar as internações nos hospitais,
ele não deve sair do hospital psiquiátrico.
O nosso dever, diante disso tudo, é obrigar que o Ministério da Saúde faça
minimamente o que têm de fazer. Muitas vezes o paciente acaba sendo atendido
em hospital geral porque não há uma emergência psiquiátrica, por exemplo, para
atendê-lo. No Rio de Janeiro, só existe uma emergência funcionando, a do Hospital Pinel. A do Centro Psiquiátrico Pedro II está fechada e no Hospital Jurandir
Manfredini não há mais como atender o paciente. A idéia é atender os pacientes
nos hospitais de pronto-socorro, mas ainda não conseguimos isto. Esta seria uma
forma de abreviar o tratamento, pois algumas crises psicóticas agudas duram pouDesafios Éticos  Cremers  145
co tempo. É necessário o aumento de leitos hospitalares psiquiátricos, pois os
atuais leitos disponíveis são basicamente para pacientes residentes. É necessária
também uma retribuição financeira digna e ética das consultas médicas e diárias de
internação, cujo problema não está só na psiquiatria. As diárias são ridículas, o que
se paga é ridículo, uma consulta médica pelo SUS custa oito reais, para qualquer
especialidade. Não dá para pagar a comida, que dirá o profissional - por isso os
hospitais fecham, até porque se ganha muito mais dinheiro abrindo um motel do
que um hospital psiquiátrico. Sem falar que o motel não sofre a ingerência das
resoluções do Ministério da Saúde...
Também há a necessidade da criação ou incremento da rede de assistência
comunitária. Não adianta: sem os Caps, o paciente não tem onde ser atendido.
A reforma é mais cara, ao contrário do que pensa o Ministério da Saúde: é preciso
um número muito grande de organizações tipo Caps, que têm equipes complexas.
É urgente o incremento da Residência Médica em Psiquiatria. Na Associação Brasileira de Psiquiatria conseguimos estender a Residência para três anos. Atualmente,
o médico psiquiatra especialista pela residência tem uma boa formação. Estes são
elementos básicos para a efetividade de uma reforma psiquiátrica. 
José Francisco Seabra Mendes Júnior 
Promotor do Ministério Público Estadual
Trabalhei em Porto Alegre na Promotoria de Família em 2002 e 2003, especificamente na área de pacientes com sofrimento psíquico, controlando contas de
curadores e ajuizando cautelares relativas a internações psiquiátricas compulsórias.
Pude ver que muitas das minhas angústias da época são compartilhadas pelos profissionais da saúde, pois sentia que não havia um interesse do administrador público
ou da sociedade em resolver esse tipo de problema. Muitas vezes vimos famílias
buscando na internação psiquiátrica soluções para desavenças, assim como vizinhos
querendo se livrar de moradores de rua. Desde 2003 estou afastado da Promotoria
de Família, mas procurei junto aos colegas da área para saber se houve alguma alteração nos procedimentos - mas desde então eles não aconteceram. Hoje, na procuradoria de prefeituras, visualizamos grandes problemas na área de administração da
saúde, exigindo das prefeituras a aplicação dos percentuais constitucionais.
146  Cremers  Desafios Éticos
Estou no Ministério Público desde 1993, então vou tentar trazer um pouco
da evolução do pensamento institucional a respeito das internações psiquiátricas
compulsórias. Importante destacar a atuação do MP de Porto Alegre em relação
a este assunto. Temos uma promotoria, a Promotoria dos Direitos Humanos, encarregada das questões macro - a eventual falta de vagas para a internação psiquiátrica, deficiências no atendimento dos estabelecimentos, melhoria do sistema de
gestão dos órgãos públicos. Existem promotorias cíveis nos seis foros regionais
de Porto Alegre, nas quais o promotor da Vara de Família é encarregado do ajuizamento de uma eventual cautelar para buscar a internação psiquiátrica. Temos
no Foro Central uma promotoria específica para ajuizamento de ações relativas
a situações individuais. Então, o que busca essa Promotoria de Família é cuidar
dos casos específicos de pacientes de sofrimento psíquico. Ela é encarregada de
ajuizamento de ações de interdição, de ações de prestação de contas junto aos
curadores e do ajuizamento dessas cautelares. Quando cheguei, em 2002, o volume de trabalho era muito grande e tentamos sistematizar.
Hoje o sistema é informatizado, uma base de dados com os interditos pelo
MP, um setor nessa promotoria com uma assistente social que acompanha por
meio de visitas os locais em que estão internados, assim como faz um acompanhamento anual das contas do curador. Nessa promotoria pude verificar que
muitas vezes o instituto da internação psiquiátrica é utilizado com outras intenções. Lamentavelmente, o nosso sistema de Previdência Social contribui muito
para isso. O INSS praticamente exige a interdição para alcançar um benefício de
prestação continuada. Muitas vezes também deparei com dilemas éticos diante
do ajuizamento ou não de uma interdição quando ele não está convicto de que
esse seja o melhor caminho para uma pessoa. Tive o prazer de trabalhar com uma
assistente social, a Maria Bernardete, que fez um trabalho de doutorado com o
seguinte título: “Interdição: Fator de proteção ou exclusão?”. Vimos que muitas
vezes se alcança um benefício previdenciário de baixo valor ao custo do rótulo de
interdito. Muitas vezes vi pessoas interditadas que recebiam o benefício e o administravam por conta própria - morando sozinho, não causando risco a ninguém.
Por que a necessidade de interditá-la? Por conta da exigência do INSS.
Como já visto nas exposições anteriores, a Lei 10.216 buscou um redirecionamento da assistência em saúde mental mediante uma desinstitucionalização e a
reinserção social do paciente. Mas no dia-a-dia da promotoria é que deparamos
com casos concretos. Há uma dificuldade de reinserir a pessoa no contexto social
quando os hospitais são deficientes no tratamento, pela falta de vagas. A reforma
Desafios Éticos  Cremers  147
psiquiátrica é saudável, mas não é suficiente para atender à demanda. A internação
nos hospitais psiquiátricos, segundo a lei, só pode ser realizada quando os recursos de atendimento ficarem exauridos, mas é muito fácil exaurir esses recursos
com os problemas de atendimento que temos hoje.
A título de nota, a lei estadual 9.716, de 1992, trazia uma outra definição
para a internação compulsória: realizada sem o expresso consentimento do paciente e definida pelo médico sem a presença necessária da justiça. Ela também
prevê a comunicação ao Ministério Público em 24 horas, um prazo ainda mais
exíguo que o previsto na lei federal. Quando houver a autoridade da defensoria,
que se viabilize a constituição da junta interdisciplinar composta pelo profissional médico e por outros profissionais de saúde mental.
Sobre as medidas judiciais adotadas pelo Ministério Público. Quando estava
na Promotoria de Família, existia uma dificuldade que ainda persiste. Seguidamente eu entrava com uma cautelar que era distribuída para uma das varas de
família - nas quais eu poderia atuar - mas não era raro o juiz da vara dizer que
isso não era competência da Vara de Família e mandar a medida para a vara
cível. Na vara cível, o juiz dizia que a interdição no hospital psiquiátrico deveria
passar pelo município, o município teria que ser réu. Então, mandava para o juiz
da Vara da Fazenda Pública e este juiz afirmava que o município não é réu, então
enviava para outro órgão, como o foro regional, etc. Em algumas situações ficamos uma semana procurando a cautelar, pois circulava em todo o Foro Central.
Parece-me que ainda existe uma resistência quanto a isso, mas uma orientação
da Corregedoria de Justiça procura solucionar esse problema.
Como os casos chegam ao Ministério Público? Muitas vezes eram vizinhos reclamando de pessoas abandonadas em casa, muitas vezes mesmo
sem problemas psiquiátricos. A pessoa ficava definhando em casa, sem alimentação adequada, cuidados adequados, dificuldade para fazer as necessidades fisiológicas. Outros casos chegam através de parentes, que têm de
conter um familiar em surto. Algumas vezes chegavam casos de pessoas que
diziam “preciso de uma solução agora, pois ele pode arrombar a porta e
fugir”. Também temos casos de familiares preocupados com um parente que
entrou em surto e saiu de casa, estava em local ignorado, o que dificultava
muito o trabalho pois tínhamos de buscar o provimento judicial e achar a
pessoa na rua. A Brigada Militar trazia vários casos, pois diante da situação
de alguém surtando na rua não pode simplesmente recolher, pois caracteriza
abuso de autoridade, então procurava o socorro do MP. Muitas vezes os
148  Cremers  Desafios Éticos
órgãos de assistência social e a Samu procuravam acompanhar uma pessoa e
esta se recusava, procurando mais uma vez o MP.
Diante de situações como essas, cabe ao MP então buscar uma autorização
judicial para viabilizar a condução desta pessoa até um pronto-atendimento de
saúde mental para verificar a necessidade da sua internação. Até algum tempo
atrás a atribuição desta decisão vinha de um decreto-lei de 1938, nos casos de
“toxicomania” ou quando comprovada a “necessidade da ordem pública”. Dessa forma, se buscava o MP muito mais para evitar uma perturbação à ordem do
que a defesa de uma pessoa psicótica. Essa defesa de “interesses indisponíveis”,
como o caso de uma pessoa que não está em pleno uso de suas faculdades
mentais, ampliou a possibilidade de atuação do MP em relação às internações
psiquiátricas. Encontrei em alguns polígrafos de 1993 um modelo de internação
psiquiátrica compulsória, amparado no artigo 10 do decreto 24.559 de 1934,
que dizia: “Art. 10. O psicopata ou o indivíduo suspeito que atentar contra a
própria vida ou a de outrem, perturbar a ordem ou ofender a moral pública, deverá ser recolhido a estabelecimento psiquiátrico para observação ou tratamento.”
Logo, o sentido era de afastar uma pessoa indesejável para a sociedade.
Com a lei da reforma psiquiátrica, que buscou a desinstitucionalização, surge
uma nova orientação aos membros do MP, que define que o pedido feito pelo
MP ao juiz necessariamente é uma ordem judicial de condução compulsória ao
pronto-atendimento de saúde mental. Só quem pode decidir se é ou não caso
de internação é o especialista. Não é o juiz ou o promotor, ninguém que não
possa fazer o pleno diagnóstico da situação. Aqui em Porto Alegre existe um
pronto-atendimento de saúde mental na rua Prof. Manoel Lobato. O que se
pede é a ordem judicial, se necessário algum acompanhamento policial, junto
ao oficial de justiça e ao Samu para se deslocar e remover a pessoa ao prontoatendimento de saúde mental. Ela é examinada pelo médico do setor que vai
examinar a pessoa e quem sabe encaminhá-la ao leito psiquiátrico.
Em 2003, a Corregedoria da Justiça emitiu um ofício circular aos juízes
orientando que nos casos de internação compulsória, observassem que a
internação deveria ser precedida de um laudo médico circunstanciado, salvo em situação excepcional em que a prévia elaboração do laudo se torne
impossível ou inviável, em que não seria possível aguardá-la sem grave risco
para a pessoa a ser internada.
Essa orientação na prática, aqui em Porto Alegre, não se efetivou na sua
plenitude, visto que no caso concreto não era possível conseguir um leito psiDesafios Éticos  Cremers  149
quiátrico sem encaminhar o paciente à Central de Regulação de Internações,
que por sua vez o encaminharia ao profissional do Pronto-Atendimento de
Saúde Mental, a fim de diagnosticar eventual necessidade da baixa psiquiátrica. Em setembro de 2005 a Corregedoria emite uma nova orientação aos
juizes, dizendo que o encaminhamento de internações por distúrbios psiquiátricos e dependência química deveria ser feito ao plantão de atendimento de
saúde mental, devendo a internação ser providenciada por meio da Central
de Regulação de Internações Hospitalares. Essa orientação deixa claro que ao
juiz só cabe a expedição da ordem de condução do paciente ao setor médico
competente. A posição do MP hoje parece ser tranqüila. Não se pede mais
uma internação psiquiátrica compulsória, mas sim uma ordem judicial de condução compulsória até o atendimento mais próximo. Do ponto de vista do
MP, isso tem uma motivação, pois muitas vezes não era possível conseguir um
laudo que viabilizasse desde logo um pedido de internação compulsória. Da
mesma forma em que algumas situações o laudo indicando a necessidade de
internação chegava, mas a posição discordante do médico do Pronto-Atendimento de Saúde Mental gerava um impasse.
As cautelas que o MP adota: arrolam-se testemunhas que tenham conhecimento da situação – se o juiz entender como necessária, uma audiência
urgente de justificação; em casos de abandono pedimos que o acompanhamento do paciente até o médico encarregado se estenda por uma análise do
estado geral de saúde da pessoa, pede-se um suporte da Brigada Militar e do
Samu que auxilie o oficial da justiça para o cumprimento do mandado. Diante
de uma conclusão do médico, a promotoria segue o trabalho do assistente
social, fazendo um acompanhamento da situação familiar, para saber qual a
reinserção desta pessoa no meio familiar, para agilizar medidas de proteção que retornem a pessoa ao convívio social. Pedimos na cautelar que o
estabelecimento psiquiátrico acolhedor da pessoa remeta um relatório em
juízo, num prazo de 20 dias, a fim de viabilizar desde logo a regularização da
situação daquela pessoa.
Seriam estas as nossas considerações. Reitero que, do ponto de vista do
MP, a internação compulsória é um tipo de internação involuntária, cujo diagnóstico cabe ao médico e não ao juiz, que apenas determina a condução do
paciente ao médico. 
150  Cremers  Desafios Éticos
Ética e Saúde do Idoso
Coordenação: Marco Antônio de Azevedo
Participantes: João Senger, Marianela Flores Hekman,
Ximena Cardozo Ferreira
Agosto/2006
João Senger 
Médico, presidente da Sociedade Brasileira de Geriatria e Gerontologia/RS
Vou abordar especialmente o tema das enfermidades do idoso. Aproveito
este momento para agradecer a presença do professor Moriguchi, que sempre incentivou tanto a prevenção. A expectativa de vida aumenta bastante
no mundo, é o segmento da população que mais cresce e que cresce mais
rápido. A média de sobrevivência da mulher aumenta três meses por ano desde
1994. Vocês sabem que o número de pessoas com mais de 65 anos de idade
vai dobrar, portanto nós temos de estar preparados, não só a medicina como
a sociedade. Isso tem uma implicação importante, porque 40% de todas as
hospitalizações são de pessoas acima de 65 anos. É fundamental para pensar
nos recursos de saúde, no montante previdenciário. Os idosos costumam ir ao
médico nove vezes por ano, comparado com duas a três consultas por parte dos
jovens. É uma demanda crescente no sistema de saúde.
Uma característica importante: o paciente apresenta em média quatro enfermidades. Essa é a sua grande diferença em relação aos outros pacientes.
O paciente usa muitas medicações, que interagem entre si e causam efeitos
colaterais. Esses pacientes usam três vezes mais medicamentos do que a população geral, o que implica em custos e altos riscos. O Brasil infelizmente é
muito pobre quanto às estatísticas geriátricas. Estatísticas norte-americanos
demonstram um crescimento significativo dos idosos, e dos idosos acima de
85 anos. Esta população tem uma característica especial - temos de aprender
muito com eles, é um segmento novo, existem poucos estudos sobre essa
faixa etária. É um grande desafio para a geriatria.
Quando falamos de envelhecimento primário, falamos de envelhecimento fisiológico. Onde vai acontecer a presbitia, o declínio funcional através da perda de
massa muscular, etc. Mas também existe o envelhecimento secundário, provocado pelas nossas atitudes, como má alimentação, uso de tabaco, etc. Que tipo de
alterações temos com o envelhecimento? Diminuição da massa corporal magra
- perda de cálcio nos ossos, diminuição da massa muscular. As mulheres, após
a menopausa, perdem 1% da sua massa óssea, por isso a sua tendência à osteoporose. A massa muscular diminui em cerca de 40%, uma diminuição da água
corporal, um aumento progressivo da massa de gordura. Por isso dizemos que o
idoso é um desidratado crônico. As principais síndromes geriátricas são: déficit
visual, depressão, desordens de movimento, fragilidade, e a questão da hiatroDesafios Éticos  Cremers  153
gênese, o que é muito comum acontecer com os médicos. É não ter cuidado
na hora de prescrever, um problema que pode gerar seqüelas no organismo do
paciente idoso. Com a segmentação das especialidades na medicina, cada profissional especialista prescreve um medicamento diferente muitas vezes sem avaliar
o efeito do remédio que o paciente já está tomando. A imobilidade, em função
da falta de exercícios, traz uma série de contratempos; também a incontinência,
tanto urinária quanto fecal, que é uma diminuição de qualidade de vida; a insônia,
a instabilidade, o déficit auditivo e cognitivo e as quedas.
A artrose está freqüente em 50% dos idosos: 40% deles apresentam hipertensão, 30% têm algum tipo de doença cardíaca, 10% apresentam déficit visual e
de 5% a 10% apresentam diabetes. As mulheres são mais acometidas por artrose, até porque a mulher tem maior tendência à obesidade na terceira idade.
Em países mais desenvolvidos, temos crianças mais dependentes que idosos.
Não falamos assim de crianças excepcionais, mas sim de crianças que precisam de
ajuda dos pais. Como nos países desenvolvidos a taxa de natalidade diminui e o
segmento dos idosos aumenta, vemos que aumenta o número de pessoas idosas
dependentes. Existe uma necessidade social de formar cuidadores, médicos, instituições que melhorem a qualidade de vida. Nos países desenvolvidos, a tendência
é uma diminuição nos recursos da pediatria para aumentar os da geriatria. Sobre
Alzheimer: a medida do envelhecimento, a incidência aumenta. É uma característica das doenças geriátricas. Nos países desenvolvidos, a perspectiva de crescimento
populacional é 0% - o RS se aproxima deste patamar - mas vemos que a população
de idosos cresce, assim como o número de pacientes, uma vez que o fator idade é
de risco. Nos países em desenvolvimento, como o Brasil, ainda temos um crescimento populacional, mas a taxa de idosos aumenta assustadoramente.
Doenças mais freqüentes de idosos: metade dos pacientes acima de 65 recorda algum problema no sono. Dormir menos, despertar mais freqüente durante a
noite, mais cedo pela manhã, sonolência diurna, etc. Mas o que encontramos nos
nossos idosos não é uma necessidade de dormir menos, mas sim uma diminuição
da habilidade de conciliar o sono. Uma dificuldade em dormir sete a oito horas
seguidas, um sono mais fragmentado com muitos cochilos durante o dia, diferente
das pessoas mais jovens. Isso faz com que muitas vezes o médico prescreva medicamentos para que o idoso tenha um sono igual ao do mais jovem. O que vai acontecer, entretanto, é que o paciente terá os mesmos problemas de acordar durante
a noite, mas com efeito do remédio. A depressão é muito freqüente no idoso, mas
é subnotificada. Pouco mais de 1/3 da população não procura tratamento, pois a
154  Cremers  Desafios Éticos
maioria acha que é “coisa da idade”. Desse 1/3 que procura ajuda, 2/3 procuram
um clínico geral, e somente metade destes acaba sendo diagnosticada.
Vemos que menos da metade dos pacientes são reconhecidos como tendo
depressão. Apenas 1/3 desses pacientes recebem alguma forma de terapia para a
enfermidade e apenas 1/4 dos pacientes recebem a dose e a duração do tratamento adequado. Assim, temos vários pacientes com má qualidade de vida em função
do seu quadro - um diagnóstico correto evitaria este problema. Uma característica
do idoso é uma apresentação atípica das enfermidades. O que é uma apresentação atípica? Não é característica, foge aos exemplos dos livros. Quando pensamos
numa pneumonia, pensamos no paciente com tosse, catarro, febre. No idoso,
muitas vezes não temos esse tipo de quadro - o paciente só vai ter o aumento da
freqüência respiratória e cardíaca. Por que essas apresentações atípicas? Primeiro:
uma definição fraca do que é envelhecimento normal e o que é doença. Existe uma
resposta fisiológica diferente para a criança - a criança muitas vezes não consegue
se expressar sobre o que quer. Isso também acontece com o idoso, pois ele tem
uma resposta diferente. Às vezes temos um idoso com infecção respiratória que
acorda pela manhã confuso. Os familiares podem pedir socorro por ali.
O efeito de doenças crônicas múltiplas, que confundem as pessoas. Outro fato
é o uso de vários medicamentos que acabam mascarando o problema. Então, acima de 50% dos pacientes de depressão não relatam tristeza. Tendem a ter mais
queixas psicossomáticas - dor, insônia, falta de apetite - temos de estar sempre
atentos a isto. Por isso que existe um quadro alarmante de 55% dos pacientes
não são diagnósticos, pois o paciente vai reclamar das dores físicas para o médico
e não as doenças psicológicas somente.
Em matéria de nutrição, nos países desenvolvidos, temos um grande problema com a obesidade, que traz o aumento de doenças crônicas. Nos países subdesenvolvidos, temos a subnutrição, que é um grande fator causador de doenças
infecciosas. Artosclerose é um fator importante de envelhecimento precoce. É
um substrato das doenças que mais matam e mais invalidam os brasileiros (e talvez
no mundo todo). É responsável por 50% das mortes nos EUA, maior responsável
por causos de morte súbita e temos várias dificuldades causadas, desde doenças
cardíacas a doenças isquêmicas cérebro-vasculares. No decorrer dos séculos, o
homem passou de uma alimentação caçada, pescada ou coletada - atividade física
muito grande - até hoje, onde a alimentação é deficiente. Com isso, temos o que
chamamos de síndrome metabólica, uma doença muito freqüente, que já está
encaixada como uma das síndromes geriátricas.
Desafios Éticos  Cremers  155
O que vemos no decorrer da evolução, em relação à necessidade energética.
É inevitável dizer que na fase de crescimento essa necessidade é muito grande, e
vai diminuindo na idade adulta, a não ser no caso da gravidez da mulher. O que vemos é uma alimentação superenergética das pessoas. Um outro grande problema
de saúde pública é a osteoporose, a perda de massa óssea aumenta a fragilidade
e por conseqüência a quantidade de traumas provocados, como fraturas por arrancamento, compressão e por torção. Essas faturas são da coluna, local onde
ocorrem com mais freqüência.
Que princípios temos no manejo do idoso? Sempre iniciar com doses baixas de medicamentos, no tratamento: aumentando lentamente. Foco principalmente no paciente: identificar as doenças que são reversíveis. É necessário
falar isso com os passageiros de um ônibus. “Qual é o prognóstico, qual é a
doença dele? Ele está alerta para apresentações atípicas?” Temos um paciente
com mal de Parkinson que enfrenta as suas limitações, temos que explicar a
ele que é possível conviver com doença. Os exercícios físicos são fundamentais - o caminhar é possivelmente o melhor entre todos. A nutrição é fundamental, desde que pobre em gordura saturada, com pouco sal e açúcar, rica
em cálcio. A má-nutrição, especialmente a obesidade, traz uma infinidade de
doenças, que encurtam a longevidade das pessoas, trazendo sérios riscos para
sua qualidade de vida. É um desgaste das articulações que pode ser prevenido
mantendo o peso normal e a atividade física.
Como podemos prevenir a osteoporose? Uma dieta rica em cálcio, a realização de exercícios, ingerir vitamina D, evitar fumo e uso excessivo de álcool e
medicamentos. Os acidentes são muito comuns nos idosos, e provocam quedas
que trazem conseqüências marcantes na qualidade de vida. Evitar uso de sapatos de solado liso, uso de tapetes de borracha, fixação de tapetes, iluminação de
corredores. Medicamentos. Os idosos são bastante sensíveis aos medicamentos,
que o rim e o fígado escrevem o metabolismo de forma mais precária - risco de
efeitos colaterais. Coração: praticar exercícios físicos, não cometer excessos, evitar gordura saturada. Álcool: existem benefícios, desde que a ingestão seja moderada, como dois cálices de vinho por dia. Por que o vinho? Existe uma substância
antioxidante no vinho que aumenta o HDL, inibe a agregação de plaquetas, efeito
antiinflamatório e antioxidante, irrigando a circulação sanguínea. O stress é um
dos fatores importantes na atualidade, com causas diversas em relação ao idoso.
Hipócrates já dizia que uma das propriedades da medicina é não causar agravos
aos pacientes, portanto temos que ter muito cuidado com quem vamos tratar.
156  Cremers  Desafios Éticos
Um estudo demonstrou que de todos os fatores de risco, o que mais nos tira
tempo de vida é o stress. Em termos de prevenção e envelhecimento, a genética
representa apenas 30% dentro da nossa longevidade, sendo que 70% vão depender do ambiente e do estilo de vida. Não existe nenhuma fórmula mágica para o
rejuvenescimento - que não existe para o ser humano. A saúde tem um valor de
troca: podemos gastar o que temos ou economizar para os dias mais difíceis. 
Marianela Flores Hekman 
Presidente da Sociedade Brasileira de Geriatria e Gerontologia
O Envelhecimento Humano
Vamos falar de qualidade de vida do idoso demonstrando a importância do
envelhecimento humano.
O aumento da população idosa em países desenvolvidos, pela preservação
física e cultivo de hábitos saudáveis, pode servir como exemplo para o Rio Grande
do Sul. A maior expectativa de vida é uma grande conquista, mas que implica em
grandes responsabilidades.
Fazendo uma retrospectiva da trajetória histórica da durabilidade da vida
humana na terra, observamos que no Império Romano, a expectativa de vida era
de 22 anos. Na Idade Média, aumentou para 33. Em 1900, aumentou para 45
anos. Em 1992, passou para os 75 anos, e a perspectiva para 2092 é de chegar
aos 116 anos. No ano 2000 a pirâmide brasileira indicou uma diminuição do
número de crianças e um aumento na população idosa, prevendo que a pirâmide
populacional evolua para um formato de pêra, em 2025. Isso significa que se o
governo não tomar alguma medida preventiva, a classe trabalhadora em 2025
terá que sustentar esta crescente população de idosos contribuindo com um
percentual maior de desconto em seus proventos.
Em 2050, o formato da pirâmide mudará completamente. O aumento da
população idosa levará a sérias questões de ordem econômica, política, social
e médica. Projeta-se uma queda de fecundidade versus uma diminuição na
mortalidade infantil, aumentando o número de idosos. O crescimento populacional
Desafios Éticos  Cremers  157
de 1960 até 2025, presumidamente, será de 250%. Essa transição epidemiológica
vai levar a uma diminuição no número de doenças infecciosas e um aumento no
número de doenças crônicas degenerativas - cardiovasculares, cerebrovasculares,
cânceres. Hoje a população idosa mundial está em torno de 500 milhões e será de
1 bilhão e 200 mil, em 2025.
A Geriatria no Brasil
A Sociedade Brasileira de Geriatria foi fundada em 1961. Entre 1968 e 1972 foi
mudado o nome para Sociedade Brasileira de Geriatria e Gerontologia, pois iniciou
um trabalho multidisciplinar, filiando-se igualmente à instituição American Geriatric
Society e à Associação Médica Brasileira e obteve-se a primeira prova para conseguir
o título da especialidade. Em 1975 se formou o Serviço Universitário de Geriatria da
PUCRS, da qual sou originária e onde fiz o serviço de residência. O fundador dela
está aqui, Yukio Moriguchi. Foi o primeiro serviço a criar a graduação e residência
médica e, em 1979 essa residência médica foi reconhecida pelo MEC.
No ano de 1992 a geriatria foi incluída como disciplina obrigatória no currículo
da área médica.
No ano de 1994, surgiu a lei que regulamentou a Política Nacional do
Idoso. Atualmente, para essa numerosa população de idosos do Brasil, temos
apenas 500 médicos titulados pela Sociedade Brasileira de Geriatria e Gerontologia/AMB, descontando a pós-graduação. Na lei da Política Nacional do Idoso,
art. 10 § 2, é reservado ao idoso o direito de assistência à saúde nos diversos
níveis de atendimento do SUS e inclui a Geriatria como especialidade clínica
para concursos públicos. A disciplina de geriatria é obrigatória em todas as
universidades - entretanto, apenas duas faculdades lecionam Geriatria no RS.
Em todo o Brasil, temos entre 15 e 16 residências – ou seja, há uma falta de
médicos especialistas.
Objetivo da Geriatria
A Geriatria é uma área da medicina que tem por objetivo prolongar a vida com
saúde e qualidade, buscando um prolongamento da vida saudável. Nossa meta é
prevenir as doenças que incidem na velhice, fazendo planejamento do atendimento
da população idosa, formando opiniões, sugerindo normas e soluções, alertando
158  Cremers  Desafios Éticos
as autoridades do setor de saúde para a problemática do idoso. Enfim, mudar a
mentalidade da sociedade e dos profissionais em relação ao idoso.
O envelhecimento é um fenômeno universal, mas com variações entre
indivíduos e grupos, refere-se aos efeitos adversos da passagem do tempo.
Diferenças nas alterações do envelhecimento são em parte determinadas
geneticamente, mas são substancialmente influenciadas pela nutrição, estilo de
vida e ambiente. As alterações são relativamente benignas e permitem que a
pessoa continue a viver de forma aceitável mas, podem se tornar suficientemente
severas, resultando em doenças como pressão alta e diabetes.
Há diferença entre o envelhecimento biológico e o envelhecimento
cronológico, que se dá através de alterações na aparência e na realizaçao de
tarefas da vida diária.
O Envelhecimento
Temos envelhecimento e velhice. Vários são os fatores ambientais e genéticos.
Os fatores ambientais dependem muito do estilo de vida, como o sedentarismo, a
falta de lazer, as dietas hipercalóricas, o repouso inadequado, o stress excessivo, a falta
de apoio social das políticas públicas e os outros maus hábitos. Os fatores genéticos
variam por região, aqui no Sul temos um maior número de doenças cerebrovasculares,
hipertensão e diabetes. O envelhecimento bem-sucedido depende da saúde mental
e da manutenção da auto-estima. Continuidade das atividades mentais e físicas
– procura de atividade e preservando a autonomia pessoal. Na maioria das vezes o
idoso diminui o seu ritmo, altera o seu estilo de vida para um estilo mais sedentário,
principalmente, depois da aposentadoria e com a independência dos filhos.
O idoso tem que buscar um tipo de moradia que se lhe seja confortável,
conveniente, com um preço acessível, que lhe permita a independência suficiente
para uma boa qualidade de vida. Pois o idoso, em grande parte da população é
acometido por muitas dúvidas, tais como: a que tipos de atividades de lazer e
trabalho o idoso deve se dedicar? Que organizações e prestações de serviços para
idosos ele deveria buscar? Que serviços médicos ele deveria procurar?
A Qualidade de Vida do Idoso
A felicidade do idoso depende de um lar seguro, de uma dieta balanceada,
de uma higiene pessoal adequada, comunicação e suporte de outras pessoas,
Desafios Éticos  Cremers  159
segurança física e financeira, atividades e interesses individualizados, acesso aos
cuidados de saúde, quando necessários.
Não existem normas para o envelhecimento, existem padrões diversos.
Idosos com idades semelhantes demonstram grandes variações nos desempenhos
físicos e intelectuais.
Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), qualidade de vida é
“A percepção do indivíduo de sua posição na vida, no
contexto da cultura e sistema de valores nos quais ele
vive, e em relação aos seus objetivos, expectativas,
padrões e preocupações”.
Dependerá, então, de muitos fatores.
O fenômeno “qualidade de vida” tem muitas dimensões – física, psicológica
e social. A qualidade de vida do idoso vai depender da sua satisfação com a vida,
da sua autonomia, da continuidade de suas relações informais (rede de amigos).
A depressão ocorre muito, principalmente entre as mulheres, com a perda
das relações pessoais decorrente da morte do marido e da ausência dos filhos,
pois restringe seus hábitos familiares e o controle cognitivo, que são elementos
fundamentais para a manutenção da qualidade de vida do idoso. 
Ximena Cardozo Ferreira 
Promotora do Ministério Público Estadual
Vou falar sobre o Estatuto do Idoso, e para tanto é preciso contextualizar. Não
há como tratar deste tema sem abordar a Constituição Federal. Ela previu o envelhecimento com dignidade, no primeiro artigo, como fundamento da República
brasileira, que trata da dignidade da pessoa humana. Todas as nossas ações devem
ter por norte este princípio. Os objetivos fundamentais da República, artigo 3° da
Constituição, trazem a garantia da isonomia material, ou seja, promover o bem
de todos sem preconceitos de qualquer natureza, inclusive de idade. No artigo
5°, vemos que todos são iguais perante a lei sem distinção de qualquer natureza,
garantindo a todos a inviolabilidade do direito à vida, à saúde, e várias outras garantias fundamentais do nosso sistema jurídico.
160  Cremers  Desafios Éticos
A proteção específica aos idosos já garantida pela Constituição Federal tem três
pontos. O dever dos filhos mais velhos de auxiliar os idosos na velhice, carência ou
enfermidade; o dever da família, da sociedade e do estado de amparar as pessoas
idosas, assegurando a sua participação na comunidade, defendendo a sua dignidade,
bem-estar e garantindo o seu direito fundamental à vida; o terceiro ponto é o benefício de prestação continuada, a garantia de um salário mínimo mensal do idoso que
não consiga prover a sua subsistência ou tê-la provida pelos seus familiares.
Com a promulgação do Estatuto do Idoso, vemos os pontos dos direitos fundamentais, as medidas de proteção – ações necessárias quando idosos se encontram
em situações de risco –, política de atendimento do idoso, disposições relativas à
questão das políticas públicas, desde a Política Nacional do Idoso supracitada e a relação com as entidades asilares, as instituições de longa permanência, essenciais no
debate sobre este tema. Temos também um ponto direcionado ao acesso à Justiça,
os mecanismos de defesa do idoso, em que ele pode buscar os seus direitos quando
são violados, assim como a definição de novos crimes. Fizeram-se algumas alterações no Código Penal, prevendo o agravamento de algumas penas quando se tratar
de crime contra idosos, e novas figuras delitivas quando a vítima é um idoso.
A legitimidade do MP na defesa dos direitos e interesses do idoso. Tem essa
legitimação por força da Constituição e reforçada pelo Estatuto. Tem legitimidade de atuar sobre direitos e interesses difusos que atendem toda a comunidade,
também interesses e direitos coletivos que abrangem a uma determinada coletividade – pessoas ligadas por circunstâncias de fato, ou circunstâncias jurídicas.
Interesses individuais homogêneos, pois a violação do direito é da mesma fonte,
e os interesses individuais indisponíveis. Logo, o MP tem direito de atuar sobre
a coletividade e mesmo que seja sobre um idoso apenas, desde que seja para
defender os direitos indisponíveis.
Para a autuação, um importante instrumento é o inquérito civil, uma investigação em que se colhe informações para formar a convicção do promotor sobre determinado caso. Dentro desse procedimento, podem ser requisitadas informações,
tomados depoimentos. A partir desse momento o promotor pode propor um compromisso de ajustamento de conduta, uma espécie de acordo no qual se busca o
violador do direito e acontece uma abordagem extrajurídica para que ele se adeqúe
às normas legais, o que é uma opção. Também pode expedir uma recomendação,
quando se tratar de órgãos públicos não adequados à legislação. A finalidade dele é,
com a adoção dessas medidas extrajudiciais, o arquivamento do processo. Se não
for possível resolver o problema desta forma, parte-se para a judicialização do proDesafios Éticos  Cremers  161
cedimento através da ação civil pública, que serve para os mesmos direitos. No caso
do Estatuto do Idoso, ainda existem outros partícipes legitimados à propositura da
ação pública, como a OAB, a União, os Estados, o DF e os Municípios, assim como
associações que são norteadas pela defesa dos direitos dos idosos. Não é o mesmo
caso do inquérito civil, um procedimento privativo do Ministério Público.
Além disso, também temos intervenção nos processos cíveis. Sempre que existe
um idoso como autor ou como réu em situação de risco, existe a intervenção obrigatória do MP, que serve como fiscal da lei e como curador do idoso. A provocação da
atuação ministerial. O artigo 89 do Estatuto diz: “Qualquer pessoa poderá provocar
iniciativa do MP prestando-lhe informações sobre os fatos que constituem objeto da
ação civil e indicando-lhe os instrumentos de atuação”. Ou seja: qualquer pessoa pode
levar ao Ministério Público casos nos quais idosos aparecem em situações de risco,
como maus-tratos em casa, tratamento deficiente nos hospitais, etc. Os agentes públicos em geral, no exercício das suas funções, quando diante de uma situação de risco
para um idoso, devem encaminhar a denúncia ao Ministério Público. Os profissionais
de medicina exercendo a profissão no SUS também são considerados agentes públicos, portanto também têm este dever. Outros órgãos que devem ser notificados são:
a polícia, os conselhos estadual, municipal ou federal do idoso. Isso é uma obrigação
legal: o agente de saúde deve comunicar, mesmo que seja uma suspeita.
Além da previsão do artigo 196 que assegura a saúde a todos os cidadãos, o
Estatuto do Idoso prevê, no artigo 2°, a preservação da saúde física e mental do
idoso, no artigo 7° a assistência de saúde pública, no artigo 9° a proteção à vida
e saúde, e tem todo o capítulo 4° destinado ao direito da saúde do idoso. Com
relação à parte criminal, existe uma inovação do Estatuto. Além de agravar algumas
penalidades a crimes já previstos no Código Penal, o Estatuto previu novos delitos,
tais como no artigo 97 – deixar de prestar assistência ao idoso ou recusar/retardar/
dificultar sua assistência à saúde sem justa causa; abandonar o idoso em hospitais,
casas de saúde, entidades de longa permanência ou congêneres ou não prover suas
necessidades básicas quando obrigado por lei ou mandado (artigo que se aplica às
famílias, que jogam os idosos em asilos para “se livrar do problema”); art. 99 – expor a perigo a integridade física ou psíquica do idoso; constitui crime punível com
reclusão de seis meses a um ano e multa recusar/retardar/dificultar sua assistência à
saúde sem justa causa. O artigo 16 afirma que o idoso tem autonomia para escolher
o tratamento que lhe é mais favorável. Ou seja, se não existe alguma interdição
judicial que afirme não estar o idoso em pleno domínio das suas faculdades mentais,
o idoso vai escolher o tratamento que entender mais adequado. 
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Ética e Saúde nos Presídios
Coordenação: Fernando Weber Matos
Participantes: Magno Spadari, Djalma Gautério e Cynthia Feyh Jappur
Agosto/2006
Magno Spadari 
Cirurgião pediatra, conselheiro do Cremers e professor universitário
A Bioética e a Saúde dos Presídios
A saúde das pessoas que estão privadas da liberdade traz uma serie de
questões novas sendo um tópico pouco abordado e discutido pelos profissionais de saúde envolvidos. A própria literatura se resume a trabalhos esparsos,
quase sempre com uma abordagem reducionista. Das discussões sobram muito mais questionamentos que respostas. Mas exatamente este questionamento e discussão se inserem no espírito da Bioética.
Todos sabem que a sociedade e a medicina mudaram bastante nos últimos 30 anos. Há uma série de situações novas que fogem da abrangência dos
códigos deontológicos e de moral tradicionais, muitas delas polêmicas, encontrando profissionais despreparados, tomando decisões de forma intuitiva,
influenciadas por variáveis inconscientes e nem sempre corretas. Precisamos
de respostas que só a percepção de que a ética é muito mais do que uma
formalidade, do que o conhecimento de umas tantas regras estabelecidas e às
quais nos adaptamos.
É fundamental e necessária uma interiorização que poderia ser resumida na criação de uma consciência ética responsável por um sentimento ético
estruturado no conhecimento e na formação pessoal e profissional. Na realidade, a bioética procura fazer com que consigamos harmonizar todas as
variáveis, para que nossas decisões sejam equilibradas e não parciais. Deveria
ser uma ética discursiva e reflexiva; o estudo da ética podendo ser aplicada nas
situações do dia a dia.
Um dos maiores problemas que a Bioética encontra, hoje, é a aproximação entre os produtores do conhecimento nessa área, que é abundante e de
qualidade, e os profissionais que estão trabalhando nas varias frentes, pesquisa, ensino, extensão, etc. Encurtar essa distância é uma obrigação de todos,
desde os ambientes acadêmicos até as instituições como o Cremers.
Tentaremos apresentar o assunto restrito ao modelo principalista, por ser
o mais divulgado e conhecido embora apresentando uma limitação importante
e conhecida na autonomia do apenado. Além disso, os outros princípios da
Desafios Éticos  Cremers  165
Bioética, a beneficência, a não maleficência, e a justiça poderiam ser resumidas em questões fundamentais do nosso ordenamento jurídico e moral, como
a preservação da vida, a liberdade, a privacidade, a proteção ao pudor e a
proteção das informações, a não discriminação, a proteção aos vulneráveis e
à confidencialidade.
Questões essas que simbolizam, em ultima análise, o respeito à pessoa,
o respeito ao ser humano. Por outro lado, as perguntas que devemos fazer,
de forma genérica, em relação à saúde prisional, são: O que evitar? O que é
necessário promover e apoiar? Como trabalhar as questões ou dilemas éticos
à luz da legislação criminal?
O apenado, objetivo final da atenção e do cuidado à saúde encontra-se não
só nos presídios, mas em todo o contexto que acarretar alguma restrição à liberdade como delegacias, instituições de recuperação de menores, etc. Devemos
ressaltar, também, que apesar de todas as limitações da Segurança Publica do
nosso estado, o Rio Grande do Sul, a situação dos direitos humanos, inclusive da
saúde, é bem melhor do que em outros lugares e muitas questões aqui citadas são
ocorrências raras em nosso meio.
O tópico mais discutido na literatura relacionada à ética do apenado é a
questão da autonomia e da vulnerabilidade, principalmente na pesquisa. Muitas vezes se usa o conceito de autonomia reduzida equivalente ao de vulnerabilidade, mas não é bem isso. O apenado tem uma redução da autonomia transitória. O vulnerável é aquela pessoa que por uma série de diferenças, embora
tenha a autonomia, não pode exercitá-la, pois não tem liberdade para decidir
nem informação adequada ao seu nível de entendimento. A vulnerabilidade
o torna desigual e incapaz ou menos capaz, como é o caso dos índios, por
exemplo. De acordo com Goldim, os prisioneiros, têm redução temporária
da autonomia estando impedidos de manifestar sua vontade. Quando cessar o
impedimento poderão fazê-lo, recuperando a autonomia plena. O documento do consentimento informado, que caracteriza a autonomia, é obrigatório
para a pesquisa científica. Problemas outros: como o interesse das instituições
prisional e acadêmica se ajusta ao interesse do apenado? Sabe ele que está
participando de projeto ou protocolo?
A privacidade e a confidencialidade são bens tutelados pelos médicos há
muito tempo, pilares da nossa profissão. Como fica a questão do apenado
nesse sentido? Privacidade é limitação do acesso às informações de uma dada
pessoa, ao acesso à própria pessoa, à sua intimidade, anonimato, sigilo, afas166  Cremers  Desafios Éticos
tamento ou solidão. É a liberdade e o direito de não ser observado sem autorização. Confidencialidade é a garantia da preservação das informações dadas
em confiança e a proteção contra a sua revelação não autorizada. Existem
ocasiões em que essas questões devem ser respeitadas integralmente, como
no contato do preso com seu advogado ou nos contatos íntimos. Entretanto,
em outras, a privacidade do apenado pode colocar o sistema e a sociedade em
risco. A dificuldade, muitas vezes, está em estabelecer os limites e até quando
esses valores deverão ser preservados.
A exigüidade de recursos em relação ao atendimento de saúde, a escassez
de pessoal e estrutura, sem falar na quase inexistência de hospitais, faz com que
muitos casos sejam transferidos para um serviço de terceiros, o que acarreta risco
para o apenado e para a sociedade. Muitas vezes pessoas com periculosidade são
transportadas para e atendidas em serviços de saúde onde já existem não-apenados dividindo seu espaço e o ambiente de enfermaria por alguém que, inclusive
está algemado e custodiado por segurança armada. Quem já não ouviu relatos de
resgates espetaculosos e fugas de presos que saíram do confinamento para atendimento de saúde? Entendemos que aquelas situações não urgentes como cirurgias
de pequeno porte devam ser feitos em horário pré-agendado procurando minimizar o contato com os outros pacientes e seus familiares. Não há, também, como
deixar de lembrar o risco a que os profissionais de saúde, inclusive os que não
estão envolvidos diretamente com o atendimento ao preso, ficam submetidos,
problema quase nunca coberto por vantagens salariais ou previdenciárias.
Em torno das questões conceituais e básicas que acima rapidamente discutimos, temos ainda circunstâncias de ordem prática que complicam o já difícil exercício profissional do cuidado com o preso. Aquelas relatadas como as mais freqüentes seriam o constrangimento que o preso voluntariamente ou não, provoca
no profissional com o interesse de vantagem como transferência, etc. Entretanto,
o preso também sofre uma serie de constrangimentos provocados algumas vezes
de forma intencional e em outras, pela precariedade do atendimento à saúde. Por
exemplo, esse atendimento feito dentro da cela motivado pela ausência de ambulatório ou sala reservada. A gravidade aumentada forçando saída, remoção ou
internamento prolongado ou minimizada como tortura ou punição. Muitas vezes
autoridades não responsáveis pela segurança ou custódia resistem à consulta ou
ao exame. Os casos de espancamento ou tortura? Como deve se portar o médico? Pode o médico aproveitar o exame físico para a realização de revista? Pode o
médico fazer exame retal ou vaginal com esse propósito?
Desafios Éticos  Cremers  167
É eticamente correta a recusa a prestar atendimento médico aos detentos quando
a cadeia ou a delegacia não oferece condições para tal? Pessoalmente, acho que sim,
exceto nas urgências e emergências, pois o médico deve se abster de trabalhar sem
condições e também fazer aos responsáveis o devido comunicado sobre o fato.
Há obrigatoriedade de testagem DST/Aids quando do ingresso do detento
no presídio? Há obrigação de comunicação de doença à direção? Como trabalhar
com grupos (HIV, Hepatite): a questão do isolamento, da discriminação, da segurança e da saúde pública.
É eticamente correto o médico recomendar a distribuição de seringas descartáveis, para evitar a contaminação pelo sangue, nos programas de redução de
danos? Isso é uma questão ética relevante.
É aceitável a realização de perícia médica nos presídios? Existe resolução do
CFM que proíbe, ainda mais quando o médico cuidador é o médico perito, pois
outra resolução veda que sejamos peritos de nossos pacientes.
Como evitar a despersonalização do presidiário e a banalização da doença?
Como manter a isenção e a sensibilidade diante do apenado perigoso?
É adequado exame retal e vaginal do prisioneiro em regime aberto após a
saída? Quem faria tais exames? O médico ou alguma outra pessoa? O médico
estará ou não presente?
Como é enfrentada a saúde mental: é correto manter um apenado psicótico ou um psicopata junto aos outros?
Outra questão importante: e o médico apenado? Pode atuar como médico, em situações não urgentes, suprindo eventual falta de profissionais?
Dentre esses problemas todos, a curto prazo, apresentamos algumas ações
de saúde que poderiam e deveriam ser implementadas, ainda mais que necessitam
de recursos materiais módicos, a saber:
Ações de Promoção de Saúde: alimentação, atividades físicas, condições de
salubridade do confinamento, acesso a atividades laborais, medidas de proteção
específicas: vacinação contra a hepatite, influenza e tétano.
Ações de Atenção Básica: melhorar a alimentação; atividades físicas quando
possível; condições de salubridade; acesso a atividades laborais; medicina preventiva-vacinação; controle da tuberculose, hipertensão e diabetes.
Ações Complementares: DST / HIV / Aids, saúde mental, protocolo de
ingresso no sistema e agentes promotores de saúde.
168  Cremers  Desafios Éticos
A obrigação de zelar pela vida e a saúde no ambiente prisional requer a
proteção desses valores tanto do apenado quanto do não apenado que ali
transita, como familiares, funcionários, autoridades, etc. É de capital importância que seja sempre lembrado que a pena é a privação da liberdade, não o
dano à saúde nem a perda dela ou da vida – esse princípio é fundamental. O
preso não pode entrar sadio e sair doente, seja de que forma for, em função
de questões de saúde pública como as doenças infectocontagiosas, seja por
questões de uso de substâncias ilegais e, o que não deixa de ser menos grave,
complicações pelo atendimento inadequado recebido. A falta de recursos, geralmente o cobertor curto que atormenta e enfraquece o sistema junto com
superlotação, não pode mascarar nem eximir as responsabilidades envolvidas
e mais cedo ou mais tarde obrigará as autoridades e a sociedade como um
todo a uma reflexão. São perguntas sem resposta e que continuam em aberto,
necessitando de mais discussão e envolvimento, pois não interessam apenas
ao apenado e seus familiares, mas às autoridades e à própria sociedade. Muitas
delas exigem uma resposta individualizada mais que coletiva e bem mais complexa do que possa parecer a um exame mais superficial. 
Referências Bibliográficas
GOLDIM. http://www.ufrgs.br/bioetica/bioetica.htm.
AZEVEDO. Bioética Fundamental. 2002.
Djalma Gautério 
Superintendente da Superintendência de Serviços Penitenciários - Susepe
Provavelmente não tenhamos respostas nem soluções, no momento, para
algumas das questões que aqui serão levantadas. A área penitenciária convive,
ao longo de anos, com dificuldades e deficiências, apesar da dedicação dos que
a integram. Quero saudar a administração do Presídio Central, e digo sem o
menor orgulho que é a casa prisional com maior número de presos do país,
superando o presídio Aníbal Bruno, do Recife. Isso só vai se resolver quando
Desafios Éticos  Cremers  169
gerarmos mais vagas para o sistema. Mas o motivo que aqui a todos reúne é
discutir a questão da ética e saúde prisional.
Apesar de todas as dificuldades, conseguimos manter o sistema prisional
do Rio Grande do Sul com relativa tranqüilidade, sem a quantidade de motins e
rebeliões de outros Estados. Incidentes acontecem, mas jamais no mesmo nível
de episódios similares. Temos imensa dificuldade de conseguir profissionais, especialmente médicos, para atuar nos presídios. A Superintendência de Serviços
Penitenciários chegou a contar, há alguns anos, com um corpo de 18 médicos,
grupo que foi se reduzindo com o passar do tempo. Já possuiu um hospital penitenciário, que foi desativado no final da década passada. Procuramos atender
essa demanda, que é sempre crescente, na medida em que a população carcerária não pára de aumentar, contratando uma cooperativa, que colocou, por
seis meses, médicos atendendo em diversas casas do Sistema Prisional. Vencido
esse prazo, abrimos concurso público para o preenchimento dos cargos vagos
de monitor penitenciário médico. Infelizmente, um número reduzidíssimo de
médicos, muito aquém das necessidades, apresentou-se, talvez em decorrência
das vicissitudes do trabalho no presídio e da baixa remuneração. Solicitamos e
conseguimos, a seguir, autorização legislativa para uma contratação emergencial
e temporária por dois anos, nos termos estabelecidos na Constituição Federal,
mas também não houve interessados.
Em alguns presídios há médicos que trabalham voluntariamente. Em Pelotas,
um médico se propôs a atender voluntariamente, como em Caxias do Sul, mas
são atitudes isoladas que não resolvem o problema.
Com a chamada municipalização da saúde, muitos médicos, servidores públicos estaduais, passaram a prestar serviços para os municípios, embora continuem
recebendo seus vencimentos dos cofres estaduais. A Divisão de Saúde da Susepe
convidou e vários deles aceitaram trabalhar nos presídios. Uma compensação financeira boa também existia, pois o adicional de risco de vida aumentaria em
60% o salário do médico. Essa proposta esbarrou nas prefeituras, que admitiram
liberar os médicos apenas por permuta, o que equivale, no caso, a simplesmente
negar, pois não temos ninguém para indicar para a troca. Pensamos, então, que
esses médicos poderiam continuar mantendo vínculos com as prefeituras, dedicando algumas horas por semana para o atendimento dos presos.
Há cerca de três anos, os Ministérios da Saúde e da Justiça, preocupados com
a questão da saúde prisional, estabeleceram em uma portaria interministerial os
critérios para o atendimento médico dentro dos presídios, dispondo sobre os
170  Cremers  Desafios Éticos
espaços físicos, o número de integrantes das equipes de saúde – compostas por
um médico, um dentista, um enfermeiro, um psicólogo, um assistente social, um
técnico em enfermagem e um cirurgião-dentista – para atender grupos de até
500 presos. No Presídio Central, onde temos aproximadamente 4 mil apenados,
precisaríamos de oito dessas equipes. Essa portaria prevê também um estímulo
financeiro de 40 mil reais por ano para cada equipe.
Há bastante tempo estamos discutindo com a Secretaria da Saúde do Estado
uma maneira de criar essas equipes. Da discussão, surgiu a idéia, proposta por técnicos daquela secretaria, de que o Estado também fixasse um incentivo fiscal de
48 mil reais por ano, por equipe, a ser repassado aos municípios que aceitassem a
incumbência de montar essas equipes.
Encaminhada ao Conselho Intergestores Bipartite, a proposta foi aprovada. O nosso objetivo nesta nova fase é convencer os municípios a aderirem
a esta proposta, que não contrata novos profissionais e traz uma compensação financeira razoável. Por equipe, os municípios receberão mais de 80 mil
reais por ano, podendo utilizar profissionais experimentados que dedicariam
algumas horas dentro dos presídios. Outra questão que cria dificuldades: o
servidor público é obrigado a cumprir uma carga de 40 horas semanais. Mas
entendemos que o médico não precisa cumprir esse horário para atender de
forma conveniente os apenados. 
Cynthia Feyh Jappur 
Promotora de Justiça do Ministério Público Estadual
A Saúde nos Presídios Passa Mal
Vou abordar um pouco o diagnóstico da saúde no sistema prisional. O MP
acompanha o problema da saúde nos estabelecimentos prisionais há bastante
tempo, tendo inclusive criado uma promotoria especializada de execução criminal cujas atribuições são os direitos humanos, cuidando dos direitos difusos
e coletivos dos apenados, dentre os quais está o direito á vida e à saúde. Então, acompanhamos atualmente por meio de dois expedientes, um inquérito
Desafios Éticos  Cremers  171
civil que investiga o atendimento à saúde nos estabelecimentos prisionais vinculados à Vara de Execução Criminal de Porto Alegre e a peça de informação
número 2 de 2005 que cuida da implementação do Plano Nacional de Saúde
no sistema prisional.
O atendimento médico prestado no sistema prisional do RS já há muito
tempo vem mal. O problema da saúde no sistema prisional, que diz respeito
não só ao atendimento mas à saúde sanitária desses estabelecimentos, não é
só atendimento. A principal causa é a superlotação do sistema. Resolvendo-se
esse problema, muito vai se resolver em relação à saúde prisional. É verdade
o que disse o Dr. Djalma Gautério: havia uma cooperativa, que não funcionou
pois os médicos não iam trabalhar por conta de problemas de remuneração.
Posteriormente houve a contratação emergencial de médicos, que também
provocou uma situação problemática, pois poucos ficaram, e a situação dos
concursos públicos também fracassou. Considerando a portaria interministerial, mormente a Resolução número 7 de 14 de abril de 2003, que estabelece
no artigo primeiro incisos 4° e 5° a formação dessa equipe no interior dos
estabelecimentos de 100 a 500 detentos, ela estabelece a equipe como o Dr.
Gautério falou, mas esqueceu de mencionar o psiquiatra. Integram essa equipe um médico clínico, um psiquiatra, um psicólogo, um odontólogo, um assistente social, dois auxiliares de enfermagem e um de escritório, e um médico
ginecologista nas prisões femininas.
O efetivo carcerário de 30 de agosto de 2006 aponta que na comarca de
Porto Alegre existem mais de 11 mil detentos. Se aplicarmos a Resolução número 7, há a necessidade de 21 médicos para essa população. Ora, atualmente
há apenas três médicos clínicos. Também não há psiquiatras, nenhum psiquiatra
que atenda às casas, um problema sério porque há pacientes no Central e na
PEJ que receberam alta progressiva ou tratamento ambulatorial e necessitam de
medicamentos especiais, e estão cumprindo pena por outro delito mas também
respondem a medida ambulatorial. O MP vem cobrando isso, há a necessidade
de um psiquiatra presente nesses estabelecimentos para fazer o controle dos
detentos que respondem a tratamento ambulatorial.
Esse Plano Nacional de Saúde da Portaria Interministerial 177 não foi implementado justamente pela falta de pessoal técnico, que seria a contraprestação. A União disponibilizaria um recurso e mais uma série de equipamentos,
mas o município deveria dar a contraprestação da equipe técnica e não deu.
Mas esse plano, essa solução apresentada pela Susepe, juntamente com a SES
172  Cremers  Desafios Éticos
do RS, com a Dra. Sandra Sperotto, é uma esperança de que talvez a situação
melhore. Daí é preciso cautela em relação ao contrato. É importante que o
número de horas cedidas cumpra com a sua finalidade, que elas dêem conta
da demanda de cada estabelecimento. A questão da remuneração afasta demais o pessoal médico, mas o que eu entendo como importante é que esta
questão talvez tenha a ver com o plano de carreira da Susepe, que não existe.
Daí talvez algumas carreiras que não tenham a mesma equiparação salarial e
profissional dessas áreas não se interessem.
Passamos para a ética. A ética vem do grego ethos, que quer dizer o modo
de ser, o caráter. Os romanos traduziram para mores, costume, vindo daí a
palavra moral. Tanto caráter como costume indicam o tipo de comportamento
propriamente humano que não é natural. O homem não nasce com eles, conquista isso pelo hábito. Portanto, ética e moral são conceitos concebidos pelo
ser humano, conceitos desenvolvidos de acordo com os ensinamentos e a evolução da espécie e das sociedades. No nosso dia-a-dia não fazemos distinção,
mas os estudiosos costumam distinguir os significados de moral e ética. A ética
é definida como uma série de costumes que norteiam o princípio do indivíduo.
A moral é normativa, assim como a ética é definida como uma teoria que procura explicar ou compreender as morais de uma sociedade. A ética é filosófica.
Morus dizia que nenhum homem é uma ilha; portanto, é na vida social que o
ser humano se descobre, se realiza como ser moral e ético. È na relação com o
outro que surgem os problemas, as indagações. O que devo fazer, como agir em
determinada situação, como comportar-me diante do outro, como resolver os
problemas da injustiça, da falta de saúde e atendimento médico nas prisões? O
que fazer? Constantemente estamos submetidos a esse tipo de questionamento, que avaliamos de acordo com a moral vigente.
O maior problema é que não costumamos refletir e buscar os porquês de
nossas escolhas, dos comportamentos, costumes e tradições, tentando naturalizar os comportamentos. Com isso perdemos a capacidade de crítica diante da sociedade. Não costumamos fazer ética, pois não fazemos a crítica, não
procuramos explicar e compreender a nossa realidade moral. Os exemplos de
injustiça e corrupção de toda ordem vigentes no Brasil manifestam essa necessidade. Não podemos nos acomodar com isso. Não sem motivos falamos numa
crise ética, já que tal realidade não pode ser reduzida somente ao campo político-econômico. Envolve questões de valor, consciência e justiça, envolve vidas
humanas, em que é imposto necessariamente um problema ético. O apelo que
Desafios Éticos  Cremers  173
o outro me lança é de ser tratado como gente, não como coisa ou bicho. A ética
denuncia a realidade em que o ser humano concreto é animalizado, coisificado,
desrespeitado na sua condição.
No mundo jurídico, há inúmeras normas que cuidam da saúde, do direito à
vida, mormente no sistema prisional. Há tratados internacionais nesse sentido,
podendo se citar o artigo primeiro da Constituição, que tem como fundamento
a dignidade da pessoa humana, em que todos são iguais perante a lei. Artigos
196, 197 e 198. O artigo 3° da LEP determina: ao condenado e internado serão
assegurados todos os direitos assegurados pela assistência e pela lei. O artigo 14
diz que o tratamento compreenderá tratamento médico, farmacêutico e odontológico. O artigo 41 da LEP diz que constituem direitos do preso a assistência
material, a saúde. O artigo 4° determina que o Estado deverá recorrer à cooperação da comunidade na execução da pena e das medidas de segurança. Ficaria
até amanhã lendo todos os tratados internacionais e suas respectivas normas
que garantem juridicamente o direito à saúde e à vida.
Se há tantas normas, que inclusive garantem a participação da comunidade, por que se mantém o caos? A questão da saúde é efetivamente muito
complexa, apresentando uma série de problemas. Transpondo-se isso para a
realidade do sistema prisional, onde se agrega a discriminação, agrava-se ainda
mais. O terrorismo contra o Estado do PCC leva à reflexão por parte da sociedade. Por que se formou esse “estado paralelo” que mostrou seu poderio
com sua capacidade ofensiva? Não foi por falta de lei, mas também por omissão do Estado ao lado da sociedade. Há, portanto, um grande problema ético
a ser resolvido. O preço de se deixar levar pela discriminação, dizendo que
criminosos têm de apodrecer na cadeia sem direito a nada é caro, e já estamos
pagando por isso com a violência que nos invade. Esse preço será mais caro
se não tomarmos providências. O que se quer com isso é chamar atenção no
sentido de que uma importante questão ética mal resolvida pode acarretar
um grave problema na sociedade. A questão da saúde no sistema prisional não
pode ser tratada com mero diletantismo e retórica. Requer ações eficazes,
continuadas e participação efetiva da sociedade. Não se deve tratar o sistema
prisional, mormente a saúde prisional, que é uma questão de estado, como
uma questão de governo.
Voltei recentemente de uma oficina internacional sobre monitoramento
de locais de detenção no Brasil, realizado em Brasília. Lá estava presente
John Jairo Gonzalez Spinoza, um defensor do povo colombiano, que deu
174  Cremers  Desafios Éticos
uma importante contribuição relatando os problemas que o povo colombiano passa com a luta entre as Farc (guerrilhas) e as Organizações de Autodefesa (grupos paramilitares). Em resumo, garantiu ele que está dando
certo reunir a sociedade e as autoridades em prol do objetivo comum dos
direitos humanos, para resolver os problemas. Quando se fala em direitos
humanos dos detentos, por óbvio se fala dos direitos humanos da sociedade
e dos agentes penitenciários. A saúde deve ser encarada como um todo, não
apenas como um artífice da doença.
Outra questão importante mencionada nessa oficina internacional foi que
a prática do monitoramento regular, que já se faz na Promotoria de Execuções
Criminais, e eu sinto que não é mencionado por parte da Susepe mesmo sendo um trabalho de anos, das visitas que o colega Gilmar faz reiteradamente,
um trabalho não só jurídico mas também psicológico no qual os presos se
beneficiam, e conseguem expor os seus anseios. Nessa oficina internacional
de direitos humanos é apregoado o monitoramento periódico, seguido, dessas
casas de detenção por uma equipe multidisciplinar, não só por médicos como
também por outros setores da sociedade. Encerro convidando o Cremers
a se agregar ao movimento em prol dos direitos humanos a fim de dar uma
importante contribuição. 
Desafios Éticos  Cremers  175
Esta publicação foi lançada em 29 de dezembro de 2006, durante
a 16a Edição do Programa Desafios Éticos.
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