Letramentos plurais e tecnologias da informação e comunicação: impactos da função social da leitura e da escrita nos meios digitais, além dos muros da escola Úrsula Nascimento de Sousa Cunha (UNEB) Resumo: O objetivo deste texto é refletir a respeito da concepção de letramento em uma época dominada pelas TIC e como essas ferramentas têm influenciado as manifestações culturais de grupos sociais e suas identidades, através de um processo de justaposição cultural, característica da cibercultura, e a polifonia do discurso e sua aceitação social, representada pelas metonímias oriundas de manifestações culturais de vozes silenciadas na própria agência escolar. Para isso, foram analisadas produções poéticas de alunos e de alunas da EJA II, EIXO IV, da Escola Estadual Régis Bittencourt, localizada em um bairro periférico da cidade de Feira de Santana (BA), disponibilizadas no blog da escola. Palavras-chave: Letramento digital, cibercultura, identidade. Abstract: This Communication aims to reflect on the concept of literacy in an era dominated by the Information and Communication Technology (ICT) tools and how these have influenced the cultural manifestations of social groups and their identities through a process of cultural juxtaposition is characteristic cyberculture, and polyphony of discourse and its social acceptance, as represented by metonymy derived from the silenced voices of cultural events at the branch school. For this, we analyzed poetic productions of pupils and students of EJA II AXIS IV, the State School Régis Bittencourt, located in a suburb of the city of Feira de Santana, Bahia, which became available in the school's blog. Keywords: digital literacy, cyberculture, identity. Introdução As instituições de ensino, em seus moldes atuais, estão sendo consideradas, por teóricos e educadores, como instituições falidas, que não cumprem mais sua missão: integrar o indivíduo, de forma autônoma, ao meio social em que vive. Isto Universidade Federal de Pernambuco - Núcleo de Estudos de Hipertexto e Tecnologias na Educação -1- se deve porque escolas impõem um modo único de saber, não se adaptando ao pluralismo epistemológico e tecnológico da pós-modernidade. Por isso, mudanças de paradigmas são necessárias, com o objetivo de tornar mais eficiente o dia-a-dia escolar. A escola atual, conforme nos assinala Pretto (2001), deve centrar-se nessa era pós-moderna, sendo um sistema educativo que tenha a perspectiva de formar o ser humano programador da produção, que seja consciente em relação ao seu papel de sujeito, e não de treinar um ser humano mercadoria. Para que essas agências educacionais possam atingir esse intento evidenciado por Pretto, torna-se urgente a construção de outros modelos em relação ao que vem se reproduzindo nas escolas desde a época industrial, ou seja, uma educação baseada no modelo fabril, que visava à produtividade e à automação do ser aprendente, para um modelo de educação em que a autonomia do sujeito, seus discursos e enunciações, e suas potencialidades de aprendizagem passam a ser valorizadas, pois, nesse contexto, valoriza-se o aprender a aprender. Assim, é importante agora não apenas alfabetizar o sujeito, mas torná-lo apto a, além da decodificação de textos, conseguir inserir significados a eles, de forma consciente e reflexiva, isto é, possibilitar o letramento. Sendo assim, torna-se necessário, na principal agência de letramento, uma pedagogia culturalmente sensível, ou um letramento relevante, que tenha como foco principal o aprendiz, tornando a escola mais familiar ao sujeito que ela freqüenta. Pode-se pensar então que o letramento deve-se constituir práticas sociais específicas e não mais universais, como geralmente acontece na atualidade, além de que as experiências comunicativas desses sujeitos devem ser refletidas no grupo, e não anuladas. Para Bazerman (2007), o letramento afeta questões sociais e culturais, a exemplo das memórias coletivas, a auto-imagem do sujeito, a interação com o conhecimento cultural e a participação social, política e econômica, como também a estratificação social. Para defender essa postura, o autor afirma que se deve compreender a elaboração de um modo de vida a partir do letramento, tendo em Universidade Federal de Pernambuco - Núcleo de Estudos de Hipertexto e Tecnologias na Educação -2- vista que cada membro da sociedade participa do mundo letrado, mesmo se eles não leiam ou não escrevam. No entanto, em uma análise reflexiva sobre a principal agência de letramento – a escola – percebe-se que muitos dos letramentos que são influentes e valorizados na vida cotidiana das pessoas e que têm ampla circulação são ignorados e desvalorizados pelas instituições educacionais, pois, conforme observa Rojo (2009), não são considerados “letramentos verdadeiros”. Neste caso, pode-se mencionar o letramento digital, uma prática que pode dar sentido às ações discursivas e inserir o aluno em um contexto em que cada vez mais a linguagem tecnológica, através do aparato digital, assume um importante fator de inclusão social e desvelamento de identidades – àqueles que têm acesso a esse modo de dizer sobre o mundo -- em uma sociedade volta aos recursos tecnológicos. 2. Contextualizando o projeto: o letramento digital em questão A cibercultura, cultura cibernética ou cultura digital caracteriza um conceito emergente da pós-modernidade, que nasce da perspectiva do impacto das tecnologias da informação e comunicação e da conexão em rede na sociedade. Essa cultura utiliza-se da metalinguagem digital e da capacidade de remontar arquivos para exprimir a produção simbólica de um determinado grupo social, mas que atinge a todos que estão conectados à rede. As metonímias oriundas dessas composições culturais deixam evidentes a polifonia do discurso e sua aceitação social, através da desconstrução de uma ideia totalizante em relação às suas manifestações que, em alguns momentos do mundo moderno, representavam dicotomias quanto ao valor cultural dos produtos. Dessa forma, na pós-modernidade, segundo Derrida (1996), firma-se um olhar cultural semelhante a uma série de textos em intersecção com outros textos, produzindo mais textos. A cultura contemporânea consiste em uma técnica de colagem/montagem, isto é, representa a justaposição de elementos distintos e Universidade Federal de Pernambuco - Núcleo de Estudos de Hipertexto e Tecnologias na Educação -3- aparentemente incongruentes, desvelado, muitas vezes, por vozes silenciadas não apenas nas vivências sociais, mas na própria agência escolar. Para revelar essas vozes, é necessário, em primeira análise, perceber a função social que a leitura e a escrita deve assumir, não apenas no universo escolar, mas muito além dos muros dessa instância formal de letramento, para que, como nos assegura Pretto (2001), nossa principal agência de letramento possa ter a perspectiva de formar o ser humano programador da produção, que seja consciente em relação ao seu papel de sujeito, e não de treinar um ser humano mercadoria. O corpus para essa análise se constitui de produções poéticas de alunos e alunas da EJA II, EIXO IV, da Escola Estadual Régis Bittencourt, localizada em um bairro periférico na cidade de Feira de Santana, Bahia, que foram disponibilizadas no blog da escola, além da produção de um documentário pelos alunos do 8º ano do Ensino Fundamental II, também disponível do blog, elementos que registram as subjetividades desses sujeitos. Espera-se, com essa comunicação, suscitar, na contemporaneidade, o debate sobre questões relacionadas ao letramento, também nos meios digitais, além de perceber os impactos que esses mecanismos de representação exercem sobre seus interlocutores -em sua maioria afrodescendentes, classe social desprivilegiada e pertencentes às localidades marginalizadas no contexto citadino --, além dos hibridismos culturais, os descentramentos da identidade e, ao mesmo tempo, a heterogeneidade da cibercultura, através da relação de troca entre produtor cultural e consumidor, que tende a romper a hierarquia entre alta e baixa cultura, minimizando, através das TIC, a autoridade do produtor cultural, pois tem-se a oportunidade da participação popular e validação de sua autoria. Percebe-se, também, que é possível desconstruir, através da cibercultura e suas potencialidades textuais, o poder do autor de impor significados ou de oferecer uma narrativa contínua. Universidade Federal de Pernambuco - Núcleo de Estudos de Hipertexto e Tecnologias na Educação -4- 3. O ciberespaço e o desvelar da identidade: o letramento como ferramenta de subjetivação De acordo com Kenway (2001), o ciberespaço é um “lugar” sem cara de lugar e sem espaço, pois não há em seu interior fronteiras ou corpos, apenas textos e imagens e sons feitos de bits e bytes; um espaço transnacional, um “lugar” que não tem os aspectos de espaço, sem fronteiras, representando um lugar de peregrinação, de andarilho. Este espaço oferece novas relações entre produtores e consumidores de textos culturais, pois permitem aos sujeitos serem não apenas consumidores ativos ou passivos dos produtos de informação e da cultura global, mas agentes de seus próprios produtos culturais e também distribuidores desses elementos. É importante lembrar que toda essa abordagem baseia-se na concepção de que o letramento afeta questões sociais e culturais, a exemplo das memórias coletivas, a auto-imagem do sujeito, a interação com o conhecimento cultural e a participação social, política e econômica, como também a estratificação social. A partir dessas análises, pode-se inferir que a escrita digital pode ser um elemento potencializador para a construção de textos, que evidenciem o descortinar da escrita sobre si mesmo, da interação do sujeito com o mundo, da possibilidade libertária das vozes silenciadas, mas também, dependendo de seu contexto de uso, um fator de opressão das massas que, muitas vezes, não sabem lidar com os espaços digitais. Com a internet – mais especificamente os blogs -- tem-se a possibilidade de uma comunicação “muitos-a-muitos” e, além disso, as diferentes relações de produção e consumo dos produtos culturais que veiculam nesse meio virtual, resignificando textos e subjetividades. Dessa forma, esse meio fornece oportunidade para que pessoas representem a si próprias em suas próprias vozes, rompendo com a hegemonia cultural e apresentando suas identidades que, muitas vezes, representam-se de forma fluida e cambiante. Pessoas que são vítimas da Universidade Federal de Pernambuco - Núcleo de Estudos de Hipertexto e Tecnologias na Educação -5- marginalização textual têm a possibilidade, caso desejem, de reescrever suas identidades através da sua própria produção. Os textos que serão trabalhos a seguir, e postados no blog da escola, foram produzidos durante uma aula de língua portuguesa, sob a supervisão do professor da disciplina, como uma proposta livre da aula. As imagens foram acrescentadas aos textos como forma ilustrativa, apesar de não terem sido solicitadas pelo professor. Os autores dessas poéticas são da faixa etária entre 18 a 40 anos de idade, em sua maioria moram no bairro Três Riachos, localizado à margem da BR 116, trabalham em profissões que necessitam de maior esforço físico durante todo o dia, são afrodescendentes e já abandonaram a escola em algum momento de sua vida. Em primeira instância, necessita-se visualizar o blog da escola – produzido por esses sujeitos em parceria com os alunos do 8º ano do Ensino Fundamental II. Quadro 1: Blog da Escola Estadual Régis Bittencourt Universidade Federal de Pernambuco - Núcleo de Estudos de Hipertexto e Tecnologias na Educação -6- Texto 1: Poema Vida Difícil VIDA DIFÍCIL Cadê o pão e o leite Que me faltam todos os dias? Sou um pobre coitado, Que vive angustiado Pelo mundo judiado Sem ter visto alegria. No primeiro texto, do aluno 1, nota-se a utilização da linguagem como elemento de externalização da subjetividade. Pensar o letramento nesse contexto, segundo Soares (1999), é atentar-se ao estado ou condição de quem, além de saber ler e escrever, exerce essas práticas inseridas em contextos sociais, compreendendo as diversas oportunidades de leitura e de escrita que circulam na sociedade em que Universidade Federal de Pernambuco - Núcleo de Estudos de Hipertexto e Tecnologias na Educação -7- vivem, além de, através da escrita, evidenciar elementos da identidade de vozes que são silenciadas no próprio contexto escolar. O autor desse poema, que não se identificou na escrita do texto, é morador da localidade Três Riachos, bairro da periferia, conhecido na cidade devido ao tráfico de drogas e a grande escalada da violência. Quando questionado se poderia incluir esse poema no blog, o aluno disse autorizar essa divulgação, para que todos pudessem perceber como é difícil pertencer à camada mais pobre da população, mas, apesar disso, ainda acredita que o estudo pode ser uma possibilidade de ascender-se socialmente. Este aluno costuma freqüentar a “lan house” menos de uma vez por mês, mas agora pretende ampliar o número de visitas ao centro de informática da prefeitura da cidade, principalmente para ver o blog da escola, pois “pretende tornar-se atualizado sobre as coisas”. Quando questionado sobre seus hábitos de leitura, diz que quase não ler nada, pois não tem tempo para isso, mas às vezes tem tempo para ler a Bíblia. Ele abandonou a escola por 20 anos, por acreditar que essa instituição pouco contribua, nessa época, com sua atividade profissional: pedreiro. A publicação do poema do aluno 1 no blog foi recebida com muito entusiasmo e agora pretende sempre escrever outros poemas, “que falem de sua alma”, para poder expressar o que sente e “para o povo ver como o outro vive”. O aluno admite que se não fosse a proposta de publicação em um blog – algo que ele conhece durante esta aula – talvez nem escrevesse o poema, porque muitas vezes os textos produzidos na escola “só o professor corrige, não tem serventia para nada”. Universidade Federal de Pernambuco - Núcleo de Estudos de Hipertexto e Tecnologias na Educação -8- Texto 2: Poema o caminho com final feliz UM CAMINHO COM FINAL FELIZ Andei por muito caminho Achando eu que nunca ia ter fim Amizade não tinha Por minha natureza ser ruim. Andei por muito caminho Com minha imensa ingratidão A paz não existia Por meu caminho ser escuridão. Até que um dia este caminho Chegou ao fim Lá estava Jesus Esperando por mim. Universidade Federal de Pernambuco - Núcleo de Estudos de Hipertexto e Tecnologias na Educação -9- O texto 2, do aluno 2, reflete uma mudança de significação para a vida e esse processo é apresentado a todos que desejem ler o texto para que possam perceber, de acordo com o autor, que agora “ele tem uma identidade nova, uma nova motivação para a existência”.Quando indagado sobre o portador textual onde seria veiculado o texto – o blog da escola – ele disse acreditar se algo muito bom, pois muitas pessoas de todo o mundo poderia ler sobre sua própria vida e isso servirá de exemplo. O aluno revelou que, até antes de publicar o texto no blog da escola, nunca tinha acessado a internet. No entanto, revela um sonho: juntar dinheiro para comprar um computador para o filho, pois sabe que quem não dominar essa máquina não terá mais emprego nos próximos dias. Nesse texto, está implícita a idéia de que a escrita traz conseqüências sociais, culturais, políticas, econômicas, cognitivas, lingüísticas não apenas para o grupo social que as utilizam de forma sistemática, mas também para aqueles grupos que ainda estão em processo de aprendizagem quanto à sua utilização. E essa escrita, mesmo em processo da formação discursiva do sujeito, é um elemento potencializador de suas memórias, imagens e modos de vida. Pode-se notar que a escrita se torna uma ferramenta muito poderosa, pois quem a domina passa a ser autônomo intelectual e pode registrar as suas vivências, suas memórias, perpetuando sua subjetividade. Dessa forma, fica evidente que o papel da escola, na atualidade, é refletir o dialogismo, não isento de conflitos, polifonias em relação aos enunciados, textos, discursos das diversas culturas locais com as culturas valorizadas por essa agência, não apresentando uma atitude excludente, pelo contrário, optando pelo multiculturalismo e as múltiplidas aprendizagens. Nesse sentido, a escola poderá formar cidadãos democráticos e protagonistas, que sejam multiculturais em sua cultura e poliglotas em sua língua. Universidade Federal de Pernambuco - Núcleo de Estudos de Hipertexto e Tecnologias na Educação - 10 - Considerações Finais O mundo virtual, reflexo de uma sociedade pós-moderna, tem como principal característica o desprendimento do aqui e agora. Dessa forma, nessa era de informações on-line, manifestações culturais tornam-se transitórias e a cultura desterritorializada, presente por inteiro em cada uma de suas versões nos ciberespaços, conforme assegura Lévy (1996). A virtualização reinventa uma cultura nômade, através de um meio de interações sociais onde as relações se configuram sem a hierarquização das culturas ou processos sociais. Dessa forma, não se percebe mais as dicotomias autor e consumidor, alta e baixa cultura, centro e margem. O ciberespaço mistura, de forma híbrida, as noções de unidade, de identidade e de localização, miscigenando as culturas, tornando-se, portanto, uma ferramenta indispensável e uma faceta de todo e qualquer local de prática humana, ou seja, de manifestações culturais. Referências Bibliográficas BAZERMAN, Charles. Escrita, Gênero e Interação Social. São Paulo: Cortez Editora, 2007. BRYM, Robert J. (et all). Sociologia, sua bússola para um novo mundo. São Paulo: Thompson, 2006. HARVEY, David. Condição pós-moderna: uma pesquisa sobre as origens da mudança cultural. 6 ed. São Paulo: Loyola, 1996. KENWAY, Jane. Educando cibercidadãos que sejam “ligados” e críticos. In: A escola no contexto da globalização. 5 ed. Rio de Janeiro: Vozes, 2001. LÉVY, Pierre. O que é virtual?. São Paulo: Editora 34, 1996. Universidade Federal de Pernambuco - Núcleo de Estudos de Hipertexto e Tecnologias na Educação - 11 - PRETTO, Nelson de Luca. Uma escola sem/com futuro. Educação e multimídia. 3 ed. Campinas: Papirus, 2001. RAMAL, Andrea Cecília. Educação na cibercultura – hipertextualidade, leitura, escrita e aprendizagem. São Paulo: Artmed, 2002. SANTAELLA, Lucia. Culturas e artes do pós-humano. Da cultura das mídias à cibercultura. 3 ed. São Paulo: Paulus, 2008. SANTIAGO, Silviano. Redemocratização do Brasil (1979-1981): cultura versus arte. In: O cosmopolitismo do pobre: crítica literária e crítica cultura. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2004. SILVA, Tadeu Tomaz da (RG). O alienígena na sala de aula – uma introdução aos estudos culturais em educação. 2 ed. Rio de Janeiro: Vozes, 1995. THOMPSON, John B. O conceito de cultura e Transmissão e comunicação de massa. In: ________. Ideologia e cultura moderna. 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