Estudo das proteínas da família gp82 das formas metacíclicas do

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Vanessa Diniz Atayde
Estudo das proteínas da família gp82 das
formas metacíclicas do Trypanosoma cruzi
Tese
apresentada
à
Universidade
Federal de São Paulo, Escola Paulista
de Medicina, para obtenção do Título
de Doutor em Ciências.
São Paulo
2008
Vanessa Diniz Atayde
Estudo das proteínas da família gp82 das
formas metacíclicas do Trypanosoma cruzi
Orientadora: Dra. Nobuko Yoshida
Tese
apresentada
à
Universidade
Federal de São Paulo, Escola Paulista
de Medicina, para obtenção do Título
de Doutor em Ciências.
São Paulo
2008
Atayde, Vanessa Diniz
Estudo das proteínas da família gp82 das formas metacíclicas do
Trypanosoma cruzi. / Vanessa Diniz Atayde. - - São Paulo, 2008.
xii, 77p.
Tese (Doutorado) – Universidade Federal de São Paulo. Escola
Paulista de Medicina. Programa de Pós-Graduação em Microbiologia,
Imunologia e Parasitologia.
Título em inglês: Study of gp82 family proteins of Trypanosoma
cruzi metacyclic forms.
1.Trypanosoma cruzi 2.Formas metacíclicas 3.Invasão celular
4.Clone CL-14 5.Proteínas da família gp82 6.Melanoma 7.Apoptose
Trabalho realizado na Disciplina de Parasitologia do Departamento
de Microbiologia, Imunologia e Parasitologia da Universidade
Federal de São Paulo, Escola Paulista de Medicina, com auxílios
financeiros concedidos pela Fundação de Amparo à Pesquisa do
Estado de São Paulo (FAPESP) e pelo Conselho Nacional de
Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).
i
À Dra. Nobuko Yoshida, que me ensinou algo essencial
entre os “mil milhões” de coisas que me ensinou nesses
quase dez anos de convivência: a cientista que eu quero
me tornar um dia. (Sempre trabalhando intensamente!!!)
ii
Aos meus pais, Hely e Al, que SEMPRE me deram total
apoio e compreensão. À Dani, minha eterna irmãzi nha.
NUNCA teria conseguido sem eles.
iii
Agradecimentos
Foram quase dez anos na Disciplina de Parasitologia da UNIFESP. Aqui eu
obtive conhecimento, formação e exemplos que seguirei por toda a vida. Aqui eu
descobri que não há nada que eu realmente queira fazer além da ciência. Aqui eu fiz
amigos inesquecíveis que estarão sempre no meu coração.
Em primeiro lugar, agradeço à Dra. Nobuko Yoshida, por tudo que fez por mim
nesses anos de trabalho e aprendizado intensos. Tenho um enorme respeito e
admiração por ela, que é um dos meus maiores exemplos de vida. Sei que dificilmente
encontrarei alguém parecido daqui para frente, mas fico muito feliz por ter aprendido
tanto no tempo em que convivemos.
Agradeço a todos os Professores do Departamento, especialmente ao Dr.
Maurício Rodrigues e ao Dr. Renato Mortara, que foram muito importantes em
diferentes momentos da minha formação.
Agradeço à Ciça, minha melhor amiga, minha irmã, minha querida. Obrigada
pela paciência, pelas risadas, pelas longas conversas (e repetitivas...), e até mesmo
pelas broncas muitas vezes merecidas. Estou chegando amiga!
Agradeço à Fanny, minha grande (literalmente) e querida amiga. Suas histórias
malucas me fizeram rir até nos dias mais difíceis. Uma das melhores pessoas que
conheci na minha vida. Já estou com saudades.
Agradeço aos amigos do laboratório que contribuíram muito, cada um a seu
modo: Daniele, Renata S., Renata B., Marjorie, Fábio, Cláudio, Emanuelle, Carol,
Miriam, Simone, Érico, Carlinhos, Carla, Sílvia, Meire, Dú, Rafa, Silene, Gisa, Denis,
Josie, Paulo, Sheila, Jú, Mário....Espero encontrar todos vocês novamente!
iv
Agradeço aos novos amigos, mas não menos importantes, Andrea Midory,
Fernando Maeda e Dani Staquicini. Aprendi muito com esses japinhas que têm um
grande caráter e um enorme coração. Tenho certeza que nossa amizade é e sempre
será 100%!
Agradeço aos amigos chilenos: Patrício Porcile, Sérgio Málaga, Ivan Neira,
Mauro Cortez (o Javi..., meu amigão!), Esteban Cordero e Charles Covarrubias.
Sentirei saudades da nossa convivência (principalmente das nossas festas...). Tenho
que agradecer especialmente ao Patricio Manque, meu primeiro contato com a
pesquisa. Obrigada pela sua amizade e por sempre acreditar na minha capacidade.
Agradeço à Mércia e à Regiane, sempre prestativas, amigas e muito elegantes!
E aos funcionários da disciplina: Dona Joaninha, Kleber, Luis, Lima, Adilson, Cidinha,
Dona Fátima e Seu Adalton. Um agradecimento especial à Sandra, minha fofa!
Por fim, agradeço à minha família muito unida e feliz, que tornou possível a
realização dessa tese. Com o apoio deles, tudo acabou ficando mais fácil. Amo vocês!
v
“Navegadores antigos tinham uma frase gloriosa: “Navegar
é preciso, viver não é preciso.”
Quero para mim o espírito desta frase, transformada a
forma para a casar com o que eu sou: Viver não é necessário; o
que é necessário é criar.
Não conto gozar a minha vida; nem em gozá-la penso. Só
quero torná-la grande, ainda que para isso tenha de ser o meu
corpo e a minha alma a lenha desse fogo.
Só quero torná-la de toda a humanidade; ainda que para
isso tenha de a perder como minha.
Cada vez mais assim penso. Cada vez mais ponho na
essência anímica do meu sangue o propósito impessoal de
engrandecer a pátria e contribuir para a evolução da humanidade.
É a forma que em mim tomou o misticismo da nossa Raça.”
Fernando Pessoa (Obra Poética)
vi
Índice
Resumo
ix
Abstract
xi
Introdução: Trypanosoma cruzi e Doença de Chagas
1. Doença de Chagas
1
2. Trypanosoma cruzi, agente etiológico da Doença de Chagas
4
3. Cepas e grupos do Trypanosoma cruzi
7
4. Infecção oral pelo Trypanosoma cruzi
10
5. Mecanismos de invasão celular pelas formas metacíclicas do
Trypanosoma cruzi
12
5.1. Gp82: glicoproteína de 82kDa expressa na supe rfície das
formas metacíclicas envolvida na invasão celular
13
5.2. Outras moléculas de superfície das formas metacíclicas
envolvidas na invasão celular
16
5.3. Vias de sinalização ativadas durante a invasão das formas
metacíclicas do Trypanosoma cruzi
20
Capítulo 1 – Bases moleculares da avirulência do clone CL-14 do
Trypanosoma cruzi
Artigo: “Molecular basis of non-virulence of Trypanosoma cruzi
clone CL-14”
24
vii
Capítulo 2 – Expressão e localização celular de moléculas da família
gp82 em formas metacíclicas do Trypanosoma cruzi
Artigo: “Expression and cellular localization of molecules of the
gp82 family in Trypanosoma cruzi metacyclic trypomastigotes”
28
Capítulo 3 – Indução de apoptose em células de melanoma pela gp82
em sua forma recombinante
Artigo: “A recombinant protein based on Trypanosoma cruzi surface
molecule gp82 induces apoptotic cell death in melanoma cells”
39
Discussão
50
Referências Bibliográficas
60
viii
Resumo
Nosso principal objetivo foi caracterizar a família gp82 de proteínas,
codificada pela família gênica gp82, que é parte da grande família multigênica
gp85/trans-sialidase do T. cruzi. Até o início desse estudo, somente a gp82 de
superfície, envolvida na invasão celular das formas metacíclicas da cepa CL e
identificada pelo anticorpo monoclonal (MAb) 3F6, havia sido descrita.
Na primeira parte, investigamos as bases da avirulência in vivo e in vitro
das formas metacíclicas do clone CL-14 do T. cruzi, derivado da cepa CL.
Descobrimos que a baixa infectividade desses parasitas está associada com a
reduzida expressão da gp82 na superfície, reforçando o papel central da
molécula na infecção pelo T. cruzi. Além disso, os dados sugeriram que devido
à deficiência da gp82, as formas metacíclicas do clone CL-14, como as da cepa
G, utilizam preferencialmente as glicoproteínas gp35/50 para interagir com a
célula hospedeira.
Na segunda parte, analisamos a expressão e a localização de moléculas
da família gp82 em formas metacíclicas das cepas G e CL do T. cruzi. Para
isso, isolamos um novo membro (clone C03) que, em contraste com o clones
de cDNA representantes da família gp82 previamente descritos, J18 (cepa G) e
R31 (cepa CL), não contém o epítopo do MAb 3F6. Na análise comparativa da
seqüência de aminoácidos do clone C03, observamos 59,1% de identidade
com o clone J18 e 60,2% de identidade com o clone R31. Além disso, quando
alinhamos as seqüências de aminoácidos dos clones C03 e Tc-85 (gp85 das
formas tripomastigotas de cultura de tecido), observamos 57,2% de identidade,
indicando que esse clone também é parte da família gp85/trans-sialidase.
Utilizando os anticorpos policlonais anti-J18 e anti-C03, e o MAb 3F6,
mostramos que membros da família gp82 são expressos em formas
metacíclicas na superfície e intracelularmente, e que alguns desses membros
têm localização diferenciada em parasitas dos grupos T. cruzi I e II. Ao
contrário da gp82 reativa com o MAb 3F6, específica das formas metacíclicas,
ix
outras
moléculas
da
família
foram
detectadas
também
nas
formas
tripomastigotas de cultura de tecido e amastigotas pelos anticorpos policlonais.
Na terceira parte, investigamos o efeito da gp82 em sua forma
recombinante (J18), sobre a linhagem de melanoma murino Tm5. Observamos
que J18 liga-se a essas células induzindo a despolimerização dos filamentos
de actina similar à citocalasina-D, droga indutora de apoptose em células de
mamíferos. Em vista disso, fizemos uma análise comparativa das alterações no
citoesqueleto de actina e eventos característicos de morte celular por apoptose
nas células Tm5 tratadas com J18, e na linhagem de melanócitos melan-a, da
qual Tm5 é derivada. Mostramos que J18 tem função indutora de apoptose
somente sobre as células do melanoma Tm5. Descrevemos assim uma
propriedade de um membro da família gp82, nunca antes descrita para nenhum
outro componente molecularmente definido do T. cruzi.
x
Abstract
The main goal of this work was to characterize the proteins encoded by
the gp82 gene family, which is part of the large T. cruzi gp85/trans-sialidase
multigenic family. Previous studies had focused on the surface gp82, which is
engaged in the cell invasion by CL strain metacyclic forms and is identified by
monoclonal antibody (MAb) 3F6.
Firstly, we investigated the molecular basis of the non-virulence of T.
cruzi clone CL-14 metacyclic forms in vivo and in vitro. We found that the low
infectivity of these parasites is associated with reduced expression of surface
gp82, reinforcing the role of this molecule in T. cruzi infection. In addition, our
data suggested that instead of gp82, metacyclic forms of clone CL-14, like G
strain, preferentially engage gp35/50 glycoproteins to interact with the host cell.
Secondly, we analyzed the expression and cellular localization of
molecules of the gp82 family in T. cruzi metacyclic forms of G and CL strains.
We cloned a new member of this family, designated C03, which lacks the MAb
3F6 epitope, in contrast to the previously described gp82 cDNA clones J18 (G
strain) and R31 (CL strain). The predicted amino acid sequence of the C03
clone displayed 59,1% identity to J18 clone and 60,2% to R31 clone. When the
amino acid sequences of C03 and Tc-85 (tissue culture trypomastigote gp85)
clones were aligned, the identity was 57,2%, indicating that this new clone
belongs to the gp85/trans-sialidase family. Using anti-J18 and anti-C03
polyclonal antibodies, as well as MAb 3F6, we demonstrated that members of
the gp82 family are localized on the cell surface and intracellularly in metacyclic
forms, and some members have different cellular localization in parasites from
T. cruzi I and II groups. As opposed to metacyclic stage-specific gp82 identified
by MAb 3F6, other gp82 family molecules were also detected in tissue culture
trypomastigotes and amastigotes by polyclonal antibodies.
Thirdly, we investigated the effect of gp82, as a recombinant protein
(J18), on the murine melanoma lineage Tm5. We observed that J18 binds to
xi
these cells disrupting actin filaments similarly to cytochalasin-D, drug that
induces apoptosis in mammalian cells. Based on these information, we
comparatively analyzed alterations in actin cytoskeleton and apoptotic events in
J18-treated Tm5 cells, and in the melanocyte lineage melan-a, from which Tm5
is derived. J18 selectively induced apoptosis in Tm5 melanoma cells. Our
results show an activity of a protein from gp82 family that has not been
described for any other T. cruzi molecule.
xii
Introdução: Trypanosoma cruzi e Doença de Chagas
1. Doença de Chagas
A doença de Chagas ou tripanossomíase americana foi descoberta pelo
brasileiro Carlos Chagas (Fig.1) em 1909, às margens do Rio São Francisco
(MG), enquanto combatia uma epidemia de malária que atrasava a construção
da ferrovia Central do Brasil. Com a identificação do agente etiológico e a
descrição da moléstia, Chagas foi o primeiro cientista a apontar a importância
sócio-econômica da doença no país. Além disso, fundou as bases da pesquisa
básica realizada em todo o século XX até os dias atuais, essencial no
entendimento das interações parasita-hospedeiro.
Figura 1. Carlos Chagas (FIOCruz).
Eram os “anos de ouro” da medicina tropical, ciência prestigiada na
época em razão da necessidade de manter íntegra a saúde dos soldados
brancos e colonizadores do final do século XIX, assolados pelas doenças
tropicais. O Império Britânico, que se estendia a diversos países da África,
transformava a medicina tropical em negócio comercial e militar (Worboys,
1993). Nesse período emergiram os “caçadores de parasitas”, como Ross e
1
Laveran, que ganharam o prêmio Nobel em 1902 e 1907 por suas descobertas
em malária. Chagas foi nomeado em 1913 e 1921 sem ser premiado, pois a
comunidade científica não se convencia da importância e do impacto da sua
descoberta (Coutinho et al., 1999).
Atualmente, a doença de Chagas é considerada uma das doenças
tropicais
negligenciadas
causadas
por
protozoários,
junto
com
a
tripanossomíase africana e a leishmaniose (Boutayeb et al., 2007). Segundo a
Organização
Mundial de
Saúde
(WHO, 2008), as
doenças
tropicais
negligenciadas afetam mais de 1 bilhão de indivíduos em todo o mundo,
causando aproximadamente 500.000 mortes anuais. A maior parte dos
doentes, que vivem em situações de extrema pobreza, encontra -se coinfectada com mais de um patógeno, já que na maioria dos países afetados
ocorre concomitantemente mais de uma doença (Reddy et al., 2007) (Fig.2). As
interações entre os patógenos que co -infectam um indivíduo podem ser
sinérgicas ou competitivas e, sendo assim, uma doença pode interferir no
impacto geral da outra (Buck et al., 1978, Petney & Andrews, 1998).
Figura 2. Ocorrência global das doenças tropicais negligenciadas. Cinza: uma
doença, azul: duas, verde: três, amarelo: quatro, laranja: cinco, vermelho: seis
(gnntdc.sabin.org).
2
Apesar da grande importância sócio-econômica, poucos esforços são
despendidos no combate às doenças tropicais negligenciadas, provavelmente
porque não afetam países ricos. Nos últimos 30 anos, somente 1% dos
investimentos
mundiais
no
desenvolvimento
de
novas
drogas
foram
direcionados ao tratamento dessas doenças (Beyrer et al., 2007, Reddy et al.,
2007).
A doença de Chagas é um grave problema de saúde pública de países
da América Latina, sendo endêmica do norte do México ao sul da Argentina
(Fig.3). Segundo a WHO (2005), existem aproximadamente 13 milhões de
indivíduos
infectados
e
cerca
de
14.000
mortes
anuais,
causadas
principalmente pelos danos irreversíveis ao coração, característicos da doença.
Figura 3. Endemia global da doença de Chagas (Morel & Lazdins, 2003).
Populações rurais vivendo em habitações de baixa qualidade, onde o
inseto vetor se estabelece, são os principais alvos da doença de Chagas. Em
países do cone sul da América Latina como Argentina, Brasil e Chile, medidas
de controle da proliferação do inseto vetor têm sido eficientes na diminuição da
incidência anual, que passou de 700.000-800.000, estimativa de 1990, para
3
200.000 casos (WHO, 2005). Além disso, dos 100 milhões de indivíduos
vivendo sob risco de infecção em 1990, hoje existem apenas 40-75 milhões
(Schofield et al., 2006, Coura, 2007). Entretanto, essas medidas de controle
não são eficazes contra os insetos silvestres ou peridomiciliares, que podem
eventualmente reinfestar as casas ou contaminar os alimentos (Schofield et al.,
2006).
2. Trypanosoma cruzi, agente etiológico da Doença de Chagas
O Trypanosoma cruzi é um protozoário flagelado pertencente à ordem
Kinetoplastidae, que se caracteriza pela prese nça de cinetoplasto, única
mitocôndria que contém uma complexa rede de DNA em seu interior. É
digenético, pois necessita de um hospedeiro vertebrado e de um hospedeiro
invertebrado para completar seu ciclo de vida. Os hospedeiros invertebrados
são os insetos triatomíneos da família Reduviidae, conhecidos popularmente
como “barbeiros”. Os membros dessa família que têm maior importância
epidemiológica são o Triatoma infestans, Triatoma brasiliensis, Triatoma
dimidiata, Rhodnius prolixus e Panstrongylus megistus (Schofield, 2000).
Três formas do T. cruzi são identificadas durante seu ciclo de vida:
amastigotas e epimastigotas, replicativas, e tripomastigotas (sanguíneas ou
metacíclicas), infectivas (Fig.4).
Figura 4. Formas tripomastigota, amastigota e epimastigota (uta.edu).
4
A transmissão vetorial inicia-se quando o inseto vetor, após o repasto
sanguíneo, defeca liberando as formas tripomastigotas metacíclicas. Essas
formas penetram o hospedeiro vertebrado pela lesão da picada ou diretamente
pelas mucosas, onde invadem as células das camadas subjacentes. Dentro
das células, as formas metacíclicas encontram-se em um compartimento
derivado da membrana plasmática e de lisossomos, o vacúolo parasitóforo, de
onde escapam e diferenciam-se em amastigotas. As formas amastigotas
replicam-se no citoplasma e em seguida diferenciam-se em tripomastigotas,
liberados após a ruptura celular. Os tripomastigotas infectam células vizinhas
ou caem na corrente sanguínea, espalhando a infecção aos diferentes órgãos e
tecidos. As formas tripomastigotas sanguíneas circulantes são ingeridas pelo
barbeiro durante o repasto e diferenciam-se em formas epimastigotas, que se
replicam na porção média do seu intestino e migram à porção final, onde se
diferenciam em formas tripomastigotas metacíclicas, completando o ciclo
(Fig.5).
Figura 5. Ciclo de vida do T. cruzi (WHO).
5
Há três ciclos de transmissão vetorial do T. cruzi. O ciclo de maior
importância epidemiológica é o doméstico, já que perpetua a infecção nos
seres humanos. No ciclo silvestre, participam triatomíneos que, uma vez
contaminados, infectam roedores, marsupiais e outros animais silvestres. O
terceiro ciclo é o peridoméstico, do qual participam roedores, marsupiais, gatos
e cães que entram e saem das residências, e os insetos silvestres atraídos às
casas pela disponibilidade de alimento. Esse ciclo serve de ligação entre os
ciclos doméstico e silvestre (Rey, 2002). Um estudo recente mostrou que em
91,5% das vilas rurais da região oeste da Venezuela, onde a doença de
Chagas é endêmica, foram encontrados cães infectados com T. cruzi,
convivendo diretamente com humanos infectados em casas que continham
ninhos do inseto vetor. Isso mostra que animais domésticos são importantes
fatores de risco na transmissão da doença de Chagas aos humanos (Crisante
et al., 2006).
Além da transmissão vetorial, também ocorrem as transmissões
congênita, transfusional ou por transplante de órgãos. Esses tipos de
transmissão têm levado a doença de Chagas às regiões não-endêmicas, como
a América do Norte, através da migração de indivíduos infectados (Buekens et
al., 2008). A transmissão oral, que será discutida adiante, é de grande
importância na constante manutenção do ciclo silvestre e tornou-se evidente
devido aos casos de infecção humana por ingestão de alimentos contaminados
com o parasita.
A doença é caracterizada por uma fase aguda, com sintomas que
surgem alguns dias após a contaminação, e por uma fase crônica, com
sintomas que surgem após um período latente de 10 a 30 anos. A lesão inicial,
ou chagoma de inoculação, chama particularmente a atenção quando ocorre
no olho (sinal de Romaña) (Fig.6). Os sintomas da fase aguda são oriundos da
ruptura das células infectadas e da presença de parasitas no sangue, o que
desencadeia uma resposta inflamatória com febre, edema, linfadenopatia e
miocardite (Rey, 2002). Em 95% dos casos, essa fase é assintomática e
somente 5% dos indivíduos sintomáticos morrem. As lesões da fase crônica
afetam irreversivelmente órgãos como o coração, esôfago e intestino, pois uma
6
fibrose difusa ocupa o lugar das áreas inflamadas. De 30% dos pacientes
crônicos que desenvolvem manifestações clínicas, 95% têm o coração afetado.
Infecções pelo HIV podem reativar a doença em pacientes crônicos,
evidenciando a persistência do parasita no hospedeiro durante essa fase
(Punnukollu et al., 2007, Teixeira et al., 2008). No entanto, a maioria dos
infectados tem a forma indeterminada da doença de Chagas, sem nunca
desenvolver a doença crônica (Rey, 2002).
Figura 6. Sinal de Romaña (tmcr.usuhs.mil).
O tratamento, quando o doente tem acesso a ele, é insatisfatório devido
à sua ineficácia no estágio crônico, além dos diversos efeitos tóxicos. As
drogas utilizadas são o nifurtimox e o beznidazol, que têm efeitos significativos
na fase aguda da doença, com mais de 80% de cura parasitológica em
pacientes tratados (Rassi et al., 2000). Porém, sua eficácia varia em diferentes
regiões geográficas, provavelmente devido às variações de sensibilidade das
cepas
do
parasita
aos
medicamentos,
conforme
demonstrado
experimentalmente e no homem (Brener et al., 1976, Andrade et al., 1992).
3. Cepas e grupos do Trypanosoma cruzi
Os isolados ou cepas do T. cruzi, provenientes de vários hospedeiros
selvagens ou domésticos, vertebrados ou invertebrados, apresentam-se
7
altamente heterogêneos segundo critérios morfológicos, genéticos, bioquímicos
e clínicos (Devera et al., 2003). O elevado grau de diversidade do parasita
pode estar associado à sua necessidade de adaptação e sobrevivência em
diferentes hospedeiros.
Analisando-se padrões de isoenzimas, as cepas do T. cruzi foram
inicialmente divididas em três zimodemas, Z1, Z2 e Z3 (Miles et al., 1980). Em
seguida, Dvorak et al. (1982) mostraram que as cepas possuem diferentes
quantidades de DNA total por parasita, sugerindo que a heterogeneidade
biológica poderia ser resultante de diferenças genéticas. A partir desse
momento, o maior desafio foi identificar marcadores moleculares que se
correlacionassem com o comportamento variável das cepas estudadas.
Em 1996, Souto et al. agruparam os isolados do T. cruzi em duas
linhagens, através da análise da seqüência do rDNA 24S e das seqüências
intergênicas dos genes de mini-éxons. Amostras de diferentes hospedeiros de
vários países da América Latina foram classificadas em linhagem 1 (Z2) ou
linhagem 2 (Z1). Cepas pertencentes ao Z3 não puderam ser classificadas,
uma vez que apresentaram seqüências incomuns (Mendonça et al., 2002). Em
1999, num Simpósio Internacional, a comunidade científica sugeriu a
padronização da nomenclatura: o que foi originalmente classificado como
linhagem 1 e linhagem 2, foi renomeado como grupo T. cruzi II e grupo T. cruzi
I, respectivamente (Satellite-Meeting, 1999). Posteriormente, o grupo T. cruzi II
foi subdividido em cinco subgrupos (IIa -IIe), resultantes de fusões genéticas
com sinais de recombinação e heterozigose (Brisse et al., 2000, Westenberger
et al., 2005). Em outras análises, o Z3 foi caracterizado como parte de um
grupo ancestral chamado T. cruzi III (Pedroso et al., 2007). O clone CL-Brener
do projeto genoma (El-Sayed et al., 2005), que contém marcadores de DNA
dos grupos T. cruzi I, II e III sendo considerado um clone híbrido, foi agrupado
ao sub-grupo IIe (Elias et al., 2005, Pedroso et al., 2007, Cerqueira et al.,
2008).
Estabelecidos os critérios de classificação dos isolados, iniciaram-se os
estudos que tinham como objetivo associar os grupos genéticos com
8
características epidemiológicas e clínicas da doença de Chagas. Em muitos
estudos, a variabilidade nos sintomas foi atribuída à diversidade das cepas
(Baptista et al., 2006). Uma explicação para essa diversidade seria a expressão
diferencial de genes específicos. No caso das formas metacíclicas, diferentes
cepas apresentam repertórios de superfície distintos e interagem com as
células-alvo de modos particulares (Yoshida, 2006).
Em análise epidemiológica de cepas de animais silvestres e domésticos,
vetores e humanos de áreas endêmicas e não-endêmicas do Brasil, Colômbia
e Bolívia, observou-se a associação do grupo T. cruzi II com o ciclo doméstico
e do grupo T. cruzi I, composto principalmente por isolados de gambás, com o
ciclo silvestre. Esses grupos foram considerados filogeneticamente divergentes
(Briones et al., 1999, Zingales et al., 1999). Cepas pertencentes ao grupo T.
cruzi III, freqüentemente encontradas em triatomíneos silvestres, representam
um reservatório constitutivo de infecção humana na Amazônia (Pedroso et al.,
2007).
O grupo T. cruzi II possui alta incidência em doentes crônicos de regiões
endêmicas do estado de Minas Gerais (Lages-Silva et al., 2006). Esse grupo
também é freqüentemente identificado em pacientes crônicos da Argentina e
Chile, podendo ser o único que causa a doença nesses países (Di Noia et al.,
2002). Já o grupo T. cruzi I é endêmico no norte da América do Sul, incluindo a
Amazônia, onde a doença de Chagas é emergente devido às microepidemias
por infecção oral e aos doentes com sintomas severos (Coura et al., 2002,
Miles et al., 2003, Teixeira et al., 2006). Recentemente, uma cepa do grupo T.
cruzi I (cepa José-IMT) foi isolada de um paciente crônico com graves sintomas
cardíacos (Teixeira et al., 2006), mostrando que esse grupo também pode
causar a doença crônica. Esse paciente provinha de uma vila rural do estado
da Paraíba, próxima a Catolé do Rocha onde, em 1986, 26 pessoas se
contaminaram num surto de infecção oral após a ingestão de caldo de cana,
com um caso fatal (Shikanai-Yasuda et al., 1991).
9
4. Infecção oral pelo Trypanosoma cruzi
Análises filogenéticas sugerem que a infecção pelo T. cruzi iniciou-se há
milhões de anos em animais silvestres, da maneira que ainda persiste em
regiões de florestas selvagens como a Amazônia (Briones et al., 1999, Coura,
2007). Apesar de existirem relatos de infecção humana em múmias de até
9.000 anos (Aufderheide et al., 2004), a doença endêmica somente se
estabeleceu com o desmatamento das florestas, nos últimos 300 anos (Aragão,
1983). Com a colonização de áreas próximas ao homem pelos triatomíneos,
que se adaptaram ao novo nicho alimentando -se do sangue humano e de
animais domésticos, a infecção tornou-se uma zoonose, a doença de Chagas
(Coura, 2007).
No ciclo silvestre, a contaminação oral com o T. cruzi mantém constante
a infecção dos animais, devido ao hábito de se alimentarem de pequenos
mamíferos e insetos (Jansen et al., 1997). Os gambás (Fig.7) têm um
importante papel nesse ciclo, já que não somente carregam as formas
sanguíneas,
mas
também são
reservatórios
de
formas
metacíclicas,
encontradas no lúmen de sua glândula anal (Deane, 1984). Por outro lado,
animais domésticos podem invadir o ambiente selvagem para caçar,
infectarem-se por via oral e levarem a infecção para o ambiente domiciliar
(Coura, 2007).
Figura 7. Gambás (Didelphis marsupialis).
10
No caso do homem, com o controle da proliferação do inseto vetor e dos
bancos de sangue, a infecção oral é hoje a mais importante forma de
transmissão da doença de Chagas (Coura, 2006). Mais da metade dos casos
de doença aguda, registrados entre 1968 e 2000 na Amazônia brasileira, são
atribuídos a microepidemias causadas por infecção oral após a ingestão de
alimentos contaminados com o T. cruzi (Coura et al., 2002). Esse tipo de
infecção está em destaque desde 2005, quando foram relatados 26 casos no
estado de Santa Catarina, resultantes da ingestão de caldo de cana com o
parasita. Os focos da contaminação foram triatomíneos moídos ou somente
suas fezes contendo formas metacíclicas, especializadas na invasão do epitélio
da mucosa gástrica em camundongos (Hoft, 1996, Hoft et al., 1996). Outros
eventos semelhantes foram relatados nos estados do Amazonas, Amapá e
Pará (Coura et al., 2002, Promed-mail, 2007) (Fig.8). Os alimentos ingeridos
pelos seres humanos também podem ser contaminados pela secreção da
glândula anal de gambás. Em 1986, na Paraíba (Fig.8), onde diversas pessoas
adquiriram a doença aguda após ingerir caldo de cana, gambás altamente
infectados foram encontrados (Shikanai-Yasuda et al., 1991).
Figura 8. Microepidemias de doença de Chagas por infecção oral no Brasil.
11
5. Mecanismos de invasão celular pelas formas metacíclicas do
Trypanosoma cruzi
O T. cruzi invade diversos tipos celulares, incluindo células epiteliais,
musculares, macrófagos e fibroblastos, e esse é um fator essencial no
estabelecimento da infecção do hospedeiro vertebrado. Em ensaios in vitro,
inúmeros isolados do parasita e linhagens de células de mamíferos, têm sido
utilizados (Fig.9). Esses ensaios são imprescindíveis no estudo do processo de
invasão, onde interagem vários componentes do parasita e da célula
hospedeira, ativando vias de sinalização bidirecionais que promovem a
internalização (Burleigh & Andrews, 1998, Mortara et al., 2005, Yoshida, 2006).
É importante lembrar que as estratégias de invasão celular utilizadas pela
forma tripomastigota de cultura de tecido (referente à forma sanguínea) e pela
forma metacíclica são distintas. Apesar de ambas serem infectivas, cada uma
possui seu repertório de moléculas de superfície e interage de maneira
particular com as células-alvo.
Figura 9. Cepas ou clones do T. cruzi e células de mamíferos utilizados em
ensaios de invasão (adaptado de Yoshida, 2006).
12
Nas infecções naturais, as formas metacíclicas são as primeiras a
entrarem em contato com as células do hospedeiro. A capacidade infectiva
dessas formas difere entre as cepas, devido à expressão diferencial de
moléculas de superfície. Normalmente, cepas pertencentes ao grupo T. cruzi II
são mais infectivas in vitro do que cepas pertencentes ao grupo T. cruzi I (Ruiz
et al., 1998, Neira et al., 2002, Yoshida, 2006). In vivo, essa correlação nem
sempre existe, já que fatores do hospedeiro devem ser considerados
(Covarrubias et al., 2007).
Em estudos com formas metacíclicas de cepas muito infectivas, como
por exemplo a cepa CL (Fig.10), têm-se confirmado o papel central da molécula
de superfície gp82 na invasão celular, in vitro e in vivo (Ramirez et al., 1993,
Santori et al., 1996, Ruiz et al., 1998, Yoshida et al., 2000, Neira et al., 2003).
Figura 10. Forma metacíclica da cepa CL marcada com anticorpo anti-gp82.
5.1. Gp82: glicoproteína de 82kDa expressa na superfície das formas
metacíclicas envolvida na invasão celular
Responsável pela interação inicial das formas metacíclicas com a célula
hospedeira, a gp82 promove a invasão de cepas altamente infectivas como a
cepa CL (Ramirez et al., 1993, Ruiz et al., 1998). Essa glicoproteína contém
oligossacarídeos N-ligados (Ramirez et al., 1993) e está inserida na membrana
13
plasmática via âncora de GPI, forma de ancoramento de muitas proteínas
eucarióticas (Schenkman et al., 1988, Cardoso de Almeida & Heise, 1993). A
porção glicídica da gp82 não está envolvida na invasão, e o sítio de adesão
celular encontra-se no domínio central da molécula e é formado pela
justaposição de duas seqüências peptídicas carregadas separadas por outra
hidrofóbica (Santori et al., 1996, Manque et al., 2000).
As evidências da importância da gp82 no processo de invasão são: i) o
anticorpo monoclonal (MAb) 3F6, contra uma porção do domínio central da
gp82 adjacente ao sítio de adesão celular, inibe a entrada do parasita em
células não-fagocíticas (Ramirez et al., 1993); ii) tanto a gp82 nativa como a
sua forma recombinante inibem a penetração do parasita na célula hospedeira
(Ramirez et al., 1993, Santori et al., 1996); iii) a ligação da gp82 ao seu
receptor, ainda não identificado, leva à mobilização de Ca +2 intracelular em
ambas as células (Dorta et al, 1995, Ruiz et al., 1998), evento essencial para a
invasão (Yakubu et al., 1994, Moreno et al., 1994, Tardieux et al., 1994).
Formas epimastigotas não induzem sinal intracelular de Ca +2 (Tardieux et al.,
1994, Dorta et al., 1995), ao menos que estejam transfectadas com um vetor
de expressão carregando a seqüência de cDNA da gp82 (Manque et al., 2003).
Na infecção in vivo, a gp82 tem função central na invasão do epitélio da
mucosa gástrica, quando formas metacíclicas são inoculadas oralmente em
camundongos (Hoft, 1996, Hoft et al., 1996, Neira et al., 2003). A primeira
evidência do envolvimento da gp82 na infecção oral foi a inibição da
infectividade da cepa CL pelo tratamento com o MAb 3F6. Anticorpos contra
outras proteínas de superfície do T. cruzi não apresentaram o mesmo efeito.
Além disso, foi visto que a gp82 é capaz de ligar-se diretamente à mucina
gástrica, sendo possivelmente essa a primeira etapa no acesso das formas
metacíclicas às células da mucosa (Neira et al., 2003). No epitélio gástrico de
camundongos infectados oralmente, ninhos de amastigotas podem ser
observados (Fig.11). Uma particularidade relevante para a infecção oral é a
resistência da gp82 às condições do meio gástrico. Parasitas da cepa CL,
expostos ao suco gástrico in vivo ou tratados com pepsina in vitro se mantêm
14
infectivos às células de mamíferos, pois esses tratamentos não afetam a
integridade da gp82 (Neira et al., 2003, Cortez et al., 2006a).
As formas metacíclicas do T. cruzi também infectam a mucosa ocular.
Cães inoculados com essas formas desenvolvem altas parasitemias em
comparação com os inoculados com as formas sanguíneas, que causam
parasitemias muito baixas ou indetectáveis (Bahia et al., 2002). Se há função
da gp82 na invasão da mucosa ocular ainda precisa ser determinado.
Figura 11. Ninhos de amastigotas da cepa CL no epitélio da mucosa gástrica de
camundongo infectado por via oral. Corte histológico corado com hematoxilinaeosina (Yoshida, 2008).
Posteriormente, o papel da gp82 no estabelecimento da infecção oral foi
confirmado através do estudo dos isolados gp82-deficientes, 569 e 588 (Cortez
et al., 2003). Esses isolados produzem baixas parasitemias em camundongos
quando
comparados
com a
cepa
CL. Porém,
in
vitro, apresentam
comportamento similar à cepa CL, pois expressam a gp30. Essa molécula de
superfície é também reconhecida pelo MAb 3F6 e tem atividade sinalizadora de
Ca+2, mas não se liga à mucina gástrica eficienteme nte. Fica claro que a
invasão das células-alvo pelas formas metacíclicas pode ser promovida tanto
pela gp82 como pela gp30, que preserva o domínio de adesão celular da gp82.
15
Entretanto, a eficiente infecção da mucosa gástrica depende da gp82, devido à
sua capacidade de interagir com a mucina (Fig.12).
Figura 12. Interações entre as formas metacíclicas e a mucosa gástrica durante
infecção oral (adaptado de Yoshida, 2008).
5.2. Outras moléculas de superfície das formas metacíclicas envolvidas
na invasão celular
As moléculas gp35/50 e gp90 também estão envolvidas na invasão das
formas metacíclicas. Como a gp82, essas moléculas ligam-se à célula
hospedeira de maneira receptor-dependente (Ruiz et al., 1998), porém até o
momento, nenhum dos receptores foi descrito. Cepas pouco infectivas, como a
cepa G, parecem utilizar preferencialmente as gp35/50 para interagir com as
células (Yoshida et al., 1989). Essas moléculas não são efetivas como a gp82,
provavelmente devido à sua reduzida atividade sinalizadora de Ca +2 (Dorta et
16
al., 1995). Isolados pouco infectivos expressam também a gp90, que atua
como modulador negativo da invasão (Málaga & Yoshida, 2001).
Expressas na superfície de formas metacíclicas e de epimastigotas de
todos os isolados de T. cruzi analisados até o momento, as glicoproteínas
gp35/50 são moléculas do tipo mucina (Yoshida, 2006). O envolvimento dessas
moléculas na invasão celular foi determinado através da inibição da
infectividade de formas metacíclicas pelo MAb 10D8, direcionado a um epítopo
de carboidrato das gp35/50, ou pelas proteínas nativas purificadas (Yoshida et
al., 1989, Ruiz et al., 1993).
As glicoproteínas do tipo mucina são codificadas por uma família
multigênica que representa aproximadamente 1% do genoma do T. cruzi (Di
Noia et al., 1998, Buscaglia et al., 2006). São ancoradas à membrana via GPI e
contém em sua estrutura açúcares O-ligados a resíduos de treonina através de
uma N-acetilglicosamina, ao invés de uma N-acetilgalactosamina, como
normalmente é observado nas mucinas de vertebrados (Schenkman et al.,
1993, Acosta-Serrano et al., 2001). As moléculas de formas epimastigotas e
metacíclicas diferem entre si somente na porção lipídica da âncora GPI, tendo
a mesma porção glicídica (Acosta-Serrano et al., 1995). Dependendo da cepa
do T. cruzi, as mucinas contém resíduos de galactofuranose além dos resíduos
de galactopiranose (Previato et al., 1994, Acosta-Serrano et al., 1995, AcostaSerrano et al., 2001), apresentando um grande polimorfismo (Mortara et al.,
1992). O MAb 10D8, que reconhece as gp35/50 de isolados pouco invasivos
como as cepas G e Tulahuén, reage com epítopos de galactofuranose,
enquanto o MAb 2B10 reage com epítopos de galactopiranose, presentes em
todas as cepas (Yoshida, 2006).
Na transferência de moléculas de ácido siálico do hospedeiro pela
enzima trans-sialidase, as gp35/50 atuam como principais aceptores. Essa
enzima, aproximadamente 30 vezes mais ativa em tripomastigotas de cultura
de tecido (TCT) do que em formas metacíclicas, transfere resíduos de ácido
siálico às galactoses disponíveis, e age como uma sialidase (neuraminidase)
na ausência desses açúcares aceptores (Schenkman et al., 1991a, Schenkman
17
& Eichinger, 1993, Acosta-Serrano et al., 2001). Dependendo da cepa do T.
cruzi, os resíduos de ácido siálico presentes nas gp35/50 atrapalham a
invasão. Por exemplo, o tratamento da cepa G com neuraminidase bacteriana,
aumenta a infectividade desta cepa. Além disso, as gp35/50 dessialiladas têm
maior atividade sinalizadora de Ca +2 na célula hospedeira (Yoshida et al.,
1997). Em contraste, a infectividade da cepa CL não é afetada pelo tratamento
com neuraminidase (Yoshida et al., 1997), já que essa cepa utiliza a gp82 para
a sua internalização. Quanto a papel das moléculas gp35/50 na infecção oral
pelas formas metacíclicas, que são altamente resistentes à proteólise, elas
devem proteger os parasitas da digestão pelo suco gástrico (Mortara et al.,
1992).
Ao contrário da gp82 e das mucinas gp35/50, a glicoproteína gp90,
específica de formas metacíclicas, atua como regulador negativo da invasão
celular. A função inibitória da gp90 sobre a invasão foi demonstrada em
experimentos onde oligonucleotídeos anti-senso, complementares à porção Cterminal da molécula onde aparentemente está o sítio de adesão celular, foram
utilizados no tratamento de formas metacíclicas da cepa G. O tratamento
reduziu a expressão da molécula e aumentou significativamente a infectividade
dos parasitas (Málaga e Yoshida, 2001). A gp90, presente em múltiplas cópias
no genoma do T. cruzi (Franco et al., 1993), contém oligossacarídeos N-ligados
e é ancorada à membrana via GPI (Schenkman et al., 1988, Yoshida et al.,
1990). Apesar de ligar-se à célula-alvo de maneira receptor-dependente, não
induz sinal intracelular de Ca +2 (Ruiz et al., 1998). A infectividade das diferentes
cepas tem correlação inversa com a expressão de gp90, como por exemplo a
cepa CL, que expressa baixos níveis da molécula (Ruiz et al., 1998). Estudos
recentes com dois isolados de pacientes, 573 e 587, poderiam explicar a
severidade de alguns casos de doença aguda após a ingestão de formas
metacíclicas. Os dois isolados são pouco infectivos in vitro, porém, in vivo, a
cepa 573 produz altas parasitemias, semelhante à cepa CL. Isso se dá pelo
fato da gp90 da cepa 573 ser suscetível à degradação pelo suco gástrico
(Cortez et al, 2006a).
18
A análise da expressão de moléculas de superfície pelas formas
metacíclicas tem se revelado um bom método para diferenciar cepas
pertencentes a grupos filogeneticamente divergentes, que diferem na
infectividade in vitro. Em análise de 10 cepas, de diferentes fontes e regiões
geográficas, observou-se que os parasitas altamente invasivos são deficientes
em gp90 e gp35/50 identificadas respectivamente pelos MAbs 1G7 e 10D8,
embora expressem formas variantes dessas moléculas, reconhecidas pelos
MAbs 5E7 e 2B10. Cepas pouco invasivas expressam gp90 reativa com os
MAbs 1G7 e 5E7, e gp35/50 reconhecidas pelos MAbs 2B10 e 10D8. A
expressão de gp82 reativa com o MAb 3F6 é ubíqua entre as cepas (Yoshida,
2006) (Fig.13).
Figura 13. Invasão celular e expressão na superfície de cepas do T. cruzi
(adaptado de Yoshida, 2006).
19
5.3. Vias de sinalização ativadas durante a invasão das formas
metacíclicas do Trypanosoma cruzi
A eficiência na invasão depende da molécula de superfície que é
utilizada pelo parasita para interagir com a célula hospedeira. Após essa
interação, distintas vias de sinalização são ativadas em ambas as células,
como observado em estudos com as cepas G e CL, pertencentes a grupos
genéticos divergentes (Yoshida, 2006, Yoshida e Cortez, 2008). Essas vias
foram identificadas através do tratamento dos parasitas ou das células-alvo
com drogas já descritas para células de mamíferos (Neira et al., 2002, Ferreira
et al., 2006).
Formas metacíclicas da cepa G utilizam preferencialmente as moléculas
gp35/50 para interagir com a célula hospedeira (Yoshida et al., 1989, Yoshida
et al., 1997). Após a ligação da gp35/50 ao seu receptor, é ativada no parasita
a via de sinalização que envolve a adenilato ciclase, gerando AMP cíclico
(cAMP) e liberação de Ca +2 de ácidocalciossomos (Neira et al., 2002), vacúolos
ácidos contendo um sistema de troca Ca +2/H+ (Docampo et al., 1995) (Fig.14).
Por outro lado, a invasão celular pelas formas metacíclicas da cepa CL é
mediada pela gp82 (Ramirez et al., 1993). Após a ligação da gp82 ao seu
receptor, é ativada no parasita a via de sinalização que envolve a fosfolipase C
(PLC), com geração de trifosfato de inositol (IP 3 ), e liberação de Ca+2 de
compartimentos IP 3 -dependentes (Yoshida et al., 2000, Neira et al., 2002). Em
amastigotas, epimastigotas ou TCT, a liberação de Ca+2 dependente de IP 3 não
é detectada (Moreno et al., 1994, Docampo et al., 1995). Além disso, após a
interação da gp82 com a célula hospedeira, é fosforilada no parasita uma
proteína de 175 kDa, de função desconhecida (Favoreto et al., 1998, Neira et
al., 2002) (Fig.14). Os tripanossomatídeos Leishmania, Trypanosoma brucei e
Trypanosoma cruzi possuem um grande repertório de proteínas quinases,
compreendendo aproximadamente 2% de seus genomas, sugerindo que a
fosforilação tem função chave na biologia desses parasitas. Entretanto, não
20
possuem proteínas tirosino-quinases típicas de eucariotos (El-Sayed et al.,
2005, Parsons et al., 2005).
Figura 14. Vias de sinalização ativadas nas formas metacíclicas das cepas G e
CL durante a invasão.
Na célula-hospedeira, duas vias de sinalização distintas são ativadas
durante a invasão de formas metacíclicas das cepas G ou CL (Cortez et al.,
2006b, Ferreira et al., 2006). A via ativada pela cepa G envolve o cAMP,
enquanto que, na via ativada pela cepa CL, estão envolvidas a PI3-quinase
(PI3-K) e a proteína quinase C (PKC), com liberação de Ca +2 intracelular IP 3dependente (Ferreira et al., 2006). Muitos componentes das vias ativadas,
tanto no parasita como na célula hospedeira, ainda precisam ser estudados.
21
Muitos patógenos intracelulares subvertem vias de sinalização da célula
hospedeira em seu próprio benefício, como por exemplo, as bactérias Shigella
e Escherichia coli enteroinvasiva, que induzem o remodelamento do
citoesqueleto celular durante a invasão (Bourdet-Sicard et al., 2000, Cossart &
Sansonetti, 2004). Ferreira et al. (2006) observaram que a invasão de formas
metacíclicas das cepas G ou CL é dependente ou independente do
citoesqueleto de actina da célula hospedeira, respectivamente. Esse estudo
esclareceu parte das discrepâncias em relação ao papel do remodelamento da
actina na invasão pelo T. cruzi, ao mostrar que a dependência ou não da actina
pode ser determinada pela molécula de superfície que é utilizada pelo parasita
na invasão. Após a interação da molécula com seu receptor na célula-alvo,
diferentes vias de sinalização levando à reorganização da actina são ativadas.
Em estudos anteriores, Schenkman e Mortara (1992) observaram que a
entrada das formas metacíclicas não é afetada pelo tratamento das células
com citocalasina D, enquanto Osuna et al. (1993) observaram que o processo
de invasão dessas formas é significativamente inibido por latrunculina B, droga
que desorganiza o citoesqueleto de actina. Resultados contrastantes também
foram encontrados em experimentos com formas TCT. Alguns estudos
mostraram
que
a
internalização
dessas
formas
é
independente
do
citoesqueleto de actina da célula hospedeira, pois o tratamento das células
com citocalasina D, droga que despolimeriza a F-actina, não inibe ou aumenta
a invasão dos parasitas (Schenkman et al., 1991b, Tardieux et al., 1994).
Outros estudos mostraram que a citocalasina D tem efeito inibitório na invasão
de diversos tipos celulares, incluindo fibroblastos, mioblastos, cardiomiócitos e
macrófagos (Barbosa & Meirelles, 1995, Rosestolato et al., 2002).
22
Objetivos do Estudo
Capítulo 1 – Bases moleculares da avirulência do clone CL-14 do
Trypanosoma cruzi
Investigar as causas da avirulência das formas metacíclicas do clone
CL-14, em comparação com a cepa CL, com foco no papel da gp82 de
superfície.
Capítulo 2 – Expressão e localização celular de moléculas da família gp82
em formas metacíclicas do Trypanosoma cruzi
Caracterizar o repertório das moléculas gp82 expressas nas formas
metacíclicas através da análise da expressão e localização celular nas duas
cepas filogeneticamente distintas, G e CL.
Capítulo 3 – Indução de apoptose em células de melanoma pela gp82 em
sua forma recombinante
Investigar o efeito pró-apoptótico da proteína gp82 do T. cruzi, em sua
forma recombinante (J18), sobre as células do melanoma Tm5 e sobre a
linhagem de melanócitos melan-a.
23
Capítulo 1
Bases moleculares da avirulência do clone
CL-14 do Trypanosoma cruzi
Artigo:
“Molecular basis of non-virulence of Trypanosoma cruzi clone CL-14”
Atayde, V., Neira, I., Cortez, M., Ferreira, D., Freymüller, E., Yoshida, N.
International J. Parasitology, 2004, 34: 851-860
24
As formas metacíclicas da cepa CL (Brener & Chiari, 1963), que utilizam
a gp82 de superfície na invasão celular, são altamente infectivas in vitro e in
vivo (Ruiz et al., 1998, Neira et al., 2003). Em contraste, as formas metacíclicas
do clone CL-14, derivado da cepa CL (Chiari, 1981), não produzem infecção
patente mesmo quando inoculadas em camundongos recém–nascidos (Lima et
al., 1990). No entanto, elicitam mecanismos imunológicos protetores contra
desafios letais com formas sanguíneas de cepas virulentas (Lima et al., 1990,
Paiva et al., 1999). É possível que a manutenção do clone CL-14 em culturas
axênicas por longos períodos tenha contribuído para a sua atenuação (Lima et
al., 1990).
Nosso principal objetivo foi determinar os fatores associados com a
baixa infectividade do clone CL-14. A invasão celular in vitro com formas
metacíclicas desse isolado é possível e foi utilizada em nosso estudo, sempre
em comparação com a cepa parental, CL (Fig.15). Os resultados mostraram
que a reduzida capacidade de invasão do clone CL-14 está associada com a
baixa expressão da gp82 em sua superfície e que, aparentemente, utiliza a
gp35/50 para a sua internalização. Esses dados reforçam a importância da
gp82 da superfície das formas metacíclicas no processo de invasão celular.
CL-14
CL
Figura 15. Invasão celular in vitro por formas metacíclicas da cepa CL e do clone
CL-14. Notar a reduzida quantidade de parasitas do clone CL-14 (Giemsa, 1000x).
25
Experimentos complementares:
Imagens de células HeLa contendo amastigotas da cepa CL e do clone
CL-14 do T. cruzi
A figura 1C do artigo mostra que o clone CL-14 não é capaz de se
replicar intracelularmente. Em ensaios mantidos por 72 horas após a invasão
com as formas metacíclicas, quase não foram encontrados amastigotas
intracelulares do clone CL-14. No caso da cepa CL, muitas células foram
encontradas contendo um grande número de amastigotas. Na figura 16,
apresentamos imagens que ilustram essa observação.
Figura 16. Replicação intracelular da cepa CL e do clone CL-14 (Giemsa, 1000x).
Níveis “steady-state” dos transcritos gp82 da cepa CL e do clone CL-14
do T. cruzi
Os níveis “steady-state” dos transcritos gp82 de formas metacíclicas da
cepa CL e do clone CL-14 foram analisados por “northern blot”. O RNA total
extraído dos parasitas foi hibridizado com a sonda J18, produzida a partir de
um fragmento de cDNA que contém a fase de leitura aberta do gene gp82,
mesma sonda utilizada para as análises de “southern blot” do artigo. Em
ambos, foi revelado um fragmento de aproximadamente 2.4 Kb (Fig.17). Esse
26
resultado corrobora os dados do artigo que mostram que o clone CL-14, apesar
de não expressar a gp82 na superfície, contém a molécula intracelular.
Figura 17. Níveis “steady-state” dos transcritos gp82 da cepa CL e do clone CL14 do T. cruzi. (A) Formas metacíclicas (1 x 108) foram ressuspendidas em 1 ml de
Trizol (Invitrogen). Após a homogeneização, foram adicionados 200 l de clorofórmio e
a amostra foi centrifugada a 10.800 rpm, 15 min. À fase aquosa, foram adicionados
500 l de isopropanol. Em seguida, a amostra foi centrifugada, lavada com etanol
70% e depois de seca, ressuspendida em água com dietilpirocarbonato a 0.05%.
Quantidades de RNA (~8 g) extraído foram desnaturadas a 70oC por 15 min em
tampão de amostra (50 l de MOPS 10X (MOPS 41.6g/l, acetato de sódio 6.76g/l,
EDTA 2.72g/l, pH 7.0), 90 l de formaldeído 37%, 250 l de formamida e 2 l de
solução de azul de bromofenol 0.01% em MOPS 1X). Após a desnaturação, as
amostras foram mantidas em gelo e momentos antes da aplicação no gel (1%
agarose, 10% formaldeído em MOPS 1X) foram adicionados 1.5 l de brometo de
etídio. (B) Para análise por “northern blot”, após a eletroforese, o RNA do gel foi
transferido à membrana e em seguida ligado covalentemente ao n ylon através da
exposição à luz UV (150 mJ), no sistema GS Gene Linker UV Chamber (Bio-Rad). Em
seguida, a membrana foi hibridizada com a sonda J18. Sonda α-tubulina foi utilizada
como controle positivo do experimento. Após a hibridização, a membrana foi exposta
em filme de raio-X por 72 horas a -70 oC. Os números à esquerda indicam tamanhos
moleculares.
27
Capítulo 2
Expressão e localização celular de moléculas
da família gp82 em formas metacíclicas
do Trypanosoma cruzi
Artigo:
“Expression and cellular localization of molecules of the gp82 family
in Trypanosoma cruzi metacyclic trypomastigotes”
Atayde, V., Cortez, M., Souza, R., Franco da Silveira, J., Yoshida, N.
Infection and Immunity, 2007, 75: 3264-3270
28
Pelo menos 50% do genoma do T. cruzi é composto por seqüências
repetidas, que podem ser retrotransposons, repetições subteloméricas ou
seqüências pertencentes às famílias que codificam proteínas de superfície.
Essas famílias multigênicas (MASP, trans -sialidases, mucinas e proteases
gp63), representam aproximadamente 18% dos 22.570 genes codificadores de
proteínas do parasita (El-Sayed et al., 2005).
O T. cruzi apresenta em seu genoma aproximadamente 60 cópias de
seqüências homólogas ao gene gp82, formando a família gênica gp82 (Araya
et al., 1994). Essa família é parte da grande família gp85/trans-sialidase,
composta por 1430 genes, representando aproximadamente 6% dos genes
codificadores do parasita (El-Sayed et al., 2005). Através da análise da
estrutura e expressão de genes da família gp82, Songthamwat et al. (2007)
identificaram três subfamílias gênicas gp82, com expressão de RNA
mensageiro (mRNA) estágio-específica nas formas metacíclicas.
A gp82 apresenta 53.3% de identidade de aminoácidos com a gp85,
molécula envolvida na invasão das formas TCT que contém sítios de ligação à
laminina e à citoqueratina 18 (Giordano et al., 1999, Magdesian et al., 2001).
As regiões de homologia incluem os motivos Asp (SXDXGXTW), descritos nas
neuraminidases bacterianas, e o motivo VTV (VTVXNVFLYNR), específico do
T. cruzi, ambos característicos da família gp85/trans -sialidase (Crennell et al.,
1993, Cross & Takle, 1993, Frasch, 2000) (Fig.18). Apenas 25% da família
conservam o motivo VTV, provavelmente devido à forte pressão seletiva sobre
seus membros, que são alvos do sistema imune tanto por respostas humorais
como celulares (El-Sayed et al., 2005, Tzelepis et al., 2008). No extremo final
das duas seqüências há uma região hidrofóbica que é sinal para adição de
âncora GPI (Araya et al., 1994, Giordano et al., 1999) (Fig.18).
Duas moléculas gp82 de superfície, reativas com o MAb 3F6, foram
caracterizadas a partir de clones de cDNA das cepas G (J18) e CL (R31). J18 e
R31 possuem identidade de 97,9% entre suas seqüências peptídicas (Araya et
al., 1994, Ruiz, 1998, Yoshida et al., 2006).
29
Figura 18. Alinhamento das seqüências de aminoácidos da gp85 (clone Tc85-11,
GeneBank AAD13347.1) e da gp82 (clone J18, GeneBank AAA21303). Preto:
representa 100% de identidade, amarelo: motivos Asp, rosa: motivo VTV, verde: sinal
de âncora GPI. No caso da gp82, o motivo VTV é subterminal e é detectado um
terceiro motivo Asp degenerado.
O clone J18 contém 2.139 pb e sua fase de leitura aberta (ORF) vai do
nucleotídeo 231 (ATG) ao 1779 (TGA), contendo 1548 nucleotídeos (Araya et
al., 1994). Codifica um polipeptídeo de 516 aminoácidos com massa molecular
de 55,6 KDa, menor do que a massa de 70 kDa do polipeptídeo sem os
oligossacarídeos N-ligados, precursor da gp82 (Ramirez et al., 1993). Para
tentar explicar essa discrepância, uma análise computacional apontou a
30
existência de diversos sítios de miristoilação, além dos sítios de N-glicosilação.
O tamanho dos mRNA transcritos a partir do gene gp82 foram compatíveis com
o da ORF clonada (Araya et al., 1994). Já o clone R31 contém 2.150 pb e sua
ORF vai do nucleotídeo 190 (ATG) ao 1786 (TGA), contendo 1596
nucleotídeos (Ruiz, 1998). Anterior à ORF há ainda 77 aminoácidos em fase de
leitura, sugerindo que a metionina encontrada pode não ser a primeira e que,
parte da região N-terminal da seqüência foi perdida. Sendo assim, R31 pode
ser considerado outro membro da família gp82 de maior tamanho em
comparação ao J18 (Ruiz, 1998).
Utilizando peptídeos sintéticos baseados na seqüência do clone J18,
Manque et al. (2000) mapearam o epítopo do MAb 3F6 (P3, 244-263) e o sítio
de adesão à célula hospedeira da gp82 de superfície, ambos presentes na
região do domínio central da molécula. O sítio de adesão celular é composto
pela justaposição de duas seqüências de aminoácidos separadas por outra
altamente hidrofóbica, e sobrepõe-se parcialmente ao epítopo do MAb 3F6 (P4,
254-273 e P8, 294-313) (Fig.19). Isso explica o fato desse anticorpo inibir a
invasão in vitro e in vivo de formas metacíclicas de cepas que utilizam
preferencialmente a gp82 (Ramirez et al., 1993). J18 e R31 possuem 100% de
identidade na seqüência de aminoácidos da região do sitio de adesão à célula
hospedeira (Yoshida, 2006).
Figura 19. Representação esquemática da gp82 de superfície de formas
metacíclicas do T. cruzi (clone J18).
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Baseando-se na existência da família gênica gp82, nosso objetivo foi
caracterizar o
repertório
das
moléculas
gp82
expressas
nas
formas
metacíclicas, através da análise da expressão e localização celular nas cepas
G e CL. Para isso, clonamos um novo membro da família que, em contraste
com J18, não possui o epítopo do MAb 3F6, que caracteriza as moléculas gp82
de superfície. Os dados desse estudo mostraram que moléculas pertencentes
à família gp82 não são expressas somente na superfície das formas
metacíclicas, sugerindo outras funções além da adesão celular. Além disso,
observamos que a cepa G, juntamente com outras cepas do grupo T. cruzi I,
possui um conjunto de moléculas gp82 intraflagelares.
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Experimentos complementares:
Análise da expressão de moléculas da família gp82 em formas
metacíclicas das cepas G e CL
Utilizando os anticorpos policlonais contra as proteínas recombinantes
J18 e C03, contendo ou não o epítopo do MAb 3F6, respectivamente,
analisamos os extratos de formas metacíclicas das cepas G e CL por
“immunoblot”. Na cepa CL, uma única banda foi detectada pelo MAb 3F6,
enquanto os anticorpos policlonais anti-J18 e anti-C03 reconheceram bandas
duplas (Fig.20A). Em “immunoblot” bidimensional, as moléculas reativas com o
MAb 3F6 focalizaram em pH 4.6 a 5.1 e as moléculas reativas com os
anticorpos anti-J18 e anti-C03, em pH 4.6 a 5.4 (Fig.20B). Na cepa G, ao
menos duas bandas foram reconhecidas por cada anticorpo (Fig.21A). Em
“immunoblot” bidimensional, as proteínas da família gp82 reativas com o MAb
3F6 ou com o anticorpo anti-J18, focalizaram em pH 4.9 a 5.7, e aq uelas
reativas com o anticorpo anti-C03 focalizaram em pH 4.9 a 5.5 (Fig.21B).
Localização celular de moléculas gp82 reconhecidas pelo anticorpo
policlonal anti-C03 em cepas do grupo T. cruzi I ou II
Um resultado inesperado de nossos estudos foi a reação preferencial do
anticorpo anti-C03 com componentes intraflagelares da cepa G, o que não foi
observado na cepa CL (Fig. 4 e 5 do artigo). Como as cepas G e CL pertencem
a grupos genéticos divergentes, procuramos determinar se a localização
flagelar de proteínas gp82 reativas com o anticorpo anti-C03 seria uma
característica de cepas do grupo T. cruzi I, examinando duas outras cepas
deste grupo. Formas metacíclicas das cepas 262 (José-IMT) e 1161 (cedidas
pela Dra. Marta Teixeira, USP), permeabilizadas e incubadas com o anticorpo
anti-C03, apresentaram o
predominantemente
flagelar
mesmo perfil da cepa
(Fig.22).
Examinamos
G, com marcação
também
formas
metacíclicas de outras duas cepas do grupo T. cruzi II, SC (Covarrubias et al.,
33
2007) e Y (Silva e Nussenzweig, 1953), quanto à reação com o anticorpo
policlonal anti-C03. Observamos padrão similar ao da cepa CL, com marcação
heterogênea no corpo do parasita (Fig.22). Concluímos que a localização
preferencial das proteínas gp82 no flagelo pode ser grupo-dependente.
Figura 20. Expressão de moléculas da família gp82 em formas metacíclicas da
cepa CL do T. cruzi. (A) Extratos dos parasitas foram analisados por “immunoblot”
com os anticorpos indicados. (B) “Immunoblot” bidimensionais de extratos de formas
metacíclicas mostrando proteínas separadas por focalização isoelétrica, seguida de
separação por SDS-PAGE e reação com os anticorpos indicados. Os números à
esquerda indicam as massas moleculares (kDa).
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Figura 21. Expressão de moléculas da família gp82 em formas metacíclicas da
cepa G do T. cruzi. (A) Extratos dos parasitas foram analisados por “immunoblot” com
os anticorpos indicados. (B) “Immunoblot” bidimensionais de extratos de formas
metacíclicas mostrando proteínas separadas por focalização isoelétrica, seguida de
separação por SDS-PAGE e reação com os anticorpos indicados. Os números à
esquerda indicam as massas moleculares (kDa).
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