Vanessa Diniz Atayde Estudo das proteínas da família gp82 das formas metacíclicas do Trypanosoma cruzi Tese apresentada à Universidade Federal de São Paulo, Escola Paulista de Medicina, para obtenção do Título de Doutor em Ciências. São Paulo 2008 Vanessa Diniz Atayde Estudo das proteínas da família gp82 das formas metacíclicas do Trypanosoma cruzi Orientadora: Dra. Nobuko Yoshida Tese apresentada à Universidade Federal de São Paulo, Escola Paulista de Medicina, para obtenção do Título de Doutor em Ciências. São Paulo 2008 Atayde, Vanessa Diniz Estudo das proteínas da família gp82 das formas metacíclicas do Trypanosoma cruzi. / Vanessa Diniz Atayde. - - São Paulo, 2008. xii, 77p. Tese (Doutorado) – Universidade Federal de São Paulo. Escola Paulista de Medicina. Programa de Pós-Graduação em Microbiologia, Imunologia e Parasitologia. Título em inglês: Study of gp82 family proteins of Trypanosoma cruzi metacyclic forms. 1.Trypanosoma cruzi 2.Formas metacíclicas 3.Invasão celular 4.Clone CL-14 5.Proteínas da família gp82 6.Melanoma 7.Apoptose Trabalho realizado na Disciplina de Parasitologia do Departamento de Microbiologia, Imunologia e Parasitologia da Universidade Federal de São Paulo, Escola Paulista de Medicina, com auxílios financeiros concedidos pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP) e pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). i À Dra. Nobuko Yoshida, que me ensinou algo essencial entre os “mil milhões” de coisas que me ensinou nesses quase dez anos de convivência: a cientista que eu quero me tornar um dia. (Sempre trabalhando intensamente!!!) ii Aos meus pais, Hely e Al, que SEMPRE me deram total apoio e compreensão. À Dani, minha eterna irmãzi nha. NUNCA teria conseguido sem eles. iii Agradecimentos Foram quase dez anos na Disciplina de Parasitologia da UNIFESP. Aqui eu obtive conhecimento, formação e exemplos que seguirei por toda a vida. Aqui eu descobri que não há nada que eu realmente queira fazer além da ciência. Aqui eu fiz amigos inesquecíveis que estarão sempre no meu coração. Em primeiro lugar, agradeço à Dra. Nobuko Yoshida, por tudo que fez por mim nesses anos de trabalho e aprendizado intensos. Tenho um enorme respeito e admiração por ela, que é um dos meus maiores exemplos de vida. Sei que dificilmente encontrarei alguém parecido daqui para frente, mas fico muito feliz por ter aprendido tanto no tempo em que convivemos. Agradeço a todos os Professores do Departamento, especialmente ao Dr. Maurício Rodrigues e ao Dr. Renato Mortara, que foram muito importantes em diferentes momentos da minha formação. Agradeço à Ciça, minha melhor amiga, minha irmã, minha querida. Obrigada pela paciência, pelas risadas, pelas longas conversas (e repetitivas...), e até mesmo pelas broncas muitas vezes merecidas. Estou chegando amiga! Agradeço à Fanny, minha grande (literalmente) e querida amiga. Suas histórias malucas me fizeram rir até nos dias mais difíceis. Uma das melhores pessoas que conheci na minha vida. Já estou com saudades. Agradeço aos amigos do laboratório que contribuíram muito, cada um a seu modo: Daniele, Renata S., Renata B., Marjorie, Fábio, Cláudio, Emanuelle, Carol, Miriam, Simone, Érico, Carlinhos, Carla, Sílvia, Meire, Dú, Rafa, Silene, Gisa, Denis, Josie, Paulo, Sheila, Jú, Mário....Espero encontrar todos vocês novamente! iv Agradeço aos novos amigos, mas não menos importantes, Andrea Midory, Fernando Maeda e Dani Staquicini. Aprendi muito com esses japinhas que têm um grande caráter e um enorme coração. Tenho certeza que nossa amizade é e sempre será 100%! Agradeço aos amigos chilenos: Patrício Porcile, Sérgio Málaga, Ivan Neira, Mauro Cortez (o Javi..., meu amigão!), Esteban Cordero e Charles Covarrubias. Sentirei saudades da nossa convivência (principalmente das nossas festas...). Tenho que agradecer especialmente ao Patricio Manque, meu primeiro contato com a pesquisa. Obrigada pela sua amizade e por sempre acreditar na minha capacidade. Agradeço à Mércia e à Regiane, sempre prestativas, amigas e muito elegantes! E aos funcionários da disciplina: Dona Joaninha, Kleber, Luis, Lima, Adilson, Cidinha, Dona Fátima e Seu Adalton. Um agradecimento especial à Sandra, minha fofa! Por fim, agradeço à minha família muito unida e feliz, que tornou possível a realização dessa tese. Com o apoio deles, tudo acabou ficando mais fácil. Amo vocês! v “Navegadores antigos tinham uma frase gloriosa: “Navegar é preciso, viver não é preciso.” Quero para mim o espírito desta frase, transformada a forma para a casar com o que eu sou: Viver não é necessário; o que é necessário é criar. Não conto gozar a minha vida; nem em gozá-la penso. Só quero torná-la grande, ainda que para isso tenha de ser o meu corpo e a minha alma a lenha desse fogo. Só quero torná-la de toda a humanidade; ainda que para isso tenha de a perder como minha. Cada vez mais assim penso. Cada vez mais ponho na essência anímica do meu sangue o propósito impessoal de engrandecer a pátria e contribuir para a evolução da humanidade. É a forma que em mim tomou o misticismo da nossa Raça.” Fernando Pessoa (Obra Poética) vi Índice Resumo ix Abstract xi Introdução: Trypanosoma cruzi e Doença de Chagas 1. Doença de Chagas 1 2. Trypanosoma cruzi, agente etiológico da Doença de Chagas 4 3. Cepas e grupos do Trypanosoma cruzi 7 4. Infecção oral pelo Trypanosoma cruzi 10 5. Mecanismos de invasão celular pelas formas metacíclicas do Trypanosoma cruzi 12 5.1. Gp82: glicoproteína de 82kDa expressa na supe rfície das formas metacíclicas envolvida na invasão celular 13 5.2. Outras moléculas de superfície das formas metacíclicas envolvidas na invasão celular 16 5.3. Vias de sinalização ativadas durante a invasão das formas metacíclicas do Trypanosoma cruzi 20 Capítulo 1 – Bases moleculares da avirulência do clone CL-14 do Trypanosoma cruzi Artigo: “Molecular basis of non-virulence of Trypanosoma cruzi clone CL-14” 24 vii Capítulo 2 – Expressão e localização celular de moléculas da família gp82 em formas metacíclicas do Trypanosoma cruzi Artigo: “Expression and cellular localization of molecules of the gp82 family in Trypanosoma cruzi metacyclic trypomastigotes” 28 Capítulo 3 – Indução de apoptose em células de melanoma pela gp82 em sua forma recombinante Artigo: “A recombinant protein based on Trypanosoma cruzi surface molecule gp82 induces apoptotic cell death in melanoma cells” 39 Discussão 50 Referências Bibliográficas 60 viii Resumo Nosso principal objetivo foi caracterizar a família gp82 de proteínas, codificada pela família gênica gp82, que é parte da grande família multigênica gp85/trans-sialidase do T. cruzi. Até o início desse estudo, somente a gp82 de superfície, envolvida na invasão celular das formas metacíclicas da cepa CL e identificada pelo anticorpo monoclonal (MAb) 3F6, havia sido descrita. Na primeira parte, investigamos as bases da avirulência in vivo e in vitro das formas metacíclicas do clone CL-14 do T. cruzi, derivado da cepa CL. Descobrimos que a baixa infectividade desses parasitas está associada com a reduzida expressão da gp82 na superfície, reforçando o papel central da molécula na infecção pelo T. cruzi. Além disso, os dados sugeriram que devido à deficiência da gp82, as formas metacíclicas do clone CL-14, como as da cepa G, utilizam preferencialmente as glicoproteínas gp35/50 para interagir com a célula hospedeira. Na segunda parte, analisamos a expressão e a localização de moléculas da família gp82 em formas metacíclicas das cepas G e CL do T. cruzi. Para isso, isolamos um novo membro (clone C03) que, em contraste com o clones de cDNA representantes da família gp82 previamente descritos, J18 (cepa G) e R31 (cepa CL), não contém o epítopo do MAb 3F6. Na análise comparativa da seqüência de aminoácidos do clone C03, observamos 59,1% de identidade com o clone J18 e 60,2% de identidade com o clone R31. Além disso, quando alinhamos as seqüências de aminoácidos dos clones C03 e Tc-85 (gp85 das formas tripomastigotas de cultura de tecido), observamos 57,2% de identidade, indicando que esse clone também é parte da família gp85/trans-sialidase. Utilizando os anticorpos policlonais anti-J18 e anti-C03, e o MAb 3F6, mostramos que membros da família gp82 são expressos em formas metacíclicas na superfície e intracelularmente, e que alguns desses membros têm localização diferenciada em parasitas dos grupos T. cruzi I e II. Ao contrário da gp82 reativa com o MAb 3F6, específica das formas metacíclicas, ix outras moléculas da família foram detectadas também nas formas tripomastigotas de cultura de tecido e amastigotas pelos anticorpos policlonais. Na terceira parte, investigamos o efeito da gp82 em sua forma recombinante (J18), sobre a linhagem de melanoma murino Tm5. Observamos que J18 liga-se a essas células induzindo a despolimerização dos filamentos de actina similar à citocalasina-D, droga indutora de apoptose em células de mamíferos. Em vista disso, fizemos uma análise comparativa das alterações no citoesqueleto de actina e eventos característicos de morte celular por apoptose nas células Tm5 tratadas com J18, e na linhagem de melanócitos melan-a, da qual Tm5 é derivada. Mostramos que J18 tem função indutora de apoptose somente sobre as células do melanoma Tm5. Descrevemos assim uma propriedade de um membro da família gp82, nunca antes descrita para nenhum outro componente molecularmente definido do T. cruzi. x Abstract The main goal of this work was to characterize the proteins encoded by the gp82 gene family, which is part of the large T. cruzi gp85/trans-sialidase multigenic family. Previous studies had focused on the surface gp82, which is engaged in the cell invasion by CL strain metacyclic forms and is identified by monoclonal antibody (MAb) 3F6. Firstly, we investigated the molecular basis of the non-virulence of T. cruzi clone CL-14 metacyclic forms in vivo and in vitro. We found that the low infectivity of these parasites is associated with reduced expression of surface gp82, reinforcing the role of this molecule in T. cruzi infection. In addition, our data suggested that instead of gp82, metacyclic forms of clone CL-14, like G strain, preferentially engage gp35/50 glycoproteins to interact with the host cell. Secondly, we analyzed the expression and cellular localization of molecules of the gp82 family in T. cruzi metacyclic forms of G and CL strains. We cloned a new member of this family, designated C03, which lacks the MAb 3F6 epitope, in contrast to the previously described gp82 cDNA clones J18 (G strain) and R31 (CL strain). The predicted amino acid sequence of the C03 clone displayed 59,1% identity to J18 clone and 60,2% to R31 clone. When the amino acid sequences of C03 and Tc-85 (tissue culture trypomastigote gp85) clones were aligned, the identity was 57,2%, indicating that this new clone belongs to the gp85/trans-sialidase family. Using anti-J18 and anti-C03 polyclonal antibodies, as well as MAb 3F6, we demonstrated that members of the gp82 family are localized on the cell surface and intracellularly in metacyclic forms, and some members have different cellular localization in parasites from T. cruzi I and II groups. As opposed to metacyclic stage-specific gp82 identified by MAb 3F6, other gp82 family molecules were also detected in tissue culture trypomastigotes and amastigotes by polyclonal antibodies. Thirdly, we investigated the effect of gp82, as a recombinant protein (J18), on the murine melanoma lineage Tm5. We observed that J18 binds to xi these cells disrupting actin filaments similarly to cytochalasin-D, drug that induces apoptosis in mammalian cells. Based on these information, we comparatively analyzed alterations in actin cytoskeleton and apoptotic events in J18-treated Tm5 cells, and in the melanocyte lineage melan-a, from which Tm5 is derived. J18 selectively induced apoptosis in Tm5 melanoma cells. Our results show an activity of a protein from gp82 family that has not been described for any other T. cruzi molecule. xii Introdução: Trypanosoma cruzi e Doença de Chagas 1. Doença de Chagas A doença de Chagas ou tripanossomíase americana foi descoberta pelo brasileiro Carlos Chagas (Fig.1) em 1909, às margens do Rio São Francisco (MG), enquanto combatia uma epidemia de malária que atrasava a construção da ferrovia Central do Brasil. Com a identificação do agente etiológico e a descrição da moléstia, Chagas foi o primeiro cientista a apontar a importância sócio-econômica da doença no país. Além disso, fundou as bases da pesquisa básica realizada em todo o século XX até os dias atuais, essencial no entendimento das interações parasita-hospedeiro. Figura 1. Carlos Chagas (FIOCruz). Eram os “anos de ouro” da medicina tropical, ciência prestigiada na época em razão da necessidade de manter íntegra a saúde dos soldados brancos e colonizadores do final do século XIX, assolados pelas doenças tropicais. O Império Britânico, que se estendia a diversos países da África, transformava a medicina tropical em negócio comercial e militar (Worboys, 1993). Nesse período emergiram os “caçadores de parasitas”, como Ross e 1 Laveran, que ganharam o prêmio Nobel em 1902 e 1907 por suas descobertas em malária. Chagas foi nomeado em 1913 e 1921 sem ser premiado, pois a comunidade científica não se convencia da importância e do impacto da sua descoberta (Coutinho et al., 1999). Atualmente, a doença de Chagas é considerada uma das doenças tropicais negligenciadas causadas por protozoários, junto com a tripanossomíase africana e a leishmaniose (Boutayeb et al., 2007). Segundo a Organização Mundial de Saúde (WHO, 2008), as doenças tropicais negligenciadas afetam mais de 1 bilhão de indivíduos em todo o mundo, causando aproximadamente 500.000 mortes anuais. A maior parte dos doentes, que vivem em situações de extrema pobreza, encontra -se coinfectada com mais de um patógeno, já que na maioria dos países afetados ocorre concomitantemente mais de uma doença (Reddy et al., 2007) (Fig.2). As interações entre os patógenos que co -infectam um indivíduo podem ser sinérgicas ou competitivas e, sendo assim, uma doença pode interferir no impacto geral da outra (Buck et al., 1978, Petney & Andrews, 1998). Figura 2. Ocorrência global das doenças tropicais negligenciadas. Cinza: uma doença, azul: duas, verde: três, amarelo: quatro, laranja: cinco, vermelho: seis (gnntdc.sabin.org). 2 Apesar da grande importância sócio-econômica, poucos esforços são despendidos no combate às doenças tropicais negligenciadas, provavelmente porque não afetam países ricos. Nos últimos 30 anos, somente 1% dos investimentos mundiais no desenvolvimento de novas drogas foram direcionados ao tratamento dessas doenças (Beyrer et al., 2007, Reddy et al., 2007). A doença de Chagas é um grave problema de saúde pública de países da América Latina, sendo endêmica do norte do México ao sul da Argentina (Fig.3). Segundo a WHO (2005), existem aproximadamente 13 milhões de indivíduos infectados e cerca de 14.000 mortes anuais, causadas principalmente pelos danos irreversíveis ao coração, característicos da doença. Figura 3. Endemia global da doença de Chagas (Morel & Lazdins, 2003). Populações rurais vivendo em habitações de baixa qualidade, onde o inseto vetor se estabelece, são os principais alvos da doença de Chagas. Em países do cone sul da América Latina como Argentina, Brasil e Chile, medidas de controle da proliferação do inseto vetor têm sido eficientes na diminuição da incidência anual, que passou de 700.000-800.000, estimativa de 1990, para 3 200.000 casos (WHO, 2005). Além disso, dos 100 milhões de indivíduos vivendo sob risco de infecção em 1990, hoje existem apenas 40-75 milhões (Schofield et al., 2006, Coura, 2007). Entretanto, essas medidas de controle não são eficazes contra os insetos silvestres ou peridomiciliares, que podem eventualmente reinfestar as casas ou contaminar os alimentos (Schofield et al., 2006). 2. Trypanosoma cruzi, agente etiológico da Doença de Chagas O Trypanosoma cruzi é um protozoário flagelado pertencente à ordem Kinetoplastidae, que se caracteriza pela prese nça de cinetoplasto, única mitocôndria que contém uma complexa rede de DNA em seu interior. É digenético, pois necessita de um hospedeiro vertebrado e de um hospedeiro invertebrado para completar seu ciclo de vida. Os hospedeiros invertebrados são os insetos triatomíneos da família Reduviidae, conhecidos popularmente como “barbeiros”. Os membros dessa família que têm maior importância epidemiológica são o Triatoma infestans, Triatoma brasiliensis, Triatoma dimidiata, Rhodnius prolixus e Panstrongylus megistus (Schofield, 2000). Três formas do T. cruzi são identificadas durante seu ciclo de vida: amastigotas e epimastigotas, replicativas, e tripomastigotas (sanguíneas ou metacíclicas), infectivas (Fig.4). Figura 4. Formas tripomastigota, amastigota e epimastigota (uta.edu). 4 A transmissão vetorial inicia-se quando o inseto vetor, após o repasto sanguíneo, defeca liberando as formas tripomastigotas metacíclicas. Essas formas penetram o hospedeiro vertebrado pela lesão da picada ou diretamente pelas mucosas, onde invadem as células das camadas subjacentes. Dentro das células, as formas metacíclicas encontram-se em um compartimento derivado da membrana plasmática e de lisossomos, o vacúolo parasitóforo, de onde escapam e diferenciam-se em amastigotas. As formas amastigotas replicam-se no citoplasma e em seguida diferenciam-se em tripomastigotas, liberados após a ruptura celular. Os tripomastigotas infectam células vizinhas ou caem na corrente sanguínea, espalhando a infecção aos diferentes órgãos e tecidos. As formas tripomastigotas sanguíneas circulantes são ingeridas pelo barbeiro durante o repasto e diferenciam-se em formas epimastigotas, que se replicam na porção média do seu intestino e migram à porção final, onde se diferenciam em formas tripomastigotas metacíclicas, completando o ciclo (Fig.5). Figura 5. Ciclo de vida do T. cruzi (WHO). 5 Há três ciclos de transmissão vetorial do T. cruzi. O ciclo de maior importância epidemiológica é o doméstico, já que perpetua a infecção nos seres humanos. No ciclo silvestre, participam triatomíneos que, uma vez contaminados, infectam roedores, marsupiais e outros animais silvestres. O terceiro ciclo é o peridoméstico, do qual participam roedores, marsupiais, gatos e cães que entram e saem das residências, e os insetos silvestres atraídos às casas pela disponibilidade de alimento. Esse ciclo serve de ligação entre os ciclos doméstico e silvestre (Rey, 2002). Um estudo recente mostrou que em 91,5% das vilas rurais da região oeste da Venezuela, onde a doença de Chagas é endêmica, foram encontrados cães infectados com T. cruzi, convivendo diretamente com humanos infectados em casas que continham ninhos do inseto vetor. Isso mostra que animais domésticos são importantes fatores de risco na transmissão da doença de Chagas aos humanos (Crisante et al., 2006). Além da transmissão vetorial, também ocorrem as transmissões congênita, transfusional ou por transplante de órgãos. Esses tipos de transmissão têm levado a doença de Chagas às regiões não-endêmicas, como a América do Norte, através da migração de indivíduos infectados (Buekens et al., 2008). A transmissão oral, que será discutida adiante, é de grande importância na constante manutenção do ciclo silvestre e tornou-se evidente devido aos casos de infecção humana por ingestão de alimentos contaminados com o parasita. A doença é caracterizada por uma fase aguda, com sintomas que surgem alguns dias após a contaminação, e por uma fase crônica, com sintomas que surgem após um período latente de 10 a 30 anos. A lesão inicial, ou chagoma de inoculação, chama particularmente a atenção quando ocorre no olho (sinal de Romaña) (Fig.6). Os sintomas da fase aguda são oriundos da ruptura das células infectadas e da presença de parasitas no sangue, o que desencadeia uma resposta inflamatória com febre, edema, linfadenopatia e miocardite (Rey, 2002). Em 95% dos casos, essa fase é assintomática e somente 5% dos indivíduos sintomáticos morrem. As lesões da fase crônica afetam irreversivelmente órgãos como o coração, esôfago e intestino, pois uma 6 fibrose difusa ocupa o lugar das áreas inflamadas. De 30% dos pacientes crônicos que desenvolvem manifestações clínicas, 95% têm o coração afetado. Infecções pelo HIV podem reativar a doença em pacientes crônicos, evidenciando a persistência do parasita no hospedeiro durante essa fase (Punnukollu et al., 2007, Teixeira et al., 2008). No entanto, a maioria dos infectados tem a forma indeterminada da doença de Chagas, sem nunca desenvolver a doença crônica (Rey, 2002). Figura 6. Sinal de Romaña (tmcr.usuhs.mil). O tratamento, quando o doente tem acesso a ele, é insatisfatório devido à sua ineficácia no estágio crônico, além dos diversos efeitos tóxicos. As drogas utilizadas são o nifurtimox e o beznidazol, que têm efeitos significativos na fase aguda da doença, com mais de 80% de cura parasitológica em pacientes tratados (Rassi et al., 2000). Porém, sua eficácia varia em diferentes regiões geográficas, provavelmente devido às variações de sensibilidade das cepas do parasita aos medicamentos, conforme demonstrado experimentalmente e no homem (Brener et al., 1976, Andrade et al., 1992). 3. Cepas e grupos do Trypanosoma cruzi Os isolados ou cepas do T. cruzi, provenientes de vários hospedeiros selvagens ou domésticos, vertebrados ou invertebrados, apresentam-se 7 altamente heterogêneos segundo critérios morfológicos, genéticos, bioquímicos e clínicos (Devera et al., 2003). O elevado grau de diversidade do parasita pode estar associado à sua necessidade de adaptação e sobrevivência em diferentes hospedeiros. Analisando-se padrões de isoenzimas, as cepas do T. cruzi foram inicialmente divididas em três zimodemas, Z1, Z2 e Z3 (Miles et al., 1980). Em seguida, Dvorak et al. (1982) mostraram que as cepas possuem diferentes quantidades de DNA total por parasita, sugerindo que a heterogeneidade biológica poderia ser resultante de diferenças genéticas. A partir desse momento, o maior desafio foi identificar marcadores moleculares que se correlacionassem com o comportamento variável das cepas estudadas. Em 1996, Souto et al. agruparam os isolados do T. cruzi em duas linhagens, através da análise da seqüência do rDNA 24S e das seqüências intergênicas dos genes de mini-éxons. Amostras de diferentes hospedeiros de vários países da América Latina foram classificadas em linhagem 1 (Z2) ou linhagem 2 (Z1). Cepas pertencentes ao Z3 não puderam ser classificadas, uma vez que apresentaram seqüências incomuns (Mendonça et al., 2002). Em 1999, num Simpósio Internacional, a comunidade científica sugeriu a padronização da nomenclatura: o que foi originalmente classificado como linhagem 1 e linhagem 2, foi renomeado como grupo T. cruzi II e grupo T. cruzi I, respectivamente (Satellite-Meeting, 1999). Posteriormente, o grupo T. cruzi II foi subdividido em cinco subgrupos (IIa -IIe), resultantes de fusões genéticas com sinais de recombinação e heterozigose (Brisse et al., 2000, Westenberger et al., 2005). Em outras análises, o Z3 foi caracterizado como parte de um grupo ancestral chamado T. cruzi III (Pedroso et al., 2007). O clone CL-Brener do projeto genoma (El-Sayed et al., 2005), que contém marcadores de DNA dos grupos T. cruzi I, II e III sendo considerado um clone híbrido, foi agrupado ao sub-grupo IIe (Elias et al., 2005, Pedroso et al., 2007, Cerqueira et al., 2008). Estabelecidos os critérios de classificação dos isolados, iniciaram-se os estudos que tinham como objetivo associar os grupos genéticos com 8 características epidemiológicas e clínicas da doença de Chagas. Em muitos estudos, a variabilidade nos sintomas foi atribuída à diversidade das cepas (Baptista et al., 2006). Uma explicação para essa diversidade seria a expressão diferencial de genes específicos. No caso das formas metacíclicas, diferentes cepas apresentam repertórios de superfície distintos e interagem com as células-alvo de modos particulares (Yoshida, 2006). Em análise epidemiológica de cepas de animais silvestres e domésticos, vetores e humanos de áreas endêmicas e não-endêmicas do Brasil, Colômbia e Bolívia, observou-se a associação do grupo T. cruzi II com o ciclo doméstico e do grupo T. cruzi I, composto principalmente por isolados de gambás, com o ciclo silvestre. Esses grupos foram considerados filogeneticamente divergentes (Briones et al., 1999, Zingales et al., 1999). Cepas pertencentes ao grupo T. cruzi III, freqüentemente encontradas em triatomíneos silvestres, representam um reservatório constitutivo de infecção humana na Amazônia (Pedroso et al., 2007). O grupo T. cruzi II possui alta incidência em doentes crônicos de regiões endêmicas do estado de Minas Gerais (Lages-Silva et al., 2006). Esse grupo também é freqüentemente identificado em pacientes crônicos da Argentina e Chile, podendo ser o único que causa a doença nesses países (Di Noia et al., 2002). Já o grupo T. cruzi I é endêmico no norte da América do Sul, incluindo a Amazônia, onde a doença de Chagas é emergente devido às microepidemias por infecção oral e aos doentes com sintomas severos (Coura et al., 2002, Miles et al., 2003, Teixeira et al., 2006). Recentemente, uma cepa do grupo T. cruzi I (cepa José-IMT) foi isolada de um paciente crônico com graves sintomas cardíacos (Teixeira et al., 2006), mostrando que esse grupo também pode causar a doença crônica. Esse paciente provinha de uma vila rural do estado da Paraíba, próxima a Catolé do Rocha onde, em 1986, 26 pessoas se contaminaram num surto de infecção oral após a ingestão de caldo de cana, com um caso fatal (Shikanai-Yasuda et al., 1991). 9 4. Infecção oral pelo Trypanosoma cruzi Análises filogenéticas sugerem que a infecção pelo T. cruzi iniciou-se há milhões de anos em animais silvestres, da maneira que ainda persiste em regiões de florestas selvagens como a Amazônia (Briones et al., 1999, Coura, 2007). Apesar de existirem relatos de infecção humana em múmias de até 9.000 anos (Aufderheide et al., 2004), a doença endêmica somente se estabeleceu com o desmatamento das florestas, nos últimos 300 anos (Aragão, 1983). Com a colonização de áreas próximas ao homem pelos triatomíneos, que se adaptaram ao novo nicho alimentando -se do sangue humano e de animais domésticos, a infecção tornou-se uma zoonose, a doença de Chagas (Coura, 2007). No ciclo silvestre, a contaminação oral com o T. cruzi mantém constante a infecção dos animais, devido ao hábito de se alimentarem de pequenos mamíferos e insetos (Jansen et al., 1997). Os gambás (Fig.7) têm um importante papel nesse ciclo, já que não somente carregam as formas sanguíneas, mas também são reservatórios de formas metacíclicas, encontradas no lúmen de sua glândula anal (Deane, 1984). Por outro lado, animais domésticos podem invadir o ambiente selvagem para caçar, infectarem-se por via oral e levarem a infecção para o ambiente domiciliar (Coura, 2007). Figura 7. Gambás (Didelphis marsupialis). 10 No caso do homem, com o controle da proliferação do inseto vetor e dos bancos de sangue, a infecção oral é hoje a mais importante forma de transmissão da doença de Chagas (Coura, 2006). Mais da metade dos casos de doença aguda, registrados entre 1968 e 2000 na Amazônia brasileira, são atribuídos a microepidemias causadas por infecção oral após a ingestão de alimentos contaminados com o T. cruzi (Coura et al., 2002). Esse tipo de infecção está em destaque desde 2005, quando foram relatados 26 casos no estado de Santa Catarina, resultantes da ingestão de caldo de cana com o parasita. Os focos da contaminação foram triatomíneos moídos ou somente suas fezes contendo formas metacíclicas, especializadas na invasão do epitélio da mucosa gástrica em camundongos (Hoft, 1996, Hoft et al., 1996). Outros eventos semelhantes foram relatados nos estados do Amazonas, Amapá e Pará (Coura et al., 2002, Promed-mail, 2007) (Fig.8). Os alimentos ingeridos pelos seres humanos também podem ser contaminados pela secreção da glândula anal de gambás. Em 1986, na Paraíba (Fig.8), onde diversas pessoas adquiriram a doença aguda após ingerir caldo de cana, gambás altamente infectados foram encontrados (Shikanai-Yasuda et al., 1991). Figura 8. Microepidemias de doença de Chagas por infecção oral no Brasil. 11 5. Mecanismos de invasão celular pelas formas metacíclicas do Trypanosoma cruzi O T. cruzi invade diversos tipos celulares, incluindo células epiteliais, musculares, macrófagos e fibroblastos, e esse é um fator essencial no estabelecimento da infecção do hospedeiro vertebrado. Em ensaios in vitro, inúmeros isolados do parasita e linhagens de células de mamíferos, têm sido utilizados (Fig.9). Esses ensaios são imprescindíveis no estudo do processo de invasão, onde interagem vários componentes do parasita e da célula hospedeira, ativando vias de sinalização bidirecionais que promovem a internalização (Burleigh & Andrews, 1998, Mortara et al., 2005, Yoshida, 2006). É importante lembrar que as estratégias de invasão celular utilizadas pela forma tripomastigota de cultura de tecido (referente à forma sanguínea) e pela forma metacíclica são distintas. Apesar de ambas serem infectivas, cada uma possui seu repertório de moléculas de superfície e interage de maneira particular com as células-alvo. Figura 9. Cepas ou clones do T. cruzi e células de mamíferos utilizados em ensaios de invasão (adaptado de Yoshida, 2006). 12 Nas infecções naturais, as formas metacíclicas são as primeiras a entrarem em contato com as células do hospedeiro. A capacidade infectiva dessas formas difere entre as cepas, devido à expressão diferencial de moléculas de superfície. Normalmente, cepas pertencentes ao grupo T. cruzi II são mais infectivas in vitro do que cepas pertencentes ao grupo T. cruzi I (Ruiz et al., 1998, Neira et al., 2002, Yoshida, 2006). In vivo, essa correlação nem sempre existe, já que fatores do hospedeiro devem ser considerados (Covarrubias et al., 2007). Em estudos com formas metacíclicas de cepas muito infectivas, como por exemplo a cepa CL (Fig.10), têm-se confirmado o papel central da molécula de superfície gp82 na invasão celular, in vitro e in vivo (Ramirez et al., 1993, Santori et al., 1996, Ruiz et al., 1998, Yoshida et al., 2000, Neira et al., 2003). Figura 10. Forma metacíclica da cepa CL marcada com anticorpo anti-gp82. 5.1. Gp82: glicoproteína de 82kDa expressa na superfície das formas metacíclicas envolvida na invasão celular Responsável pela interação inicial das formas metacíclicas com a célula hospedeira, a gp82 promove a invasão de cepas altamente infectivas como a cepa CL (Ramirez et al., 1993, Ruiz et al., 1998). Essa glicoproteína contém oligossacarídeos N-ligados (Ramirez et al., 1993) e está inserida na membrana 13 plasmática via âncora de GPI, forma de ancoramento de muitas proteínas eucarióticas (Schenkman et al., 1988, Cardoso de Almeida & Heise, 1993). A porção glicídica da gp82 não está envolvida na invasão, e o sítio de adesão celular encontra-se no domínio central da molécula e é formado pela justaposição de duas seqüências peptídicas carregadas separadas por outra hidrofóbica (Santori et al., 1996, Manque et al., 2000). As evidências da importância da gp82 no processo de invasão são: i) o anticorpo monoclonal (MAb) 3F6, contra uma porção do domínio central da gp82 adjacente ao sítio de adesão celular, inibe a entrada do parasita em células não-fagocíticas (Ramirez et al., 1993); ii) tanto a gp82 nativa como a sua forma recombinante inibem a penetração do parasita na célula hospedeira (Ramirez et al., 1993, Santori et al., 1996); iii) a ligação da gp82 ao seu receptor, ainda não identificado, leva à mobilização de Ca +2 intracelular em ambas as células (Dorta et al, 1995, Ruiz et al., 1998), evento essencial para a invasão (Yakubu et al., 1994, Moreno et al., 1994, Tardieux et al., 1994). Formas epimastigotas não induzem sinal intracelular de Ca +2 (Tardieux et al., 1994, Dorta et al., 1995), ao menos que estejam transfectadas com um vetor de expressão carregando a seqüência de cDNA da gp82 (Manque et al., 2003). Na infecção in vivo, a gp82 tem função central na invasão do epitélio da mucosa gástrica, quando formas metacíclicas são inoculadas oralmente em camundongos (Hoft, 1996, Hoft et al., 1996, Neira et al., 2003). A primeira evidência do envolvimento da gp82 na infecção oral foi a inibição da infectividade da cepa CL pelo tratamento com o MAb 3F6. Anticorpos contra outras proteínas de superfície do T. cruzi não apresentaram o mesmo efeito. Além disso, foi visto que a gp82 é capaz de ligar-se diretamente à mucina gástrica, sendo possivelmente essa a primeira etapa no acesso das formas metacíclicas às células da mucosa (Neira et al., 2003). No epitélio gástrico de camundongos infectados oralmente, ninhos de amastigotas podem ser observados (Fig.11). Uma particularidade relevante para a infecção oral é a resistência da gp82 às condições do meio gástrico. Parasitas da cepa CL, expostos ao suco gástrico in vivo ou tratados com pepsina in vitro se mantêm 14 infectivos às células de mamíferos, pois esses tratamentos não afetam a integridade da gp82 (Neira et al., 2003, Cortez et al., 2006a). As formas metacíclicas do T. cruzi também infectam a mucosa ocular. Cães inoculados com essas formas desenvolvem altas parasitemias em comparação com os inoculados com as formas sanguíneas, que causam parasitemias muito baixas ou indetectáveis (Bahia et al., 2002). Se há função da gp82 na invasão da mucosa ocular ainda precisa ser determinado. Figura 11. Ninhos de amastigotas da cepa CL no epitélio da mucosa gástrica de camundongo infectado por via oral. Corte histológico corado com hematoxilinaeosina (Yoshida, 2008). Posteriormente, o papel da gp82 no estabelecimento da infecção oral foi confirmado através do estudo dos isolados gp82-deficientes, 569 e 588 (Cortez et al., 2003). Esses isolados produzem baixas parasitemias em camundongos quando comparados com a cepa CL. Porém, in vitro, apresentam comportamento similar à cepa CL, pois expressam a gp30. Essa molécula de superfície é também reconhecida pelo MAb 3F6 e tem atividade sinalizadora de Ca+2, mas não se liga à mucina gástrica eficienteme nte. Fica claro que a invasão das células-alvo pelas formas metacíclicas pode ser promovida tanto pela gp82 como pela gp30, que preserva o domínio de adesão celular da gp82. 15 Entretanto, a eficiente infecção da mucosa gástrica depende da gp82, devido à sua capacidade de interagir com a mucina (Fig.12). Figura 12. Interações entre as formas metacíclicas e a mucosa gástrica durante infecção oral (adaptado de Yoshida, 2008). 5.2. Outras moléculas de superfície das formas metacíclicas envolvidas na invasão celular As moléculas gp35/50 e gp90 também estão envolvidas na invasão das formas metacíclicas. Como a gp82, essas moléculas ligam-se à célula hospedeira de maneira receptor-dependente (Ruiz et al., 1998), porém até o momento, nenhum dos receptores foi descrito. Cepas pouco infectivas, como a cepa G, parecem utilizar preferencialmente as gp35/50 para interagir com as células (Yoshida et al., 1989). Essas moléculas não são efetivas como a gp82, provavelmente devido à sua reduzida atividade sinalizadora de Ca +2 (Dorta et 16 al., 1995). Isolados pouco infectivos expressam também a gp90, que atua como modulador negativo da invasão (Málaga & Yoshida, 2001). Expressas na superfície de formas metacíclicas e de epimastigotas de todos os isolados de T. cruzi analisados até o momento, as glicoproteínas gp35/50 são moléculas do tipo mucina (Yoshida, 2006). O envolvimento dessas moléculas na invasão celular foi determinado através da inibição da infectividade de formas metacíclicas pelo MAb 10D8, direcionado a um epítopo de carboidrato das gp35/50, ou pelas proteínas nativas purificadas (Yoshida et al., 1989, Ruiz et al., 1993). As glicoproteínas do tipo mucina são codificadas por uma família multigênica que representa aproximadamente 1% do genoma do T. cruzi (Di Noia et al., 1998, Buscaglia et al., 2006). São ancoradas à membrana via GPI e contém em sua estrutura açúcares O-ligados a resíduos de treonina através de uma N-acetilglicosamina, ao invés de uma N-acetilgalactosamina, como normalmente é observado nas mucinas de vertebrados (Schenkman et al., 1993, Acosta-Serrano et al., 2001). As moléculas de formas epimastigotas e metacíclicas diferem entre si somente na porção lipídica da âncora GPI, tendo a mesma porção glicídica (Acosta-Serrano et al., 1995). Dependendo da cepa do T. cruzi, as mucinas contém resíduos de galactofuranose além dos resíduos de galactopiranose (Previato et al., 1994, Acosta-Serrano et al., 1995, AcostaSerrano et al., 2001), apresentando um grande polimorfismo (Mortara et al., 1992). O MAb 10D8, que reconhece as gp35/50 de isolados pouco invasivos como as cepas G e Tulahuén, reage com epítopos de galactofuranose, enquanto o MAb 2B10 reage com epítopos de galactopiranose, presentes em todas as cepas (Yoshida, 2006). Na transferência de moléculas de ácido siálico do hospedeiro pela enzima trans-sialidase, as gp35/50 atuam como principais aceptores. Essa enzima, aproximadamente 30 vezes mais ativa em tripomastigotas de cultura de tecido (TCT) do que em formas metacíclicas, transfere resíduos de ácido siálico às galactoses disponíveis, e age como uma sialidase (neuraminidase) na ausência desses açúcares aceptores (Schenkman et al., 1991a, Schenkman 17 & Eichinger, 1993, Acosta-Serrano et al., 2001). Dependendo da cepa do T. cruzi, os resíduos de ácido siálico presentes nas gp35/50 atrapalham a invasão. Por exemplo, o tratamento da cepa G com neuraminidase bacteriana, aumenta a infectividade desta cepa. Além disso, as gp35/50 dessialiladas têm maior atividade sinalizadora de Ca +2 na célula hospedeira (Yoshida et al., 1997). Em contraste, a infectividade da cepa CL não é afetada pelo tratamento com neuraminidase (Yoshida et al., 1997), já que essa cepa utiliza a gp82 para a sua internalização. Quanto a papel das moléculas gp35/50 na infecção oral pelas formas metacíclicas, que são altamente resistentes à proteólise, elas devem proteger os parasitas da digestão pelo suco gástrico (Mortara et al., 1992). Ao contrário da gp82 e das mucinas gp35/50, a glicoproteína gp90, específica de formas metacíclicas, atua como regulador negativo da invasão celular. A função inibitória da gp90 sobre a invasão foi demonstrada em experimentos onde oligonucleotídeos anti-senso, complementares à porção Cterminal da molécula onde aparentemente está o sítio de adesão celular, foram utilizados no tratamento de formas metacíclicas da cepa G. O tratamento reduziu a expressão da molécula e aumentou significativamente a infectividade dos parasitas (Málaga e Yoshida, 2001). A gp90, presente em múltiplas cópias no genoma do T. cruzi (Franco et al., 1993), contém oligossacarídeos N-ligados e é ancorada à membrana via GPI (Schenkman et al., 1988, Yoshida et al., 1990). Apesar de ligar-se à célula-alvo de maneira receptor-dependente, não induz sinal intracelular de Ca +2 (Ruiz et al., 1998). A infectividade das diferentes cepas tem correlação inversa com a expressão de gp90, como por exemplo a cepa CL, que expressa baixos níveis da molécula (Ruiz et al., 1998). Estudos recentes com dois isolados de pacientes, 573 e 587, poderiam explicar a severidade de alguns casos de doença aguda após a ingestão de formas metacíclicas. Os dois isolados são pouco infectivos in vitro, porém, in vivo, a cepa 573 produz altas parasitemias, semelhante à cepa CL. Isso se dá pelo fato da gp90 da cepa 573 ser suscetível à degradação pelo suco gástrico (Cortez et al, 2006a). 18 A análise da expressão de moléculas de superfície pelas formas metacíclicas tem se revelado um bom método para diferenciar cepas pertencentes a grupos filogeneticamente divergentes, que diferem na infectividade in vitro. Em análise de 10 cepas, de diferentes fontes e regiões geográficas, observou-se que os parasitas altamente invasivos são deficientes em gp90 e gp35/50 identificadas respectivamente pelos MAbs 1G7 e 10D8, embora expressem formas variantes dessas moléculas, reconhecidas pelos MAbs 5E7 e 2B10. Cepas pouco invasivas expressam gp90 reativa com os MAbs 1G7 e 5E7, e gp35/50 reconhecidas pelos MAbs 2B10 e 10D8. A expressão de gp82 reativa com o MAb 3F6 é ubíqua entre as cepas (Yoshida, 2006) (Fig.13). Figura 13. Invasão celular e expressão na superfície de cepas do T. cruzi (adaptado de Yoshida, 2006). 19 5.3. Vias de sinalização ativadas durante a invasão das formas metacíclicas do Trypanosoma cruzi A eficiência na invasão depende da molécula de superfície que é utilizada pelo parasita para interagir com a célula hospedeira. Após essa interação, distintas vias de sinalização são ativadas em ambas as células, como observado em estudos com as cepas G e CL, pertencentes a grupos genéticos divergentes (Yoshida, 2006, Yoshida e Cortez, 2008). Essas vias foram identificadas através do tratamento dos parasitas ou das células-alvo com drogas já descritas para células de mamíferos (Neira et al., 2002, Ferreira et al., 2006). Formas metacíclicas da cepa G utilizam preferencialmente as moléculas gp35/50 para interagir com a célula hospedeira (Yoshida et al., 1989, Yoshida et al., 1997). Após a ligação da gp35/50 ao seu receptor, é ativada no parasita a via de sinalização que envolve a adenilato ciclase, gerando AMP cíclico (cAMP) e liberação de Ca +2 de ácidocalciossomos (Neira et al., 2002), vacúolos ácidos contendo um sistema de troca Ca +2/H+ (Docampo et al., 1995) (Fig.14). Por outro lado, a invasão celular pelas formas metacíclicas da cepa CL é mediada pela gp82 (Ramirez et al., 1993). Após a ligação da gp82 ao seu receptor, é ativada no parasita a via de sinalização que envolve a fosfolipase C (PLC), com geração de trifosfato de inositol (IP 3 ), e liberação de Ca+2 de compartimentos IP 3 -dependentes (Yoshida et al., 2000, Neira et al., 2002). Em amastigotas, epimastigotas ou TCT, a liberação de Ca+2 dependente de IP 3 não é detectada (Moreno et al., 1994, Docampo et al., 1995). Além disso, após a interação da gp82 com a célula hospedeira, é fosforilada no parasita uma proteína de 175 kDa, de função desconhecida (Favoreto et al., 1998, Neira et al., 2002) (Fig.14). Os tripanossomatídeos Leishmania, Trypanosoma brucei e Trypanosoma cruzi possuem um grande repertório de proteínas quinases, compreendendo aproximadamente 2% de seus genomas, sugerindo que a fosforilação tem função chave na biologia desses parasitas. Entretanto, não 20 possuem proteínas tirosino-quinases típicas de eucariotos (El-Sayed et al., 2005, Parsons et al., 2005). Figura 14. Vias de sinalização ativadas nas formas metacíclicas das cepas G e CL durante a invasão. Na célula-hospedeira, duas vias de sinalização distintas são ativadas durante a invasão de formas metacíclicas das cepas G ou CL (Cortez et al., 2006b, Ferreira et al., 2006). A via ativada pela cepa G envolve o cAMP, enquanto que, na via ativada pela cepa CL, estão envolvidas a PI3-quinase (PI3-K) e a proteína quinase C (PKC), com liberação de Ca +2 intracelular IP 3dependente (Ferreira et al., 2006). Muitos componentes das vias ativadas, tanto no parasita como na célula hospedeira, ainda precisam ser estudados. 21 Muitos patógenos intracelulares subvertem vias de sinalização da célula hospedeira em seu próprio benefício, como por exemplo, as bactérias Shigella e Escherichia coli enteroinvasiva, que induzem o remodelamento do citoesqueleto celular durante a invasão (Bourdet-Sicard et al., 2000, Cossart & Sansonetti, 2004). Ferreira et al. (2006) observaram que a invasão de formas metacíclicas das cepas G ou CL é dependente ou independente do citoesqueleto de actina da célula hospedeira, respectivamente. Esse estudo esclareceu parte das discrepâncias em relação ao papel do remodelamento da actina na invasão pelo T. cruzi, ao mostrar que a dependência ou não da actina pode ser determinada pela molécula de superfície que é utilizada pelo parasita na invasão. Após a interação da molécula com seu receptor na célula-alvo, diferentes vias de sinalização levando à reorganização da actina são ativadas. Em estudos anteriores, Schenkman e Mortara (1992) observaram que a entrada das formas metacíclicas não é afetada pelo tratamento das células com citocalasina D, enquanto Osuna et al. (1993) observaram que o processo de invasão dessas formas é significativamente inibido por latrunculina B, droga que desorganiza o citoesqueleto de actina. Resultados contrastantes também foram encontrados em experimentos com formas TCT. Alguns estudos mostraram que a internalização dessas formas é independente do citoesqueleto de actina da célula hospedeira, pois o tratamento das células com citocalasina D, droga que despolimeriza a F-actina, não inibe ou aumenta a invasão dos parasitas (Schenkman et al., 1991b, Tardieux et al., 1994). Outros estudos mostraram que a citocalasina D tem efeito inibitório na invasão de diversos tipos celulares, incluindo fibroblastos, mioblastos, cardiomiócitos e macrófagos (Barbosa & Meirelles, 1995, Rosestolato et al., 2002). 22 Objetivos do Estudo Capítulo 1 – Bases moleculares da avirulência do clone CL-14 do Trypanosoma cruzi Investigar as causas da avirulência das formas metacíclicas do clone CL-14, em comparação com a cepa CL, com foco no papel da gp82 de superfície. Capítulo 2 – Expressão e localização celular de moléculas da família gp82 em formas metacíclicas do Trypanosoma cruzi Caracterizar o repertório das moléculas gp82 expressas nas formas metacíclicas através da análise da expressão e localização celular nas duas cepas filogeneticamente distintas, G e CL. Capítulo 3 – Indução de apoptose em células de melanoma pela gp82 em sua forma recombinante Investigar o efeito pró-apoptótico da proteína gp82 do T. cruzi, em sua forma recombinante (J18), sobre as células do melanoma Tm5 e sobre a linhagem de melanócitos melan-a. 23 Capítulo 1 Bases moleculares da avirulência do clone CL-14 do Trypanosoma cruzi Artigo: “Molecular basis of non-virulence of Trypanosoma cruzi clone CL-14” Atayde, V., Neira, I., Cortez, M., Ferreira, D., Freymüller, E., Yoshida, N. International J. Parasitology, 2004, 34: 851-860 24 As formas metacíclicas da cepa CL (Brener & Chiari, 1963), que utilizam a gp82 de superfície na invasão celular, são altamente infectivas in vitro e in vivo (Ruiz et al., 1998, Neira et al., 2003). Em contraste, as formas metacíclicas do clone CL-14, derivado da cepa CL (Chiari, 1981), não produzem infecção patente mesmo quando inoculadas em camundongos recém–nascidos (Lima et al., 1990). No entanto, elicitam mecanismos imunológicos protetores contra desafios letais com formas sanguíneas de cepas virulentas (Lima et al., 1990, Paiva et al., 1999). É possível que a manutenção do clone CL-14 em culturas axênicas por longos períodos tenha contribuído para a sua atenuação (Lima et al., 1990). Nosso principal objetivo foi determinar os fatores associados com a baixa infectividade do clone CL-14. A invasão celular in vitro com formas metacíclicas desse isolado é possível e foi utilizada em nosso estudo, sempre em comparação com a cepa parental, CL (Fig.15). Os resultados mostraram que a reduzida capacidade de invasão do clone CL-14 está associada com a baixa expressão da gp82 em sua superfície e que, aparentemente, utiliza a gp35/50 para a sua internalização. Esses dados reforçam a importância da gp82 da superfície das formas metacíclicas no processo de invasão celular. CL-14 CL Figura 15. Invasão celular in vitro por formas metacíclicas da cepa CL e do clone CL-14. Notar a reduzida quantidade de parasitas do clone CL-14 (Giemsa, 1000x). 25 Experimentos complementares: Imagens de células HeLa contendo amastigotas da cepa CL e do clone CL-14 do T. cruzi A figura 1C do artigo mostra que o clone CL-14 não é capaz de se replicar intracelularmente. Em ensaios mantidos por 72 horas após a invasão com as formas metacíclicas, quase não foram encontrados amastigotas intracelulares do clone CL-14. No caso da cepa CL, muitas células foram encontradas contendo um grande número de amastigotas. Na figura 16, apresentamos imagens que ilustram essa observação. Figura 16. Replicação intracelular da cepa CL e do clone CL-14 (Giemsa, 1000x). Níveis “steady-state” dos transcritos gp82 da cepa CL e do clone CL-14 do T. cruzi Os níveis “steady-state” dos transcritos gp82 de formas metacíclicas da cepa CL e do clone CL-14 foram analisados por “northern blot”. O RNA total extraído dos parasitas foi hibridizado com a sonda J18, produzida a partir de um fragmento de cDNA que contém a fase de leitura aberta do gene gp82, mesma sonda utilizada para as análises de “southern blot” do artigo. Em ambos, foi revelado um fragmento de aproximadamente 2.4 Kb (Fig.17). Esse 26 resultado corrobora os dados do artigo que mostram que o clone CL-14, apesar de não expressar a gp82 na superfície, contém a molécula intracelular. Figura 17. Níveis “steady-state” dos transcritos gp82 da cepa CL e do clone CL14 do T. cruzi. (A) Formas metacíclicas (1 x 108) foram ressuspendidas em 1 ml de Trizol (Invitrogen). Após a homogeneização, foram adicionados 200 l de clorofórmio e a amostra foi centrifugada a 10.800 rpm, 15 min. À fase aquosa, foram adicionados 500 l de isopropanol. Em seguida, a amostra foi centrifugada, lavada com etanol 70% e depois de seca, ressuspendida em água com dietilpirocarbonato a 0.05%. Quantidades de RNA (~8 g) extraído foram desnaturadas a 70oC por 15 min em tampão de amostra (50 l de MOPS 10X (MOPS 41.6g/l, acetato de sódio 6.76g/l, EDTA 2.72g/l, pH 7.0), 90 l de formaldeído 37%, 250 l de formamida e 2 l de solução de azul de bromofenol 0.01% em MOPS 1X). Após a desnaturação, as amostras foram mantidas em gelo e momentos antes da aplicação no gel (1% agarose, 10% formaldeído em MOPS 1X) foram adicionados 1.5 l de brometo de etídio. (B) Para análise por “northern blot”, após a eletroforese, o RNA do gel foi transferido à membrana e em seguida ligado covalentemente ao n ylon através da exposição à luz UV (150 mJ), no sistema GS Gene Linker UV Chamber (Bio-Rad). Em seguida, a membrana foi hibridizada com a sonda J18. Sonda α-tubulina foi utilizada como controle positivo do experimento. Após a hibridização, a membrana foi exposta em filme de raio-X por 72 horas a -70 oC. Os números à esquerda indicam tamanhos moleculares. 27 Capítulo 2 Expressão e localização celular de moléculas da família gp82 em formas metacíclicas do Trypanosoma cruzi Artigo: “Expression and cellular localization of molecules of the gp82 family in Trypanosoma cruzi metacyclic trypomastigotes” Atayde, V., Cortez, M., Souza, R., Franco da Silveira, J., Yoshida, N. Infection and Immunity, 2007, 75: 3264-3270 28 Pelo menos 50% do genoma do T. cruzi é composto por seqüências repetidas, que podem ser retrotransposons, repetições subteloméricas ou seqüências pertencentes às famílias que codificam proteínas de superfície. Essas famílias multigênicas (MASP, trans -sialidases, mucinas e proteases gp63), representam aproximadamente 18% dos 22.570 genes codificadores de proteínas do parasita (El-Sayed et al., 2005). O T. cruzi apresenta em seu genoma aproximadamente 60 cópias de seqüências homólogas ao gene gp82, formando a família gênica gp82 (Araya et al., 1994). Essa família é parte da grande família gp85/trans-sialidase, composta por 1430 genes, representando aproximadamente 6% dos genes codificadores do parasita (El-Sayed et al., 2005). Através da análise da estrutura e expressão de genes da família gp82, Songthamwat et al. (2007) identificaram três subfamílias gênicas gp82, com expressão de RNA mensageiro (mRNA) estágio-específica nas formas metacíclicas. A gp82 apresenta 53.3% de identidade de aminoácidos com a gp85, molécula envolvida na invasão das formas TCT que contém sítios de ligação à laminina e à citoqueratina 18 (Giordano et al., 1999, Magdesian et al., 2001). As regiões de homologia incluem os motivos Asp (SXDXGXTW), descritos nas neuraminidases bacterianas, e o motivo VTV (VTVXNVFLYNR), específico do T. cruzi, ambos característicos da família gp85/trans -sialidase (Crennell et al., 1993, Cross & Takle, 1993, Frasch, 2000) (Fig.18). Apenas 25% da família conservam o motivo VTV, provavelmente devido à forte pressão seletiva sobre seus membros, que são alvos do sistema imune tanto por respostas humorais como celulares (El-Sayed et al., 2005, Tzelepis et al., 2008). No extremo final das duas seqüências há uma região hidrofóbica que é sinal para adição de âncora GPI (Araya et al., 1994, Giordano et al., 1999) (Fig.18). Duas moléculas gp82 de superfície, reativas com o MAb 3F6, foram caracterizadas a partir de clones de cDNA das cepas G (J18) e CL (R31). J18 e R31 possuem identidade de 97,9% entre suas seqüências peptídicas (Araya et al., 1994, Ruiz, 1998, Yoshida et al., 2006). 29 Figura 18. Alinhamento das seqüências de aminoácidos da gp85 (clone Tc85-11, GeneBank AAD13347.1) e da gp82 (clone J18, GeneBank AAA21303). Preto: representa 100% de identidade, amarelo: motivos Asp, rosa: motivo VTV, verde: sinal de âncora GPI. No caso da gp82, o motivo VTV é subterminal e é detectado um terceiro motivo Asp degenerado. O clone J18 contém 2.139 pb e sua fase de leitura aberta (ORF) vai do nucleotídeo 231 (ATG) ao 1779 (TGA), contendo 1548 nucleotídeos (Araya et al., 1994). Codifica um polipeptídeo de 516 aminoácidos com massa molecular de 55,6 KDa, menor do que a massa de 70 kDa do polipeptídeo sem os oligossacarídeos N-ligados, precursor da gp82 (Ramirez et al., 1993). Para tentar explicar essa discrepância, uma análise computacional apontou a 30 existência de diversos sítios de miristoilação, além dos sítios de N-glicosilação. O tamanho dos mRNA transcritos a partir do gene gp82 foram compatíveis com o da ORF clonada (Araya et al., 1994). Já o clone R31 contém 2.150 pb e sua ORF vai do nucleotídeo 190 (ATG) ao 1786 (TGA), contendo 1596 nucleotídeos (Ruiz, 1998). Anterior à ORF há ainda 77 aminoácidos em fase de leitura, sugerindo que a metionina encontrada pode não ser a primeira e que, parte da região N-terminal da seqüência foi perdida. Sendo assim, R31 pode ser considerado outro membro da família gp82 de maior tamanho em comparação ao J18 (Ruiz, 1998). Utilizando peptídeos sintéticos baseados na seqüência do clone J18, Manque et al. (2000) mapearam o epítopo do MAb 3F6 (P3, 244-263) e o sítio de adesão à célula hospedeira da gp82 de superfície, ambos presentes na região do domínio central da molécula. O sítio de adesão celular é composto pela justaposição de duas seqüências de aminoácidos separadas por outra altamente hidrofóbica, e sobrepõe-se parcialmente ao epítopo do MAb 3F6 (P4, 254-273 e P8, 294-313) (Fig.19). Isso explica o fato desse anticorpo inibir a invasão in vitro e in vivo de formas metacíclicas de cepas que utilizam preferencialmente a gp82 (Ramirez et al., 1993). J18 e R31 possuem 100% de identidade na seqüência de aminoácidos da região do sitio de adesão à célula hospedeira (Yoshida, 2006). Figura 19. Representação esquemática da gp82 de superfície de formas metacíclicas do T. cruzi (clone J18). 31 Baseando-se na existência da família gênica gp82, nosso objetivo foi caracterizar o repertório das moléculas gp82 expressas nas formas metacíclicas, através da análise da expressão e localização celular nas cepas G e CL. Para isso, clonamos um novo membro da família que, em contraste com J18, não possui o epítopo do MAb 3F6, que caracteriza as moléculas gp82 de superfície. Os dados desse estudo mostraram que moléculas pertencentes à família gp82 não são expressas somente na superfície das formas metacíclicas, sugerindo outras funções além da adesão celular. Além disso, observamos que a cepa G, juntamente com outras cepas do grupo T. cruzi I, possui um conjunto de moléculas gp82 intraflagelares. 32 Experimentos complementares: Análise da expressão de moléculas da família gp82 em formas metacíclicas das cepas G e CL Utilizando os anticorpos policlonais contra as proteínas recombinantes J18 e C03, contendo ou não o epítopo do MAb 3F6, respectivamente, analisamos os extratos de formas metacíclicas das cepas G e CL por “immunoblot”. Na cepa CL, uma única banda foi detectada pelo MAb 3F6, enquanto os anticorpos policlonais anti-J18 e anti-C03 reconheceram bandas duplas (Fig.20A). Em “immunoblot” bidimensional, as moléculas reativas com o MAb 3F6 focalizaram em pH 4.6 a 5.1 e as moléculas reativas com os anticorpos anti-J18 e anti-C03, em pH 4.6 a 5.4 (Fig.20B). Na cepa G, ao menos duas bandas foram reconhecidas por cada anticorpo (Fig.21A). Em “immunoblot” bidimensional, as proteínas da família gp82 reativas com o MAb 3F6 ou com o anticorpo anti-J18, focalizaram em pH 4.9 a 5.7, e aq uelas reativas com o anticorpo anti-C03 focalizaram em pH 4.9 a 5.5 (Fig.21B). Localização celular de moléculas gp82 reconhecidas pelo anticorpo policlonal anti-C03 em cepas do grupo T. cruzi I ou II Um resultado inesperado de nossos estudos foi a reação preferencial do anticorpo anti-C03 com componentes intraflagelares da cepa G, o que não foi observado na cepa CL (Fig. 4 e 5 do artigo). Como as cepas G e CL pertencem a grupos genéticos divergentes, procuramos determinar se a localização flagelar de proteínas gp82 reativas com o anticorpo anti-C03 seria uma característica de cepas do grupo T. cruzi I, examinando duas outras cepas deste grupo. Formas metacíclicas das cepas 262 (José-IMT) e 1161 (cedidas pela Dra. Marta Teixeira, USP), permeabilizadas e incubadas com o anticorpo anti-C03, apresentaram o predominantemente flagelar mesmo perfil da cepa (Fig.22). Examinamos G, com marcação também formas metacíclicas de outras duas cepas do grupo T. cruzi II, SC (Covarrubias et al., 33 2007) e Y (Silva e Nussenzweig, 1953), quanto à reação com o anticorpo policlonal anti-C03. Observamos padrão similar ao da cepa CL, com marcação heterogênea no corpo do parasita (Fig.22). Concluímos que a localização preferencial das proteínas gp82 no flagelo pode ser grupo-dependente. Figura 20. Expressão de moléculas da família gp82 em formas metacíclicas da cepa CL do T. cruzi. (A) Extratos dos parasitas foram analisados por “immunoblot” com os anticorpos indicados. (B) “Immunoblot” bidimensionais de extratos de formas metacíclicas mostrando proteínas separadas por focalização isoelétrica, seguida de separação por SDS-PAGE e reação com os anticorpos indicados. Os números à esquerda indicam as massas moleculares (kDa). 34 Figura 21. Expressão de moléculas da família gp82 em formas metacíclicas da cepa G do T. cruzi. (A) Extratos dos parasitas foram analisados por “immunoblot” com os anticorpos indicados. (B) “Immunoblot” bidimensionais de extratos de formas metacíclicas mostrando proteínas separadas por focalização isoelétrica, seguida de separação por SDS-PAGE e reação com os anticorpos indicados. Os números à esquerda indicam as massas moleculares (kDa). 35