FOLIA DOS TRÊS BOIS Texto de Sylvia Orthof PERSONAGENS DAS GRAÇAS LUA MARIA BONITA ZÉ BOI AMARELO FREVO VIOLEIRO LAGARTA LULU LAMPIÃO VIOLEIRO BOI CANTADOR REI GALO DE CERICECÓ RAINHA NOITE CANGACEIRO BOI CHAPEUZAL CANTADOR Este espetáculo é todo feito de cantoria e dança, espécie de um oratório de bois-bumbás. Não obedece ao esquema verdadeiro das festas nordestinas, mas deve transmitir uma clima de reisado, misturado com infância. Os atores devem dançar e cantar, pés descalços, verdadeiros e simples. Nada de pose de balé, ou voz colocada à moda erudita. A voz deve vir anasalada, o pé deve pisar xaxando, o corpo deve transmitir sertão. As músicas são folclóricas. As letras, adaptadas ao texto. Sendo um Auto de Natal, a criança que virá, não é Cristo; por isso, o espetáculo pode ser tudo, menos religioso, no sentido exato da palavra. A presença do milagre, existe, mesmo assim, dando um aspecto místico ao folguedo. Todos devem saber dançar, cantar, tocar instrumentos, pelo menos dois atores tocarão violão. O resto, fará a percussão com agogô, triângulo, sinos de boi, pandeiros, etc. Atenção - Este texto deve ser ensaiado com criatividade total, fugindo ao "bonitinho". Cada ensaio deve trazer modificações sobretudo de interpretação. CENÁRIO Um espaço aberto, cheio de redes nordestinas. Ouvem-se aboios, guizos, latidos, sons de sertão. VOZ - Lerelerelerê... lererê... re... rê! Ê boi! (Entram, pelo fundo da platéia, dois tocadores de violão, um tocador de agogô, cantando. O início do canto é sem letra. Algo que transmita nordeste, em sons, quase um lamento. O lamento é cheio de andanças, voz de muito caminhar. Não é um lamento triste: na voz, na atitude, um começo de esperança, algo muito forte está para acontecer. chegando. A Os música atores vem cresce, até transformar-se em cantoria de chegança. Aparecem, também, vindos de outra parte (se o teatro tiver duas entrada, cada grupo virá por uma) Zé e Das Graças. São manipulados público. Os por bonecos atores bonecos e fantoches à os vista do atores se misturam. Às vezes, o ator que manipula o boneco é o mesmo personagem do boneco, outras vezes, não. Das Graças está grávida. A boneca tem uma barriga enorme. A atriz não. Anda somente como se estivesse pesada, esperando um filho). TRÊS HOMENS (Cantando) - São nove horas / Nove meses / Nove dias / Nove graças de Marias / Noves fora vou contar. / Nove boisados / Nove reis / Nove reinados / Nove brilhos espelhados / No manto de um boi-bumbá! ZÉ e DAS GRAÇAS (Cantando com um grupo de tocadores de violão - três homens, dois violões e um agogô) - São nove luas / Nove meses / Nove estrelas / Nove rosas, / Flores belas / coisa nova vai nascer! / Nove nascentes / Nove bichos / Nove gentes / Muitas coisas diferentes / Que um novo pode trazer! (Zé e Das Graças, encontrando o grupo dos três, cantam os bonecos, manipuladores à vista). TODOS (Cantando) - Eu não entendo / Tanto nove de novena / Violeiro tenha pena / Não inove a falação! / Que a tabuada / Desses nove / Tá errada / Sou Zé simples / De boiada / Preciso de explicação! TRÊS HOMENS - São nove horas / Nove meses / Nove dias / Nove graças de Marias / Noves fora vou contar! / Nove boisados / Nove reis, nove reinados, / Nove brilhos espelhados / No manto de um boi-bumbá! (Zé e Das Graças unidos por uma rede que carregam, presa aos ombros dos atores manipuladores. Zé falando da rede, como se fosse um manto, início do amor e da união do casal). ZÉ e DAS GRAÇAS (Cantando) - Este meu manto / De estrelas e de luas / São novas imagens tuas / Novenas de pratear / São nove horas / São depois e são agoras / Que já vem a nova hora / Da hora que vai chegar! (Enquanto o grupo caminha, pulam um rio imaginário, sobem serra, descem serra, simbolizando a viagem. O grupo dos violeiros some para dentro do palco e desaparece. Em cena, no meio do palco, Zé e Das Graças. Das Graças custa a andar. Zé é um tipo nervoso. Os dois falam em ritmo de mamulengos, teatro de bonecos de feiras nordestinas). ZÉ - Anda, muié. Muié... anda! DAS GRAÇAS - Falta muito, Zé? Tô cansada, homi! Que homi nervoso, xente! ZÉ (Tremendo todo) - Nervoso, eu? Estou calmo, calmo, calminho! Anda, muié, senão a gente nunca que vai chegar na nossa casa na serrinha! DAS GRAÇAS - Tô indo, homi! Cadê os violeiros? ZÉ - Eles não são moles que nem tu, muié. Anda, Das Graças! DAS GRAÇAS - Tô indo, Zé! Que homi avexado, xente! (Saem os dois. Surge um Arauto Violeiro um dos atores que fazia parte do trio inicial. Entra, num ritmo forte, como se fosse o Anjo Gabriel sem asas e sem religião, gritando o que anuncia). ARAUTO VIOLEIRO - Salve! Vai chegar, ou chegará! (De costas para o público, ajoelha-se e grita, num brado de alegria) Salve Das Graças, cheia de graça! Vai chegar o tempo do Cericecó! (Sai Arauto pela direita e entra outro violeiro, batendo os pés, seguido em fila pelo ator que fazia Zé e que largou o boneco e pelo outro, o do agogô. Ritmo muito alegre, batido nos pés). OS TRÊS (Cantando) - Tempo será / De Cericecó / Laranja da China, / Pimenta em pó! (A marcação, em fila, como se fosse um caminho de Quadrilha, repete-se, até o cansaço, quando um interrompe e grita). I - Tempo que tempo frade / Na boca do forno, forno! / Me dá um bolo, bolo? II - Um bolo? I - É. II - Não dou não! I - Um milho verde? Uma pamonha? Não? Então... vamos lá, outra vez! (Os três voltam à brincadeira, no ritmo batido). OS TRÊS (Cantando) - Tempo será / De Cericecó / Laranja da China / Pimenta em pó! (Vão saindo pela esquerda, cruzando com o Arauto que entra, com violão, segurando a melodia e batendo com os pés, no mesmo passo do trio anterior). ARAUTO - Tempo será / De Cericecó / Laranja da China / Pimenta em pó! (Ouve-se, na coxia, um coro que começa a cantar a palavra "alecrim", como um cânone) Mas o que é isso? Será aqui? Será assim? Quando o galo cantar? Quando nascer o alecrim? (A música explode. Entram, dançando, todos os atores, inclusive a atriz que abandonou a boneca Das Graças). TODOS (Cantando) - Alecrim, alecrim dourado / Que nasceu no campo / Sem ser semeado! / Foi meu amor / Que me disse assim / Que a flor do campo / É o alecrim! (A dança toma corpo, desenvolve-se. De repente, a atriz faz nascer um alecrim-fantoche de mão, do chão. O alecrim estava escondido dentro de uma das redes do cenário e ela o pega, escondido. A plantinha começa a brotar do chão, manipuladora à vista). ATRIZ - Vejam! Está nascendo um alecrim! Parece feito de vento! (Os atores sopram, formam a ventania) Parece um canavial, feito de verde-verdura! Salve o alecrim melado! Notícia nova, ninguém segura! (Canta) Alecrim da beira d'água / Com quatro folhas ao vento / Quem quiser viver contente / Nunca mostre o pensamento! CORO - Quem quiser viver contente / Nunca mostre o pensamento / Alecrim da beira d'água / Com quatro folhas ao vento! ATRIZ - Violeiro meu, ajudai! ô lai! / A cantar o alecrim... ô lai! VIOLEIRO - E como posso ajudar? ô lai! / De que modo e pra qual fim? ô lai... (Mudança de ritmo. A atriz cantando). torna-se o próprio alecrim, ATRIZ/ALECRIM - Sou de açúcar, sou de sal ... ô lai... / Prima do canavial... ô lai... / Vai nascer mel e melado... / Vai chegar o que é esperado... ô lai... / Mel, melado e rapadura. (Xaxando de todos, em coro, enquanto some o alecrim e sai a atriz, xaxando). CORO - Notícia nova ninguém segura, oi notícia nova ninguém segura! (Saem todos. Fica o Arauto). ARAUTO - Até qualquer dia, Alecrim! VOZ DE DENTRO - Até qualquer hora! (O violão começa a criar vida, a querer voar das mãos do violeiro). ARAUTO VIOLEIRO - Mas o que é isso? Meu violão dança nas cordas da minha mão? Tudo parece mágico! (Num pulo, entra o Galo. É o ator do agogô). GALO - Cocoricó! Cocoricó! Vai nascer o dia! Vai nascer o sol! Tempo será de Cericecó! Laranja da China, pimenta em pó! O galo canta: cocoricó! ARAUTO VIOLEIRO - Seu Galo de Cericecó, o senhor também acha que vai ser? Que vai acontecer? GALO - Tempo será de Cericecó! ARAUTO VIOLEIRO - E quando será esse tempo? Quando será esse acontecimento tão acontecência? GALO - Você é quem sabe. Pode cantar o que sabe, aí, no seu violão! (Arauto canta acompanhado do Galo. Expressão corporal de Galo). ARAUTO VIOLEIRO (Cantando) - Toda a vez que o Galo canta / Quer dizer que vem a hora / Toda a vez que o Galo canta / Quer dizer que vem a hora / O tempo vem se chegando / Pode ser a qualquer hora! / Cocoricó! / Cocoricó! / Tempo será de Cericecó / Laranja da China / Pimenta em pó! (Galo sai) Se está na hora, vou me arrumar... que já deve, em breve, acabar de chegar! (Sai. Ouvem-se mugidos de boi, sininhos, etc. Aparece o outro tocador, como se procurasse um mistério, cantando de mansinho). VIOLEIRO (Cantando) - Até parece que o dia é hoje... / Até parece que o dia é hoje... / Ê boi... / Até parece que o dia é hoje... (Interrompe a música, fortíssima) Até parece que o dia é hoje! / Bumba meu boi de ouro, / Bumba meu boi de sol, / Bumba meu boi boisado / Bumba meu arrebol / Sou todo de ouro em pó! / Sou todo de ouro em pó! (Entram quase todos os atores, batucando e dançando, menos o boi. Uma luz amarela cresce de intensidade. Surge, todo amarelo, bordado de lantejoulas douradas, um boi de bumbá. Só que este boi é manipulado por um ator só, segurando a máscara do boi para cima, para baixo, em volteios, por dentro do manto do boi. O ator está à vista, de vez em quando. Ritmo de festa. Termina a cantoria e a dança) Que boi mais lindo! Todo de ouro em pó! Todo de amarelim! Quem foi, seu Boi, que te enfeitou assim? BOI - Foi o dia que já chegou... ê boi... / Foi ele quem me enfeitou... ôôô / Foi o sol que me dourou... ôôô / Com o seu raio de ouro, / Me vestiu de amarelim / Fiquei dourado! Fiquei assim! Ê boi! VIOLEIRO - Você passou por baixo do sol e ficou assim? Hein? Me diga, Seu Boi Dourado, Boibumbá ensolarado! (O ator sai de dentro do boi. É o mesmo manipulador de Zé). ATOR DO BOI - É mesmo! (Olhando para o boi, acariciando seu pelo) Fiquei todo banhado sol! Fiquei bonito, todo de amarelim! VIOLEIRO (Espantado) - Seu Boi... O senhor é gente por dentro do boi? Mas o que é isso? O que é que foi? O boi é gente, por dentro do boi? BOI - Eu sou o DENTRO do boi! Sinto saudade do boi... igual à saudade de gente! Sinto frio de boi... igual ao frio que sente a gente... (Todos tremem de frio) Sinto dor de boi, igual como sente dor a gente (todos sentem tristeza). Sinto calor de boi... como sente calor a gente. (Todos se abanam) Eu sou o lado "gente" de dentro do boi! Saí, só pra admirar o dourado de meu pelo... saí de dentro de mim e vim me espiar! Mas eu sou o boi, sou o sentimento do boi! (Entra no boi). VIOLEIRO - Quanta gente que não sabe que boi é gente, por dentro! Só vendo, pra acreditar! (Canta) O boi é boi só por fora, / O boi é gente por dentro, / Gente é seu sentimento / Em qualquer dia e qualquer hora! Ê boi! / O boi é gente por dentro, / O boi é boi só por fora, / Gente é seu sentimento / Na hora em que o boi vai embora... / Boi de dentro também chora! TODOS - Boi por dentro também chora! (O ritmo vai se acelerando, repetindo a frase "boi por dentro também chora". Correm em círculo. O ritmo fica sincopado. Vira um trem, o trem corre, apita, e vai parando). VIOLEIRO - Vejam! É a estação da Ema! Chegamos na estação da Ema! BOI (Saindo de dentro do boi, vai espiar) - É mesmo, gente! TODOS (Cantam) - Oi Ema, Oi Ema, / Oi Ema, corredeira, / Nunca vi bicho de pena, / Pra correr dessa maneira, / Oi Ema! / O tatu tá no buraco, / O tatu tá no xerém / O diabo desse moço / Namorando com meu bem! (Aparece a Ema, enorme, correndo, dança junto, depois para junto do boi vazio e olha, espantada). EMA - Ué! Cadê o recheio do boi? O boi esvaziou? Cadê o de dentro do boi? ATOR - Eu estou aqui. O de dentro do boi sou eu! VIOLEIRO (Cantando) - O boi é boi só por fora, / O boi é gente por dentro / Gente é seu sentimento / Em qualquer dia e qualquer hora! / O boi é boi só por fora, / O boi é gente por dentro / Gente é seu sentimento, / Na hora em que o boi vai embora! / Boi, por dentro, também chora! EMA - Então, o boi é igual à Ema! Eu também sou gente, por dentro. Quando alguém me maltrata, sofro igualzinho à gente! VIOLEIRO - Você também é gente, por dentro, Ema? Você também tem sentimento? EMA - Tenho. Também sou gente, por dentro. Igual a todo bicho! Igual a toda a gente! VIOLEIRO - Então, Ema, sai de dentro, vem pra fora! EMA (Se requebrando, metendo a cabeça debaixo da plumagem) - Eu tenho vergonha. Fico toda envergonhada! TODOS (Em volta da Ema) - Sai de dentro, vem pra fora, sai de dentro, vem pra fora, sai de dentro, vem pra fora... (No meio deste jogo, a Ema sai de dentro e entrega a máscara e o corpo para a atriz, como um embrulho. De dentro da Ema, aparece o Galo. Como a máscara da Ema é manipulada no braço do ator, seu corpo é uma cesta recoberta de plumas e trapos sobre a cabeça do ator. O processo de estar vestido de Galo, por baixo, é fácil, já que o Galo usa uma touca de penas e roupas comuns). GALO - A novidade vai chegar! Vem de lá! (Correria) Não... é de cá... (Nova correria. Todos saem de cena, menos o Galo e o Arauto Violeiro). ARAUTO VIOLEIRO - A Ema acabou! Que pena! Quanta pena... tanta pena! GALO (Mexendo nas penas da cabeça, feitas de trapos, para sustentarem a cesta-corpo da Ema) Muita pena? É pena de galo, xente! Sou galo e não me calo! (Canta) Vou continuar cantando / Cocoricó já cantei / Cocoricó vou ciscando / O caminho que andei! / O galo canta de alegre / Quando canta no banhado / É triste cantar sozinho / Melhor é acompanhado / Vou continuar cantando / Cocoricó já cantei! (Sai o Galo. O Arauto vai sair e encontra os bonecos Das Graças e Zé, com manipuladores à vista. Os manipuladores sempre caminham juntos com os bonecos). ZÉ - Seu moço, esse é o caminho da serrinha, é? ARAUTO - Chamou? ZÉ - Este é o caminho da Serrinha de Cericecó? ARAUTO - Pra ir pra Serrinha tem que passar por um pé de alecrim... DAS GRAÇAS - Por um pé de alecrim, já passamos, num é verdade, Zé? ZÉ - É verdade, Das Graças. E o que mais moço? Sabe, nós estamos muito aflitos pra chegar na nossa casa na Serrinha, não é Das Graças? DAS GRAÇAS - É sim, Zé. Mas o caminho é esse mesmo, moço? ARAUTO - Se já passaram por um alecrim, falta passar por um boi amarelim! ZÉ - Por um boi amarelim, já passamos, né Das Graças? DAS GRAÇAS - É sim, Zé, todo amarelim, com chifres cheios de fita assim! ARAUTO - Se já passaram por um boi... DAS GRAÇAS - Mas eu acho que era uma vaca, não era Zé? ZÉ - Não era vaca nada, muié, era boi! ARAUTO - E tem que passar por uma Ema e por um Galo... ZÉ - Galo, nós já passamos, num é, Das Graças? DAS GRAÇAS - Eu acho que era uma galinha garnisé, Zé! (Surge o Galo, danado da vida). GALO - Galinha Garnisé, coisíssima nenhuma, ouviram? Eu sou um majestoso, maravilhoso, fantástico galo de Cericecó. E tenho dito: cocoricó! (Sai). ARAUTO - É galo mesmo, dona. Se já passaram por tudo isso, estão no caminho certo da Serrinha de Cericecó! Até mais ver, xente! (Sai). ZÉ (Gritando) - Moço! Moço! VOZ - O que é? ZÉ - E falta muito pra gente chegar lá na Serrinha de Cericecó? VOZ - Nem muito, nem pouco, um muito pouco só! DAS GRAÇAS (Dando um pulo) - Ui! Ui! Ui! Zé! ZÉ (Dando os mesmos pulos) - O que foi, o que foi, que foi que foi, Das Graças? DAS GRAÇAS - Levei um chute! Ui! Levei outro! Ui! Levei mais um! ZÉ - Um chute? (Pula) Mais um? (Pula) E mais outro? DAS GRAÇAS (Dando mais um pulo) - Ui! E mais um! ZÉ - É demais! E quem foi? Eu não fui! Meu pé, também não foi! Minha mão, também não foi... Será que foi um chute misterioso? DAS GRAÇAS - Foi o menino, Zé! ZÉ (Para um menino na platéia) - Ô menino! Quer fazer o favor de não chutar a minha muié? DAS GRAÇAS - Foi o menino, Zé, não é esse, não! É o nosso menino! Ponha a mão na barriga, Zé! ZÉ (Põe a mão na barriga do ator) - Não sinto nada na minha barriga, só fome, muié! DAS GRAÇAS - Ponha a mão é na minha barriga, Zé, não é na tua não, xente! (Zé põe a mão na barriga da atriz). ATRIZ - Ô Zé, é na barriga de Das Graças, cabra da peste! ZÉ - É na barriga de Das Graças, é dona? ATRIZ - Lógico, Zé, que confusão que você faz, homem! ZÉ - Então, vou botar a mão na barriga de minha muié! (Barulho fortíssimo. Zé e Ator caem no chão) Ui... ui, ui, ui, ai, ai, ai, que chute, muié. Machuquei até minha poupança! Que forte que é essa criança que tá dentro da tua barriga, Das Graças! Quem diria, hein? Passando tanta necessidade, comendo rapadura com farinha nessa estrada, e forte assim! Será que vai ser jogador de futebol, muié? Vou botar a mão de novo... (Outro barulho, novo tombo, bem no estilo circense) Ui, ui, ui... que chute forte que tem esse menino, Das Graças! DAS GRAÇAS - E a poupança, como vai? ZÉ - Tá doendo, muié! DAS GRAÇAS - Vamos logo, marido! Senão a gente acaba atrasando, homem! ZÉ - Calma, Das Graças! (Tremendo de nervoso) Calma! (Saem. Entra o Boi Vermelho, rodopiando com uma estrela espetada no chifre). BOIVERMELHO - Ui... ui... ai, ai! Caiu uma coisa do céu! / Caiu uma coisa do céu e espetou no meu chifre de boi! / O que é? O que foi? / Será uma lua nova, / Ou será um avião? / A coisa caiu do céu, / E quase caiu no chão! / Será que foi uma pipa? / Será que foi um balão? / O que será, o que foi / Que caiu no chifre do boi? / Será que foi passarinho? / Será que foi avião? / O que será este brilho, / Que quase caiu no chão? / O que será, o que foi, / Que está no chifre do boi? / Será um raio? Será um trovão? / Será trovoada? Será gavião? / Ai... não consigo tirar! / O brilho... me dói na vista... / Não há boi que possa com isto... / Não há um boi que resista... / Ê boi! O que é? O que foi que está preso no chifre do boi? / Tenho que sair de dentro de minha pele de boi... e verificar! (Sai de dentro do boi, tal como aconteceu com a marcação do boi anterior). BOI (Ator que saiu de dentro da roupagem do boi) - Vou já verificar o que foi! (Olhando) É uma estrela! Que coisa bonita! Uma estrela caiu de mim... isso parece mágico! Serei um boi mágico? Serei um boi-rei de reisado e boisado? (Veste a roupa) E a estrela está querendo me levar... ela está me puxando... (Canta) Boi, boi, boi, / Meu boi encarnado, / Tenho uma estrela / Que caiu do céu! / Boi, boi, boi, / Da noite estrelada, / Uma luz de prata / Me amanheceu! (Surgem o Boi Amarelo e o Violeiro). BOI AMARELO - Veja! Uma estrela e um outro boi! Vamos seguir? Em breve seremos três bois! VIOLEIRO - Só vejo dois! BOI VERMELHO - O terceiro, vai chegar depois! (Saem cantando. Reaparece a Ema). EMA - Eu vi uma coisa cair do céu! Era toda de ouro! Era toda de prata! Eu vi uma coisa cair do céu! Será que está chovendo milho? Parecia uma espiga de milho... Só que era diferente! Quando caiu, fez assim: tibum! E caiu no chifre de um boi! Será que foi um astronauta? Será que foi um disco voador? Seria bom se fosse milho... porque é o que eu gosto de comer. Cada um pensa em si... só eu que penso em mim! (Canta folclore de mutirão de São Francisco) Meu pezinho de milho, / Me esconda na vossa sombra, / Quando estou com meu benzinho, / Eu não tenho onde me esconda! (Pensando) É... mas aquilo que caiu, não dava sombra, não: dava luz! Então, não era milho... era coisa de brilho! (Olha) Ih... é uma estrela! E está andando... e vai gente e bicho atrás dela! Eu também quero ir! Me espera, estrela... me espera! Meu pé de pato, anda empatado... me espera, estrela! (Sai) Quac! Quac! (Reaparecem os fantoches Zé e Das Graças). ZÉ - Falta pouco pra gente chegar, Das Graças... tenha calma! DAS GRAÇAS - Eu estou calma, Zé... quem está nervoso é você! ZÉ (Tremendo) - Estou calmíssimo! Calmíssimo! (Procurando). DAS GRAÇAS - O que é que você está procurando, Zé? ZÉ - Estou procurando meu cigarro! Calma, Das Graças, Calma! (Começa a sair fumaça da boca de Zé. Este efeito é conseguido através de um tubo escondido que passa por dentro do boneco. Uma ponta fica dentro da boca do fantoche, noutra, o manipulador sopra fumaça de cigarro). DAS GRAÇAS - Está saindo fumaça de sua boca, Zé! Você engoliu o cigarro, Zé! ZÉ - Calma! Das Graças! Ai... ui... eu engoli o cigarro? E agora? (Das Graças bate nas costas de Zé, que tosse e cospe o cigarro) Obrigadinho, Das Graças! Pronto! Já descomi o cigarro. Calma! DAS GRAÇAS - Eu estou calma, Zé... só que acho que daqui a pouco o nosso filho vai nascer! ZÉ - Daqui a pouco? DAS GRAÇAS - Vamos seguir caminho. Vamos! (Saem. Ouvem-se vozes, cantando). VOZES - Ê boi! (Entra o tocador, cantando. Inicialmente, a cantiga é lenta. Pouco a pouco, surge o Frevo, com passistas e guarda-chuvas de fitas, anunciando o terceiro boi). TODOS - Vem meu boi bonito / Vem, vamos embora, / Já deu meia-noite, / Já rompeu a aurora! (Repetem toda a estrofe e saem. Aparece, dentro do folguedo, o boi branco. É o mais simples deles, com pouco enfeites, cheio de fitas, mas poucos brilhos). BOI BRANCO (Cantando) - Eu vi brilhar uma estrela! / Eu vi o sol e a lua clarear! / Algo está para mudar! / Eu vi o sol, vi a lua clarear, / Eu vi nascer / Um pé de manacá! (Canta sozinho. A cantiga aumenta. Aparece um ator e, ao som da cantiga, faz, em mímica, o crescimento de um pé de manacá. Por detrás dele, manipulada por um outro ator, surge a Lagarta Lulu, a Sedutora, enroscando-se no manacá. O manacá tem nojo da lagarta, mas a lagarta é falante e enroscante. O manipulador fica à vista. Lulu é fantoche de mão, toda verde, com fiapos. Boca móvel). LULU - Olá, seu pé de manacá! Eu vi o sol, vi a lua clarear... Oi! Olá Boi Branco de Bumbá! Olá! BOI BRANCO - Quanta coisa mágica! Um pé de manacá que cresce de repente, e um bicho que eu nem sei o que é... todo verde fosforescente! Quem é você? LULU - Eu sou Lulu, a lagarta sedutora! Eu vivo neste pé de manacá, tão sedutor... De repente, eu vim ver, vim espiar! BOI BRANCO - O que é que você viu e espiou, Lagarta Lulu, sedutora? LULU - Eu vi um boi vermelho, muito sedutor... eu vi uma estrela espetada num chifre de boi vermelho, eu vi um boi amarelim, todo banhado de sol... e estou vendo você, Boi Branco... Vocês são os bois mágicos? Vocês são os três reis magos de bumbá? BOI BRANCO - Todo boi bumbá é um pouco rei, é um pouco mágico. Nós somos a magia do povo... mas não fazemos mágicas... somos mágicos, só de nome... LULU - Quanta coisa sedutora! Eu, vivo uma vidinha simples neste pé de manacá, sabe? Ando pra lá... (Anda pelo braço do ator) Volto pra cá... manacá... (Idem) (Cheira Cheiro a as axila flores do de ator) Atchim! (O espirro é dado bem na cara do ator que representa o manacá, que começa a ficar gripado, contaminado pelo espirro da lagarta. O ator que faz o manacá se aborrece com Lulu, saindo de cena. A lagarta, sai atrás. Esta cena deve ser divertida. Lagarta fazendo cócegas na barriga do ator, quando anda, etc. Lagarta saindo) Veja Boi Branco sedutor! Lá vem a Lua Maria Bonita. É muita luz... vou voltar pro meu manacá! (Sai). BOI BRANCO - Quem vem lá? Quem acaba de chegar? LUA (Vem trazendo uma enorme lua branca, sobre um chapéu de palha) - Sou eu! A Lua Maria Bonita! (Entra xaxando, tocando violão). BOI BRANCO - A senhora é a Lua Maria Bonita do sertão? Desceu do céu? Pisou no chão? LUA - Pisei e xaxei! E vim anunciar que já se passaram nove luas de bois bumbás, nove meses de manacás! BOI BRANCO - Mas que doideira! Parece que o céu está de bebedeira? Quanta chegança, quanta vadiagem, xente! LUA - E vai chegar mais: vai chegar um lampião de luar! BOI BRANCO - Um lampião de luar, Dona Lua? LUA - Um lampião de luar, um lampião de nordeste, um luar cabra da peste! (Entram cangaceiros montados em cavalos imaginários). TODOS (Cantando) - É lampa, Lamparina, lampião, lampa, / lampa, / nome é Seu Virgulino, / É o luar lá do sertão! / É lampa, lampa, lampa, / Lamparina, lampião, / Seu nome é Virgulino, / Apelido é Lampião! LAMPIÃO (Fala, como poeta de cordel, sem cantar) Sou cabra, sou Lampião, / Virgulino e lamparina, / Vim no caminho da estrela / Que o boi-bumbá ilumina! / Vim montado no luar, / Vadiando com as meninas! / Sou cabra, sou Lampião, / Sou raio e sou trovoada, / Sou a luz da lua nova, / Sou feito de tudo e nada, / Sou o sim e sou o não / Do caminho desta estrada / Sou o luar lampião! / Meu caminho fiz e faço, / Sou o luar do cangaço, / Não espero acontecer! / Vim dizer que a lua nova / Vai ter muito que fazer, / Vai ter muito que plantar, / Vai ter muito que colher, / Pois a vida é lamparina / Que é preciso acender, / Que Lampião é luar / De tudo que se acende: / Sou o bom e sou o mau, / Sou tudo que não se entende, / Vim saudar o boi de prata, / Vim dar graça à Maria / Bonita deste meu chão. / Vim dizer que vai nascer / Coisa nova no sertão. / Da lua, eu sou luar, / Da luz eu sou lamparina, / Desci de onde eu moro, / E vim saudar as meninas! (Cobre o Boi Branco com um manto de brilhos. Canta a cantiga do começo) Este teu manto, / De estrelas e de luas / São novas imagens tuas / Novenas de pratear... / São novas horas / São depois e são agoras / Que já vem a nova hora / Da hora que vai chegar! (Saindo) Vamos, meus camaradas! Que a nova hora é por ali! Que o boi já prateou, que o mistério começou! (Saem todos, inclusive o Boi. Entra Zé). ZÉ - Ué... cadê a Das Graças? (Das Graças, aparecendo só a cabeça). DAS GRAÇAS - Zé, aquilo que vai lá é Lampião e seu bando? É cangaceiro, que vai ali? ZÉ (Tremendo) - Não tenha medo, Das Graças, era Lampião, sim... mas disse que não era mais, não sabe? DAS GRAÇAS (Aparecendo inteira, com manipuladora) - Era ou não era? ZÉ - Fique calma, muié! Era... e não era, ora! Ele foi Lampião, agora é luar do sertão... é isso aí, coisas de não entender, não sabe? DAS GRAÇAS - Falta muito, Zé? ZÉ - Só algumas horinhas de léguas, mulher! Veja! Já chegamos no chapeuzal! DAS GRAÇAS - Mas o que é isso de chapeuzal? ZÉ - É o progresso, muié. É uma plantação de chapéu de palha, ora. Antigamente, a gente tinha que fazer o chapéu de palha, né? Agora, o chapéu já nasce pronto. Coisa de progresso, muié! CHAPEUZAL - Seu Zé, Dona Das Graças... vocês estão viajando por causa da contagem, é? DAS GRAÇAS - É sim, Chapeuzal, por causa das contas... coisas de noves fora, coisas assim. ZÉ - O Rei e Dona Rainha queriam fazer um recencoisamento... DAS GRAÇAS - É recenascremento, Zé! ZÉ - Num é! É recencoisamentação de contagem de gentes e pessoas. Aí, fomos lá no Rei e na Rainha, pra sermos contados, coisas de lei, sabe como é, não é, Seu Chapeuzal? CHAPEUZAL - Sei. Por isso é que quero avisar. O Rei e a Rainha estão pra contar gentes e chegar... pessoas, além de resolveram viajar e contar bichos, chapéus, nuvens e céus. DAS GRAÇAS - Vão nos contar de novo? Vamos embora, Zé... chega de tanta conta, tanta viagem! ZÉ - Vamos embora, Das Graças, que senão, a gente vai ser contado de novo. (Saem Das Graças e Zé. Aparece o Galo, careca. O ator, no lugar da boina cheia de penas que fazia a cabeça do Galo, tem uma peruca careca). GALO - Seu Chapeuzal, o senhor pode me emprestar um chapéu? Aconteceu uma desgraça! Cocoricó! Cocoricó! Estou todo depenado! CHAPEUZAL - O que foi, seu Galo de Cericecó? O que aconteceu com as suas penas? GALO - Foi a Dona Rainha do Seu Rei. Eles estão contando tudo... me encontraram e resolveram contar minhas penas... CHAPEUZAL - E pra contar, precisou arrancar, seu Galo? GALO - É que a Dona Rainha, pra não errar a conta, pra saber quantas penas eu tinha, foi contando e arrancando... pra não se atrapalhar! Ela disse que ia devolver depois, seu Chapeuzal! CHAPEUZAL - Não acredite nestas contas do Governo, seu Galo. Veja, o senhor acabou todo depenado! GALO - E como é que vou aparecer para Mariquita Choca, desse D'Angola, jeito? uma E pra Chiquita tão elegante, galinha como é que vou aparecer assim, todo careca e depenado? CHAPEUZAL - Tome um chapéu, seu Galo. GALO - Muito obrigadinho, seu Chapeuzal. (Pausa) Será que é dos carecas que elas gostam mais? Cocoricó! Que catástrofe! (Sai). CHAPEUZAL - Ih, lá vem o Seu Rei e a Dona Rainha. Vou me esconder... senão, fico igual ao Galo! (Sai. Clarins. Surge um Arauto, espécie de apresentador de circo). ARAUTO - Atenção, distinto público! Atenção, gentes e bichos deste lugar... hoje tem goiabada? Tem sim senhor... Hoje tem marmelada? Com essa gente que vai aparecer, Seu Rei e Dona Rainha... sempre tem marmelada! Vai chegar neste circo de Cericecó, com muita pompa, amestrados... dezessete (Entra um ator, cavalos muito devagar, vestido de vaca) O que é isso? Cadê os dezessete cavalos amestrados do circo de Cericecó? O que é isso Dona Vaca? VACA - Os cavalos pediram demissão. Aí, fiquei eu... muuu. Porque nesta estória, com tanto boi, faltava uma vaca, não é? ARAUTO - Está demitida! Interrompeu o espetáculo, ouviu? VACA - É o que você pensa, seu Palhaço sem graça! Eu sou a estrela, ouviu? ARAUTO - E qual é o seu nome, hein? VACA - Vaca Via Láctea. Forneço leite pro céu inteirinho, ouviu? Dizem que o céu anda até bebendo demais, por minha causa. (Sai) Muuu! ARAUTO - Desculpe, distinto público esta avacalhação no espetáculo. Vai chegar, como eu ia dizendo, o Senhor Rei e a Senhora Rainha, que estão contando todas as coisas do seu reino do sertão: gentes, pessoas, bichos e pulgas do distinto público. Vai continuar o espetáculo! VACA (Voltando) - Muuu! Posso interromper um instantinho? ARAUTO - Não, não pode! VACA - Então, mesmo sem poder, eu vou interromper, porque sou uma estrela, ouviu? Sou muitas estrelas, sou a Vaca Via Láctea, ouviu? ARAUTO - A senhora já disse isso antes. VACA - Disse? ARAUTO - Disse. VACA - Então, desculpe qualquer coisa, muuu... adeus. (Sai). ARAUTO - E como eu ia dizendo, vai chegar o casal Rei e Rainha, que vem contar as coisas do reino do sertão de Cericecó e do mundo... VACA (Voltando) - Posso interromper? É que eu me lembrei o que eu ia dizer. ARAUTO (Nervoso) - O que era, Dona Vaca Via Láctea? VACA - Não grita comigo, que eu sou sensível, ouviu? Se gritar, o meu leite pode azedar e virar iogurte, ouviu? ARAUTO - Recolha-se à sua insignificância, Dona Vaca! VACA - Pronto! Azedei! Tenho certeza que azedei... virei iogurte, virei coalhada, sou muito sensível! Muuu! ARAUTO - Eu estou aqui anunciando um rei e uma dona rainha e a senhora fica falando de suas intimidades lácteas, Dona Vaca? VACA - Lembrei o que eu queria dizer! ARAUTO - O que era, Dona Vaca? VACA - Eu vim só reclamar que o céu da noite está impossível. Bebeu todo o leite da minha constelação de estrelas. Está num pileque... só vendo. Adeus... era isso que eu queria dizer, além de anunciar que (empurra o Arauto pro lado e toma posição de vedete) vai chegar a Madame Rainha e o Madamo Rei! Vem contar tudo, tudinho. Adeus! (Saem a Vaca e o Arauto. Aparecem o Rei, baixinho, seguido da Rainha, enorme). REI - Depressa, Dona Rainha Moleza, não sabia que a realeza custava tanto a se mexer! RAINHA - Você disse que a contagem ia ser só lá na corte... que ia ser só de gente! Agora, mudou de idéia e resolveu viajar todo o país, é? Meu sapato está apertando! (Rainha traz uma longa lista de papel higiênico, cheia de números). REI - Guardou as penas do Galo? RAINHA - Guardei. REI - Quantas são? RAINHA - São muitas! REI - Quero números exatos! Exatíssimos! RAINHA - São vinte e duas penas verdes, quarenta e cinco penas amarelas, trinta e três penas azuis... o resto, era penugem branca... deu um vento, voaram! REI - E lá na corte? Quantas gentes? RAINHA - Deixa eu ver... gentes, a gente escreve com g ou j? REI - Com g! RAINHA (Procurando, na ordem alfabética da lista) Gatos... gotas... gritos... REI - Você contou os gritos, Rainha? RAINHA - Tem o Grito do Ipiranga, não tem? Você não mandou contar tudo? REI - E as gentes? RAINHA - Oito mil e novecentas gentes e meia. REI - E tem meia gente, no meu reino, Dona Rainha? (Rei pula de nervoso). RAINHA (Pulando atrás) - Tinha uma moça que estava esperando filho... o filho ainda não nasceu... aí, eu botei meio... porque é gente, mas ainda não é totalmente! (O palco vai ficando cheio de papel higiênico desenrolado, numa enorme bagunça). REI - E o que mais? RAINHA - Até agora, contei três bois-bumbás, uma porção de soldados... REI - Quantos? RAINHA - Estavam todos de uniforme... fica tudo igual... assim eu me atrapalho! REI - E o que mais? RAINHA - Duas cuecas, três lenços, um sutiã, um vestido, quatro aventais... REI - O que é isso? Parece rol de lavadeira! RAINHA - Ai... eu me atrapalhei! Juntei o rol de roupa suja ao rol de recenseamento! REI - E roupa suja de Rei e de Rainha, a gente lava no palácio, ouviu? Não mostra pro povo... senão, dá revolução! RAINHA - Revolução? Seu Rei, tenho tanto medo de revolução... eu quero voltar pra casa! REI - Com esta desordem, o jeito é o regresso! Vamos voltar! (Saem. Fanfarras tocadas em papel recobrindo um pente) Desordem é regresso! (Somem. Rainha esquece a lista, volta, tropeçando, pega a lista e sai. Entra um ator, com uma pena na mão. A pena simboliza um pássaro. O ator assobia como se fosse chamando outro pássaro. Entra a atriz, olha o pássaro. Encantada, vai até uma rede, tira outra pena de dentro e, por meio de mímica, transforma esta pena em pássaro também. Assobios, flautas, num clima poético). PÁSSARA (Cantando) - Xô meu sabiá... / Xô meu zabelê... / Toda a madrugada eu sonho com você! (O Pássaro repete a canção). OS DOIS - No sertão da minha terra / Zabelê piou chorando / Oi... agora... (bis) / Saudade está me matando! / De manhã cedo / Canta a Jandaia / Vem as morenas / Sacudindo as saias / Mas à tardinha / Cantam as morenas / Vêm as jandaias / Sacudindo as penas! (A cantiga envolve o grupo todo, numa dança de penas). PÁSSARA - Será? Será? PÁSSARO - Diz que é, diz que é! PÁSSARA - Então, hoje vai ser um grande dia? PÁSSARO - Diz que é, diz que é! PÁSSARA - E diz também, que o céu está doidão! Diz que o céu da noite, de tão alegre, bebeu todo o leite da Via Láctea! PÁSSARO - O céu está embriagado de leite? Diz que é? PÁSSARA - Diz que é, diz que é! PÁSSARO - Olha o céu da noite chegando, doidão de tão alegre! Parece que bebe! (Irrompe a melodia com palmas. Somem os pássaros, todo o grupo em folia. Música de Pai Francisco entrou na roda). TODOS (Cantando) - O céu vestiu o seu vestido / De folia e de festança / Veio dançar a noite inteira / Parecendo uma criança! / Como ele vem / Todo requebrado / Parece que o céu / Está embriagado / Como ele vem / Todo requebrado / Parece que o céu / Está embriagado! (Céu da Noite tem uma cara enorme, saia de estrelas, guardachuva). CÉU (Cantando) - Cadê meu chapéu / Cadê meu chapéu / Cadê meu chapéu de céu? (Repete os três versos). CORO - Céu, não dances tão depressa / Que tu podes despencar / Se o céu cair da estrela... Tibum! (Caem todos) / Que barulho que vai dar! / Como ele vem / Todo requebrado (Bis) / Parece que o céu / Está embriagado! / Cadê meu chapéu? Cadê meu chapéu, / Cadê meu chapéu de céu? / Vou levar o céu pra casa / Pois está embriagado / Vai tomar café amargo / Vai tomar banho gelado! CÉU - Cadê meu chapéu? (É carregado pra fora, numa das redes do cenário. Entra um ator imitando um carro. Não usa, qualquer elemento cênico, além da expressão corporal). TÁXI - Olha o táxi! (Meio cafajeste) Faço lotação pra Copacabana via Cericecó! Cadê o freguês? FREGUÊS 1 - Pode me levar pra Cascadura? TÁXI - Só levo pra Casca Mole... senão fura meu pneu! Quem vai pra Copacabana? FREGUÊS 2 - Pra Tijuca, pode me levar? TÁXI - Cruz credo! Tijuca? Cheio de buraco de metrô? E se eu cair no buraco e virar tatu? FREGUÊS 3 - E pra Santa Teresa, pode ser? TÁXI - Pra Santa Teresa? Deus me livre! Eu não sou avião pra subir pro alto do morro, não, ouviu? Eu sou Táxi, sou lotação pra Copacabana! fonfom! fonfom! Olha o táxilotação! (Entram Das Graças e Zé). ZÉ - Veja, Das Graças! Um automóvel, muié! DAS GRAÇAS - Ainda bem, não agüento mais andar, Zé... a hora do nosso filho nascer está chegando, está quase na hora, Zé! ZÉ - Calma, muié! Calma, muié! Calma, calma! Táxi! Táxi! Calma! Táxi! Táxi! TÁXI - Essa gritaria é comigo, bicho? Qual é? ZÉ - Minha muié está pra ter neném... pode nos levar pra nossa casa lá na Serrinha de Cericecó? TÁXI - Só vou pra Copacabana... e são trezentos e trinta dinheiros! ZÉ - Nós somos pobres, moço... a criança vai nascer! TÁXI - E eu, sou táxi! Tenho um tanque de gasolina pra sustentar! E sabe de uma coisa? Eu vou é pra Oficina, não trabalho mais hoje... vou almoçar. (Sai) Fonfom! Fonfom! DAS GRAÇAS - Zé... como é que vai ser? Nosso filho vai nascer assim, no meio da estrada, aqui? ZÉ - Calma, Das Graças! Calma! Estou vendo um avião! Seu Avião! Seu Aeroplano! Quer dar um pulinho aqui, que é coisa de precisão? (Aparece um ator, de braços abertos, fazendo o Avião. Entra num pulo. É um avião com sotaque de norte-americano). AVIÃO - O que é? ZÉ - Seu Avião, o senhor pode levar a gente pra nossa casa, na Serrinha do Cericecó? AVIÃO - Eu só levo turistas americanos, entende? Vocês são americanos? DAS GRAÇAS - Somos americanos do sul, serve? AVIÃO (Fazendo cara de nojo) - Do sul? Latin-America? Não serve, absolutamente not! Só sirvo turistas norte-americanos! Time is money... tempo é dinheiro... adoro dólar... detesto cruzado! (Sai sapateando). ZÉ - Calma, Das Graças! Estou vendo um rio, bem aqui... e vem vindo um barco-navio, muié! Calma! (Aparece um navio, feito por um ator. Só com expressão corporal. É uma espécie de navio-pirata. O ator, como única caracterização, usa um tapa-olho preto) Seu barquinho! Seu barquinho! Dona Canoa! Dona Jangada! NAVIO - Isso é comigo, camarada? Mais respeito! Eu sou um navio-pirata! DAS GRAÇAS - Pirata? É Pirata, Zé! Estou com medo! ZÉ - Calma, Das Graças! Calma! Seu Navio-pirata, o senhor pode levar a gente pra nossa casa? É urgente! Minha muié está para ter um bebê! NAVIO (Música de A Barquinha Virou) - Este barco chegou / E só sabe roubar / Dinheiro é meu rumo / É meu navegar! / Pois meu barco virou / Barcaça e canhão / Que o mar deste barco / Se chama inflação! ZÉ - A resposta, seu Navio-pirata, qual é? NAVIO - É não! (Sai o Navio navegando. Mudança de luz. Tudo vai ficando azulado, poético). DAS GRAÇAS - Zé! Meu filho está chegando. O nosso bebê vai nascer agora! ZÉ - Das Graças, fique calma... parece que tudo está mudando! Vamos ajudar o menino a nascer. Das Graças! (Zé deita Das Graças numa rede do cenário. A rede é furada, que modo que os bonecos ficam à vista do público. Manipuladores semi-escondidos, atrás. Foco de luz cresce sobre Das Graças. Começa a acontecer, suavemente, o parto. A boneca, deitada. De dentro de suas roupas, ajudada por Zé, que serve de parteiro, aparece, pouco a pouco, o bebê. Zé falando com suavidade) Calma, Das Graças... nosso bebê já está nascendo... DAS GRAÇAS - Eu estou calma, Zé... eu estou muito feliz! (Vai crescendo um luar pela esquerda - Aparece Lampião. Enquanto acontece a cena do nascimento entra Lampião, cantando suavemente, uma ciranda). LAMPIÃO (Música de Cirandeiro Ó, Cirandeiro Ó) Nesta ciranda / Feita de rede tecida / Vem trançada toda a vida / Que uma estrada caminhou / É muita rede / Muita fome / Muita sede / Céu aberto / Sem parede / Muita seca / Já passou / É numa rede / Numa fome / Numa sede / Que a ciranda / Se acende / No brilho / De um lampião / Novo caminho / Nova estrela / Novo ninho / Milagre pariu um filho / Na rede / Do meu sertão! (A criança acaba de nascer). ZÉ - Nasceu! Nasceu! LAMPIÃO - Nasceu! ZÉ - É uma menina! LAMPIÃO - É uma menina! É uma menina! / Vou anunciar pro sertão! Nasceu uma menina! / Quem iluminou o parto, foi a luz do Lampião! (Sai. Os fantoches continuam nas redes. Ficam em destaque. Não são mais ligados aos manipuladores. Das Graças e Zé, e a menina, sob um foco de luz, parecendo uma lapinha dentro de uma rede). CORO (Irrompe) - Vem, meu boi bonito, / Vem, chegou a hora / Já deu meia-noite / Já rompeu a aurora! (Vão entrando os três bois, como Reis Magos. Param em frente da criança). BOI VERMELHO - É uma menina! Que o nome dela lembre a minha cor! Podia ter o nome de... Rosa! Que tal, Rosa? É um bonito nome! CORO - Vem, meu boi bonito, etc. ... BOI AMARELO - É uma menina! O nome dela podia lembrar a margarida minha é cor... o amarelinho... miolo da Que tal, Margarida? É um bonito nome! CORO - Vem, meu boi bonito, etc. ... BOI BRANCO - É uma menina? / Nem Rosa, nem Margarida, / Nem branco, que suja tanto! / O nome desta menina / Deve ser verde assim, / Igual ao verde perfeito / Deste pé de alecrim (reaparece o Alecrim) / O nome desta criança / Deve ser verde-verdura, / coisa nova, / Muito pura: / O nome? / É Esperança! 1 - Esperança de que toda criança possa / Ter uma rede pra dormir / Uma casa pra morar / E roupa pra vestir! 2 - Rapadura pra comer / E leite pra tomar / Caderno pra escrever / Escola pra estudar! 3 - Muita folia de bois! / Que o amor se planta "antes" / Para nascer o "depois"! (Música cresce em folia ritmada. Folguedo total). FIM