artigo 9 num - Veredas Favip

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Paulo César Rodrigues
Professor Doutor de Filosofia do Curso de Filosofia da Universidade Federal de Campina Grande (UFCG),
Campina Grande, Paraíba. E-mail: [email protected].
Nota dos Editores: Artigo Científico referente à Palestra ministrada pelo Professor Dr. Paulo César
Rodrigues no I Colóquio de Filosofia Contemporânea Francesa da UFCG, na data de 18.10.2011,
organizados pelo Grupo de Pesquisa “Existencialismo, Fenomenologia e Hermenêutica” da UFCG/CNPq
e a Coordenação do Curso de Fillosofia da UFCG.
A NOÇÃO DE LIBERDADE EM BERGSON
Resumo
Pretende-se aqui equacionar o problema da liberdade, tal como ele se articula no terceiro capítulo do
Ensaio sobre os dados imediatos da consciência, acompanhando as sinuosidades da argumentação de Bergson.
Sabe-se que tal problema, em Bergson ao menos, não se apresenta no plano ético-político ou, para usar o
vocabulário kantiano, no âmbito da razão prática; mas, ao contrário, representa um problema eminentemente
teórico, metafísico e psicológico. A adequada demonstração da realidade da liberdade é dependente de um
conhecimento adequado da estrutura temporal da consciência. Daí toda a parte crítica do itinerário teórico do
filósofo (o antagonismo entre deterministas e indeterministas) poder ser lida como uma depuração conceitual
que, em última análise, daria acesso à experiência imediata da liberdade.
Palavras-chave: Determinismo. Duração. Espaço. Indeterminismo. Liberdade.
Abstract
The aim to this paper is to equate the issue of freedom as it is mentioned in the third chapter of Ensaio
sobre os dados imediatos da consciência, following the sinuosity of Bergson's argument. It is known that such
matter does not appear on an ethical-political scale – at least as it's seen in Bergson, or to use the Kantian
vocabulary, in the space of practical reason – but on the contrary, it's shown rather as an eminently theoretical,
metaphysical and psychological problem. Adequate demonstration of the reality of freedom is dependent on the
adequate knowledge of the temporal structure of consciousness. This explains the critical theoretical itinerary of
the philosopher (the antagonism between determinate and indeterminate) being read as a depuration concept that
would ultimately give access to the immediate experience of freedom.
Keywords: Determinism. Duration. Space. Indeterminism. Freedom.
VEREDAS FAVIP - Revista Eletrônica de Ciências - v. 4, n. 2 - julho a dezembro de 2011
A NOÇÃO DE LIBERDADE EM BERGSON
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A liberdade representa no terceiro e último capítulo do Ensaio sobre os dados imediatos da consciência
(1889) um problema filosófico que para Bergson precisa ser devidamente investigado, pois sua solução depende
de um exame dos próprios termos do problema. Como bem notou Bento Prado Jr., na interpretação que fez do
bergsonismo, o problema da liberdade só se articula no plano lógico-discursivo, ao passo que desaparece à luz do
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testemunho da consciência imediata . Tudo se passa, então, como se a liberdade fosse problemática apenas
quando se exige uma demonstração teórica de sua realidade, gerando antinomias assim que a concebemos como
um conceito do entendimento. Contudo, para Bergson, a liberdade é um dado da consciência, uma realidade
psíquica concretamente testemunhada pela experiência interna. Trata-se aqui, então, de elaborar um pouco mais
a tensão que se estabelece entre a experiência vivida da liberdade e a dificuldade de sua demonstração teórica.
Bergson inicia o terceiro capítulo de seu livro indicando que a questão da liberdade faz digladiar duas
concepções da natureza: uma dinamista, outra mecanicista. A concepção dinamista parece partir de certa
atividade voluntária da consciência, de cujo esvaziamento se chegaria à ideia de inércia. Uma vez estabelecida a
ideia de inércia, torna-se concebível uma matéria regida por leis necessárias, matematicamente determináveis. Já
na segunda concepção, a mecanicista, parte-se da inércia das partículas da matéria, de modo que seu movimento
só poderia ser explicado recorrendo à atuação de leis mecânicas sobre esta matéria por si mesma estática,
desprovida de qualquer tipo de atividade espontânea. Assim, no dinamismo, os fatos, cada vez mais
indetermináveis, cada vez mais voluntários, constituem a realidade fundamental. No mecanicismo, ao contrário,
os fatos não exprimem mais que um sistema articulado de leis necessárias.
Em última análise, dinamismo e mecanicismo são, por assim dizer, cosmovisões que justificam posturas
indeterminista e determinista, respectivamente. Cada uma delas partindo de uma ideia diferente do que é a
“simplicidade”, o que sem dúvida compromete profundamente toda a leitura que se faz do real. Para o
mecanicista, adepto do determinismo universal, o simples é o princípio do qual se pode deduzir com necessidade
lógica uma série de consequências. Os fatos naturais não seriam nada além dessas consequências dedutíveis
necessariamente de leis uniformes. Já o dinamista diz que aquilo que o mecanicista entende como simples é, na
verdade, resultado de uma fusão de noções mais ricas. Para ele, o simples não é o inerte, mas a atividade
espontânea que todos nós podemos testemunhar em nossa consciência e em nossos atos voluntários. A inércia, a
bem dizer, só pode ser definida negativamente, mediante a noção de espontaneidade. Diz Bergson:
Encarada deste novo ponto de vista, a ideia de espontaneidade é incontestavelmente mais simples que a de
inércia, já que a segunda não se poderia compreender nem se definir senão pela primeira, ao passo que a
primeira se basta (BERGSON, 2001, p. 94).
O que se sustenta nessa passagem é que a espontaneidade é mais simples porque pode ser observada
internamente por qualquer um, uma vez que constitui a própria natureza da consciência; ao passo que a noção de
inércia, como uma passividade absoluta, seria artificialmente construída pelo entendimento a partir da negação
da ideia de espontaneidade.
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Doravante, a obra será chamada unicamente de Ensaio.
Em seu livro Presença e campo transcendental: consciência e negatividade na filosofia de Bergson, Bento Prado afirma: “Tal é o propósito do Essai
sur les données immédiates de la conscience: operar uma conversão capaz de deslocar a liberdade de seu contexto problemático-discursivo e testá-la
no nível da Presença. Revelar, em primeiro lugar, como a dialética que a envolve e a esconde não é exigida pelas articulações da experiência, mas pelo
dinamismo próprio das estruturas da linguagem, para, a seguir, imergir numa experiência direta em que a liberdade passa a ser, a um só tempo, sujeito e
objeto” (PRADO JR., 1989, p. 71-2).
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Em todo caso, conforme se concebe a relação entre os fatos e as leis, o simples e o complexo, elaboram-se,
a priori, concepções ora indeterministas, ora deterministas sobre o real. Uma verdadeira antinomia entre os
defensores e os adversários da liberdade se instaura no interior do pensamento filosófico. Bergson irá dizer que as
duas atitudes cometem os mesmos erros, prolongando indefinidamente o debate e, ao que parece, não deixando
margem para uma possível solução. Isso ocorre porque a liberdade é tematizada nos dois casos no contexto
lógico-discursivo. A experiência da liberdade é sacrificada em nome de um equacionamento conceitual que a
converte num insolúvel problema teórico.
Contudo, retomando o desenvolvimento crítico do terceiro capítulo da obra, pode-se dizer que além desse
debate a priori sobre a questão da liberdade, que jamais a tematiza diretamente como uma experiência, existe,
também, argumentos a posteriori, que tenta nos dissuadir a respeito da realidade do ato livre. Bergson chama tais
argumentos de psicológicos e físicos. O argumento psicológico diz mais ou menos o seguinte: todo ato é causado
por estados de consciência (ideias, sentimentos, vontades etc.) imediatamente anteriores. Já o argumento físico
diz que a liberdade da consciência é incompatível com as leis da matéria. Bergson tentará mostrar, doravante, que
o determinismo físico já está de alguma maneira embutido no determinismo psicológico, pois é uma
incompreensão da natureza movente da consciência que induziu a filosofia e depois a ciência a universalizar o
determinismo.
O determinismo físico, representado à época do Ensaio pelas teorias cinéticas da matéria, pensa o
universo material como um aglomerado de partículas que se movimentam de modo ininterrupto, porém
governadas por leis necessárias. Como não há nenhum motivo para supor que a matéria orgânica possui uma
espécie de privilégio em relação ao restante da matéria, segue-se que todos os fenômenos da vida também são
regidos pela atuação das mesmas forças atrativas e repulsivas, isto é, das mesmas leis mecânicas. Isso significa,
inicialmente, que o determinismo invade os domínios da biologia e da fisiologia. No entanto, o determinista não
se detém aí, uma vez que ao afirmar que todos os fenômenos orgânicos, inclusive os nervosos, são resultados de
modificações moleculares, afirma também que os estados de consciência poderiam ser deduzidos de processos
físico-químicos bem determinados da substância cerebral, de modo que a ação livre seria reduzida a ficção
teórica. Com efeito, o máximo de concessão que o determinista faz a favor da hipótese do livre-arbítrio encontrase no reconhecimento da incompletude dos nossos conhecimentos de tais processos físico-químicos do cérebro.
Enfim, se pensamos que há liberdade é porque desconhecemos toda a riqueza das interações nervosas que
ocorrem num organismo complexo como o do homem, interações que supostamente produziriam os estados
mentais que por sua vez condicionariam a ação do indivíduo. Fora essa lacuna cognitiva, o determinista não vê
razão alguma para duvidar de sua hipótese de trabalho. A necessidade reina sobre o mundo. Diz Bergson,
referindo-se ao determinismo: “(...) não há átomo algum, nem no sistema nervoso, nem na imensidão do
universo, cuja posição não seja determinada pela soma das ações mecânicas que os outros átomos exercem sobre
ele” (id., ibid., p. 95). Ao que tudo indica, na representação científica da matéria, o “demônio de Laplace” exerce
sua influência imperiosa sobre todos os fatos da natureza, de modo que a ciência termina por assimilar os próprios
atos da consciência como fatos naturais.
O que Bergson identifica na argumentação acima exposta é uma maneira defeituosa de se resolver o
problema da liberdade, pois postula arbitrariamente o paralelismo psicofisiológico; ou ainda, de modo mais
radical, o naturalismo. As ciências, hipnotizadas pelo sucesso do determinismo na Física, estende-o também para
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o domínio do espírito. O nível psicológico passa a ser assimilado, então, a partir dos fatos fisiológicos. E os fatos
fisiológicos são assimilados no mesmo esquema de inteligibilidade com o qual se compreende a matéria inerte.
Importa dizer, no entanto, que o paralelismo psicofisiológico jamais recebeu uma comprovação experimental
por parte da ciência, sendo sobretudo um postulado metafísico oriundo das filosofias de Spinoza e Leibniz, na
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esteira de Descartes, evidentemente . Bergson chega a afirmar, de modo categórico, que “(...) não se demonstra,
nunca se demonstrará que o fato psicológico seja determinado necessariamente pelo movimento molecular” (id.,
ibid., p. 98).
Em última análise o filósofo francês acredita que a metafísica e a ciência, quando universalizam o
determinismo, o fazem reproduzindo uma forma de raciocínio falaciosa. Ao constatar o paralelismo entre fato
fisiológico e fato psicológico em alguns casos simples, estendem a mesma relação para a totalidade da vida
psíquica. Isso ocorre, principalmente, porque a filosofia e a psicologia desconhecem a estrutura temporal da
consciência. Não reconhecendo que o “tempo concreto” é enriquecimento, causa de ganho e de perda, acabam
pensando a dinâmica psicológica também como um perpétuo remanejamento de elementos inertes. Não havendo
enriquecimento na consciência; sobretudo, não havendo “mudança interna”, o psiquismo passa a ser concebido
tal como um sistema físico, isto é, um sistema que não dura, não evolui, não amadurece; pois se encontra recluso
na instantaneidade do presente e regido por leis mecânicas invariáveis.
Sabe-se que o associacionismo, como a forma acabada do determinismo psicológico, fragmenta a
multiplicidade qualitativa da consciência para justapor seus estados numa série que encontra na ideia de
“exterioridade recíproca” sua própria lei de funcionamento. Neste ponto, o eu concreto, que interioriza seus
momentos, torna-se uma sequência de estados psicológicos que se sucedem num “meio vazio e homogêneo”. O
tempo já não é interior aos momentos vividos pela consciência. O tempo é meio de sucessão ou, para falar com
Kant, a forma do sentido interno que exibe na ideia de sucessão o modo próprio de organização das experiências.
Assim, um estado de consciência pode ser perfeitamente pensado como causa de outro estado de consciência,
que lhe sucede imediatamente. A visão mecanicista invade por fim a vida interior. A consciência e as coisas
podem ser equacionadas pelos mesmos quadros conceituais. Está aberto, então, o caminho para se pensar a ação
humana como determinada por seus antecedentes psicológicos (sentimentos, pensamentos, vontades etc.).
Mas é justamente essa representação do espírito que Bergson combate. É, também, justamente essa
representação do espírito que produz o problema da liberdade. Em tal concepção, tudo se passa como se houvesse
uma fratura entre o “eu que sente e pensa” e o “eu que age”. O primeiro sendo causa e o segundo efeito. Tal fratura
pode ser encontrada tanto nos argumentos dos deterministas quanto no dos indeterministas. Todos terminam
pensando o problema da liberdade nos mesmos termos porque desconsideram igualmente a natureza temporal da
consciência, enxergando nela apenas uma série descontínua de estados petrificados.
O determinista dispersa a fusão íntima de sentimentos, pensamentos e lembranças, que constituem o eu
concreto, num conjunto de estados de consciência justapostos, perfeitamente assimiláveis dentro do esquema da
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Na conferência “A alma e o corpo”, Bergson declara: “A única hipótese precisa que a metafísica dos três últimos séculos nos legou sobre esse ponto é
justamente a de um paralelismo rigoroso entre a alma e o corpo, com a alma exprimindo certos estados do corpo, ou o corpo exprimindo a alma, ou a
alma e o corpo sendo duas traduções, em línguas diferentes, de um original que não seria nem um nem outro: nos três casos, o cerebral equivaleria
exatamente ao mental” (id., ibid., p. 844). Já em “O cérebro e o pensamento: uma ilusão filosófica”, ele acrescenta: “Sobre as origens totalmente
metafísicas dessa tese, aliás, não há dúvida possível. Ela deriva em linha direta do cartesianismo. Implicitamente contida (com muitas restrições, é
verdade), na filosofia de Descartes, extraída e levada ao extremo por seus sucessores, ela passou, por intermédio dos médicos filósofos do século
XVIII, para a psicofisiologia de nosso tempo” (id., ibid., p. 960).
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causalidade mecânica. É certo que ele admite a beligerância entre estados psíquicos contrários, de modo que o eu
pareceria escolher entre duas alternativas opostas, orientando sua conduta em uma ou outra direção. Porém, o
importante é que nesse processo o eu não muda, já que é apenas uma espécie de arena onde se trava a luta. Os
estados de consciência beligerantes também não exibem mudança interna. São mônadas psicológicas se
digladiando. O estado de consciência mais forte vence necessariamente a batalha e se prolonga em ação. O que
parecia uma escolha livre entre duas atitudes igualmente possíveis é na verdade uma coerção psicológica
inelutável. O estado de consciência mais expressivo determinou a ação, vencendo a influência do estado
contrário.
Por sua vez, o indeterminista introduz na análise do ato livre a previsão do que se pode fazer e a lembrança
da outra escolha. Também aqui há hesitação entre duas alternativas igualmente possíveis, a ação escolhida
deixando na sombra a ação rejeitada. Se os deterministas sustentam que múltiplos antecedentes determinam um
único ato como possível; os defensores do livre-arbítrio, ao contrário, asseveram que múltiplos antecedentes
podem resultar em múltiplos atos possíveis, sendo o ato efetivamente realizado o resultado de uma decisão
autônoma da consciência. E se há escolha há liberdade.
Todavia, Bergson identifica um postulado comum e o mesmo esquema de inteligibilidade na
argumentação das duas posturas teóricas. O postulado comum é: o ato já se realizou, a decisão já foi tomada,
temos apenas que explicá-lo esquematicamente. Deterministas e indeterministas compactuam nesse ponto.
Ambos pensam o eu como um ponto O que hesita entre X e Y. Se o eu toma o partido de X e não o de Y, os
deterministas dirão que não houve propriamente uma escolha, o que sempre pressupõe uma certa autonomia da
consciência, mas tão-somente necessidade. X era mais atraente que Y, sua força de atração foi mais imperiosa que
a de Y e por isso venceu. Já os adeptos do livre-arbítrio dirão, ao contrário, que a escolha de Y era igualmente
possível e que se a consciência escolheu X foi porque ela possui de fato um poder de decisão que emana de sua
espontaneidade.
Nos dois casos, contudo, o que se encontra é uma explicação esquemática da dinâmica do eu concreto.
Nos dois casos há um hiato entre a liberdade como fato psíquico e a explicação do fato. E por fim, nos dois casos,
abandona-se o plano de uma realidade que se faz, ou melhor, que está em vias de se fazer; para se deter no plano de
uma realidade já feita, na qual tudo é assimilado como coisa e não como progresso. Convém lembrar que Bergson
sempre recusou a presença de categorias estáticas em sua filosofia. No Ensaio, ele declara: “(...) não há nada na
alma humana a não ser progressos” (id., ibid., p. 87). Em A evolução criadora, reafirma semelhante ponto de vista
em várias passagens: “(...) pois o movimento é sem dúvida a própria realidade, e a imobilidade não é mais que
aparente ou relativa” (id., ibid., p. 626); “Não há coisas, há apenas ações” (id., ibid., p. 705). E, finalmente, em
Introdução à metafísica: “Não existem coisas feitas, mas apenas coisas que se fazem, nada de estados que se
mantêm, mas somente estados que mudam” (id., ibid., p. 1420). Em última análise, todas essas passagens
apontam para a realidade do tempo real. E é no tempo real ou na duração que todos os problemas da filosofia
devem, segundo Bergson, ser avaliados.
É justamente quando se tematiza o tempo bergsoniano que o núcleo problemático da liberdade é tocado.
Pois o problema da liberdade, no fundo, remete a outra questão: o tempo pode ser adequadamente representado
pelo espaço? É a resposta afirmativa a essa questão que gera o problema da liberdade, uma vez que é a
representação esquemática, num espaço ideal concebido como “meio vazio e homogêneo”, das condições ou dos
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antecedentes do ato, que ilude deterministas e indeterministas. Em ambos os casos, o tempo real, do qual o ato
livre se destaca, foi suprimido pelo espaço, já que é no espaço que se representa os antecedentes do ato numa
simultaneidade, organizando-os como causas da ação efetivamente realizada. O eu que oscila entre X e Y é,
portanto, fruto de uma concepção espacializada da vida interior, de sua “mudança interna”. Aqui, a consciência
não é mais uma continuidade de momentos qualitativos. Ao contrário, é apenas uma sucessão descontínua de
estados isolados e justapostos, de modo que um estado psicológico poderia ser previsto a partir de outro estado
psicológico. Fragmenta-se, assim, a unidade da consciência para reter dela apenas pedaços petrificados,
elegendo um deles como causa de outro estado igualmente estável, igualmente morto. Contra semelhante
caracterização da vida do espírito, Bergson declara: “É da alma inteira, com efeito, que a decisão livre emana; e o
ato será tanto mais livre quanto mais a série dinâmica à qual se liga tender a se identificar com o eu fundamental”
(id., ibid., 110).
Assim, a compreensão bergsoniana da liberdade é eminentemente psicológica. O que importa não é
propriamente fazer uma análise das ações humanas, avaliando se são ou não autônomas. O que importa é saber se
a consciência é livre, ou melhor, se nossa ação resulta de uma determinação interna de nossa vontade. Caso a
consciência não possa ser explicada tal como um objeto inerte, então, faz-se necessário encontrar uma outra
forma de compreensão da vida interior. Bergson tenta, no Ensaio, fundar a legitimidade teórica de uma dimensão
imediata da consciência, anterior aos esquemas conceituais de nossa inteligência, bem como aos esquemas
simbólicos de nossa linguagem. Enfim, uma região pré-cognitiva na qual o tempo real e a liberdade se revelam
como o próprio fundo desconhecido da interioridade.
Certamente, Bergson pode ser acusado neste momento de psicologismo, pois suas concepções do tempo
e da liberdade se fundam na privacidade de uma consciência privilegiada. Ou, ao menos, na exclusividade de um
acesso privilegiado à consciência, que mais tarde ele chamará de intuitivo. Porém, é preciso observar que a
afirmação da experiência da liberdade, isto é, da liberdade como um dado da consciência imediata, não se dá no
início do itinerário filosófico do autor; mas ao fim de uma intrincada elaboração crítica que dialoga com a
psicologia experimental, com a filosofia da matemática e com a tradição metafísica, de modo que a apresentação
da liberdade como uma evidência psicológica é precedida por uma crítica bastante consistente das formas de
pensamento que se encarregaram de negá-la ou de simplesmente esquematizá-la artificialmente.
No fundo, a polêmica principal de Bergson se dá na denúncia da espacialização como o próprio modus
operandi da apreensão intelectual da realidade. Se a filosofia e a psicologia não compreendem o tempo concreto
e a liberdade da consciência é porque espacializam o tempo e os eventos da consciência, criando problemas
fictícios que se dissolvem tão logo se retoma o ponto de vista da duração. Pensar em duração é, aliás, a proposta
que o filósofo francês apresenta para superar as antinomias milenares da reflexão filosófica, bem como a
influência deletéria do tempo espacializado, que produz tais antinomias. Assim, o problema da liberdade, o
debate sem fim entre deterministas e indeterministas, não se impõe à reflexão de modo invencível. Na verdade, é
a incompreensão do tempo como “duração pura”, constituindo a própria estrutura da consciência, que permite
pensar a dinâmica psicológica como sucessão de estados estanques, cada um deles determinando os demais.
Faz sentido falar em psicologismo aqui, talvez. Mas seguramente Bergson estabeleceu em sua vertente
crítica (na denúncia dos limites da compreensão intelectual do mundo, o que no contexto do Ensaio coincide com
a denúncia dos limites da espacialização como forma adequada de representação das coisas) uma maneira de
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superar as dificuldades da filosofia apontando para uma nova perspectiva diante do objeto de conhecimento.
Enfim, uma perspectiva que permite uma coincidência com o objeto, apreendendo-o desta vez internamente. É
nessa modalidade de conhecimento que a liberdade se revela como “dado imediato”.
REFERÊNCIAS
a
BERGSON, Henri. Oeuvres. (Édition du centenaire). 6 ed. Paris: PUF, 2001.
PRADO JR., Bento. Presença e campo transcendental: consciência e negatividade na filosofia de Bergson.
São Paulo: Edusp, 1989.
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