Entrevista com Luiz Orlandi - Deleuze International

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1 DELEUZE INTERNATIONAL
MEMÓRIAS DE UM JARDIM DE EPICURO
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Entrevista com Luiz Orlandi por Wolfgang Pannek
DI: O que provocou seu interesse em Deleuze e o que o motivou a traduzir alguns
de seus livros? O trabalho com e a partir dessa obra teve um efeito transformador
sobre o trabalho filosófico do senhor? Qual é o papel que a interação com essa
obra ocupa em sua trajetória?
Luiz Orlandi: Os sinais estimulantes do meu interesse por Deleuze, da minha atenção às
suas obras, vieram, inicialmente, de referências acentuadamente elogiosas -- feitas por
professores universitários meus nos quatro primeiros anos da década de 60 -- ao
Empirismo e subjetividade (de 1953), livro a respeito de Hume, que tive o prazer de
traduzir muitos anos depois, tradução finalmente publicada em 2001. Essa nascente
atenção era do tipo que nos envolve em contato com um perspicaz historiador da
filosofia, mas não ainda aquela que se nos impõe quando notamos a emergência de uma
nova problemática filosófica nos movimentos quase clandestinos daquela perspicácia.
Esses movimentos passaram a ser variadamente notáveis nas monografias seguintes,
como as dedicadas a Nietzsche (1960 e 1965), a Kant (1963), a Proust (entre 1964 e
1970) a Bergson (1966 – minha tradução de Le bergsonisme data do final da década de
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Luiz Benedicto Lacerda Orlandi fez graduação em Pedagogia na Universidade Estadual de São Paulo
Júlio de Mesquita Filho, é Mestre em Poética pela Universidade de Besançon – França (1970), Doutor em
Filosofia pela Universidade Estadual de Campinas – SP e, desde 1997, Professor Titular do Departamento
de Filosofia do IFCH-UNICAMP. Foi Diretor do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH),
Chefe do Departamento de Filosofia do IFCH da Unicamp e trabalhou como professor na Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo. Escreveu os livros A Voz do Intervalo (São Paulo, Ática, 1980) e
Falares de malquerença a propósito de pesquisa, verticalidade e realidade profunda (Cadernos do IFCH,
Nº8, Campinas: IFCH-UNICAMP, 1983) além de uma grande variedade de capítulos, ensaios, artigos e
apresentações em livros sobre Nietzsche, Foucault, Deleuze, Zourabichvili e outros filósofos. Traduziu as
seguintes obras de Deleuze (e Guattari): Diferença e Repetição (em cooperação com Roberto Machado)
Empirismo e Subjetividade, Spinoza e o Problema de Expressão, Anti-Édipo, O conceito de diferença em
Bergon, A Dobra: Leibniz e o Barroco, A Ilha deserta e outros textos.
2 90), a Sacher-Mazoch (1967) e, principalmente, a Espinosa. Digo principalmente,
porque Espinosa e o problema da expressão, -- cuja tradução, refeita por um grupo de
que tive o prazer de participar, será brevemente publicada -- foi, de fato, o primeiro
livro de Deleuze que li apaixonadamente no ano de sua publicação, em 1968, quando,
com bolsa da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp) e já
contratado pela Universidade Estadual de Campinas, iniciei meu mestrado na França.
Posso dizer que minha atenção por Deleuze foi plenamente capturada por esse poderoso
arco de seus bons encontros com filósofos e escritores. Entretanto, Diferença e
repetição, também de 1968, livro que, para mim, dura como o mais decisivo
acontecimento intelectual da segunda metade do séc. XX, é a obra que traz todos esses
bons encontros à atenta consistência conceitual de uma nova problemática e, portanto,
de uma nova filosofia. Foi por isso que, anos depois, assumi com muito gosto a tarefa
proposta pelo Roberto Machado de fazer uma espécie de primeiro jato da tradução
brasileira, jato a que ele se juntou já na primeira edição, publicada em 1988, edição
corrigida numa segunda, a de 2006, conjunto este atualmente submetido a revisões para
uma terceira edição, tarefa esta de que venho participando com um grupo de Campinas
e de São Paulo. Portanto, respondendo ao segundo aspecto dessa primeira vertente da
pergunta, posso dizer o seguinte: o motivo do meu envolvimento com traduções de
textos deleuzianos liga-se a uma certa utilidade do ato de traduzir; para mim, embora
cometa erros como todo tradutor, traduzir é utilíssimo às pesquisas que faço ao
percorrer conexões conceituais com que as obras de Deleuze e Guattari inovam a
pergunta pelo sentir e pensar neste ou naquele domínio. Devo salientar, entretanto, que
não sou um tradutor profissional à espera de encomendas, o que me leva apenas de
quando em quando a oferecer a editoras uma tradução feita por mim ou por outros
estudiosos de Deleuze. Por isso, são relativamente poucas as minhas traduções
publicadas. Além das já referidas, traduzi A dobra. Leibniz e o Barroco, organizei e
participei do grupo que traduziu A ilha deserta e outros textos. Traduzi ainda, de
Deleuze e Guattari, O anti-Édipo.
A respeito do efeito transformador das obras deleuzianas sobre meus
esforços em filosofia, digo que esse novo modo de sentir e pensar, a que elas dão
considerável consistência, estava como que formigando em meus nervos. Faltando-me
condições para me dedicar a filosofias antigas e medievais, meus nervos pediam
recursos a marxismos e a fenomenologias para chegar a alguma variação interessante no
jogo das teorias e práticas. Minha tese de doutorado a respeito de Merleau-Ponty (A voz
do intervalo), defendida em 1974, comporta algumas linhas de saída dessa paisagem
filosófica, mas o meu próprio hábitat deleuziano estava ainda por se fazer e isso é uma
tarefa que continua em processo. Nos cursos de epistemologia sobre a noção de
estrutura, que eu ministrava a alunos de Ciências Humanas nesses mesmos anos da
década de 70, foi quando comecei a colher problematizações a partir de As palavras e as
coisas (1966) e de A arqueologia do saber (1969), livros de Michel Foucault, sobre os
quais Deleuze já dizia coisas em 1970, coisas que ele retoma em seu livro Foucault
(1990). E entre essas coisas havia sua apreensão d’Arqueologia do saber como apelo a
3 uma teoria das produções, ideia que implica rodízios entre práticas revolucionárias e
lances discursivos formados no elemento de um fora. A rigor, para mim, esse tipo de
apreensão nunca perdeu sua atualidade.
Finalmente, a respeito da impregnação da minha trajetória intelectual
pelas obras de Deleuze e Guattari, só posso dizer que ela é constante, intensa, mas não
sufocante ou capaz de criar uma unilateralidade dogmática. Defino-me como constante
estudioso e aprendiz dessas obras, além delas me darem imenso prazer. Não é à toa que
cerca de 60 das minhas publicações passam por essas obras, afora dezenas de
conferências. Não paro de ler outros filósofos e gosto muito dos grandes comentadores
deles, principalmente quando aprendo com eles no próprio lance em que me dão até
uma excessiva consciência das limitações do meu conhecimento filosófico. Acontece
que minha trajetória não é determinada apenas pelo meu próprio e individual interesse
pelas obras deleuze-guattarianas. Ela é determinada também pelo interesse de outros
estudiosos que me convidam para participar de bancas examinadoras, além de muitos
orientandos meus que fizeram e ainda fazem mestrado e doutorado a respeito dessas
obras ou que as utilizam em temáticas as mais díspares. Não é o caso de listar os nomes
deles e os títulos dos seus trabalhos, mas posso dizer que já orientei cerca de 80
mestrados e doutorados, afora algumas co-orientações entre 1989 e hoje. Não me
arrependo desse trabalhão, mas já me sinto meio fatigado para manter o ritmo.
Resumindo, o papel que me coube até hoje em contato com essas obras é o de um feliz
aprendiz estudioso.
DI: O que possibilitou a cooperação entre o senhor e Roberto Machado na
tradução de Diferença e Repetição? Como funcionou esse processo? Como reagiu o
cenário filosófico e cultural brasileiro à Diferença e Repetição poucos anos depois
do fim do regime militar?
LO: Roberto Machado aproveitou, como vários outros brasileiros, a feliz oportunidade
de ouvir aulas de Deleuze. Além disso, conseguiu os direitos para traduzir Diferença e
repetição em português. Foi o que ele me disse numa carta, escrita no começo da
década de 80, na qual me perguntava se eu me dispunha a fazer esse trabalho. Fiquei
felicíssimo e lhe respondi que sim, que seria um privilégio enorme enfrentar essa tarefa.
Eu tinha plena consciência das dificuldades que me esperavam, pois já estava na terceira
ou quarta leitura desse livro tão magnífico. Mas não conheço o processo pelo qual ele
conseguiu obter esses direitos. Sei apenas que ele era e é um forte estudioso de Deleuze,
assim como de Foucault e Nietzsche, para citar apenas autores em relação aos quais ele
escreveu livros muito utilizados por universitários brasileiros. Sua primeira obra a
respeito de Deleuze (Deleuze e a filosofia) foi publicada em 1990, assim como a de José
Luis Pardo (Violentar el pensamiento, Ed. Cincel, de Madrid), sendo ambas, portanto,
pioneiras enquanto apresentação ampla do pensamento deleuziano no ocidente. Nesse
livro de Roberto aparece uma das primeiras bibliografias extensas de Deleuze, assim
4 como de artigos escritos por pesquisadores desse pensamento. Pela gentileza de sua
amizade, tive a honra de ver cinco dos meus artigos anotados nessa bibliografia sobre
Deleuze. Digo isso não só por orgulho, mas também para responder a um certo aspecto
de sua pergunta: o modo como se deu meu entrosamento com Roberto. Pelo que me
lembro, do ponto de vista dos contatos pessoais, acho que devemos nossa mútua
aproximação a um amigo comum e estudioso de Hegel, Marcos Lutz Müller, meu
colega de Universidade. Encontramo-nos num almoço e sentimos fortemente não só o
gostoso de uma boa comida como também a acentuada ressonância mútua dos nossos
projetos intelectuais. Nosso interesse por Foucault também nos aproximava. Por
exemplo, um dos livros que dele ganhei (Ciência e saber – A trajetória da arqueologia
de Foucault, de 1982) estava acompanhado por um bilhete escrito num cartão da Graal,
justamente a editora desse livro e que veio a publicar, em 1988, (apressadamente, para o
meu gosto) a primeira edição da nossa tradução de Diferença e repetição. Nesse bilhete,
Roberto dizia uma coisa muito simpática: “Luiz Orlandi, desconfio que o trabalho que
você realiza em Campinas tem muito a ver com o que procuro fazer aqui" [no Rio de
Janeiro] "com um grupo de amigos. Espero que não continuemos tão sem contato e que
a possibilidade de uma colaboração se efetive. Um abraço, Roberto”. Com essas
informações, quero salientar que a colaboração entre Roberto e mim foi sempre
marcada pela pureza da admiração e respeito mútuos, o que não elimina pequenas, mas
saudáveis divergências em torno de valorizações maiores ou menores deste ou daquele
termo ou desta ou daquela linha de expressão do pensamento deleuziano.
Quanto aos efeitos de Diferença e repetição nos variados guetos de
estudiosos de filosofia no Brasil, confesso minha absoluta ignorância, ainda mais
quando se procura pensar isso num cenário de lutas pela democratização do País. O que
posso dizer é que a década de 80, no Brasil, já é politicamente marcada por movimentos
sociais cada vez mais pensáveis (não estou dizendo explicáveis) através de uma
sensibilidade aberta pela eclosão de diferenciações que obrigam o pensamento a
dedicar-se a micro-apreciações irredutíveis a generalidades, a dogmas interpretativos, a
concepções do mundo, a totalizações hegelianas ou não etc. Há um livro de 1982
(Editora Brasiliense), no qual Félix Guattari, companheiro de Deleuze na autoria de O
anti-Édipo (1972) e de Mil platôs (1980), entrevista Lula, então um dos líderes do novo
sindicalismo brasileiro e co-criador de um novo Partido Político. Na apresentação desse
livro, Laymert Garcia dos Santos, também meu colega de Universidade, distingue com
precisão a atuação de Guattari como sendo, não a de um “livre atirador”, mas como a de
quem “sempre deseja o ponto de contato de um plural, de um movimento em
movimento”, desejo esse “que o leva ao encontro da autonomia italiana, do
Solidariedade polonês, do Partido dos Trabalhadores brasileiro...”. Aproveito a pergunta
para anotar um contraste: na mesma década, já no final dela e numa democracia ainda
entulhada de restos autoritários, tive a oportunidade, como diretor do Instituto de
Filosofia e Ciências Humanas da Unicamp, de propor à reitoria a contração de Antônio
Negri para Filosofia Política e, em seguida, a de Guattari para o conjunto de Sociologia.
A contratação de Negri foi bloqueada, como me disse o então reitor, Paulo Renato de
5 Souza, a partir de um mal-estar havido no Ministério da Justiça, mal-estar do qual ele
tinha sido informado pelo então senador Fernando Henrique Cardoso; a contratação de
Guattari não foi absorvida, foi abafada pela lentidão de macro-sociólogos. Como os
ventos são mutantes, notei há pouco tempo o quanto Mil platôs é hoje estudado por
sociólogos, antropólogos etc do instituto com o qual colaboro até hoje.
DI: Como diretor do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da
Unicamp, chefe do Departamento de Filosofia do IFCH e professor da Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo, para citar somente algumas das posições que
ocupou durante sua carreira, o senhor teve ampla oportunidade de cooperar com a
evolução da recepção da obra de Deleuze (e Guattari) no Brasil e ao longo dos
últimos 25 anos. Como avalia as transformações desse processo de recepção?
LO: Bem, fui diretor do IFCH entre o final de 1984 e o início de 1989, anos de
redemocratização do País, portanto. Para ser diretor eu tinha de disputar uma eleição e
ser incluído numa lista dos seis nomes mais votados, lista finalmente submetida ao
poder que o reitor tinha de escolher um deles. A escolha do meu nome pelo reitor só
aconteceu após eu vencer cinco prévias eleitorais, contando com votos de estudantes
(quase 99%), de funcionários (cerca de 92%) e professores (que oscilaram, se bem me
lembro, de 35% no início a cerca de 70 % no final). Mas não fui precisamente escolhido
apenas pelo desempenho eleitoral; fui escolhido pelo reitor após meus aliados e eu
termos conseguido, ao longo das prévias, provocar a desistência da pessoa candidata
apoiada pelo poder do Instituto de Economia que, enquanto esteve conectado ao IFCH,
exercia uma hegemonia graças à utilidade que tinham na acessória aos macro e micro
poderes dominantes na Reitoria. Tenho provas suficientes para caracterizar essa vitória
como partícipe de movimentos em prol de uma inovação do convívio universitário,
desde uma crescente liberdade acadêmica até o aprimoramento das relações
democratizadoras nos vários coletivos de alunos, funcionários e professores; o próprio
Conselho Universitário sofreu os efeitos dessa onda de respeito democrático. O
primeiro ato da minha gestão foi recontratar o fundador do Instituto, que fora expulso da
Universidade em 1972 pelo poder autoritário do primeiro reitor, que fora um dos
pregadores do golpe militar de 1964. Não vou reproduzir aqui o Relatório oficial da
minha gestão. Destaco apenas a criação da Graduação em Filosofia, a abertura de várias
linhas de pesquisa, uma ampla contratação de professores em todas as áreas, uma
alegria jamais vista anteriormente no Instituto. Plantamos um jardim ao qual imaginei
dar o nome de Jardim de Epicuro, o que seria também uma sutil e silenciosa
homenagem a Deleuze. A não ser a crescente ampliação da biblioteca do Instituto, não
herdei qualquer privilégio como efeito da minha gestão, nem mesmo uma sala para uso
próprio. Considero essa ilha do passado um pequeno acontecimento ritmando o que
pode ser uma ética espinosana-nietzschiana-bergsoniana-deleuziana... Em suma, foi a
partir dessa ilha que pude orientar até hoje quase uma centena de mestrandos e
6 doutorandos, não só brasileiros como também alguns argentinos. Ela tornou possíveis
meus encontros com Suely Rolnik e Peter Pál Pelbart, aos quais devo o amável convite
para atuar durante quase quinze anos na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
como intercessor na captura de conceitos deleuzianos porventura úteis aos temas ligados
à problemática da subjetividade. Tenho boníssimas lembranças desse período e das
inúmeras e lindas pessoas com as quais vivi tocantes momentos da paixão pelos
conceitos. Além desses contatos, foi uma honra ter servido como orientador no
doutoramento de Claudio Ulpiano, que era um dos mais queridos mestres conhecedores
do pensamento deleuziano no Rio de Janeiro, um dos maiores animadores e um dos
mais admirados. Digo essas coisas todas para dar uma ideia das conexões brasileiras
entre estudiosos de Deleuze, conexões que não eram apenas as animadas por nós e pelo
meu amigo Eric Alliez (o primeiro a solicitar um artigo meu -- "Simulacro na filosofia
de Deleuze" -- para uma revista que ele animava no Rio de Janeiro). Fomos
descobrindo que havia estudiosos dessa filosofia em todos os recantos do Brasil, em
Porto Alegre, em Fortaleza, em Assis, no interior de Goiás... e sem que isso dependesse
de um centro de convergência ou de organização. Em minha própria Universidade há
grupos de pesquisadores dessa filosofia (como os da Faculdade de Educação, do
Instituto de Estudos da Linguagem, do Grupo Lume de Teatro Experimental, do grupo
de músicos) independentes uns dos outros. Nem mesmo o atual GT-Deleuze, grupo de
pesquisadores que se reúnem por ocasião dos encontros da Anpof (Associação Nacional
dos Professores de Filosofia) centraliza o trabalho dos participantes ou cria vínculos
suspeitos de algum tipo de dependência. Devo ainda salientar uma coisa geralmente
esquecida por profissionais do ensino público quando se fala em pesquisas ligadas ao
pensamento deleuziano. Conheço um estudioso em São Paulo, Luis Fuganti, que atua há
muitos e muitos anos sem ligação alguma com escola pública ou particular tradicional.
Ele praticamente depende do seu próprio esforço intelectual, propiciando inúmeros
cursos e animando uma Escola Nômade de Filosofia. Acho isso imensamente saudável.
Não emito juízo de valor a respeito da maior ou menor qualidade dos trabalhos, das
centenas de teses e artigos que resultam disso tudo. Acho positivo haver esse crescente
interesse pelas obras, interesse não apenas teórico, digamos, mas também práticos, pois
são inúmeros os estudiosos que extraem dos conceitos consideráveis estímulos para
pensar e inovar algumas linhas das disciplinas em que se encontram engajados
profissionalmente. Aspectos negativos são inevitáveis, como usos e abusos de
conceitos, prepotências inexplicáveis... tudo que é próprio de um estado de coisas
universitário ainda demasiadamente precário.
DI: Como avalia os efeitos da crítica deleuziana do poder, do capitalismo e do
Estado sobre o pensamento político no Brasil?
LO: Para mim, é muito difícil avaliar efeitos dessa crítica deleuziana de um ponto de
vista assim tão amplo. O que noto é o interessante e crescente rizoma de um novo senso
7 crítico em relação aos poderes, às maneiras pelas quais o capital financeiro e a estratégia
de produção dominante capturam o trabalho e a vida das pessoas, levando-as a uma
espécie de existência instrumentalizada em detrimento de suas próprias vidas. É um
viver para engrenagens endurecidas, que não se modulam como aberturas de saudáveis
mundos possíveis. É claro que a um desempregado o emprego abre novas
possibilidades; é claro, portanto, que esse senso crítico não se opõe ao desenvolvimento
do País, o desenvolvimento que se nota desde o primeiro governo Lula, por exemplo.
Mas sabe também que é preciso aprofundar uma ampla democracia social, torná-la
capaz de entrar em ressonâncias com exigências qualitativas de um responsável bem
viver. Movimentos nesse sentido poderão ser capazes de exigir dos poderes uma
recepção respeitosa e inteligente das manifestações dos problemas, sejam estes grandes
ou pequenos, sejam de categorias sociais ou de indivíduos. Parece-me que o
crescimento desse novo senso crítico vai nessa perspectiva. E pelo que tenho visto, esse
senso crítico não é, no Brasil atual, monopólio das antigas esquerdas comunistas,
socialistas, sindicais etc. Elas continuam ativas, é claro, mas o que percebo é uma
presença cada vez mais acentuada de leitores de Foucault, Deleuze, Guattari, Negri e
outros autores que inspiram um multi esquerdismo mais nuançado, e mais nuançado
porque mais ciente do dinamismo das multiplicidades substantivas que modulam o
campo problemático em que vivemos.
DI: Sua tradução do Anti-Édipo foi publicada em 2010. Levando em consideração
sua própria especialização em história da filosofia, qual é a impressão que o AntiÉdipo lhe causa cerca de 40 anos após sua primeira publicação em 1972?
LO: Vivi uma experiência muito forte ao ler esse livro pela primeira vez logo após sua
publicação. Fiquei maravilhado com o contraste entre esse livro de dupla autoria e as
obras anteriores de Deleuze. Fiquei incentivado pela potência imediatamente política do
pensamento operante nesse livro numa nova teoria do desejo, não mais marcado pela
falta de algo ou pela teatralidade edipiana, mas por uma produtividade imanentista, livro
que junta Espinosa e Reich numa pergunta que nos atormenta até hoje: como pode
alguém desejar a servidão de si mesmo? Pois bem, esse primeiro e bom encontro com
O anti-Édipo se reanimou inúmeras vezes ao longo da minha tarefa de traduzi-lo. Nunca
me deixei afetar negativamente pela vertente kantiana que nele se nota no recurso às
sínteses, mesmo porque as sínteses passivas já liberavam suficientemente a atmosfera
desse livro, embora eu já estivesse, nessa mesma época da tradução, lido e relido Mil
platôs (1980), de ambos os autores, livro este que, sem dúvida, transborda com seu
magnífico espinosismo. Mas nunca me esqueci que O anti-Édipo propicia,
simultaneamente, uma extraordinária e mutante confluência e um delta de derivas por
variados domínios invadidos pela prática de uma transdisciplinaridade extremamente
original. Ele mantém viva a importância de encontros nos quais a diferença de potencial
opera num duplo movimento: o da confluência das produções anteriores dos autores e
8 seu renovado desabrochar numa exuberante multiplicidade de novas linhas do sentir, do
desejar, do pensar, do agir, do viver, do coexistir... E, a cada linha, a leitura descobre
uma nova escrita, uma nova maneira de ler, uma liberadora necessidade de juntar
diferentemente as coisas ou de separá-las também diferentemente. Para além de resumos
temáticos desse livro, o que rebrilha são intensas visões e audições que a leitura
experimenta na oceânica mobilidade desse livro tão ágil.
DI: Como percebe a interação e integração do meio filosófico brasileiro (não
somente relativo a Deleuze) no debate filosófico internacional?
LO: Não tenho uma visão abrangente disso nem qualitativa nem quantitativamente. Sei
que muitos estudiosos brasileiros, peritos em vários domínios da filosofia, estão ligados
a grupos de pesquisas e publicações no exterior. O nome de Marilena Chauí, por
exemplo, consta, no exterior, e merecidamente, entre grandes pesquisadores das obras
de Espinosa. Há certamente inúmeras linhas de contato entre estudiosos brasileiros e
estudiosos estrangeiros interessados em filosofia antiga, medieval, moderna,
contemporânea. O que não sei avaliar é o chamado nível de importância inovadora das
contribuições locais ao avanço do conhecimento que se tem de cada filósofo. Mas posso
dizer que há muita presença do debate filosófico internacional no Brasil, se se leva em
conta a magnífica abertura dos pesquisadores brasileiros às filosofias todas. Acho
extraordinária nossa dedicação a filósofos que não temos. Não vejo nisso um complexo
de inferioridade, de maneira alguma, um complexo de vira-lata, como diria certo
nacionalismo estreito; mas vejo, isto sim, uma grande vantagem que terá certamente
efeitos interessantes. Por que? Simplesmente porque é rica a multiplicidade de línguas
filosóficas que praticamos sem o perigo de sermos convocados para este ou aquele
centro filosófico de convergência. Acho saudável vivermos num imenso rizoma
filosófico. Talvez seja este um salutar convite brasileiro a um internacionalismo
intelectual, capaz de ir além do monolinguismo que se nota, por exemplo, na frase
imbecil segundo a qual só se filosofa em alemão ou em grego, frase que perde a
grandeza plurilinguística de um filósofo alemão chamado Leibniz etc.
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