ISSN 0103-3395 Relato de Caso Espasmo Arterial Coronariano Durante a Realização de Ecocardiograma sob Estresse com Dobutamina e Atropina em Paciente com Coronárias Angiograficamente Normais Luiz Darcy Cortez Ferreira, Manuel Adán Gil, Claudia Gianini Monaco, Carlos Eduardo Suaide Silva, Luciana Braz Peixoto, Juarez Ortiz Instituições: OMNI-CCNI Medicina Diagnóstica – São Paulo, Brasil Correspondência: Luiz Darcy Cortez Ferreira Rua Cubatão, 726 04013-002 - São Paulo, SP E-mail: [email protected] Descritores: Ecocardiografia, Estresse Farmacológico, Espascomo Arterial Coronariano. Recebido em: 28/02/2003 - Aceito em: 17/03/2003 RESUMO Apresentado relato de uma paciente com 45 anos encaminhada para realização de EDA após teste ergométrico anormal por dor precordial. Durante a realização do EDA apresentou dor precordial, elevação do segmento ST no eletrocardiograma e alterações tênues da contratilidade na parede inferior ao ecocardiograma. Cineangiocoronariografia subsequente mostrou coronárias isentas de processos obstrutivos. Esse caso é inusitado em Ano XVI • nº 2 • Abril/Maio/Junho de 2003 nossa experiência e raro na literatura. Especulamos sobre as possíveis causas de espasmo arterial coronariano nesta paciente, além do valor clínico do teste. INTRODUÇÃO O ecocardiograma sob estresse farmacológico com dobutamina e atropina (EDA) é método não invasivo rotineiramente utilizado com propósitos diagnósticos e prognósticos em pacientes com doença arterial coronariana conhecida ou suspeitada1,2. Devido aos seus efeitos inotrópico e cronotrópico positivos, a dobutamina promove incremento da demanda de oxigênio pelo miocárdio causando isquemia e anormalidades da contratilidade segmentar, em pacientes com obstrução coronariana significativa. A atropina, por seu efeito taquicardizante, potencializa o aumento de consumo de oxigênio, aumentando a possibilidade de desencadear isquemia miocárdica. Durante o EDA a isquemia miocárdica pode ser evidenciada pela deterioração transitória da contratilidade miocárdica identificada ao ecocardiograma, por vezes na ausência de alterações eletrocardiográficas isquêmicas. 1 Revista Brasileira de Ecocardiografia Esses achados estão de acordo com estudos experimentais onde, na chamada “cascata isquêmica”, o comprometimento contrátil segmentar geralmente precede às alterações eletrocardiográficas. A alteração eletrocardiográfica mais comum, indicativa de isquemia miocárdica durante o EDA, é a depressão do segmento ST. A elevação do segmento ST tem sido relatada como evento infreqüente, geralmente associada a infarto do miocárdio antigo, doença arterial coronariana com lesões críticas ou ainda a vasoespasmo, como ocorre em pacientes com angina variante de Prinzmetal3. Os episódios de espasmo coronariano podem ser desencadeados por uma gama de estímulos fisiológicos, mecânicos ou farmacológicos. No entanto, são raros os relatos da literatura descrevendo a ocorrência de espasmo coronariano induzido durante a realização de ecocardiograma sob estresse com dobutamina e atropina, em paciente com coronárias angiograficamente normais4-8. RELATO DE CASO Paciente de 45 anos, do sexo feminino, veio encaminhada ao nosso serviço para ser submetida a EDA, após realização de teste ergométrico anormal. Obesa, hipertensa em tratamento (enalapril 20 mg/dia e hidroclorotiazida 25 mg/ dia), tabagista e com antecedentes familiares de coronariopatia, a paciente negava precordialgia aos esforços, dispnéia ou alterações do ritmo cardíaco. O teste ergométrico havia sido interrompido por “ardor no peito” e “sensação de sufocamento” no terceiro estágio do protocolo de Bruce. No pico do teste a freqüência cardíaca era de 146 e a pressão arterial 200x100 mmHg. Notou-se acentuação das alterações da repolarização ventricular prévias, com infradesnivelamento do segmentos ST do tipo ascendente lento, não diagnósticas de isquemia. O teste foi considerado sugestivo de isquemia do miocárdio frente ao esforço, devido aos sintomas da paciente. 2 O ECOCARDIOGRAMA SOB ESTRESSE COM DOBUTAMINA E ATROPINA Após avaliação clínica sumária, foram realizados eletrocardiograma convencional e ecodopplercardiograma. A pressão arterial em repouso era 110 x 80 mmHg, mesmo com os anti-hipertensivos tendo sido suspensos por 5 dias. O eletrocardiograma mostrava freqüência cardíaca de 80 bpm, SÂQRS de 70º e alterações discretas e difusas da repolarização ventricular. O estudo ecocardiográfico antes do estresse era normal, com o ventrículo esquerdo apresentando contratilidade normal, sem comprometimento segmentar. Não havia contra-indicação para a realização do EDA. O EDA foi realizado conforme protocolo convencional, onde se infundem doses progressivas de dobutamina (5, 10, 20, 30 e 40 mcg/Kg/min) com incrementos a cada 3 minutos e posterior adição de 0,25 mg de atropina a cada minuto, até dose máxima de 1,0 mg, ou até se atingir a freqüência cardíaca adequada para a idade. Com a infusão de dobutamina ocorreu hipercontratilidade miocárdica progressiva. Após 40 mcg/ kg/min de dobutamina e 0,75 mg de atropina, no entanto, com freqüência cardíaca de 121 bpm e pressão arterial de 150 x 80 mmHg, a paciente referiu dor precordial súbita e de forte intensidade, sem irradiação, acompanhada de sudorese fria. Concomitantemente observou-se supradesnivelamento progressivo do segmento ST (até 5 mm) em D II, aVf, D I e aVL (Figura 1). Ao ecocardiograma, o ventrículo esquerdo apresentava resposta hiperdinâmica, porém menos acentuada na parede inferior (Figura 2). O exame foi imediatamente interrompido e a paciente medicada com dinitrato de isossorbida sublingual, propranolol endovenoso e solução decimal de meperidina endovenosa. Após 15 a 20 minutos houve melhora da dor, com retorno do eletrocardiograma e da contratilidade do ventrículo esquerdo aos padrões pré-teste. Após controle clínico, a paciente foi encaminhada à unidade hospitalar. Ano XVI • nº 2 • Abril/Maio/Junho de 2003 Revista Brasileira de Ecocardiografia foi considerada normal (Figura 3). Recebeu alta hospitalar em uso de diltiazem 160 mg/dia. DISCUSSÃO Figura 1. Registros eletrocardiográficos da derivação D II realizados pré e no pico de infusão de dobutaminaatropina. No pico de infusão do fármaco observa-se supradesnivelamento do segmento ST. CINEANGIOCORONARIOGRAFIA Após 24 horas, estável e assintomática, a paciente foi submetida à cineangiocoronariografia. As coronárias estavam isentas de processos ateromatosos significativos e a função ventricular esquerda O ecocardiograma sob estresse com dobutamina e atropina tem sido utilizado freqüentemente para identificar pacientes com coronariopatia obstrutiva. Devido aos efeitos inotrópico e cronotrópico há aumento do consumo de oxigênio, desencadeando isquemia e alterações da contratilidade em segmentos de miocárdio irrigados por coronária com obstrução significativa 2. O ecocardiograma identifica esses segmentos isquêmicos, com acurácia diagnóstica acima de 80% quando se compara os resultados com a presença de doença coronariana obstrutiva na angiocoronariografia. O teste é considerado seguro, embora não totalmente isento de risco1,2. Eventos isquêmicos como angina pectoris, alterações eletrocardiográficas (principalmente infradesnivelamento do segmento ST) e arritmias, são inerentes ao próprio exame. Angina pectoris e alterações eletrocardiográficas isquêmicas no pico do estresse, embora não Figura 2. Ecocardiograma com comparação lado a lado dos cortes apicais 4 câmaras (acima) e 2 câmaras (abaixo), antes e no pico de infusão de dobutamina e atropina. Nota-se pequena área de hipocontratilidade da parede ínfero-basal (seta). Ano XVI • nº 2 • Abril/Maio/Junho de 2003 3 Revista Brasileira de Ecocardiografia Figura 3. Cineangiocoronariografia. Painel A: coronária direita em OAE, isenta de processos ateromatosos. Painel B: coronária esquerda, com seus ramos principais (descendente anterior e circunflexa) em OAD, isenta de processos ateromatosos. sejam o padrão de referência do exame para diagnóstico de isquemia, reforçam o diagnóstico de insuficiência coronariana e se associam com maior número de eventos na evolução. Por outro lado, a elevação do segmento ST durante o EDA é, geralmente, secundária a infarto do miocárdio antigo e/ou lesões críticas de artérias coronarias5,9. Em estudo com 512 pacientes consecutivos submetidos a EDA, ocorreu elevação do segmento ST em 56 (11%) pacientes; 50 (89%) com infarto prévio, e os 6 restantes eram portadores de lesões críticas em artérias coronárias9. Em nossa experiência, realizando ecocardiogramas com estresse desde 1993, trata-se do primeiro caso confirmado, com estas características peculiares. No período de 02/01/1999 até 12/12/2001 realizamos aproximadamente 3.000 exames, sendo 92% sob estresse com dobutamina, associada a atropina quando indicado. Portanto, tanto em nossa experiência quanto na 4 literatura, são bastante raros os quadros isquêmicos com supradesnivelamento do segmento ST durante a realização de EDA, em pacientes sem lesão coronariana significativa ou infarto do miocárdio pregresso4-8. No presente relato a paciente apresentou quadro isquêmico durante a infusão de dobutamina e atropina, caracterizado por dor precordial típica, elevação do segmento ST e alterações discretas da contratilidade segmentar do ventrículo esquerdo ao ecocardiograma. Essas alterações se associam freqüentemente com a presença de doença coronariana obstrutiva. O estudo angiográfico, no entanto, identificou coronárias isentas de processos ateromatosos significativos. Então, ao invés de lesões obstrutivas críticas, o mecanismo que desencadeou a isquemia miocárdica foi o espasmo coronariano. Dos relatos de caso com ocorrência semelhante ao nosso, apenas em um o vasoespasmo de coronária angiograficamente normal induzido pela EDA foi reproduzido durante a cineangiocoronariografia, com a infusão de dobutamina4. O espasmo coronariano em pacientes com angina variante é presumivelmente induzido por estimulação dos alfa-receptores10. O vasoespasmo pode ocorrer mesmo em placas ateromatosas pouco significativas e coronárias angiograficamente normais, provavelmente com disfunção. A dobutamina parece agir não somente sobre os receptores beta1, mas também nos receptores alfa. É possível que a estimulação destes receptores coronarianos com altas doses de dobutamina e atropina, possa provocar espasmo arterial4,5. Durante exercício ou com infusão de dobutamina, habitualmente ocorre vasodilatação e aumento do fluxo sanguíneo coronariano. Em pacientes com disfunção endotelial, entretanto, a dobutamina talvez possa provocar resposta paradoxal, com vasoconstrição, da mesma forma que ocorre com a acetilcolina em coronárias normais e naquelas com disfunção endotelial8. Outro mecanismo invocado para explicar o espasmo com dobutamina inclui a hiperventilação, Ano XVI • nº 2 • Abril/Maio/Junho de 2003 Revista Brasileira de Ecocardiografia que ocorre em alguns pacientes, e sabidamente provoca vasoespasmo5. Em nosso relato a paciente apresentava diversos fatores de risco e, entre eles, o tabagismo. Fatores de risco, principalmente o tabagismo, têm sido citados como predisponentes para espasmo coronariano em outros relatos4,5,8. A produção de radicais livres induzida pela inalação da fumaça do cigarro interferiria na vasodilatação endotélio-dependente, facilitando o aparecimento de vasoespasmo. Se por um lado o espasmo coronariano com supradesnivelamento do segmento ST ocorre raramente na população geral submetida ao EDA, por outro poderia-se entender a partir do caso descrito, que o teste pudesse ser adequado para a identificação de pacientes portadores de angina vasoespástica. Num estudo recente, 51 pacientes sem coronariopatia obstrutiva e com quadro clínico de angina vasoespástica foram submetidos ao ecocardiograma sob estresse com dobutamina. Apenas 7 apresentaram alterações segmentares ao ecocardiograma, associadas com supradesnivelamento do segmento ST ao eletrocardiograma, denotando então baixa sensibilidade no diagnóstico dessa doença8. CONCLUSÃO Enfim, apresentamos relato de caso em que a ocorrência de evento isquêmico, com supradesnivelamento do segmento ST durante a realização do EDA, ocorreu em paciente sem infarto prévio e sem lesões coronarianas obstrutivas ao estudo cinecoronariográfico. Evento como esse é bastante raro em nossa experiência e na literatura. Não há subsídios para indicar o EDA como método de diagnóstico de doença coronariana vasoespástica sem obstrução fixa associada. O vasoespasmo coronariano desencadeado durante o EDA não tem, ainda, valor clínico definido, sendo necessário acompanhar esses pacientes para definir seu real valor prognóstico. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 01. Latanzi F, Picano E, Adamo E, Varga A. Dobutamine stress echocardiography: safety in diagnosing coronary artery disease. 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