SUMÁRIO INTRODUÇÃO ........................................................................................................................................................... 2 1 LIMITAÇÕES CRONOLÓGICAS, HISTÓRICAS E LITERÁRIAS DA INFÂNCIA DE JESUS ................ 4 1.1 LIMITAÇÕES CRONOLÓGICAS............................................................................................................................... 4 1.2 LIMITAÇÕES HISTÓRICO-LITERÁRIAS................................................................................................................... 6 2 A INFÂNCIA DE JESUS NA PERSPECTIVA DE MATEUS ............................................................................ 9 2.1 A ASCENDÊNCIA DE JESUS SEGUNDO MATEUS? .................................................................................................. 9 2.2 QUEM É JESUS SEGUNDO MATEUS? ................................................................................................................... 11 3 A INFÂNCIA DE JESUS NA PERSPECTIVA DE LUCAS.............................................................................. 13 3.1 A ASCENDÊNCIA DE JESUS SEGUNDO LUCAS? ................................................................................................... 13 3.2 QUEM É JESUS SEGUNDO LUCAS? ...................................................................................................................... 15 4 QUANDO SURGE O INTERESSE PELO JESUS HUMANO?........................................................................ 18 4. 1 LEITURA HISTÓRICO-LITERÁRIA ....................................................................................................................... 18 4.2 LEITURA TEOLÓGICA ......................................................................................................................................... 20 CONCLUSÃO ........................................................................................................................................................... 22 REFERÊNCIAS ........................................................................................................................................................ 24 INTRODUÇÃO Iniciamos este nosso trabalho imaginando que a origem e o centro da fé em Jesus Cristo encontram-se em sua ressurreição. O mistério pascal ocupa o centro do interesse das primeiras comunidades cristãs. No decorrer do trabalho percebe-se que, inicialmente os cristãos começam a busca pelo conhecimento da vida pública e missão de Jesus. Já num segundo momento, no Evangelho de Marcos, percebe-se o interesse pelas ações de Jesus desde o seu batismo. Num terceiro momento surge o interesse pela infância de Jesus. Por aquilo que Ele teria feito antes do batismo e depois da concepção. Lucas e Mateus são os evangelistas que se encarregam de registrar os primeiros passos desta terceira etapa. Depois João, que não trataremos neste trabalho, vai para além da concepção. Vai ao princípio de tudo. O que não significa que a morte e a ressurreição deixem de ser o centro do cristianismo. Em todas as etapas o evento pascal continua sendo o centro, mas os interesses vãos alargando as margens de buscas e esclarecimentos a respeito da vida de Jesus Cristo. O nosso intuito aqui é buscar alguns elementos que nos ajudem a conhecer o período da infância de Jesus. O período ‘oculto’ de sua vida. A parte que só Mateus e Lucas narram no início de seus Evangelhos. Veremos que tais relatos apresentam uma cristologia já bem elaborada. Uma cristologia que já demonstra certa caminhada de fé. Estes textos valorizarão as genealogias como forma de expressar dimensão humana de Jesus. O Filho de Deus, sem deixar de ser Deus, se aproxima do ser humano de forma única. Apresenta-se como um dos humanos que melhor se encarnada na história judaica. Na história do povo de Israel. Mateus apresenta o Cristo como o libertador esperado, que vem de Abraão, o pai do povo de Israel. Lucas, que escreve seu Evangelho para além do povo de Israel, vai firmar as raízes de Jesus lá em Adão. Com isso apresenta um Jesus-Messias, esperado e sonhado por toda a humanidade e não apenas por Israel. Em nosso trabalho optaremos por trabalhar a partir destes dois Evangelhos. Teríamos a opção de incluir textos apócrifos, mas optaremos por não fazê-lo. Ao mesmo tempo em que tais textos enriqueceriam de detalhes e outras informações também nos exporiam a um maior número de incertezas que as já existentes nos Evangelhos canônicos. Não 3 ignoramos a leitura dos apócrifos, mais manteremos o cuidado para que elas afetem o mínimo possível o texto que aqui elaboraremos. Não descartamos a possibilidade de tratá-los numa outra oportunidade, mas aqui trataremos da infância de Jesus em Mateus e em Lucas. 1 LIMITAÇÕES CRONOLÓGICAS, HISTÓRICAS E LITERÁRIAS DA INFÂNCIA DE JESUS 1.1 Limitações cronológicas Formular uma opinião segura sobre a infância de Jesus a partir dos Evangelhos seria uma ousadia bastante imprudente. Na verdade, se no catolicismo, os Evangelhos da infância são muito mais estudados que outrora, eles quase sempre o são numa perspectiva marial. Quanto à exegese desses Evangelhos, é difícil e confusa: só a temeridade ou a ignorância permitem formar uma opinião segura (DUQUOC, 1992, p. 21). A maioria dos biblistas afirma que o primeiro Evangelho escrito foi o de Marcos. O Evangelho de Marcos nada descreve da infância de Jesus. Mateus e Lucas, cada um a seu modo, redigem uma história de tal período da vida de Jesus. Estes dois evangelhos foram redigidos em torno do ano oitenta. Meio século depois de ocorridos os fatos que descrevem. Isto significa que estas narrativas passam pelos acidentes acontecidos quando histórias são transmitidas oralmente de uns para outros. Contudo, nos Evangelhos é dada mais importância ao nascimento que à infância de Jesus. Postura essa, um tanto comum nos textos bíblicos: apresentar a concepção, o nascimento e a importância de sua missão. Raramente se encontra na Bíblia, bem como nas hagiografias, narrativas da infância de seus personagens. Geralmente o nascimento é lido a partir da missão desenvolvida. O que faz com que a piedade do escritor force a existência de sinais divinos já logo no começo. Pseudos sinais inerentes à existência do indivíduo, que só iriam frutificar ao atingir a vida adulta. Tal indivíduo seria, em tudo, sujeitado à vontade de Deus de tal forma que pouco importaria a vontade humana, bem como a fase de desenvolvimento e amadurecimento do sujeitado. Ele nascia santo e só lhe cabia, quando “chegasse a hora”, espraiar santidade. O advento à existência não é estranho à soberania de Javé. A concepção ou nascimento podem indicar uma vocação particular da criança: Jacó vence a Saul, e a Bíblia reconhece nesse fato, independente de qualquer vontade humana, a benção de Deus 5 sobre a raça de Jacó: aquilo que ocorreu no nascimento pressagia tudo o que advirá a seguir, na história (DUQUOC, 1992, p. 23). Os escritos do Novo Testamento não abandonam tal gênero literário. Isso é expresso tanto no nascimento de João Batista, bem como, no de Jesus. Não temas Zacarias, porque tua súplica foi ouvida, e Isabel, tua mulher, te dará um filho, ao qual porás o nome de João. Terás alegria e regozijo, e muitos se alegrarão com seu nascimento. Pois ele será grande diante do Senhor; não beberá vinho, nem bebida embriagante; ficará pleno do Espírito Santo ainda no seio de sua mãe e converterá muitos dos filhos de Israel ao Senhor, seu Deus. Ele caminhará à sua frente, com o espírito e o poder de Elias, a fim de converter os corações dos pais aos filhos e os rebeldes à prudência dos justos, para preparar ao Senhor um povo bem disposto (...). Algum tempo depois, Isabel, sua esposa, concebeu e se manteve oculta por cinco meses, dizendo: Isto fez por mim o Senhor, quando se dignou retirar o meu opróbrio perante os homens! No sexto mês, o anjo Gabriel foi enviado por Deus a uma cidade da Galiléia, chamada Nazaré, a uma virgem desposada com um varão chamado José, da casa de Davi; e o nome da virgem era Maria. Entrando onde ela estava, disse-lhe: Alegra-te, cheia de graça, o Senhor está contigo! (...) Não temas, Maria! Encontraste graça junto de Deus. Eis que conceberás no teu seio e darás à luz um Filho do Altíssimo, e o Senhor Deus lhe dará o trono de Davi, seu pai; ele reinará na casa de Jacó para sempre, e o seu reinado não terá fim (Lc. 1, 12-33). Nos dois casos os escritos relatam o anúncio da concepção, o nascimento e a indicação do destino da criança. Nos Evangelhos as narrativas da concepção e do nascimento de Jesus não são o objeto da narração. A narração desta etapa da vida de Jesus é abordada como uma espécie de prólogo para narrar o anúncio de Jesus. A Boa Nova de Jesus não é sua concepção ou nascimento, mas sua palavra e ressurreição. As narrativas do nascimento e do tempo que antecede a pregação de Jesus, geralmente, são uma reconstituição da memória de quem acredita. Os antecedentes pertencem a outro gênero literário, pertencem à memória, à meditação. Aquele que crê, quer perscrutar as correspondências entre o passado e o futuro. Interroga-se a respeito do destino providencial de Jesus. Remonta ao mistério das origens. Tudo lhe parece já encerrado por Deus, na criança cujo destino foi tão grande (DUQUOC, 1992, p. 23). As narrativas da concepção e nascimento de Jesus são frutos de uma leitura a posteriori, determinada pela relação com o anúncio que antecede a pregação de João Batista. Tais narrativas se inserem na tradição do Antigo Testamento. Buscam evidenciar na concepção ou nascimento os sinais que antecipem um destino abençoado por Deus. Essas narrações podem tanto serem, como não serem, de fundamento histórico. Seu objetivo é ensinar uma doutrina. Nos Evangelhos, a concepção e nascimento do Cristo foram interpretados à luz da Boa Nova. Perceberam em certas circunstâncias desse nascimento, sinais anunciadores de sua acolhida por parte dos Judeus e Gentios. Essas narrativas são profecias em ação: dão apoio à Boa Nova por meio de preparações imediatas. O destino real de Jesus foi repleto de contradições: sua incapacidade de se fazer entender pelos chefes do povo, e a morte trágica daí decorrente, não constituem surpresa. No nascimento já, não houvera ninguém que hospedasse sua mãe, e Herodes procurou matar Jesus, com receio de 6 perder o próprio poder. Jesus e seus pais tiveram de procurar o exílio. Na apresentação no Templo já, o profeta Simeão havia anunciado a divisão que Jesus causaria. A partir disso, a rejeição de Jesus por parte dos seus, se tornara mais inteligível. Não se tratava de um fracasso imprevisto, mas era o desenrolar da vida messiânica do Servo, descrita por Isaías, misteriosamente antecipado nas hostilidades iniciais (DUQUOC, 1992, p. 24). É possível afirmar que os evangelistas não redigem uma biografia da infância de Jesus, uma vez que em tais textos não se encontra um interesse pela cronologia. Esta etapa da vida de Jesus parece, de fato, só ter sentido como prólogo para a Boa Nova. Pode ser por isso, que tais fontes não saciam a curiosidade de quem busca conhecer o período “oculto” de Jesus através dos Evangelhos. Tais passagens falam da fé a partir da fé. Os Evangelhos não narram história. Narram uma doutrina em forma de história. Já existia nessa época uma fé que professava Jesus como o Salvador, o Messias, o Sentido de tudo, o novo Moisés libertador. Aí surge a pergunta a respeito de qual teria sido o momento em que Deus teria instituído Jesus como Salvador, Messias e Filho de Deus. Inicialmente pensaram que teria sido na morte e ressurreição (1Cor 15, 3-8; At 10, 34-43). Marcos, o primeiro dos quatro evangelistas, afirma que Jesus teria sido ungido pelo Espírito Santo e proclamado Messias o Libertador no batismo (Mc 1,9-11). Marcos só fala de Jesus a partir de seu batismo. Depois Mateus afirma que é o Messias esperado desde seu nascimento. Mais ainda: afirma que desde Abraão a história da salvação caminhou para Jesus. Lucas já diz que, desde o Natal na gruta de Belém Jesus é o Messias e o Filho de Deus. E vai para além de Abraão afirmando que toda a história da humanidade, desde Adão marchou rumo a Jesus, seu ápice. Finalmente João, depois de muitas elaborações, afirmará que Jesus era o Filho de Deus já antes de ter nascido. Antes da criação do mundo ele estava junto a Deus como palavra (Jo 1,1.14). Com o decorrer do tempo e à luz do evento pascal, a releitura de toda a vida de Jesus ganhou relevância. A partir de tal luz, também passagens do Antigo Testamento foram ganhando nova luz e redirigidas para o fato Jesus Filho de Deus. Por isso, os relatos dos fatos que envolveram Jesus foram teologicamente apresentados com toda uma roupagem plástica para os ouvintes do final do primeiro século depois de Cristo. Por isso, carregam muito mais mensagem de fé do que história (BOFF, 1986, p 117). 1.2 Limitações histórico-literárias 7 Marcos, por ser o primeiro evangelista, ateve-se ao essencial do cristianismo. Priorizou a missão de Jesus e, particularmente, sua ressurreição. Não conta nada de Jesus antes de seu batismo. Posteriormente, Mateus e Lucas tiveram tempo de investigar ‘cristologicamente’ o nascimento de Cristo já maculado pela piedade da época. Além da distância, já mencionada, entre fato e narração, ainda há a interferência da intencionalidade de cada autor e dos elementos inseridos ou retirados pela tradição oral, não isenta de intenção. Uma grande dificuldade já nasce da discordância factual entre as duas narrativas. Como diz Pedro Kramer1: teríamos que delirar muito em ‘fantasias’ pessoais apaziguadoras para conseguir criar uma sintonia narrativa inexistente entre Mateus e Lucas no que se refere às narrativas da infância de Jesus. Precisaríamos acrescentar tantos ‘meios termos’ que o texto certamente se distanciaria, ou seria deserdado, do âmbito dos inspirados. Não vamos entrar no mérito da ‘legendariedade’ dos contos de natal. Não queremos provar, não nos levaria a nada fazê-lo, que as narrativas do Natal não falam de boi, nem de burro. Não dizem que os magos são três e nem que são reis. Também não dizem que os pastores foram ao presépio para adorar. Aqui, para que nosso trabalho tenha o mínimo de fundamentação, precisaríamos utilizar aquilo que está escrito. Imaginar aquilo que poderia ou que deveria estar entre as palavras e as linhas seria um delírio infundado que poderia tomar inúmeros rumos sem saber se um deles estaria próximo da verdade. Só para exemplificar um problema de narração: em Lucas, José morava em Nazaré e é obrigado, por causa de recenseamento, a ir para Belém. Depois dos quarenta dias retornam para Nazaré. Também José subiu da cidade de Nazaré, na Galiléia, para a Judéia, à cidade de Davi, chamada Belém, por ser da casa e da família de Davi, para se inscrever com Maria, desposada com ele, que estava grávida (Lc 2,4-5). (...) Terminado de fazer tudo conforme a Lei do Senhor, voltaram à Galiléia, para Nazaré, sua cidade (Lc 2,39). Em, Mateus José é obrigado a fugir de Belém para o Egito e, depois contra sua vontade ir para Nazaré. Em Lucas eles retornam à Nazaré. Em Mateus, eles são obrigados a irem para Nazaré por medo de Arquelau. Quando Herodes morreu, eis que o Anjo do Senhor manifestou-se em sonho a José, no Egito, e lhe disse: “Levanta-te, toma o menino e sua mãe e vai para a terra de Israel, pois os que buscavam tirar a vida ao menino já morreram”. Ele se levantou, pegou o menino e sua mãe e entrou na terra de Israel. Mas ouvindo que Arquelau era rei da Judéia em lugar de seu pai Herodes, teve medo de ir para lá. Tendo recebido um aviso em sonho, partiu para a região da Galiléia e foi morar numa cidade chamada Nazaré, para que se cumprisse o que foi dito pelos profetas: Ele será chamado Nazareu (Mt 2,19-23). 1 Pedro Kramer, Professor da Estef. 8 Outro fato discordante está na genealogia. Em Mateus o pai de José é Jacó. “Jacó gerou José, o esposo de Maria, da qual nasceu Jesus chamado Cristo” (Mt 1,16). Em Lucas o pai de José é Eli. “Ao iniciar o ministério, Jesus tinha mais ou menos trinta anos e era, conforme se supunha, filho de José, filho de Eli, (...)” (Lc 3,23). Contudo, como já mencionamos, nosso intuito aqui não é encontrar problemas de concordância narrativa. Nosso problema é cristológico. Estamos tornando público o fato de não os ignorarmos nas poucas e pobres narrativas da infância de Jesus. Mas, nossa busca é acerca dos elementos que delineiem um possível resgate do que há de registros deste período da vida de Jesus. 2 A INFÂNCIA DE JESUS NA PERSPECTIVA DE MATEUS 2.1 A ascendência de Jesus segundo Mateus? Ao falar da infância de Jesus narrada por Mateus Perrot afirma: Reunindo sinteticamente os dados, poderíamos dizer que Mateus se interessa essencialmente por duas questões: quem é Jesus? e: de onde é ele?” (PERROT, 1982, p. 27). Quanto a origem genealógica, Jesus é apresentado como o filho de Abraão, o filho de Davi, o Salvador, o Emanuel. Já sua origem geográfica não é muito pontualizável uma vez que a infância de Jesus é marcada por peregrinações. Mateus segue a forma oriental de iniciar uma história. A inicia pela genealogia do personagem principal buscando situá-lo socialmente. Depois do exílio (586-538 a.C) a genealogia carregava consigo uma importância particular. Era a forma de cada um provar sua ligação com Israel, em especial com a raça de Levi. Se Mateus queria conquistar a confiança dos judeus era necessário apresentar uma genealogia que situasse Jesus no seio do povo de Abraão. O que ele faz já na primeira frase de seu evangelho: “Livro da origem de Jesus Cristo, filho de Davi, filho de Abraão” (Mt 1,1). Nessa genealogia Mateus parte de Abraão para chegar a Jesus. Depois veremos que Lucas vai partir de Jesus para chegar a Adão. O que se percebe é que as leituras feitas à luz da fé relacionam e interpretam os fatos a partir da compreensão que se tem de história e a compreensão que se tem de Deus. Tal compreensão torna-se a chave de leitura para relacionar a história com o Deus que nela se revela ou se manifesta. O conhecimento e as crenças presentes são os instrumentos que possibilitam ver, ou não, os sinais de Deus nos fatos. Sabe-se que a comunidade de Mateus era uma comunidade que via Cristo como o messias que chegou na plenitude dos tempos para realizar as profecias do Antigo Testamento. Uma dessas profecias mencionava a vinda de reis e nações para adorar a Deus e oferecer-lhe presentes (Is 60,6; Sl 72,10s). Pode ser por isso que os magos citados como reis no salmo, 10 acenados por Isaias e a estrela (astro procedente de Jacó) citada em Números 24,17 são resgatados em Mateus. a) Os reis magos e a Estrela: Na Bíblia estrelas fazem parte de muitos acontecimentos desde o antigo judaísmo até o Novo Testamento. Os poderosos possuíam sua estrela. Tal estrela teria nascido por ocasião de seu nascimento. Leonardo Boff diz: Essa era uma crença judaica ao tempo do Novo Testamento. Acresce ainda um fato histórico: desde os tempos de João Kepler os cálculos astronômicos têm mostrado que nos anos 7aC ocorreu realmente uma grande conjunção de Júpiter e Saturno na constelação de Peixes. Esse fenômeno não deve ter passado despercebido, já que na época se cultivava muito a crença nas estrelas. Júpiter, para a astronomia helenista, era considerado o rei soberano do universo. Saturno designava o astro dos judeus. A constelação de Peixes estava relacionada com o fim do mundo. Dando-se a conjunção destes astros, os sábios do Oriente, magos que decifravam o curso das estrelas, deram naturalmente a seguinte interpretação: No país dos judeus (Saturno) nasceu um rei soberano (Júpiter) dos fins dos tempos (Peixes) (BOFF, 1986. p. 117). A partir dessa observação, os magos, e não reis segundo a Bíblia, põem-se a caminho para fazer cumprir a profecia acerca do Messias Jesus Cristo. Para Leonardo Boff esse fato descrito em Mateus seria oriundo da conjugação de textos do Antigo Testamento com a interpretação de um fenômeno bem natural acontecido no ano 7aC. Mateus teria aproveitado tal “cruzamento” interpretativo para anunciar a fé da Igreja em Jesus como o Messias escatológico. Rubio afirma que a estrela e os magos, que alguns dizem ser um grupo composto por um representante de cada raça humana, seria uma simbologia para afirmar que Jesus é o salvador universal, que ultrapassaria todas as crenças e divisões de então. Os magos representariam todos os cristãos vindos do mundo pagão. A estrela seria o Deus anunciado pela Escritura e que se manifesta na natureza do mundo (RUBIO, 1994. p. 145). A estrela representaria Jesus como resposta universal para a pergunta existencial comum a todo o ser humano. Pergunta que interroga nossa origem e razão de ser. A estrela seria a luz universal. Perrot, confirmando os autores acima citados, acrescenta: Não procuremos uma estrela no céu. Mateus não pensa em algum fenômeno natural, mas num astro que aparece e desaparece na ocasião oportuna. Importante é apenas sua função, não sua existência como tal. Na comunidade judeu-cristã do evangelista, todos entendiam esta linguagem. Esta imagem era usada já no mundo helenístico para lembrar a cada um seu destino, “sua estrela”. Era bastante difundido o tema do aparecimento de uma estrela no nascimento de grande homem (Alexandre, César...). Também no mundo judaico, contava-se como os astrólogos anunciaram ao rei o nascimento de Abraão: “Viram uma estrela levantar-se no céu... Isto indica um menino que se apodera do mundo inteiro” (PERROT, 1982, p. 45). Não precisamos provar que a estrela seria uma metáfora. Nem sei se conseguiríamos. Mas hoje seria uma extrema ingenuidade imaginar, ao pé da letra, uma estrela guia conduzindo 11 os magos, fazendo as curvinhas do caminho, se elevando para não “tropeçar” nas árvores, nas montanhas, descendo para ser vista nas “canhadas”. É possível dizer que, em Mateus, a estrela é um sinal de Deus que se manifesta nos fatos. Seria o que hoje chamamos de providência divina. Não é incomum acontecerem coisas, surgirem idéias, repostas, fatos que independem ou ultrapassam nossas forças e capacidades de interpretar, compreender, planejar e executar. Em Mateus tem a estrela, em Lucas tem os anjos, nós podemos ter (e temos) outras imagens. Temos nossos santos devocionais, nossas crenças que não deixam de ser nossos guias. Outro fato que familiariza Jesus com a cultura e as crenças judaicas é a sua fuga para o Egito. b) A fuga para o Egito Se conferirmos algumas passagens do Antigo Testamento perceberemos que o Egito era considerado o lugar de refúgio tradicional para os palestinos, desde Jeroboão e Salomão. “Salomão procurou matar Jeroboão; mas este fugiu para o Egito, para junto de Sesac, rei do Egito, e permaneceu no Egito até a morte de Salomão” (1Rs 11,40) e Urias “(...) Urias ouviu, teve medo, fugiu e foi para o Egito” (Jr 26,21). Parece não ser difícil imaginar que para tal comunidade, Jesus fugindo para o Egito refazia a história de Israel. De modo especial a história de Moisés. O que faz com que tal texto tenha mais aroma e sabor de lenda do que de fato histórico. Mesmo assim ajuda a compreender, ainda mais, a insistência de nosso trabalho em afirmar que os Evangelhos que narram a infância de Jesus carregam mais simbologia e doutrina do que descrições de fatos históricos. 2.2 Quem é Jesus segundo Mateus? Parece ser uma pregação um tanto comum na época dos evangelistas aquela que tenta interligar o percurso de Jesus com o de Moisés. Tomando-o como um novo Moisés que atua em um novo Israel. Isso pode ser lido desde a fuga que objetivava safar-se da morte decretada pelo faraó até o retorno de ambos também propiciado pela morte “daquele que queria matá-lo”: Quando Herodes morreu, eis que o anjo do Senhor manifestou-se em sonho a José, no Egito, e lhe disse: ‘Levanta-se, toma o menino e sua mãe e vai para a terra de Israel, pois aos que buscavam tirar a vida ao menino já morreram’ (Mt 2,19-20). Iahweh disse a Moisés, em Madiã: ‘Vai, volta para o Egito, porque estão mortos todos os que estavam contra a tua vida!’ Tomou, pois Moisés a sua mulher e seus filhos; fê-los montar num jumento e voltou para a terra do Egito (Ex 4,19-20). 12 A morte do faraó permite Moisés voltar ao Egito. A Morte de Herodes permite Jesus sair do Egito. Moisés segue a ordem divina. José segue a ordem do anjo. Para Mateus Jesus deve refazer a história de seu povo. Só que para Jesus a volta para a Judéia tornou-se inviável porque ele corria o risco de cair nas garras de Arquelau que, segundo o testamento deixado por Herodes seria o novo rei da Judéia. Aí, retomando citação do item 1.2, Jesus vai parar na Galiléia, na cidade de Nazaré. Mas, ouvindo que Arquelau era rei da Judéia em lugar de seu pai Herodes, teve medo de ir para lá. Tendo recebido um aviso em sonho, partiu para a região da Galiléia e foi morar numa cidade chamada Nazaré, para que se cumprisse o que foi dito pelos profetas: Ele será chamado Nazoreu (Mt 2,22-23). Os comentaristas observam que os sonhos de José e as intervenções de Herodes se alternam. Apontam para a possível existência de duas tradições independentes. Uma referente a Herodes e outra a José, que reescritas seriam unificadas ou encravadas uma na outra pelo evangelista. Parece não ser difícil imaginar a “ginástica” que o autor precisou fazer para elaborar um texto que fosse aceito em meio a uma, bem provável, confusão gerada por tantas tentativas de possíveis leituras e explicações do fato do nascimento de Jesus de Nazaré. O que parece ser claro e visível é que qualquer leitura e interpretação, aqui feitas, tanto podem estar próximas da realidade de então, bem como, podem estar bem distantes. Estamos no âmbito da especulação. Especulação que carece de documentos originais. Temos acenos, como os que afirmam que José era carpinteiro. Mas, mesmo afirmando que a profissão de José era de carpinteiro, os Evangelhos deixam claro que se Jesus não foi agricultor propriamente dito, pelo menos teve um contato muito próximo com a agricultura de sua época. Caso contrário seria difícil utilizar tão bem como utilizou todas estas passagens: Plantio (Mt 13, 4-9. 24-30; Mc 4,26-29); Colheita de cereais (Mt 12,1); Hortaliças (Mt 13, 3132); Flores do campo (Mt 6,28-30); Trabalho na roça (Mt 20,1-16); Animais (Mt 18,12-14) e Figueiras (Mt 24,32). É inegável sua familiaridade com vida agrícola. Tanto quanto é admirável a capacidade de inculturação lingüística presente nas manifestações de Jesus. Dificilmente alguém que vivesse alheio aos anseios e costumes daquele povo seria capaz de falar uma linguagem ao mesmo tempo profunda e tão deles. Estes são os acenos que encontramos em Mateus, dos quais é bem possível deduzir algo da infância de Jesus sem, contudo, afirmar. São experiências que ele deixa afluírem. E, como é óbvio, experiências só são experiências porque expressam uma vivência. Se o autor foi fiel às palavras de Jesus, tal vivência é explícita em Suas expressões. 3 A INFÂNCIA DE JESUS NA PERSPECTIVA DE LUCAS 3.1 A ascendência de Jesus segundo Lucas? Perrot, em seu livro As Narrativas da Infância de Jesus, faz uma longa e significativa abordagem da anunciação do anjo e da concepção em Maria e em Isabel. Do nascimento e da missão de João Batista. Tudo isso para bem situar o nascimento de Jesus. Como veremos também no item seguinte, ao falarmos de quem é Jesus segundo Lucas, o autor acima citado afirma que o que foi descrito a respeito da anunciação, concepção, nascimento e infância de Jesus, bem como a de João Batista, não passaria muito de um “prólogo cristológico” carregado da e pela confissão de fé de devotos pós-pascais. Seria a introdução do Evangelho escrita depois das interpretações da ressurreição. Quase na mesma linha e postura Leonardo Boff, em seu livro Jesus Cristo Libertador, ao se dirigir aos textos acima referidos, diz que para os olhos de um conhecedor dos procedimentos literários usados nas escrituras e para o historiador do tempo de Jesus os relatos do Natal não são sem problemas. Atrás da simplicidade cândida e do lirismo de algumas cenas esconde-se uma teologia sofisticada e pensada até nas suas mínimas minúcias. Esses textos não são os mais antigos dos evangelhos. São os mais recentes e elaborados quando já havia toda uma reflexão teológica sobre Jesus e o significado de sua morte e ressurreição, quando já estavam ordenados por escrito os relatos de sua paixão, as parábolas, os milagres e os principais ditos de Jesus, quando já se tinham criado os principais títulos, como Filho de Davi, Messias, Cristo, novo Moisés, Filho de Deus, etc., pelos quais se tentava decifrar o mistério da humanidade de Jesus. No fim de tudo apareceu o começo: a infância de Jesus pensada e escrita à luz da teologia e da fé que se criara ao redor de sua vida, morte e ressurreição. É exatamente aqui que se situa o lugar de compreensão dos relatos de sua infância, como vêm narrados por Mateus e por Lucas (BOFF, 1986. p. 117). Como a história da anunciação, concepção e nascimento de Jesus não nos é muito estranha, tomaremos está parte como conhecida e priorizaremos, neste trabalho, a história a partir do nascimento de Jesus. O nascimento de Jesus é situado em Belém. Embora Bohn Gass, e 14 outros afirmem que o fato de situar o nascimento de Jesus em Belém carrega uma conotação não neutra para cativar judeus ao cristianismo. Seu nascimento é situado em Belém, aldeia natal de Davi, a 8 km ao sul de Jerusalém. Assim se cumpre a esperança da profecia (Mq 5,1). Situando o nascimento de Jesus em Belém Mt, 2,1-12 e Lc 2,1-7 têm interesse teológico. Querem buscar luzes, no Primeiro Testamento, que ajudem a iluminar o evento Jesus de Nazaré, para fortalecer especialmente pessoas de origem judaica na sua adesão ao Evangelho. Para judeus aderirem a Jesus, era fundamental apresentá-lo como aquele que veio cumprir a esperança profética (BOHN GASS, 2005, p. 100). Uma vez que os judeus resistiam em crer que Cristo seria o messias, tentar fundamentar, da melhor maneira possível, a sua origem como sendo o sujeito profetizado no Antigo Testamento, inculturando-o o máximo possível na realidade judaica, certamente somar-se-iam pontos na tentativa de convencer (ou converter) os judeus. Cidade de Judá, situada mais ou menos oito quilômetros ao sul de Jerusalém. Aí havia nascido: Booz, Jessé, Davi. Segundo Miquéias 5,1, daí sairia o novo Davi. Jesus nasceu durante o primeiro recenseamento da época de Quirino, governador da Síria. Naqueles dias, apareceu um edito de César Augusto, ordenando o recenseamento de todo o mundo habitado. Esse recenseamento foi o primeiro enquanto Quirino era governador da Síria. E todos iam se alistar, cada um na própria cidade. Também José subiu da cidade de Nazaré, na Galiléia, para a Judéia, à cidade de Davi, chamada Belém, por ser da casa e da família de Davi, para se inscrever com Maria, desposada com ele, que estava grávida. Enquanto lá estavam, completaram-se os dias para o parto, e ela deu à luz seu filho primogênito, envolveu-o com faixas e reclinou-o numa manjedoura, porque não havia um lugar para eles na sala. Lc 2,1-7 A descrição do nascimento de Jesus é “recheada” de simplicidade. Ele teria sido enrolado em faixas e reclinado em uma manjedoura. Para os biblistas e estudiosos da área bíblica é quase consenso que Jesus tenha nascido entre 7 e 5 a.C. alguns arriscam a data de 6 a.C. A data mais provável para o nascimento de Jesus de Nazaré é o ano 6 a.C. Segundo os evangelhos, Herodes Magno ainda estava vivo quando Jesus nasceu. Como o rei morreu em 4 a.C., devemos situar o nascimento de Jesus antes dessa data (BOHN GASS, 2005, p. 99). Tal erro é atribuído a um cálculo do monge Dionísio, que no século VI foi o autor dos cálculos que definiram o calendário cristão. A problemática e a explicação acerca da data do nascimento de Jesus é uma dificuldade quase unânime entre os estudiosos. É também o que confirma Dom Clóvis Frainer em seu livro “Conhecendo o Novo Testamento” (FRAINER, 2003. p. 19). Também não é tão certa como poderíamos pensar a data de 25 de dezembro tomada como o dia do nascimento de Jesus. 15 Foi somente a partir de meados do século 4ª que a Igreja Cristã em Roma passou a celebrar o Natal de Jesus nesse dia. A razão é que, nessa data, se celebrava a festa ao Deus Sol no império Romano. Como, nesse tempo, é inverno no hemisfério norte, o dia 25 de dezembro é o dia mais curto do ano, correspondendo ao nosso 24 de junho. Celebrava-se a vitória da luz sobre as trevas, uma vez que, a partir dessa data, cada dia ia aumentando, enquanto as noites iam encurtando (BOHN GASS, 2005, p. 99). Assim as comunidades cristãs interpretariam e adotariam Jesus como o verdadeiro sol. Mas para vós que temeis meu nome, brilhará o sol de justiça, que tem a cura em seus raios (Ml. 3,20). Graças ao misericordioso coração do nosso Deus, pelos qual nos visitará o Astro das alturas (Lc. 1, 78). (...) luz para iluminar as nações (Lc. 2, 32). Por isso, celebrá-lo no dia em que se celebrava a vitória da luz, adaptar o cristianismo às festas culturais, podia ser uma boa tática para captar adeptos. Não deixava de ser uma espécie do que hoje denominamos inculturação. Assim é possível explicar o fato de que mais tarde, no século IV, no final do reinado de Constantino, falecido em 337, teria sido demarcada a data de vinte e cinco de dezembro como o dia do nascimento de Jesus. Data não mencionada nos evangelhos. Provavelmente para cristianizar a festa pagã do solstício o imperador Aureliano decreta que o Natal seja celebrado nesta data. 3.2 Quem é Jesus segundo Lucas? Como vimos no item anterior, tanto Perrot, como Leonardo Boff, dentre outros, afirmam que Lucas apresenta o Cristo menino à luz da ressurreição. Lc 1-2 é um prólogo cristológico, uma confissão de fé que tira sua razão de ser e as força do acontecimento pascal, e que projeta uma luz total no mistério do início da vida de Jesus. Diz-se muitas vezes que, antes de escrevermos a introdução de um livro, devemos escrever sua conclusão. Assim, a apresentação da plenitude de Cristo menino é preparada aqui à luz da Ressurreição (PERROT, 1982, p. 53). Lucas, ao contrário de alguns apócrifos, não apela para o maravilhoso. Reduz os traços metafóricos ao mínimo necessário. Ele gira em torno da mensagem da Boa Nova do Filho de Deus. Ao contrário de Mateus, Lucas não reescreve a história do novo Moisés. História recheada de comoventes acontecimentos. Aqui é descrita uma história que segue o estilo sagrado de escrever. Estilo que parte da iluminação transparente do evento pascal. Percebe-se em Lucas a preocupação em explicitar a solidez dos ensinamentos de Jesus. Sua finalidade não parece ser a de um historiador que busca satisfazer a curiosidade do leitor. Ele insiste no poder de salvação da palavra de Cristo pronunciada em sua comunidade. 16 Ele volta então seu olhar ao passado para dar à mensagem de hoje sua dimensão referencial. Informou-se cuidadosamente “desde o princípio” e sua narração é “ordenada” a fim de mostrar os laços que unem sua comunidade heleno-cristã, herdeira de Paulo, à comunidade das origens (assim também nos atos dos Apóstolos), os laços que unem o primeiro grupo cristão ao Jesus de antes da páscoa e, finalmente, os laços que unem Jesus e aquele que está no ponto de partida do movimento batista (PERROT, 1982, p. 59). O evangelista insiste na unificação das comunidades heleno-cristãs com a comunidade do primeiro grupo de cristãos, bem como com o grupo com o qual o próprio evangelista convivia. Além da busca pela unificação, apresenta um Jesus com garra, firmeza, determinação e autoridade. Disposto a dar a vida pelo seu povo a fim de incrementar as mudanças necessárias. Jesus que se criou em Nazaré, uma aldeia camponesa do interior da Galiléia, desde cedo via seu povo sofrendo a opressão dos romanos e da dinastia de Herodes. Isso faz com que seu coração se encha de compaixão diante de tanta fome e tantas doenças. Tal compaixão o remete a optar pelo povo oprimido. Quanto à formação de Jesus, Mateus e Lucas dão algumas pistas de prováveis espaços de formação freqüentados por Jesus. O primeiro espaço foi a própria família que era religiosa, executava trabalhos rurais e artesanais. O segundo deve ter sido a participação, junto com a família, na sinagoga, onde se mantinha mais contato com a história e realidade de fé do povo. Lucas também menciona a participação de Jesus no templo, junto aos sacerdotes e escribas. Seus pais iam todos os anos a Jerusalém para a festa da Páscoa. Quando o menino completou doze anos, segundo o costume, subiram para a festa. Terminados os dias, eles voltaram, mas o menino Jesus ficou em Jerusalém, sem que seus pais o notassem. Pensando que estivesse na caravana, andaram o caminho de um dia, e puseram-se a procurá-lo entre os parentes e conhecidos. E não o encontrando, voltaram a Jerusalém à sua procura. Três dias depois, eles o encontraram no Templo, sentado em meio aos doutores, ouvindo-os e interrogando-os; e todos os que o ouviam ficavam extasiados com sua inteligência e com suas respostas. Ao vê-lo, ficaram surpresos, e sua mãe lhe disse: “Meu filho, por que agiste assim conosco? Olha que teu pai e eu, aflitos, te procurávamos”. Ele respondeu: “Por que me procuráveis? Não sabíeis que devo estar na casa de meu Pai?” Eles, porém, não compreenderam a palavra que lhes dissera (Lc. 2,41-50). No entanto, sabe-se que esta narrativa descreve um acontecimento não regular. É narrativa de uma história isolada e inusitada. Não se encontra menção de que Jesus tenha freqüentado a escola dos escribas. O que os Evangelhos deixam claro é que o grande espaço de aprendizado de Jesus foi o movimento popular de seu tempo. Como todas as crianças e todos os jovens de seu tempo, Jesus participava da vida de seus conterrâneos. No dia-a-dia, trabalhava com sua família, seguindo a profissão de seu pai, como era o costume. Como trabalhador na fabricação de ferramentas, de carroças, de estruturas de madeira na construção civil, provavelmente era ambulante. Além de carpinteiro, terá sido agricultor. As inúmeras referências à vida no campo são testemunhos da familiaridade que tinha com a agricultura. (BOHN GASS, 2005. P. 101.) 17 Lucas apenas observa que Ele crescia em idade, sabedoria e graça e lhes era obediente. No episódio em que Jesus discutia com os doutores há de se reconhecer sua sabedoria, a compreensão de seus pais, a particularidade de sua missão e a consciência de estar ligado ao Pai, mas não muito mais que isso. Em tal narrativa, o evangelista deixa a possibilidade de interpretar a transcendência de Jesus como algo original e inerente a Ele. Transcendência que não teria sido investida através do batismo. Este episódio revela que Jesus, já antes do batismo, ultrapassava as limitações do humano. Ele estava além do discernível a partir unicamente do então ambiente social e cultural. 4 QUANDO SURGE O INTERESSE PELO JESUS HUMANO? 4. 1 Leitura histórico-literária Como a história do Jesus humano é descrita à luz do Cristo pascal, o interesse pelo estudo das narrativas de seu nascimento se justifica ter surgido somente quatro séculos mais tarde2. Mesmo assim, quatro séculos depois, quando surge o interesse em estudar tal narrativa, descrita no primeiro século dC, depara-se com uma série de incertezas sobre o real acontecimento do fato. O que se percebe é que a narração de seu nascimento é marcada pelo silêncio e pela simplicidade. Estava numa manjedoura enrolado em faixas e Maria guardava todos estes acontecimentos e os meditava em seu coração. Na mesma região havia uns pastores que estavam nos campos e que durante as vigílias da noite montavam guarda a seu rebanho. O anjo do Senhor apareceu-lhes e a glória do Senhor envolveu-os de luz; e ficaram tomados de grande temor. O anjo, porém, disselhes: “Não temais! Eis que vos anuncio uma grande alegria, que será para todo o povo: Nasceu-vos hoje um Salvador, que é o Cristo-Senhor, na cidade de Davi. Isto vos servirá de sinal: encontrareis um recém-nascido envolto em faixas deitado numa manjedoura”. E de repente juntou-se ao anjo uma multidão do exército celeste a louvar a Deus dizendo: “Glória a Deus no mais alto dos céus e paz na terra aos homens que ele ama!” Quando os anjos os deixaram, em direção ao céu, os pastores disseram entre si: “Vamos já a Belém e vejamos o que aconteceu e que Senhor nos deu a conhecer”. Foram então às pressas, e encontraram Maria, José e o recém-nascido deitado na manjedoura. Vendo-o, contaram o que lhes fora dito a respeito do menino; e todos os que ouviam ficavam maravilhados com as palavras dos pastores. Maria, contudo, conservava cuidadosamente todos esses acontecimentos e os meditava em seu coração. E os pastores voltaram, glorificando e louvando a Deus por tudo o que tinham visto e ouvido, conforme lhes foi dito. Lc 2,8-20 Mesmo assim, o anúncio aos pastores revela a dimensão social e cósmica do acontecimento divino que acabava de se concretizar. Os anjos, os pastores, os homens não conseguem mais ficar alheios ao nascimento deste menino. A revelação do anjo atinge o mundo inteiro, de alto a baixo, da multidão dos anjos aos pastores, uma das categorias sociais mais desprezadas na época, como os pecadores e os publicanos. A mensagem se difunde, a palavra é “vista” pelos pastores e a liturgia cósmica dos anjos junta-se ao louvor dos pastores. 2 Ver item 3.1. 19 Há quem diga que aqui é esboçado o primeiro modelo dos missionários cristãos. Os simples pastores, classe subjugada, foram os primeiros que anunciaram a Boa Nova do nascimento. Eles são os primeiros a ouvirem que a “era da salvação” havia começado e que a paz era pronunciada para todos os homens. Depois da proclamação do nascimento, Lucas narra a apresentação de Jesus no Templo: Quando se completaram os dias para a purificação deles, segundo a Lei de Moisés, levaram-no a Jerusalém a fim de apresentá-lo ao Senhor, conforme está escrito na Lei do Senhor: Todo macho que abre o útero será consagrado ao Senhor, e para oferecer em sacrifício, como vem dito na Lei do Senhor, um par de rolas ou dois pombinhos. E havia em Jerusalém um homem chamado Simeão que era justo e piedoso; ele esperava consolação de Israel e o Espírito Santo estava nele. Fora-lhe revelado pelo Espírito Santo que não veria a morte antes de ver o Cristo Senhor. Movido pelo Espírito, ele veio ao Templo, e quando os pais trouxeram o menino Jesus para cumprir as prescrições da Lei a seu respeito, ele o tomou nos braços e bendisse a Deus, dizendo: “Agora, Soberano Senhor, podes despedir em paz o teu servo, segundo a tua palavra; porque meus olhos viram tua salvação, que preparastes em face de todos os povos, luz para iluminar as nações, e glória de teu povo, Israel”. Seu pai e sua mãe estavam admirados com o que diziam dele. Simeão abençoou-os e disse a Maria, sua mãe: “Eis que este menino foi posto para a queda e para o soerguimento de muitos em Israel, e como um sinal de contradição – e a ti, uma espada traspassará tua alma! – para que se revelem os pensamentos íntimos de muitos corações”. Havia também uma profetisa chamada Ana, de idade muito avançada, filha de Fanuel, da tribo de Aser. Após a virgindade, vivera sete anos com o marido; ficou viúva e chegou aos oitenta e quatro anos. Não deixava o Templo, servindo a Deus dia e noite com jejuns e orações. Como chegasse nessa mesma hora, agradecia a Deus e falava do menino a todos os que esperavam a libertação de Jerusalém. Terminado de fazer tudo conforme a Lei do senhor, voltaram à Nazaré, sua cidade. E o menino crescia, tornava-se robusto, enchia-se de sabedoria; e a graça de Deus estava com ele. Lc 2,22-40 Conforme já era prescrito em Levítico 12,6-8, quando se completassem os dias de purificação da mulher, era necessário levar ao sacerdote um cordeiro nascido naquele ano. Exceto para os mais humildes que deveriam então levar rolas ou dois pombinhos. Esta cerimônia era uma obrigação da mãe. Ela devia ser desempenhada quarenta dias depois do parto de um menino ou oitenta dias depois do parto de uma menina. Lucas não se atém muito a detalhes que digam respeito a tal rito. Ele somente lembra que Jesus foi apresentado no Templo para confirmar que os pais de Jesus eram observantes da Lei, o que os dignava participantes do povo de Israel. O fato de serem, ou não, participantes do povo de Israel implicaria diretamente na aceitação de Jesus. Na apresentação no templo, Simeão identifica Jesus como o Cristo do Senhor. O rei ungido por Deus para reinar sobre Israel e salvar o povo de Deus. O profeta percebe o sinal prometido que significava o fim da espera do Messias. Simeão visualizou que este messias ultrapassaria o povo de Israel e se tornaria universal. É em Lucas 2,49, quando Jesus é encontrado entre os doutores que pela primeira vez ele faz referência a sua relação com o Pai. Além de acentuar a sabedoria do menino. Jesus declara 20 sua dependência em relação ao Pai: “não sabeis que devo estar na casa de meu Pai?”. Aqui se ilustra a palavra de Simeão. Acontece a primeira ruptura de Jesus com sua família sangüínea. 4.2 Leitura teológica Segundo Duquoc, de acordo com muitos dos acenos já mencionadas neste nosso trabalho, há uma explicação teológica para a obscuridade da infância de Jesus. O que também poderia ser interpretado como uma espécie de marginalização, ou adesão aos lascados, desde o seu nascimento. Ele é herdeiro dos pobres, e a figura perfeita deles é o Servo descrito por Isaías nos capítulos 52-53. O messianismo de Jesus é o de Servo. É esse mesmo messianismo do Servo que dá sentido à obscuridade da infância de Jesus. Os escritores apócrifos jamais o compreenderão, e lhes parecerá na verdade escandaloso o fato de que a infância de Cristo se tenha desenrolado como uma infância ordinária. Por isso eles a cumularão de milagres. Isso significa a rejeição da missão de Cristo tal como foi definida não somente pelos Evangelhos da infância, mas por todo o Evangelho. (...) A obscuridade dos anos de Nazaré não seria portanto, sem sentido teológico. Conhece-se a perspectiva de Santo Irineu: Deus se encarna para se habituar ao homem, e para habituar o homem a Deus. No homem Jesus, Deus aprende a co-habitar com o homem, e o homem aprende a coexistir com Deus. Poder-se-ia dizer que Deus apreende o homem e o homem se habitua a Deus. (DUQUOC, 1992, p. 35-36.) Em Jesus Deus se faz humano o tempo necessário para que o humano se torne divino. A encarnação é a humanização de Deus em seu próprio filho. Durante trinta anos aproximadamente Jesus participa do destino normal da cidade de Nazaré. Pertence à multidão anônima. Vive como muitas outras pessoas que viveram sem nada escrever na história. Pode-se imaginar a vida oculta de Jesus imaginando o cotidiano normal da calma Nazaré de então. Para os evangelistas a nobreza de Jesus consiste propriamente na capacidade de viver sua divindade de forma tão comum à atual comunidade. Essa postura o engrandece ao invés de diminuí-lo. Ele também se propôs a percorrer a lenta maturação que o destino humano exige. Jesus faz germinar uma nova humanidade que não é outra humanidade, mas sim a mesma história humana que se renova a partir dos humanos. Ele atribui o aspecto divino a tal humanidade, mas com raízes na própria condição humana. Os anos obscuros servem para evitar que pensemos idealmente Jesus. Ele sentiu as limitações que os humanos sentem. Sentindo os limites humanos, Jesus atinge todo o ser humano. Cristo tem história e individualidade. Jesus foi um ser plenamente humano revestido de uma sabedoria que transcende o humano e com uma psicologia mais ampla que a nossa. “Sim, 21 Jesus é plenamente humano, mas se revestirá com uma sabedoria supra-humana e com uma psicologia sem nenhuma relação com a nossa” (DUQUOC, 1992, p. 38.). O fato de Cristo tornar o divino mais humano e trazer aspectos de sua divindade para a humanidade não diminui, e não descaracteriza, nem Deus e nem o gênero humano. Pelo contrário, dignifica e torna real a proximidade entre a humanidade e a divindade. Proximidade que faz com que ambas possam coabitar. CONCLUSÃO Leonardo Boff afirma que quanto mais se medita sobre Jesus mais se descobre o mistério que sua vida humilde escondia e mais se remonta para as origens. O que se percebe é que Mateus e Lucas descrevem seus Evangelhos a partir das diversas crenças já difundidas nas várias comunidades. Em tais crenças, por mais conhecidas e por melhor interpretadas que sejam, dificilmente são esgotadas as suas possibilidades de significar. Os evangelistas garimpam alguns dos então significados e conjugam com seus interesses. Interesses de oficializar e dirigir uma palavra para determinado povo. Mateus precisa transmitir uma mensagem convincente para o povo de Israel – descendentes de Abraão. Lucas precisa fazer o mesmo de forma que atinja todos os povos – descendentes de Adão. Atrás de cada relato esconde-se um refinado trabalho teológico. Trabalho cuja profundidade e importância merecem respeito e veneração. Seria muita ousadia de nossa parte menosprezar tais textos com conclusões deterministas e superficiais. Tentamos sintetizar da forma mais simples e objetiva as leituras que julgamos nos ajudarem para compreender um pouco da infância de Jesus. Sabemos que as descobertas deste trabalho nos apresentam uma luz ainda muito tênue. Mas, pelo menos, conseguimos perceber que ousar tornar cristalina toda a bagagem de mistério que cercam tais narrativas seria um belo exagero de imprudência. O período da infância de Jesus não é por nada que é chamado de período da vida “oculta”. Não é oculto no sentido de que Jesus teria se refugiado em algum lugar durante este tempo. Mas porque faz parte de um período que não está no centro dos interesses da fé cristã. Os evangelhos se preocuparam, antes de tudo, com o cerne de nossa fé. Quando “construíram” a história da infância de Jesus, a “construíram” de acordo com o que objetivavam. E objetivam arraigar no povo daquele tempo e daquele lugar o Cristo que acreditavam ter ressuscitado. Parece não ser demais afirmar que o centro de nossa fé está arraigado no testemunho dos apóstolos. Testemunho de quem sentia o Cristo vivo e agindo no meio e através deles, mesmo depois da morte na cruz. Isso é o que aprendemos acerca da ressurreição. Ela é o centro, origem e fonte de nossa fé. Uma vez que a ressurreição é o centro, origem e fonte, tudo o que faz parte de nossa fé só se justifica se converge para a ressurreição. É isso o que a presente pesquisa nos 23 ajudou compreender. A infância de Jesus é um dos componentes da encarnação e da humanidade de Cristo, só compreensível à luz da ressurreição. O cristianismo nasce com o testemunho da ressurreição. Para a fé cristã, a história posterior e anterior ao evento pascal, é como que ondas produzidas por tal evento. As leituras e interpretações desenvolvidas a partir da ressurreição são como se fossem ondas causadas por uma grande pedra jogada em um infinito lago. Uma dessas ondas é a infância de Jesus. REFERÊNCIAS BECK, Eleonore. O Filho de Deus Veio ao Mundo. Paulinas. São Paulo: 1982. BÍBLIA. A Bíblia de Jerusalém. São Paulo: Paulus, 2003. BÍBLIA APÓCRIFA. São José e o Menino Jesus: História de José o Carpinteiro e Evangelho do Pseudo-Tomé. Vozes. Petrópolis: 1990. BOFF, Leonardo. Jesus Cristo Libertador. Vozes. 11 ed. Petrópolis: 1986. DUQUOC, Christian. Cristologia: o Homem Jesus. Loyola. São Paulo: 1992. FARIA, Jacir de Freitas. As Origens Apócrifas do Cristianismo: Comentários aos Evangelhos de Maria Madalena e Tomé. Paulinas. São Paulo: 2003. GASS, Ildo Bohn. Período Grego e Vida de Jesus. Paulus. São Paulo: 2005. PERROT, Charles. As Narrativas da Infância de Jesus. Paulinas. São Paulo: 1982. RUBIO, Alfonso Garcia. O Encontro com Jesus Cristo Vivo. Paulinas. São Paulo: 1994. A Infância de Jesus. disponível em: <http://www.geocities.com/ana_ligia_s/pedro.html>. Acesso em 20 de maio de 2006. Evangelho da Infância do Senhor Jesus Segundo Tomé. Disponível em: <http://www.geocities.com/ana_ligia_s/infjesus.html>. Acesso em 20 de maio de 2006. MALDANER, Maria Fátima. A Vida Oculta de Jesus em Nazaré. Disponível em: <http://www.vilakostkaitaici.org.br/carta_itaici_mar2002.htm>. Acesso em 20 de maio de 2006. Proto-Evangelho de Tiago: A Infância de Cristo Segundo Tiago. Disponível em: <http://www.geocities.com/ana_ligia_s/tiago.html>. Acesso em 20 de maio de 2006.