AS DUAS LiNGUAS (1807) UM TRABALBO GRAMA TICAL DE JERONIMO SOARES BARBOSA Maria Mercedes Saraiva HACKEROTI (UNISA) ABSTRACI': This paper analizes the work As Duas Unguas, ou Grammatica Philosophica da Lingua PortugueZtJ; Comparada com a Latina; para Ambas se Aprenderem ao Mesmo Tempo (1807) by Jeronyno Soares Barbosa, showing some differences and similarities with Grammalica Philosophica t/Q Lingua PorlugueZtJ by the same author. KEY WORDS: Linguistic Historiography, Grammar; Portuguese Grammar. A presente comunicaciio tern por objetivo analisar a obra As Duas Unguas (1807) de Jeronimo Soares Barbosa a fim de verificar em que medida se assemelha ou diverge da tiio divulgada Gramatlca Filos6fica do mesmo autor. a steulo XVIII. em Portugal. foi marcado por reformas educacionais. Entre elas. houve a promuigaciio das InstruCoes Regias de 1759 que proibiu 0 uso da gramatica de Manuel Alvares e impos 0 ensino de Gramatica Latina juntamente com 0 de Gramatica Portuguesa. Estas Instrucoes substituiram a metodologia jesuCtica pela oratoriana. Em termos gramaticais. registrou-se a mudanca da unidade gramatical. Para os alvaristas. a palavra era a unidade gramatical e para os oratorianos. a oraciio. a criterio de analise predominante nas gramaticas alvaristas e oratorianas era 0 criterio formal. autro documento importante do setecentismo portugues foi 0 Alvara de 30 de setembro, que tomou obrigal6rio 0 ensino de Gramatica poituguesa nas aulas de Gramatica Latina das escolas oficiais do reino. Tal Alvara impunha, para estas aulas, a adociio da Arte da Grammatica da Lingua Portugueza (1nO) de Antonio Jose dos Reis Lobato. a Metbodo Grammatical Resumido (1789) de Joaquim Jose Casimiro tambem fora escrilo para estas aulas, e as varias edicoes (1789, 1803,1811,1815) revel am 0 quanto fora utilizado. Tanto a Gramatica de Reis Lobato quanto a de Casimiro descreviam a Hngua portuguesa atraves de criterios principalmente formais. a ensino comparado da Gramatica Latina com a Portuguesa fora anteriormente defendido por Jeronimo Contador de Argote em Regras da Lingua Portugueza Espelbo da Lingua Latina, ou Disposi~m para Facilitar 0 Ensino da Lingua Latina pelas regras da Portugueza (1721), e posto em pnitica por Amaro de Roboredo no Methodo Grammatical para Todas as Linguas (1619). Nesta epoca de implantacao do ensino de Gramatica Portuguesa, Jeronimo Soares Barbosa escreveu tres obras gramaticais: &chola Popular de Primeiras Letras (1796), As Duas Linguas, ou Grammatica Philosophica da Lingua Portugueza, Comparada com a Latina, para Ambas se aprenderem ao mesmo tempo (1807), e a Grammatica Philosophica da Lingua Portugueza ou Principios da Grammatica Geral, Aplicados a Nossa Linguagem (publicada postumamente em 1822). Esta trilogia gramatical era fruto principalmente da experiencia academica vivenciada pelo autor. Soares Barbosa lecionou, mais de vinte anos, Ret6rica e Eloqiiencia no Colegio das Artes da Universidade de Coimbra, foi correspondente e s6cio da Academia Real das Sciencias, foi visitador das Escolas de Primeiras Letras e Lingua Latina na ProvIncia de Coimbra (1792), foi 0 encarregado da promocao e direcao das ediCOesdos autores classicos para uso das escolas (1793) e, por fim, foi Deputado da Junta da Diretoria Geral dos Estudos (1799). Cada obra da trilogia gramatical de Soares Barbosa foi direcionada a urn publico especifico. Assim, a primeira foi destinada ao ensino primario, a segunda ao secundario e a terceira ao superior. Tal delimitacao de publico gerou a especificidade de cada uma destas obras gramaticais. Apesar de diferirem quanto A finalidade para que foram escritas, estas obras apresentaram uma mesma teoria gramatical, baseada nos fundamentos da Gramatica Geral de Port Royal, de forma a sobrepor criterios filos6ficos a critecios formais, rompendo com a tradicao gramatical ate entao vigente em Portugal. "Todas suas Grammaticas Portuguezas sac fundidas pela mesma mrma das Latinas. Esta a origem do mal; querer que os processos de huma lingua Pospositiva sirvao de regra aos de outra, que he Prepositiva. Eu nao tomei outro modelo senao 0 da Grammatica Geral, e Pbilosophica. Ponho os principios communs a todas as linguas; delles forma as regras geraes da linguagem, que applico primeiro a lingua Portugueza em exemplos cortos e familiares, os quaes traduzidos logo verbalmente em Latim, mostrao a conformidade das duas linguas: e quando a Latina discrepa da nossa; (0 que poucas vezes succede), ponho primeiro 0 exemplo Latino, seguido immediatamente de sua traducao em linguagem." (Soares Barbosa, 1807:XI) Segundo Casteleiro (1980:201), a Gramatica Filos6fica tinha tres pressupostos: as llnguas refletiam a organizacao do pensamento; a organiz~ao do pensamento era a mesma em todos os homens; todas as lfuguas eram governadas por principios gerais comuns,. ou seja, todas possufam a mesma estrutura l6gica subjacente.· Estes pressupostos tambem eram validos para as Duas Lfnguas. Para Soares Barbosa, a gramatica era a arte que ensinava a falar e escrever corretamente uma llngua. Toda lfngua era composta por oracoes, que eram compostas por palavras, que eram compostas por sons articulados, que se figuravam e se fixavam ao olhos por meio da escrita. A lfngua, por ser entendida tanto como instrumento do raciocinio quanto como instrumento de comunica~ao, deveria ser analisada sob dois aspectos: um 16gico (morfologia e sintaxe) e outro mecanico (ortoepia e ortografia). Desta forma, Soares Barbosa dividiu a Gramatica Filos6fica em quatro capftulos sendo os dois primeiros dedicados a parte meca-nicada llngua portuguesa e os dois Ultimos a parte logica. Por sua vez, nas Duas Lfnguas limitou-se a analisar 0 aspecto 16gico (morfologia e sintaxe) passivel de compara~iioentre as Unguas. As partes da ora~iio eram sinais das ideias e do pensamento. As palavras eram interjeitivas quando indicavam estado, dor ou prazer atraves de linguagem primitiva. Eram discursivas quando analisavam 0 pensamento podendo see nominativas quando nomeavam as ideias e compunham os objetos do pensamento (substantivo I adjetivo) ou combinat6rias quando ajuntavam e comparavam as ideias atraves de rela~i5es de identidade e coexist!ncia (verbo), de determina~iio e dependencia (preposi~iio) e de nexo e ordem (conjun~ao). As palavras discursivas, quanta a forma, podiam ser variaveis ou invariaveis. PARTES DA ORAcAO substantivo adietivo verba Dl'eDOsiciio coniunciio interieiciio CLASSIFICACAo nominativas variaveis discursivas combinat6rias invariaveis interieitivas o nome substantivo era "por si" 0 sujeito da ora~iio podendo ser proprio ou apelativo. Na sua primeira forma, sem fazer parte da or~iio, 0 substantivo exprimia a ideia do objeto em si mesmo sem rel~iio alguma com outro. Porem, qu.andoajuntado a outro na or~iio, estabelecia diversas rela~oes: rel~iio subjetiva (fazia da ideia exprimida pelo nome 0 sujeito que falava ou de quem se falava na ora~iio); rela~iio vocativa (fazia da ideia 0 sujeito com que se falava na or~iio); rel~iio restritiva (fazia com que urn nome junto a outro lhe restrinjisse a significa~ao geral), rela~iio terminativa (fazia com que a ideia fosse 0 termo de outra rela~ao), rela~iio objetiva (fazia com que a ideia fosse 0 objeto de uma a~ao), rel~iio circunstancial (fazia das ideias varias circunstancias que modificavam e explicavam os termos da proposi~iio). Para um nome poder exprimir a sua ideia com todas estas rela~oes, as llnguas usaram de tres meios: Atraves dos casos, isto e, termin~Oes tinais junto aos nomes (lfngua vasconsa); atraves de pamculas prepostas aos nomes quer incorporada como afixos (lfngua hebraica), quer separada ~omo preposi~iio(lfngua portuguesa); e atraves de casos e pamculas (lingua latina). . o substantivo tinba diferentes termina~oes para indicar 0 singular ou plural. 0 genero, como 0 proprio nome dizia, era uma classe, ou seja, urn arranjamento de muitos individuos ou coisas sob alguma qualidade comum a todos. Assim, todos os seres viventes se arranjavam em duas classes naturais (macbos e temeas) segundo 0 sexo dos 559 animais. Esta classificacllo deveria ser transposta Ii lingua incluindo mais a c1asse neutra para os seres inanimados (como na lingua inglesa). Porem, 0 usa nem sempre fora tao discreto e arbitrariamente atribuiu a seres inanimados 0 genero masculino e feminino. o adjetivo exprimia ideias acess6rias, isto e, qualidades que s6 podiam ser atributos de um sujeito. Por isso nunca figuravam "por si" na oracao e "conotavarn" um sujeito no qual existiam. o adjetivo podia ser determinativo, explicativo ourestritivo geral DETERMINA11VO qualidade quantidade EXPLICA11VO RESTRITIVO indefinido definido especial nessoal demonstrati vo universal Dositivo ne~ativo indeterminado positivo numerico explicavarn e desenvolviarn as qualidades essenciais compreendida na defmicao nominal mudavam a compreensao do ape1ativo acrescentando uma qualidade acidental, pela qual o m.esmo se restringia a urn menor n6mero de indivlduos Que antes nao compreendia humhomem ohomem eu Antonio I nossos av6s estehomem todos os hom.ens nenhum hom.em muitos homens iris hom.ens humem mortal homemJusto o verba era a primeira parte conjuntiva da oracao que par diferentes modos enunciava a identidade e existencia do atributo no sujeito da proposiclio com relacao a certos tempos e pessoas. 0 verba substantivo (ser) enunciava a exist!ncia de uma coisa em outra. A coexistencia do atributo no sujeito em qualquer tempo podia ser com~ada, continuada ou acabada com a ajuda do verba auxiliar (haver, estar, ter). 0 verba adjetivo continha 0 verba substantivo e 0 atributo em uma mesma palavra. "Como 0 enunciar a existencia do Attributo no Subjeito da proposicao he 0 caracter proprio do Verbo Ser, e dos que 0 auxiliilo, e os Tempos slio differentes partes da duracao, ou existencia: est! claro que os differentes modos de enunciar esta existencia per ordem aos differentes tempos dell a, pertencem privativamente ao Verbo Substantivo, e seos Auxiliares, e nao ao Verbo Adjectivo, que nao faz .outra cousa senilo ajuntar-lhes a idea attributiva." (Soares Barbosa, 1807: 46) Havia tres modos do verbo, isto e, tres maneiras diferentes de enunciar: no modo infinito, a enunciacilo era indeterminada, abstraindo tempo, afirmacilo e pessoa, para a 560 mesma poder ser determinada a qualquer tempo ou pessoa por outro verba ou parte da ora~iio;no modo indicativo, a enuncia~iio era determinada, aflfmativa. direta, absoluta e independente de qualquer outra para poder figurar por si s6 no discurso; no modo subjuntivo, a enuncia~iioera aflfmativa, indeterminada, indireta e dependia de outra que a determinasse. A preposi~iio era a terceira parte conjuntiva da ora~iio que, posta entre duas palavras, indicava a ideia de rela~ao e complemento em que a segunda estava para com a antecedente. Assim, a preposi~iio indicava rela~Oesque outros objetos de fora tinham ou com 0 sujeito, ou com 0 atributo, ou com 0 pr6prio verba para lhes completar ou determinar 0 sentido. o adverbio era uma expressiio abreviada da preposi~iio com seu consequente em uma s6 palavra indeclinavel. A conjun~iioera a terceira parte conjuntiva da ora~iioque atava e ordenava entre si as ora~oes compondo urn per{odo o segundo livro das DUBS UDIU8S e quarto da GramaUca Filos6rca, tratava da sintaxe e da constru~iio. Para Soares Barbosa, a Sintaxe ordenava as partes do discurso segundo as rela~oes de identidade e conveniencia e de determinaciio e dependencia, e a cons~iio estabelecia a ordem local das palavras autorizadas pelo uso. Sterse (1989:183), ao analisar esta distin~o na Gramatica Filos6fica salientou que a constru~iio,pOIser uma manifesta~iiodo uso, era mutavel entre as llnguas ou dentro de uma mesma lIngua e a sintaxe, pOIser racional e 16gica,era imutAvel. Apesar de niio ser ta~longo quanto 0 livro da Etimologia (morfologia), 0 livro da Sintaxe, sem d6vida, era 0 principal. Soares Barbosa, diferindo dos demais gramaticos da epoca, nao abordou a sintaxe como mera decorrencia da morfologia (sintaxe de concordancia e de regime). As palavras ganhavam sentido na enunciacao atraves das relacoes estabelecidas entre elas. Para entender estas relacOes era preciso entender a estrutura oracional. Para Soares Barbosa, a oracao, ou proposi~iio, era qualquer juizo do entendimento expresso pOI palavras. Toda palavra tinha necessariamente tres termos: sujeito (exprimia a pessoa ou coisa da qual se enunciava algol, atributo (exprimia a coisa que se enunciava) e verba (exprimia a coexistencia e identidade do atributo no sujeito). A ora~iiosimples tinha urn sujeito e urn atributo. A ora~o composta tinha mais de urn sujeito ou mais de urn atributo. Os sujeitos e atributos podiam ser simples, compostos ou complexos. Os sujeitos e atributos complexos eram nomes modificados por vanos acess6rios que podiam ser desde urn nOnie ate uma ora~iio parcial. Havia dois tipos de ora~oes parciais: as incidentes (modificavam qualquer termo da proposi~ao total restringindo-o ou explicando-o) e as integrantes (inteiravam 0 sentido e a gramatica da proposi~iiototal completando a significa~lioativa ou relativa). 0 perido era formado por ora~Oestotais que, mesmo sem ser partes uma das outras, estavam ligadas entre si de forma que uma supunha necessariamente a outra para a obten~ao do sentido total. No perfodo, havia urna oracao principal e as demais eram subordinadas. As oracoes principais e subordinadas nao tinham lugar fixo como as incidentes e integrantes que eram fix as a posicao imediatamente depois da parte da oracao que modificava ou completava. Finalizando, cabe ainda dizer que a teoria gramatical apresentada quer nas Duas Unguas quer na Gramatica Filos6fica era a mesma. Porem, estas obras diferiram quanto finalidade para que foram compostas: a primeira, destinada ao ensino secundario, deveria mostrar os principios que regiam todas as Ifnguas para exemplificalos na gramatica portuguesa e na gramatica latina e a segunda, destinada ao ensino superior, deveria analisar, mais profundamente, a Ifngua portuguesa. a CASTELEIRO, (1980) "A Doutrina Grarnatical de 1er6nimo Soares Barbosa" IN: MemQrias da Aeademia das Ciendm de Lishoa - Classe de Letras. lisboa [lamo XXI; p. 197 -213] SOARES BARBOSA, 1. (1807) As Duar Ilngllas. Oil Grammaliea PhiJosophica da Lingua Pol1llglle1A, ComparadtJeom a lAtina; pam Ambas se Aprenderem ao Mesmo Tempo. Coimbra: Real Impres.io da Universidade. __ . (1822) Grammatiea Philosophiea da linglla Porluglleta Oil Prineipios da GmmmaRea Geml Applicados d NoslQ linguagem. lisboa: Typognphia da Academia Real das Sciencias [7"ed. de 1881) STERSE, C.M.L. (1989) A Grammatiea Philosophica da lingua POrluglleta - Uma Gramdtiea Antiga e Mllal. [Dis.ser~ de Mestrado; Sio Paulo: Pontiffcia Universidade Cat61ica)