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UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ
ANDRÉ FELIPE WIELGOSZ LEITE
CULTURAS IRMÃS: A HEGEMONIA CARTAGINESA SOBRE GADES E O
“CIRCULO DO ESTREITO”.
CURITIBA
2011
ANDRÉ FELIPE WIELGOSZ LEITE
CULTURAS IRMÃS: A HEGEMONIA CARTAGINESA SOBRE GADES E O
“CIRCULO DO ESTREITO”.
Monografia apresentada à disciplina de
Estágio Supervisionado em Pesquisa Histórica
como requisito parcial à conclusão do Curso
de História, Setor de Ciências Humanas,
Letras e Artes, Universidade Federal do
Paraná
Orientador: Prof. Dr. Renan Frighetto.
CURITIBA
2011
Dedico o presente trabalho à minha filha, Ana Luzia.
Mesmo distante dos olhos, está sempre em meu coração.
AGRADECIMENTOS
Agradeço ao Professor Renan, cujas orientações ajudaram imensamente a conduzir
minha curiosidade sobre a História Antiga, de forma geral e irrestrita, até a História Militar de
Roma; e, incentivando a avançar sobre uma região intrigante e pouco abordada, o mundo de
Cartago. As conversas inspiradoras que tivemos abriram minha mente e a minha percepção
para milhares de conexões que auxiliaram imensamente o desenvolvimento da pesquisa,
quando de seus momentos de impasse ou de estagnação.
Agradeço a todo o pessoal do NEMED, sempre presentes e receptivos às minhas
idéias, que não raramente eram dispersas e fora de sequencia lógica. Agradeço especialmente
ao Diego Martinez por seu apoio desde o inicio desse trabalho, ajudando-me com informações
diretas da Espanha; e agradeço especialmente ao André Leme e a Elaine Senko, pois sem a
ajuda e as conversas com ambos, mais do que a tutoria, tenho certeza que esse trabalho não
teria atingido a qualidade que tem agora. Suas revisões e seu apoio na finalização dessa
empreitada foram de imensa valia.
Agradeço igualmente à minha família, meus pais e meus irmãos, que mesmo sem
entender sobre o que era essa pesquisa nunca deixaram de me incentivar. Sou muito grato ao e
seu apoio constante, pois foi fundamental para que eu chegasse até aqui.
Agradeço também à Angela Zatta, cuja fé em minha capacidade foi fundamental para
vencer as dificuldades nos momentos inicias dessa longa caminhada. Agradeço-a igualmente
por ter dado a mim a possibilidade de dedicar-me integralmente à pesquisa, enquanto assumia
sob de forma mais que admirável as tarefas de cuidar de nossa filha, Ana Luzia.
“O Historiador é como o ogro da lenda. Onde fareja
carne humana sabe que ali está a sua caça”
Marc Bloch.
“Uma mente que se abre para uma nova idéia jamais
volta ao tamanho original”.
Albert Einstein.
RESUMO.
O presente trabalho tem como objetivo analisar o modo como Cartago realizou sua expansão
sobre a Península Ibérica entre 237 – 220 a.C. Como fonte utilizamos a obra Histórias de
Políbio de Megalópolis (200 – 120 a.C.). Complementando os fragmentos da obra, buscamos
uni-las com as mais recentes análises feitas por historiadores e arqueólogos acerca de diversos
sítios arqueológicos e vestígios de cultura material da época que foram recuperados na
atualidade. Essa expansão ocorreu de forma intrigante, porém pouco abordada pela
Historiografia Moderna. Devendo imensa somas à Roma, desde sua rendição em 241/240
a.C., e sem tropas desde a Revolta dos Mercenários (240 – 237 a.C.), ainda assim Cartago
enviou uma expedição militar contra a Ibéria. Região distante e aparentemente sem conexão
com as convulsões mediterrânicas, após 20 anos de intensas atividades militares e
diplomáticas sob o comando dos generais Amílcar, Asdrúbal e Aníbal Barca. A forma como
esses generais expandiram o poder cartaginês apresenta-se muito calculada e com
movimentos planejados, utilizando de uma prática política e de uma estratégia militar que nos
permitem traçar ligações unindo as terras da Ibéria, no Extremo Ocidental com o mundo
Helenístico no Oriente mediterrânico
Palavras – chave: Cartago; Guerras Púnicas; Expansão Militar.
SUMÁRIO
PRÓLOGO..............................................................................................................................08
CAPITULO I – Zona Escura.................................................................................................19
CAPITULO II – Políbio e o primeiro relato sobre o Extremo Ocidente Mediterrânico.27
2.1 – O Extremo Ocidente na Historiografia antes de Políbio............................................27
2.2 – Biografia de Políbio........................................................................................................30
2.3 – Políbio e as influências presentes em sua obra Histórias............................................35
2.4 – A Obra de Políbio, objetivo, temas abordados, estilo e traduções.............................40
CAPÍTULO III – O colosso cartaginês torna a se levantar................................................46
3.1 – O Sistema de Governo Cartaginês: estabilidade em decadência...............................47
3.2 – Um Exército de Especialistas........................................................................................50
3.3 – Amílcar Barca: o batismo de fogo de suas capacidades.............................................54
3.3.1 – O primeiro exército cartaginês na Europa: o estabelecimento na Ibéria..............57
3.4 – Asdrúbal Barca: um administrador diplomático........................................................62
3.5 – Aníbal Barca: um general com traços helenísticos?...................................................71
CONSIDERAÇÕES FINAIS.................................................................................................83
REFERÊNCIAS......................................................................................................................87
GLOSSÁRIO...........................................................................................................................95
ANEXO A................................................................................................................................99
ANEXO B...............................................................................................................................102
ANEXO C..............................................................................................................................103
ANEXO D..............................................................................................................................104
ANEXO E...............................................................................................................................105
ANEXO F...............................................................................................................................106
ANEXO G..............................................................................................................................107
PRÓLOGO.
Ao receber o mensageiro, o Grande General percebeu que sua luta
havia chegado ao limiar final. Quando assumiu o comando das operações
marítimas, e depois terrestres, havia ainda esperanças para prolongar e até
mesmo reverter os rumos dessa guerra que já durava, naquela época, 18
anos. Quando escolheu o local para seu acampamento militar, decidiu-se
por uma posição estratégica para uma possível retomada e conseqüente
vitória na guerra que se desenvolvia nessa rica e importante ilha.
No alto de uma planície cujos limites eram grandes escarpas tanto
do lado para o interior da terra quanto para o lado voltado ao mar, e com
somente três passagens facilmente defensáveis (duas pelo lado do voltado à
terra, e uma voltada para as praias), o general impunha uma tenaz
resistência aos inimigos. Mesmo longe das poucas cidades que ainda os
apoiavam, suas forças resistiam bravamente através da linha de
suprimentos que irrompia a supremacia naval adquirida pelos inimigos
durante os combates. Para tentar vencer essa resistência, o general inimigo
havia instalado o seu acampamento e menos de um quilômetro de distancia.
Entretanto a proximidade rendeu o efeito contrário, pois ao invés de
propiciar um combate aberto engajando todas as tropas, os combates se
resumiram, durante três anos, a escaramuças rápidas e resolvidas assim
que um dos lados partia em retirada para trás de seus fossos e paliçadas.
No entanto, esses três anos de impasse haviam acabado. Essa luta
tão equilibrada entre dois talentosos e inventivos estrategistas que não
pouparam artimanha militar alguma que não fosse conhecida; esse combate
entre tropas tão aguerridas e experientes nos combates terrestres iria ser
resolvido em outro campo, num terreno que dava suporte a ambos: o mar.
Não muito longe do local onde as escaramuças eram travadas, um combate
naval estava prestes a acontecer, e dessa vez seria um combate diferente de
todos os outros, seria um enfrentamento naval definitivo, pois para ambos
os lados da contenda a guerra estava chegando num estágio insuportável
devido aos desgastes políticos e econômicos provocados pelas imensas
8
perdas humanas e os gastos inerentes para a manutenção das forças
militares nas várias cidades.
Próximo as ilhas Aegates as duas forças titânicas entraram em
combate. Devido a problemas técnicos e despreparo das tropas, as forças
contrárias ao Grande General venceram. Com as pesadas baixas do
combate marítimo que encerraram a lendária supremacia marítima, e da
rota de suprimentos que mantinha e dava suporte ao acampamento em
terra, o Conselho que havia dado ao Grande General seu cargo de
liderança viu-se finalmente sem condições de sustentar os esforços de
guerra, fossem novas tentativas marítimas, fossem as forças em terra na
ilha. Foi para comunicar essa decisão tomada pelo Conselho que o
mensageiro estava ali, frente ao Grande General.
Olhando à sua volta e relembrando todos os esforços que haviam
sido feitos, todas as medidas que foram tomadas, e concluindo que aquelas
tropas haviam mantido as esperanças até onde foi possível, o Grande
General teve que reconhecer, da mesma forma como reconheceria uma
vitória, a eminente derrota. Derrota não faltar-lhe confiança em suas
tropas, mas por ser impossível garantir uma vitória. Mandando uma
delegação rumo ao general inimigo, ambos os líderes em campo
negociaram a tão ansiada paz.
Pelo acordo, dizia-se que somente haveria paz entre ambos os
povos se diversas condições fossem seguidas: se aprovado pelo povo do
vencedor; se o derrotado retirasse todas as tropas da ilha; não entrassem
mais em guerra com ninguém da ilha; entregassem todos os prisioneiros
sem exigir resgate, mas pagando resgate pelos seus; e ainda o pagamento
de 2000 talentos de prata ao longo dos próximos vinte anos. Esses termos,
após serem levados ao povo vencedor, foram modificados para a evacuação
de todas as ilhas entre os territórios de uma potencia e outra; redução para
metade do tempo para pagamento da soma indenizatória, acrescida em
mais mil talentos de prata1. O acordo foi ratificado por ambos os lados, e
Não há fontes bibliográficas no documento atual.1 O Talento era uma unidade de medida utilizada pelos
gregos, e equivalia a 26,2 kg de metal precioso, em geral prata. Ao final, Cartago assumia uma dívida de 3000
talentos de prata, algo próximo a 78, 6 toneladas de prata, para serem pagas em 10 anos.
9
as tropas derrotadas retornaram para o território governado por sua
capital.
O episódio que acima foi apresentado de forma de narrativa romanceada representou
o desfecho da primeira de uma série de conflitos entre duas grandes potências mediterrânicas:
de um lado, a lendária potência marítima da cidade de Cartago; e do outro lado, a famosa
cidade de Roma, à frente de uma liga de cidades agrupadas através do poder de suas legiões
de infantaria. A chamada Primeira Guerra Púnica havia sido iniciada quase 20 anos antes do
episódio narrado, quando a secular guerra de fronteiras entre cartagineses e gregos liderados
por Siracusa adquiriu um tom maior com o ingresso de um novo participe, a cidade de Roma.
Com a entrada de Roma, o conflito passou de uma questão fronteiriça para uma
guerra pela busca da supremacia e hegemonia inquestionável sobre o oponente. De fato, o
conflito desenvolveu-se em dois palcos principais: as terras da ilha da Sícília e o mar
mediterrânico desde as costas tirrenas até as costas africanas do Cabo Bom, no atual Golfo de
Tunis. No desenrolar dos conflitos, Roma e Cartago vivenciaram grandes evoluções militares
que alteraram os rumos do conflito.
No momento da eclosão dos combates, cada um dos lados possuía uma grande
experiência num tipo especializado de combate. Cartago era a potência marítima por
excelência, com uma imensa frota mercante e sua temida frota militar composta por velozes e
mortíferas trirremes. Roma, por sua vez, havia adquirido renome nos combates terrestres
através de suas legiões de infantaria e sua política diplomática. Justamente por essa fama de
potência terrestre, um grupo de mercenários (chamados de mamertinos, “filhos de Marte”)
que havia tomado a cidade de Messana (atual Messina), na margem siciliana do Estreito de
Messina, pediu a proteção de Roma contra o assédio de Cartago, que estava atendendo aos
pedidos de outra facção dessa mesma cidade.
Roma, não considerando benéfico ter os cartagineses controlando uma das margens
de uma das mais lucrativas rotas comerciais do Mediterrâneo (e da qual os romanos acabavam
de desfrutar), entrou em choque contra as forças cartaginesas. No começo das lutas, a
experiência romana garantia sua superioridade em terra, enquanto o mesmo ocorria com os
cartagineses em relação a sua supremacia nos combates em mar. A situação mudou quando os
romanos, capturando uma nau bélica cartaginesa em suas costas tirrenas, descobriram como
elas eram construídas e iniciaram aquilo que podemos apontar como “a primeira experiência
de produção em massa de equipamentos bélicos padronizados”.
10
Desmontaram o barco e, utilizando os portos das recém conquistadas colônias gregas
da Magna Grécia, construíram uma imensa frota para combater em igualdade os cartagineses.
Mesmo assim, a experiência cartaginesa no campo das manobras náuticas pendia a balança
em favor deles. A solução desse impasse foi a adaptação de pranchas de abordagem com
imenso grampos nas pontas, semelhante ao bico de um corvo (disso advém o nome do
equipamento, o corvus). Com o uso desse equipamento, os romanos transformaram o que
antes eram combates por abalroamento ou danificação do leme dos navios em verdadeiros
combates terrestres, onde forças “anfíbias” embarcadas nos navios garantiam a superioridade
durante a abordagem do navio inimigo.
O emprego dessa novidade, somado à experiência que os romanos adquiriam ao
empregar cada vez mais navios em operações militares importantes, fez a balança reverter em
favor de Roma em terra e no mar. Apesar disso, ao longo das décadas de confronto, houve
episódios onde a supremacia romana foi seriamente ameaçada, a exemplo da aventura em solo
norte africano, onde os sucessos iniciais foram revertidos numa derrota desgastante, no qual
os romanos sofreram com desastres na condução de frotas, resultando em naufrágios e perdas
em tempestades.
O avanço nas lutas levou a um estágio de estabilização, justamente o período onde o
Grande General recebe o comando sobre as ações marítimas, e posteriormente, terrestres.
Amílcar, cognominado Barca (Raio na língua púnica), era esse Grande General, que impôs ao
líder romano Lutácio Catulo uma tenaz resistência na região da cidade de Erix (atual Érice),
na costa ocidental siciliana. O impasse como sabemos, foi rompido devido ao resultado da
batalha nas ilhas Aegates, em fronte à região do monte Erix, onde a frota romana conseguiu
uma grande vitória sobre a frota cartaginesa, arregimentada e recrutada as pressas, cujo
objetivo era suprir as forças em terra, e não para combate marítimo.
Com a assinatura do acordo de paz, ambos os lados viveram uma experiência
custosa. Os romanos entraram em guerra contra os Faliscos, habitantes de Falerii (atual
Polari), cidade aliada e muito próxima fisicamente de Roma. E os cartagineses saíram de um
extenuante conflito para entrar numa guerra que ameaçou não só seu território, mas que
minou as relações com seus aliados no norte da África, quase lhes custando a própria
existência e liberdade2. Vejamos as circunstâncias de tal evento, chamada de Guerra Líbica,
ou como é mais conhecida Revolta dos Mercenários.
2
POLIBIO, Histórias, Livro I, 65.
11
Com as negociações finalizadas, Amílcar Barca retirou-se de seu acampamento
fortificado em Erix, dirigindo-se para Lilíbaion, cidade portuária ainda guarnecida por tropas
cartaginesas. Lá entregou seu comando para Gêscon, comandante-em-chefe na Sicília,
responsável pela evacuação das tropas da ilha. O exército cartaginês, em sua esmagadora
maioria, era formado por companhias de soldados mercenários.
Esse hábito de manter um exército majoritariamente feito por tropas mercenárias,
cujo somente o alto comando era formado por cidadãos de renome é muito anterior ao
conflito, possuindo causas e explicações em múltiplos aspectos. O mais iminente para
compreendermos a situação em Cartago, é que, aparentemente, o ofício militar ocupava um
lugar inferior na cultura cartaginesa. Não possuindo uma grande população, os cartagineses
ainda assim tinham que administrar uma larga rede comercial e econômica, mantendo a frota
mercante, as indústrias de cerâmica e artigos em vidro, e as fazendas em constante produção.
Além de significar um decréscimo na produção, o treinamento militar exige um
elevado investimento monetário, bem como de tempo, e especialmente, significa criar um
instrumento político, e Cartago já havia passado por uma experiência trágica com a tentativa
de golpe militar feita por um general chamado Hanón, algumas décadas antes da Primeira
Guerra Púnica. Essa crise gerou um clima de permanente desconfiança por parte das
lideranças políticas frente às dinastias familiares, pois como em muitos casos somente as
famílias mais abastadas podiam se dar ao luxo de manter-se numa ocupação à margem da
sociedade, os ensinamentos eram passados de pai para filho, tornando o exercício militar
muito próximo à uma “profissionalização”, por assim dizer.
No final das contas, à Cartago o emprego de mercenários onerava menos do que
manter um exército sempre a postos, ou então criar um corpo de soldados-cidadãos, que fora
das guerras, teriam outras profissões. Mas, se o uso de mercenários poderia ser uma solução
menos custosa, não significa que ela não fosse de elevado custo imediato. O emprego de
mercenários em pequena escala (Cartago é um caso único ao empregar majoritariamente
forças mercenárias e usar tropas próprias somente como guarnição citadina, ou apoio
emergencial) indica que seu preço era elevado, e junto ao preço elevado, vinha a dubiedade
em ação. De fato, não havia garantias de que as tropas mercenárias iriam manter-se
disciplinadas em combate, ou fora dele, correndo o contratante os sérios perigos ligados ao
humor instável dos líderes dos grupos mercenários, que caso não achassem justo o
pagamento, ou a parte lhe cabida no butim ou pilhagem, poderia desencadear uma reação em
cadeia, com revoltas generalizadas espalhando-se por todos os demais grupos mercenários.
12
Como leva a induzir de seu posto como comandante-em-chefe e líder da guarnição
em Lilíbaion, Gêscon tinha conhecimento sobre a importância das tropas mercenárias no
exército de Cartago e, principalmente, tinha conhecimento sobre os perigos representados por
esses mercenários após as campanhas e nas épocas de paz. Para evitar crises, ele providenciou
o embarque das tropas em pequenos grupos, que chegando a Cartago, seriam pagas, e
rapidamente repatriadas para as regiões de onde foram recrutadas. Porém, devido às
complicações financeiras e acreditando que as tropas iriam renunciar a parte do soldo em
divida, os cartagineses começaram a concentrar, na medida em que iam chegando, as tropas
dentro da cidade de Cartago. O resultado não agradou as autoridades, pois não demorou muito
tempo para que os mercenários começassem a causar distúrbios tanto de noite quanto de dia.
Para resolver esses distúrbios, as autoridades reuniram os capitães das tropas
mercenárias e propuseram que todas as tropas fossem deslocadas para a cidade de Sicas, no
interior do território cartaginês na África, até que as dívidas pudessem ser pagas e as tropas
repatriadas. As tropas foram transportadas com todas as suas bagagens, apesar de protestos,
para essa nova localidade. Lá estando longe da disciplina e das tensões militares após longo
período, logo incorreram em desorganização. Alguns dentre esses desordeiros começaram a
calcular a soma devida por Cartago, não deixando de exagerar seu apreço, ou lembrar cada
promessa feita pelos generais durante as batalhas, e fazendo questão de cobrar na integra os
valores devidos. Quando todas as tropas mercenárias foram reunidas em Sicas, Anôn
(comandante-em-chefe na Líbia) viu-se obrigado a comunicar que as expectativas não
poderiam ser cumpridas, muito pelo contrário, insistiu para um abatimento do soldo contratual
dada a situação de penúria da cidade e as pesadas tributações impostas por Roma. Como seria
previsível, os desentendimentos e ressentimentos explodiram por todas as companhias
mercenárias, e a confusão foi instaurada.
Anôn, através de reuniões com os chefes e os oficiais exaltados, continuou a pedir
por calma e disciplina. Mas, como as tropas eram das mais variadas regiões do Mediterrâneo
Ocidental e Oriental, muitos dos oficiais não conseguiam entender totalmente as palavras do
líder cartaginês. Assim, a situação foi tomada por uma névoa de incertezas e desconfianças, e
não demorou muito para que os mercenários passassem a entender que os cartagineses
estavam agindo de má-fé ao enviarem comandantes que não estavam familiarizados com as
tropas, e nem estavam presentes durante as batalhas, como forma de não pagarem por seus
serviços.
Dessa forma, revoltados e indignados com Anôn, bem como seus comandantes de
companhia e também com os cartagineses; um contingente superior a 20 mil homens iniciou
13
marcha de Sicas, indo em direção à Cartago, acampando numa localidade próxima, chamada
Túnis. Vendo seu antigo exército acampado tão ameaçadoramente próximo à capital, e sem
ter confiança no potencial bélico das tropas de cidadãos (além de ter aberto mão de uma
importante moeda de troca que seriam as bagagens e os acompanhantes que foram obrigados
a seguir junto dos mercenários para Sicas), as autoridades da cidade começaram a enviar
embaixadas com o propósito de contornar a situação, negociando mantimentos e todas as
exigências da turba que fossem possíveis de serem atendidas. Apreendendo as inquietações e
o temor dos cartagineses, as tropas revoltosas que cresciam cada dia mais também
aumentavam suas pretensões, arrogantes devidos aos sucessos contra as legiões romanas na
Sicília e vendo que nenhuma tropa cartaginesa ou aliada seria páreo para eles, aumentando
cada vez mais os valores devidos a elas. Pressionados pela necessidade, os emissários
cartagineses prometeram fazer o possível para sanar as dívidas contraídas, e também enviar
como negociador nas próximas reuniões um dos comandantes que serviram na Sícília junto
aos mercenários.
Como os revoltosos viam com desconfiança Amílcar Barca (pois ele nunca havia
conferenciado diretamente com eles, e havia deposto o comando por livre e espontânea
vontade), os cartagineses chamaram a Gêscon para intermediar as negociações. Chegando a
Túnis e trazendo o dinheiro, o ex-comandante-em-chefe na Sicília passou a conferenciar
reservadamente com cada oficial e separadamente com as tropas de cada nacionalidade,
censurando-as pela conduta demonstrada até então, mas exortando-as para o futuro, pedindo
bom senso e disposição para acatar as ordens daqueles que a tanto tempo vinham
remunerando seus serviços. Após essas conversas iniciais, Gêscon passou a liquidar os soldos
atrasados, pagando separadamente aos homens de cada nacionalidade.
Acontecia que, dentre as tropas, existia um guerreiro da Campânia de grande talento
bélico, chamado Spêndios, que com medo de ser enviado de volta para Roma (era um escravo
fugido) mostrou-se contrário às negociações arquitetadas por Gêscon. Apoiando Spêndios,
havia também mais um capitão mercenário, chamado de Matos, homem livre e que havia
adquirido importante papel nas agitações em Túnis, e por esse motivo temia ser tomado como
vitima expiatória quando começassem as punições pelas agitações. Esse mesmo Matos tinha
elevada estima dentre as tropas líbias e, compartilhando das idéias de Spêndios, logo as
disseminou entre os líbios através de queixas sobre atraso nos pagamentos e do medo ao
espalhar a idéia de que após todas as tropas mercenárias serem pagas e repatriadas, os
cartagineses descontariam sobre os líbios (que não teriam para onde ir) toda o
descontentamento devido à derrota e as agitações. Essas acusações prosseguiram por algumas
14
assembléias onde a turba somente escutava os apelos de Spêndios e Matos, reservando a
qualquer outro que quisesse ser ouvido um tratamento cruel com apedrejamento até a morte.
Logo ambos assumiram a posição de líderes dos revoltosos, prendendo Gêscon e todos os
demais cartagineses, e declarando desse modo abertamente as intenções de guerra.
Esse foi o estalido para a Guerra Líbica. Matos e seus prosélitos rapidamente
enviaram emissários para diversas cidades líbias, pedindo seu apoio e adesão na revolta,
conseguindo imenso sucesso pois Cartago durante a guerra pela Sicília havia tratado
duramente suas possessões líbias afim de extrair o máximo possível deles para custear os
combates. Apenas duas cidades recusaram-se a entrar no motim, Útica e Hipacritai, e as
forças mercenárias rapidamente impuseram cerco a ambas.
Cercados e sem esperanças de receber apoio externo ou interno, a cidade de Cartago
entrou em estado de desespero. Não possuíam suprimentos, armas, ou recursos para pedir
ajuda, o que lhes fez entender a profunda diferença entre uma guerra no estrangeiro e uma
guerra interna. Enquanto Cartago fenecia lentamente, as tropas mercenárias adquiriam cada
vez mais apoio por parte das cidades líbias, a ponto de conseguirem arcar não só com as
dívidas das tropas mercenárias, mas também para custear as operações de guerra.
Enquanto esses acontecimentos transcorriam no norte da África ocorriam
movimentos de revoltas muito similares na Sardenha e a Córsega, os demais territórios
dominados por Cartago. Na Sardenha em especifico os mercenários aquartelados inspirandose no exemplo de Spêndios e Matos tomaram o poder, prendendo e crucificando o
comandante cartaginês da guarnição, bem como expulsando para a Itália ou então
organizando massacres contra a população cartaginesa da ilha.
Nesse meio tempo, Amílcar Barca foi chamado por Cartago como novo comandanteem-chefe com o objetivo de contornar e debelar a revolta mercenária. Adotando uma postura
branda com os prisioneiros que lhes caia em mãos, libertando-os após aprisionamento,
começou a adquirir a simpatia de muitos dos revoltosos alarmando Spêndios, Matos e um
gaulês com renomado papel nas assembléias, Autáritos. Este ultimo, inclusive, manifestava-se
nas assembléias contrário à Amilcar alertando que sua política visava libertar os poucos
mercenários para poder capturar a todos e, assim, puni-los de uma única vez. Como quando a
rebelião foi transformada em guerra, todas as demais vozes eram caladas pela multidão
através de apedrejamentos. A fim de garantir a adesão e o comprometimento de todos os
revoltosos, Spêndios, Matos e Autáritos organizaram uma limpeza nas fileiras, matando todos
os possíveis simpatizantes a Amilcar, impondo uma vergonhosa execução ao respeitado excomandante Gêscon e a todos os demais cartagineses aprisionados.
15
Essa declaração de hostilidade elevou os ânimos dos cidadãos cartagineses.
Embaixadas foram enviadas a Anôn, exilado na Itália após perder o comando da Sardenha, e a
Amílcar, pedindo o retorno de ambos para vingarem as infelizes vítimas. Junto ao retorno dos
grandes comandantes chegou um auxilio de um aliado inesperado. Hierôn de Siracusa, vendo
que a manutenção de seus domínios estava garantida agora com a retirada das forças
cartaginesas, mas que corriam sérios riscos caso essa força desaparecesse e deixa-se terreno
livre para a expansão romana, atendeu com grande presteza aos apelos feitos pela antiga rival.
Não sabemos os detalhes de como a situação foi revertida, mas sob o comando de
Amílcar Barca, e com o reforço prestado por Siracusa, as forças leais à Cartago venceram a
Guerra Líbica, restabelecendo de forma ainda mais consistente sua hegemonia na região,
assim como permitiu que as líderes da insurreição fossem punidos exemplarmente, sendo
torturados após exibição em cortejo pela cidade de Cartago. Essa guerra civil enfrentada pelos
cartagineses durou três anos e quatro meses, e trouxe um sabor agridoce aos vencedores. Se
por um lado Cartago lutou por sua própria existência e reforçou sua supremacia no território
norte - africano, por outro todos os seus projetos seculares de supremacia marítima no
Mediterrâneo Central desmoronaram.
Mesmo com a perda da Sicilia, Cartago ainda contava com a ilha da Sardenha,
posição estratégica comercialmente, região de fama pela fertilidade da terra e por ser
densamente povoada. Com a revolta da guarnição da ilha, os cartagineses perderam o governo
sobre a região. Rapidamente, como havia ocorrido no inicio dos conflitos pela Sicilia, a
guarnição de revoltosos pediu o apoio de Roma para manter-se no poder. Enquanto Roma
negociava sua posição com os mercenários, a cidade norte - africana recuperou-se e declarou
a intenção de uma campanha punitiva contra os partidários da revolta. Essa mudança no jogo
político foi frustrada pela ameaça romana de iniciar uma nova guerra contra Cartago, caso ela
empreende-se a campanha na Sardenha. Os cartagineses, cientes da fragilidade em que
estavam cederam as circunstâncias, renunciando à Sardenha, além de pagarem uma
indenização adicional de mil e duzentos talentos de prata3.
Há um ditado que fala o seguinte: a “necessidade é a mãe das soluções”. Após mais
de 20 anos empenhados num conflito desgastante, cujo resultado foi uma derrota sancionada a
duras penas, Cartago viveu uma guerra civil com picos de selvageria onde os principais
comandantes pereceram ou foram aprisionados em combate, além de serem coagidas a
entregar a sua ultima base de comércio na rica e movimentada rota do Mediterrâneo Central.
3
Próximo a 31 toneladas de prata.
16
Durante uma geração, os cartagineses viveram sob as tensões de uma guerra, se não total, uma
guerra de sobrevivência ou aniquilação. Uma guerra tão acirrada, que seus principais
opositores não foram seus inimigos, mas justamente seu próprio exército. Uma seqüência de
guerras em tamanha escala, que os autores da época, mesmo aqueles que lhes nutriam
oposição, apiedaram-se deles. As necessidades estavam assolando Cartago, estava na hora de
surgirem as soluções.
E a solução não demorou a chegar. Assim que a situação na Líbia foi estabilizada, os
cartagineses enviaram um exército, comandado por Amílcar Barca, rumo à uma distante e
esquecida região mediterrânica: a Ibéria. Lá, em aproximadamente doze anos, Amilcar
estabeleceu as bases do poderio cartaginês na região das “Colunas de Hércules” (atual Estreito
de Gibraltar), bases sólidas o suficiente para reerguerem Cartago novamente ao estado de
grande potência mediterrânica, a ponto de voltar a ameaçar a supremacia romana menos de
uma geração após quase desaparecer sob a onda de fúria mercenária.
Como essa recuperação quase milagrosa foi possível? Com que forças Cartago pode
se reerguer? Qual o motivo desse súbito interesse pela Ibéria, que apesar de suas legendárias
riquezas, jamais havia sofrido assédio de Cartago antes? Quais eram as possíveis expectativas
cartaginesas sobre o território da Península Ibérica? Como foram os contatos com essa região?
Foram somente contatos bélicos, ou aconteceram negociações diplomáticas? As populações
locais absorveram com naturalidade a imposição da hegemonia cartaginesa na região, ou
também aconteceram reações à chegada dos novos intrusos? Qual tipo estrutura de poder
permitiu a Cartago conquistar tão rapidamente, e manter por tanto tempo uma região tão
distante, sendo que acabava de sair de uma situação de crise econômica, civil, militar e
diplomática? Essas são algumas das questões que trabalharemos problematizando-as ao longo
de nosso trabalho.
Inicialmente, no Capítulo I - “Zona Escura”, vamos definir nossos limites espaciais e
temporais. Comentaremos acerca da historiografia dedicada à relação dos cartagineses com os
povos da península ibérica, desde a Antiguidade até nossa época. Procuraremos problematizar
certos estereótipos, bem como situar as teorias dentro das contingências temporais e
contextuais de seus autores.
Em prosseguimento, no Capitulo II – “Políbio e o primeiro relato sobre o Extremo
Ocidente Mediterrânico”, iremos tratar sobre Políbio e sua obra História4. Nossa análise será
4
POLIBIO, Histórias. Tradução de Mário da Gama Kury, Brasília, Editora Universidade de Brasília, 1985.
Optou-se por essa versão devido a indicação e crítica feitas por Juliana Bastos Marques em artigo sobre a técnica
de escrita de Políbio, além de ser uma tradução em português, produzida por um filólogo especialista na língua
17
centrada sobre a tradição mítica e historiográfica da qual Políbio foi tributário. Também
comentaremos sobre sua biografia e como as experiências pessoas do autor podem ter
influenciado sua obra.
No Capítulo III – “O colosso cartaginês torna a se levantar” iremos analisar nossa
fonte, buscando entender em meio a quais influências, contextos e através de que formas
Cartago conseguiu recuperar-se e expandir-se mais do que nunca antes. Por questões de
organização, iremos analisar cada um dos governos dos três líderes Barcas: Amílcar (237 –
229 a.C.); Asdrúbal (229 – 221 a.C.) e Aníbal (221 – 220 a.C.). Não é nossa proposta estender
nossa análise para além dessa data, pois já estamos lidando com os preparativos para a
Campanha Itálica de Aníbal; as atenções deixam de ser a expansão, e passam a ser a
preparação para uma grande ofensiva.
Ao final, iremos expor nossas considerações finais na “Conclusão”. Por ultimo,
temos algumas informações adicionais: um Glossário, com a explicação de alguns termos
muito utilizados no decorrer do trabalho; e nos Anexos, um explicação mais estendida sobre o
Círculo do Estreito, assim como uma série de mapas e tabelas.
original da obra, e de ser de fácil acesso e disponibilidade para consultas. Além da versão de Mário da Gama
Cury, Existem outras traduções, em diversos idiomas. Em inglês, temos a tradução da Penguin Books,
POLYBIUS, The Rise of the Roman Empire, translated by Ian Scott-Kilvert, Londres, Penguin, 1979, é a versão
mais moderna, e possui uma boa introdução, escrita por Frank Walbank, considerado um dos maiores
especialistas sobre Políbio na atualidade. Porém ambas as edições são incompletas. Para o texto completo, as
edições mais usadas são as da Loeb Classical Library, POLYBIUS, The Histories, with na English translation by
W. R. Paton, 6 vols., Cambridge, Harvard University, 1954 (inglês e grego), e da Belles Lettres, POLYBE,
Histoires, trad. P. Pedéch ET. al., 10 vols, Paris, Les Belles Lettres, 1995 (francês e grego)
18
CAPÍTULO I - Zona Escura.
A História, ciência que estuda as ações humanas no tempo, possui um dos mais
amplos campos de pesquisa dentre todas as ciências. Um de seus campos de pesquisa dedicase ao chamado Mundo Antigo, isto é, o mundo cronologicamente localizado pela
historiografia tradicional, desde a invenção da escrita (+/- 3.000 a.C.) até a tomada de Roma
pelos Hérulos liderados por Odoacro, em 476 d.C. Nesse amplo recorte temporal, existem
diversas outras subdivisões, devido a algum evento cujas conseqüências criariam estruturas de
longa-duração. Sem muito receio, dos vários períodos que podem ser recortados dentro da
História Antiga, dois em especial tem destaques tanto nos círculos acadêmicos quanto no
imaginário cultural ocidental: o “Período Helenístico”, e o “Período Romano”.
O “Período Helenístico” inicia-se com a ascensão da Macedônia de Felipe II como
potência hegemônica da Hélade grega (337 a.C); atinge o apogeu com a impressionante
campanha de Alexandre Magno contra os persas (334 – 323 a.C.) e a união cultural e
ideológica entre o Ocidente e o Oriente, e adquire uma espécie de “estase” com a morte de
Alexandre Magno e a divisão dos poderes com os seus Diadocoi, seus herdeiros políticos, que
entraram numa sucessão de lutas fratricidas por fronteiras ou para demonstração de
hegemonia sobre os demais reinos do Mediterrâneo Oriental (a partir de 324 a.C até o Reino
Ptolomaico ser conquistado por Roma, em 30 a.C.).
O segundo período, o “Período Romano” não possui fronteiras totalmente definidas,
na maior parte das vezes são escolhidos marcos arbitrários, mas de maneira geral, podemos
colocar o inicio desse momento com o final da Segunda Guerra Púnica (201 a.C.), quando a
supremacia romana é inconteste tanto no Mediterrâneo Ocidental quanto no Oriental. Ao
impor nova derrota à Cartago, e fincar bases na Grécia e no Oriente Próximo, Roma promove
uma revitalização e uma nova dinâmica política e social aos territórios “helenísticos”,
absorvendo a cultura da região e dando novas leituras ou promovendo novas formas de pensar
baseadas na herança alexandrina.
Ambos os períodos passaram a ocupar um importante lugar dentro da Historiografia,
desde os primórdios da “cientificização” da História. Esses recortes recobrem imponentes
batalhas, líderes famosos, construção de magníficos monumentos, bem como grandes
tragédias e as raízes daquilo que, posteriormente, serviu de base para a argumentação de
pensadores e políticos para legitimar fronteiras ou justificar uma possível superioridade
cultural/racial. Iremos trabalhar isso mais detalhadamente à frente. Períodos tão brilhantes e
19
atrativos exerceram um efeito ofuscante sobre os acontecimentos que os entremearam ou que
aconteceram em paralelo, mas as margens desses períodos.
Claro, não podemos generalizar e dizer que devido a esses dois períodos
simplesmente os demais que os antecederam, ou que os sucederam foram menos estudados.
Longe disso, pois no intuito de entender o contexto em que tais períodos ocorreram, os
períodos antecessores e posteriores foram analisados. Entretanto, tais análises possuíam
especificidades muito restritivas. A base da produção do conhecimento histórico sobre a
Antiguidade Clássica está nos corpos documentais (fontes escritas, relatos oficiais, relatos de
viagens, tratados conceituais ou científicos, entre outros) e nos resquícios materiais (como o
nome indica, seriam os vestígios físicos deixados por uma cultura, seja um grande
monumento seja um caco de cerâmica). E se nem sempre ambas as áreas caminharam juntas
nas pesquisas históricas sobre os grandes períodos usados como exemplos, muito menos nas
pesquisas sobre as “zonas escuras” entre os famosos períodos.
Por “Zonas Escuras” estamos nos referindo aos períodos históricos dos quais temos
um conhecimento limitado acerca de um contexto geral ou especifico, temporal ou
geograficamente. Esse desconhecimento em muitos casos é decorrente de um dos vários
contratempos da História, e que afeta mais sensivelmente as pesquisas sobre História Antiga:
as fontes e quem as escreveu. São escassos os períodos onde possuímos fontes de todos os
lados envolvidos nos eventos. A maioria esmagadora dos casos, contamos somente com o
relato (geralmente fragmentários) deixado pelos vencedores. E como acontece em muitos
casos na atualidade, essas versões estão sobrecarregadas de preconceitos, degradações contra
os inimigos, ou então exageros numéricos e artifícios retóricos para exaltação dos sucessos
dos vencedores.
A “Zona Escura” a qual iremos nos referir nesse trabalho possui um recorte temporal
e uma região espacial definidas. Para o objetivo de nossa análise, essa Zona Escura estaria
num cenário deixado às margens da ascensão romana, ou do desgaste das potências
helenísticas: o Mediterrâneo Extremo-Ocidental. Braudel, em um de seus últimos trabalhos5,
desenvolve de forma quase poética a idéia de que o mundo mediterrânico é dividido em duas
partes, traçando uma dividindo o mar Adriático ao meio, rumando sentido sul ao largo do
litoral oriental siciliano e continuando até as costas líbias, temos as fronteiras de dois
mediterrâneos: o Ocidental e o Oriental. Cada uma com uma série de características
(geográficas, culturais, até mesmo “cores de mar diferentes, um lado mais claro e convidativo,
5
Memórias do Mediterrâneo, obra deixada em “gaveta” e publicada por seu filho no final dos anos 90.
20
outro mais sombrio e contemplativo”) próprias, e essas duas partes estiveram sempre numa
convivência forçada, com relações conflituosas e de disputas.
O Mediterrâneo Ocidental englobaria a Península Itálica, a Península Ibérica, a
Sicilia, a Córsega-Sardenha, o litoral norte africano ao ocidente da Cirenaica, além das
diversas ilhas e do litoral atlântico tanto europeu quanto africano. Nesse plano, a região
extremo-ocidental iria desde o atual Estreito de Gibraltar, conhecido na época clássica como
Colunas de Hércules6, até a Cordilheira dos Pirineus na Europa, e ao golfo de Tanger, na
África.
Temporalmente, essa zona escura estender-se-ia desde as míticas relações entre
Tartessos e a cidade de Tiro, na Fenícia (meados do século VII a.C.), até a imposição do
domínio romano (século III a.C) e os relatos das guerras destes com os habitantes locais. O
principal empecilho para conhecermos como era essa região antes da chegada romana é a
escassez de fontes primárias (escritas baseadas em informações de “primeira mão”), a maior
parte dos escritos é baseada em obras que infelizmente não chegaram até nós (ou chegaram de
forma tão fragmentada que seu estudo torna-se improdutivo). A partir da presença romana, há
um aumento significativo na quantidade de obras e na qualidade dos relatos e descrições dos
eventos ocorridos no local, assim como as relações políticas, social, econômica e militares
estabelecidas na Península.
Essa região, desde a Antiguidade, parece estar envolta com uma aura de mística e
mistérios. Para os gregos, durante muitos séculos, as Colunas de Hércules eram considerados
os limites do “Mundo Conhecido” à oeste. Por essa passagem, os navegadores alcançariam o
Rio-Oceano que contorna todas as terras emersas. Próximo a ela, está a Cordilheira do Atlas,
onde o titã de mesmo nome estava condenado a segurar a abóbada terrestre sobre seus
ombros. Indo além dessa passagem, estariam os míticos Jardins das Hespérides, onde ninfas
cuidariam das arvores de pomos de ouro, e uma imponente serpente faria a segurança de tão
importantes frutos. Essa visão mítica somente foi desfeita muitos séculos depois de sua
criação, quando as reflexões filosóficas e cientificas, e as viagens e relatos geográficos foram
fendendo o tecido do mito que recobria os limites extremo-ocidentais do “Mundo
Conhecido”. E com a chegada das forças romanas, temos a integração com o mundo
civilizado, letrado, realístico e crível.
6
Devido a lenda de que Hércules, durante a realização de seus 12 trabalhos, teria aberto o estreito batendo com
um porrete no paredão de rochas que fechava o mediterrâneo numa bacia.
21
Mas, mesmo assim, as referencias míticas permaneceram, só que agora
transfiguradas em hipóteses de existência histórica. Além da lenda grega do Jardim das
Hespérides, outra referencia envolta em lendas descreve uma imagem de grandes riquezas na
região, o controverso reino de Tartessos. Reino rico em prata, relativamente poderoso e
próspero, estranhamente desapareceu envolto no negrume de nossa Zona Escura. Esse
desaparecimento repentino suscitou muitas inquietações e dúvidas, mas que foi cedendo lugar
a um assunto mais atraente, a chegada romana.
Claro, não houve um esquecimento total sobre esse recorte temporal. Diversos
historiadores dedicaram-se a estudar essa “zona escura” da História Antiga. Porém, o foco das
pesquisas estava direcionado para outro cenário, posterior à expansão cartaginesa na
península, a saber, as atenções de suas pesquisas estavam sobre como Roma venceu Aníbal
Barca na Segunda Guerra Púnica7. Especificamente sobre como eram as relações entre
fenícios e cartagineses com as populações locais, as pesquisas pioneiras foram desenvolvidas
pelo pesquisador Adolf Schulten, em finais do século XIX, inicio do século XX.
Adolf Schulten, em sua obra “Tartessos”8, desenvolveu um pensamento que
repercutiu até muito recentemente. A tese principal de sua obra defende que numa época
remota da pré-história9 da ocupação humana na península ibérica, colonos egeus
(possivelmente cretenses, ou então etrusco-tirsenos) aportaram no litoral sul peninsular,
trazendo o que seria a mais antiga civilização no Ocidente, o embrião do Estado de Tartessos.
Esse brilhante estado civilizado e culturalmente aparentado com a civilização grega acabou
sendo subjugado e finalmente destruído com a chegada dos colonizadores fenícios 10 e
cartagineses. Ambas as ocupações de origem semítica teriam por objetivo a exploração das
7
A Segunda Guerra Púnica – de 218 a.C, iniciada com a tomada de Zacântion 7 (Sagunto); até 201 a.C, quando
Aníbal é batido em Zama e Cartago assina um novo tratado de paz reconhecendo-se sob a hegemonia romana.
8
Obra de 1924.
9
Sobre os períodos pré; proto; e histórico, cf. ALVAR, Jaime. “Capítulo I Los primeros estados em la
Península, los pueblos del área mediterrânea”, IN: “Entre Fenícios e Visigodos – La historia antigua de la
Península Ibérica”, Madrid, 2008, p. 24. Nesse trecho, Alvar define que estabelecer um quadro cronológico que
abranja todas as discussões teóricas acadêmicas é uma tarefa muito complexa; mas, em linhas gerais, o período
Pré-Histórico iria desde a ocupação humana da região até que as culturas letradas do Mediterrâneo são atraídas
para o local e desenvolvem relatos sobre a realidade autóctone. O período Proto-Histórico estaria em ambos,
seria quando uma cultura iletrada aparece mencionada no registro literário de outra sociedade culturalmente mais
avançada.
10
Schulten define como datas de dominação fenícia de meados dos anos 800 a.C (reinado do mítico Gérion de
Tartessos) até a queda de Tiro pelos acádios, em 700 a.C. Com a queda de Tiro, Tartessos foi reconstruída
através da ajuda dos aliados gregos foceos, os mesmo que fundam Massilia (atual Marselha) e a e cidade de
Mainake, dentre diversas outras colônias e entrepostos comerciais no litoral mediterrâneo da Península Ibérica.
Com a chegada dos cartagineses na península, temos uma retomada nos conflitos entre Tartessos (e seus aliados
gregos) contra os invasores semitas de Cartago. Em toda a sua obra, as relações pré-romanas na península são
marcadas sempre pelo conflito entre indo-europeus (na época chamados de “arianos”) e descendentes semíticos.
22
riquezas comerciais (tanto minerais quanto agrícolas), bem como o uso da população
autóctone como mão-de-obra explorada em benefícios dos dominadores orientais.
Essa lógica de relacionamento é filha de seu tempo e de seu criador. Formado na
tradição historiográfica alemã do século XIX, Schulten imprimiu em sua produção muitos dos
valores que atravessavam a sociedade alemã durante a crise de valores e de ideologias
conservadoras da República de Weimar. Unindo a concepção de História ainda ligada à
História Metódica Francesa e aos pressupostos da chamada História Política Tradicional
(onde a questão de legitimação política de um Estado está intermediada pela proximidade com
um passado glorioso, o passado greco-romano), junto de uma visão anti-semita, Adolf
Schulten intensificou a imagem deixada pelos autores gregos e romanos 11 sobre os fenícios e
cartagineses: são ambiciosos, desconfiados, sem moralidade, violentos, agem de forma
imoral, são piratas exploradores, entre outros adjetivos negativos.
Esse estereótipo foi perpetuado na historiografia espanhola devido a uma conjunção
entre o aproveitamento político do trabalho de Schulten feito pelos nacionalistas; a
aproximação e admiração da Academia Espanhola durante o pré e o pós-Segunda Guerra
Mundial com a Academia Alemã; e a intervenção política realizada nas pesquisas e na
organização da Academia Espanhola, onde pesquisadores foram afastados dos círculos
acadêmicos devido a seus vínculos políticos ou por seus trabalhos questionarem as bases em
que se apoiavam a postura política praticada pelo governo na época12. A permanência dessa
imagem canônica negativa está presente em várias obras muito posteriores à obra “Tartessos”.
Dois pesquisadores merecem destaque: Fernand Braudel e Gerhard Herm.
Uma das primeiras obras a chegar ao Brasil, e a ser dedicada exclusivamente aos
fenícios e cartagineses foi o livro de Gerhard Herm13, “A Civilização dos Fenícios”. Essa
obra, escrita como uma espécie de manual básico sobre o assunto, e produzida em meados da
década de 1940-50, não descreve exatamente a “Cultura” desses povos. Para Herm, mais do
11
Homero, na Ilíada; Hesíodo na Teogonia, Heródoto em sua História, Tito Lívio em sua Ab Urbe Condita;
entre outros autores.
12
Cf. CASTRO, José L. L. “Fenícios y cartagineses em la obra de Adolf Schultsen: uma aproximación
historiográfica”. Gérion, v. 14, 289 – 331. Madrid, 1996. Dentre os diversos fatores para explicar a prevalência
das idéias de Adolf Schulten sobre o papel de fenícios e cartagineses no desenvolvimento cultural peninsular
pré-romano, Castro ressalta principalmente o clima político em que a obra foi produzida e debatida. Na Espanha,
a ciência História só foi organizada muito tardiamente, já em finais do século XIX, e existia uma grande
expectativa para uma atualização cientifica emparelhando as pesquisas históricas hispânicas com as pesquisas
históricas francesas e alemãs, os modelos da época. Além disso, muito antes da Segunda Guerra Mundial, já
havia um clima político e acadêmico filo-germanista, cujas ansiedades foram correspondidas pela obra do
pesquisador alemão. Durante e no pós-guerra, ocorreu uma forte intervenção política nacionalista de direita nas
universidades, onde pesquisadores que questionassem as idéias de Schulten foram desligados ou distanciados de
suas funções acadêmicas
13
HERM, Gehard. A Civilização dos Fenícios. Rio de Janeiro, Otto Pierri Editores Ltda, 1979.
23
que motivados por uma forma de cultura específica, os cartagineses obedeciam a uma
estrutura lógica muito semelhante à lógica de mercado que regula as atuais relações do
mercado capitalistas.
A explicação fornecida no livro, longe de contextualizar ou de propor uma reflexão
mais profunda sobre a expansão rumo à Península Ibérica, toma como pressuposto que os
cartagineses, como hábeis negociantes e mercadores (bons tanto para encontrar nichos de
mercado para seus produtos quanto para conseguirem lucrar por vias escusas), foram atraídos
somente pelo potencial econômico da região. A riqueza mineral e a possibilidade de
exploração sobre as tribos celtiberas (como escravos, mercenários e compradores
manufaturados) sustentaram e mantiveram a expansão e o domínio cartaginês sobre o
território ibérico, além de fornecerem tudo que fosse necessário para o reflorescimento de
Cartago, em especial das finanças pessoais das elites no poder.
A visão anacrônica de Gerhard Herm não se desenvolveu aleatoriamente. Mesmo
Braudel14, produzindo sua obra em finais da década de 1960, busca analisar Cartago
aproximando a sociedade cartaginesa com uma sociedade industrial, quase uma prévia do que
seria a Inglaterra em meados da Revolução Industrial. Tal aproximação, ironizada pelo
próprio pesquisador, apresenta uma análise mais aprofundada do contexto de longa-duração
da região do Mediterrâneo Ocidental, dotando-a com características próprias, onde uma delas
(e a mais explorada no livro) são as relações comerciais. Refletindo sobre as relações
comerciais, Braudel foi um dos primeiros a problematizar a chegada dos cartagineses à
Península, comentando sobre a presença anterior de núcleos culturais fenícios ali, ou seja,
apontando a existência de outra cultura anterior à cartaginesa, mas próxima aos fenícios, e
ambas diferente da celtibera. Mas dado à especialidade de Braudel não ser esse recorte
temporal, e ao objetivo da obra, não houve um aprofundamento sobre o que seria
“cartaginês”, “peninsular” e “celtibero”.
As primeiras propostas de revisão crítica da obra de Schulten aconteceram já em
meados da década de 1930 – 1940, porém foram silenciadas em esquecidas durante o clima
político e acadêmico dominante. Em finais da década de 1960, inicio da década de 1970,
Miquel Tarradell15 realiza uma nova série de escavações em diversos dos sítios estudados por
14
BRAUDEL, Fernand. Memórias do Mediterrâneo – Pré História e Antiguidade. Rio de Janeiro:
Terramar/Multinova, 2001.
15
Miquel Tarradell i Mateu (Barcelona, 1920 – 1995), foi um dos grandes nomes da arqueologia e das pesquisas
sobre a pré-história da Península Ibérica. Obteve renomados títulos acadêmicos ao longo de sua produtiva
carreira, merecendo destaque o Prêmio de Honra das Letras Catalã (1977). Foi cátedra de Arqueologia na
Universidade de Valência e na Universidade de Barcelona. Ostentou o título de membro do Comitê Permanente
24
Schulten, e reelabora vários dos postulados do historiador alemão, revendo e restabelecendo,
através da arqueologia, o cronograma das grandes mudanças sócio-políticas na península. Sua
maior contribuição foi propor um novo quadro cultural, baseado nas similaridades e
diferenças existentes em sítios arqueológicos no sul peninsular, nas margens européia e
africana do Estreito de Gibraltar, bem como alguns sítios na costa atlântica de ambos os
continentes. A essa cultura comum, Tarradell batizou como “Círculo do Estreito”. Essa
cultura comum integraria num mesmo contexto cultural e espaço-temporal cidades portuárias,
centros metalúrgicos, campos de exploração mineral, complexos de fabricação cerâmica e de
gêneros alimentares para exportação, como a salgação de peixes e o garum (uma espécie de
molho muito popular em todo o mediterrâneo, composto por vísceras, sangue de peixe e
outras carnes envelhecidos por meses em ânforas especiais).
Essa cultura do “Círculo do Estreito” responderia muito mais à rica Tartessos do que o
núcleo cultural sediado unicamente no sul peninsular proposto por Schulten. Recentemente,
vários pesquisadores retomaram os trabalhos e as pesquisas de Tarradell, refinando ainda mais
o quadro cronológico e elencando ainda mais elementos que corroboram a proposta do
Círculo16. Mesmo assim, ainda ocorrem acalorados debates acerca de qual referencial
conceitual seria mais legitimo de ser usado, se a idéia de Tartessos, baseada em Schulten, mas
revisada e aprimorada; ou se a idéia proposta por Tarradell de uma grande rede cultural
interligando os vários núcleos urbanos e comunidades agrárias e/ou pesqueira do Estreito de
Gibraltar. Não iremos entrar nos méritos dessa questão, que em ultima análise está muito mais
próxima de uma discussão semântica do que de implicações identitárias17.
Porém, ambas as teses possuem um importante ponto em comum: o centro
socioeconômico regional estaria na cidade, ou nas proximidades, da Gades, atual Cádiz, entre
os rios San Pedro e Zuraque, no extremo sul da Península Ibérica. E a época de maior
da Associação Internacional de Ciências Pré-Históricas, assessor do Conselho de Arqueologia de Generalidade
da Catalunha, e presidente do Iº Congresso de História do País Valência (1971); foi membro da Real Academia
de Belas Letras de Barcelona. Fundou, em 1946 a revista clandestina de cultura catalã, chamada Ariel; dirigiu a
revista Fonaments.
16
Cf. TRISTAN, F. Chaves; VARGAS, E. Garcia. “Reflexiones en torno al área comercial em Gades: estudio
numismático y econômico”. Gérion – Homenaje al Dr. Michel Ponsich, Madrid, p. 139 – 168, 1991.
MARIÑAS, Ana M. N. V. y. “El espacio geopolítico gaditano em época púnica. Revisión y puesta al dia del
concepto de “Círculo del Estrecho”. Gérion, Madrid, nº 19, p. 313 – 354, 2001. ROMERO, Antonio M. S. &
RODRIGUEZ, José J. D. & ESPLIGARES, Antônio S. “Nuevas aportaciones a la definición del Círculo del
Estrecho: la cultura material a través de algunos centro alfareros (SS. VI – I a.n.e.)”. Gérion, v. 22, nº 1, p. 31
– 60. Madrid, 2004.
17
Sobre como diversos autores nomeiam a região extremo-codidental mediterrânica, cf. MORENO, Luís A. G.,
“Turdetanos, turdulos y tartessios. Uma hipótesis”. Anejos de Gérion, v. II, p. 289 – 294, Madrid, 1989. Nesse
artigo, Moreno aponta para a natureza arcaizante do termo “Tartessos” dentro das obras de geógrafos gregos dos
séculos I a.C. – II d.C. Enquanto Turdetanos e Turdulos seriam os nomes dados pelos autores gregos e romanos a
partir do século II a.C., Tartessos seria um termo utilizado nas passagens recuperadas de autores anteriores ao
século III a.C.
25
esplendor dessa cultura estaria entre os séculos VIII a.C. e II a.C., entre a “queda” de Tiro e a
chegada das forças de Cartago.
Dessa forma, podemos apreender uma informação de grande relevo à questão da
expansão cartaginesa na península. Em todas as pesquisas, é unânime que na península Ibérica
existiu uma avançada cultura, com focos urbanos, grande riqueza metálica, e de extensa
abrangência comercial. Ou seja, Cartago não chegou num vazio, segundo apontam os
registros materiais. Mas, o que nos dizem os registros históricos, as fontes escritas? Quais
autores comentam sobre a chegada cartaginesa na península? Qual seria o mais próximo ao
evento? O que ele nos diz sobre essa expansão? Quais os cuidados que devemos ter com a sua
versão dos fatos? Será o que analisaremos no próximo capítulo.
26
CAPITULO II - Políbio e o primeiro relato sobre o Extremo Ocidente Mediterrânico.
2. 1 – O Extremo Ocidente na Historiografia antes de Políbio.
Como ressaltado anteriormente, a região ao Ocidente do eixo Mar Tirreno – Sicilia –
Cabo de Túnis apresenta-se, historiograficamente, como “coberta por brumas”, isto é, as
terras e os povos que habitavam aquelas terras são vistos pelos povos do Mediterrâneo
Oriental, como seres distantes, no limiar entre as certezas da convivência e das relações
comerciais e o mistério dos mitos e fabulas. E, muito provavelmente esse jogo entre certezas e
superstições pode ser explicado pelo incrível mutismo daqueles que mais conversaram com as
culturas ocidentais, os fenícios.
Ao contrario do que observamos com outros povos do Crescente Fértil, como
egípcios, babilônicos, acádios, ou mesmo hititas e hebreus, os fenícios não nos deixaram
testemunhos dos territórios por eles governados ou descobertos. Na verdade, não temos quase
nenhum testemunho dos fenícios sobre eles mesmos. Apesar de serem a primeira cultura a
utilizar um alfabeto de reduzido volume e de relativamente fácil domínio (comparado aos
alfabetos silábicos o ideográficos hieroglíficos, cuneiformes, ou minóicos do mesmo período),
chegaram até nós apenas alguns poucos documentos.
Em sua maior parte, esses documentos são placas de cerâmica recobertas por cera ou
barro, onde estão entalhadas as letras. A maioria dos poucos documentos que chegaram até
nossa época são relatos de transações comerciais. Os documentos administrativos, isto é,
cartas diplomáticas, documentos de arquivos do palácio da cidade ou mesmo narrativas
históricas, mitológicas ou geográficas, são muito escassos, chegando a serem inexistentes para
algumas das cidades fenícias, como Ugarit ou Beirute.
Entretanto, temos acesso (indiretamente) às informações fenícias sobre suas colônias
e contatos no ocidente através de seus parceiros comerciais, os hebreus. Na Bíblia, em
especial no Livro dos Reis, os fenícios atuam como intermediários entre o reino de Salomão e
as chamadas “naves de Tarsis”18. Foram desenvolvidas diversas teorias e hipóteses sobre onde
estaria localizada Tarsis, que ficou imortalizada justamente por essas indicações indiretas. O
texto hebreu, em continuação e em outros livros, refere-se à Tarsis sempre a ligando com a
figura de Hierão, rei de Tiro, e também com a imagem de imensa riqueza em prata e metais
18
I Reis, 10:22 – “De fato, o Rei Salomão tinha naves de Tarsis no mar junto com as naves de Hierão. As naves
de Tarsis vinham uma vez a cada três anos e traziam ouro, prata, marfim, bugios e pavões”.
27
preciosos, a tal ponto de que as embarcações, ao aportarem lá, trocavam suas âncoras feitas de
pedra ou metal comum, por âncoras em prata, tal a profusão desse mineral na região.
Considerando o elevado tempo de percursos, três anos para a ida e a volta, não é
inviável localizarmos essa próspera cidade como uma colônia extremo-ocidental fenícia, ou
mesmo como uma cidade parceira comercial de Tiro. Somente após a grande expansão
colonial grega, entre os séculos VIII e VI a.C., é que a navegação de cabotagem pode ser
substituída por uma navegação de longo alcance em mar aberto, e mesmo assim, essa
navegação não era total, posto que existe uma linha de ilhas19 que ligam as duas extremidades
longitudinais mediterrânicas. Numa navegação de cabotagem, onde a navegação era
preferencialmente feita durante o dia, tendo a linha da costa sempre ao alcance da vista, e
durante as noites e tempestades o navio permanecia fundeado num porto ou equivalente,
demorava-se um tempo consideravelmente maior para cruzar o Mediterrâneo de ponta a
ponta. E a natureza das cargas indica que durante o trajeto, poderiam ser feitas diversas
paradas com fins comerciais, trocando itens como prata e marfim por animais selvagens. A
região de Cirene, na Cirenaica (litoral norte da Líbia, próximo ao Egito) era um famoso ponto
de encontro de caravanas do interior subsaariano que atravessavam o deserto para trocar
artigos da África Tropical por artigos mediterrânicos, como cereais, tecidos, ânforas ou
objetos de vidro (os fenícios eram famosos por possuírem um virtual monopólio na fabricação
do vidro colorido). Dado essas possibilidades, as viagens demorarem três anos não nos é tão
surpreendente.
As referencias às naves de Tarsis somem no momento seguinte vivido no Oriente
Próximo. Após a morte de Salomão e a divisão do Reino de Jerusalém em dois reinos rivais,
Judá e Israel, ambos acabam caindo sob os ataques de assírios e babilônios. Destino
semelhante é vivenciado pelos seus parceiros silenciosos. As póleis fenícias igualmente
sucumbem aos reinos mesopotâmicos, e perdem contato com suas colônias distantes, que
passam a ter que se adaptarem sozinhas à nova realidade20.
Outro povo que nos deixou uma rica interpretação sobre a região do Estreito de
Gibraltar foram os gregos. Grandes navegadores, desde os tempos de Homero possuem
referencias à terras nos confins do mar Mediterrâneo de extrema riqueza e poder. Alguns dos
mitos principais foram compilados por Hesíodo e é interessante analisarmos eles, pois os
19
De leste a oeste, a navegação poderia ser feita em pequenas etapas, indo de Tiro para a região do Estreito de
Gibraltar através de Chipre, Creta, Sicília, Égates Sardenha, Baleares e a costa ibérica. BRAUDEL, Fernand.
“Memórias do Mediterrâneo”, p. 212 – 214.
20
Para maiores informações sobre como essas colônias desenvolveram-se, vide ANEXO A.
28
geógrafos gregos irão se basear nesses mitos ao nomearem os diversos territórios e acidentes
geográficos da região. Tentando seguir uma hipotética seqüência lógica da mitologia grega, a
primeira menção ao ambiente extremo-ocidental está ligada com o mito da Titanomaquia.
Com a ascensão de Zeus e seus irmãos e filhos ao topo da hierarquia divina grega, os Titãs,
divindades anteriores à eles, revoltaram-se e abriram guerra contra os deuses olímpicos
(designação adquirida durante a guerra, posto que passaram a habitar o Monte Olimpo para
defenderem-se dos ataques dos Titãs), e perderam para eles. Diversos desses titãs receberam
punições exemplares, como os ciclopes que passaram a trabalhar para Hefesto; ou então Atlas,
cuja punição foi sustentar sobre seus ombros a abóboda celeste21.
O litoral mediterrânico africano, e ibérico, é protegido por uma longa cadeia
montanhosa que barra as massas de ar e o avanço do deserto saariano, criando um ambiente
fértil com uma grande diversidade de fauna e flora compartilhada com o litoral sul peninsular
mais próximo. Essa cadeia montanhosa foi nomeada pelos gregos como “Montes Atlas”, uma
clara referencia visando localizar as regiões míticas. Não iremos entrar na questão sobre a
intencionalidade dessas identificações, ou seu papel na mentalidade grega. Basta-nos fazer
uma pequena divagação sobre a quantidade de referencias gregas localizadas nessa região, e
poderemos ter uma noção da importância mítica do local, e que irá nos dar a relevância do
papel de Políbio e seu relato para a nossa pesquisa.
O território do extremo ocidente do mar Mediterrâneo detém um forte significado
aos gregos, antes mesmo da chegada destes na região. Além do mito de Atlas, outras duas
passagens fornecem elementos para entender como essa região, especialmente o litoral sul
peninsular ibérico, estava presente na cultura grega antes da fundação colonial, ou das obras
geográficas descritivas. O personagem mítico Hércules realizou um périplo pela região para
concluir dois dos vários trabalhos que realizou. O primeiro trabalho realizou na região do
estreito foi a busca e captura do imenso rebanho de bois guardados pelo gigante Gerião, de
corpo tríplice da cintura para cima, com seis braços, seis asas e três troncos com três cabeças.
Foi na realização desse trabalho que o mítico herói construiu, ou criou, as duas torres para
separar a Líbia (nome pelo qual os gregos chamavam todo o litoral norte da África) da
Europa. Dai o nome dado pelos gregos ao Estreito de Gibraltar: as “Colunas de Hércules”22.
Em sua segunda passagem pela região, Hércules, em seu ultimo trabalho, foi buscar
o Pomo de Ouro, fruto célebre como causador da discórdia que deu inicio à Guerra de Tróia, e
21
BULFINCH, Thomas. O Livro de Ouro da Mitologia (a Idade da Fábula): Histórias de Deuses e Heróis.
26ª Ed. Rio de Janeiro: Ediouro, 2002, p. 180.
22
BULFINCH, Thomas. O Livro de Ouro da Mitologia (a Idade da Fábula): Histórias de Deuses e Heróis.
26ª Ed. Rio de Janeiro: Ediouro, 2002, p. 180
29
que somente crescia nos lendários “Jardins das Hespérides”, localizado além dos limites, no
Mar-Oceano (Oceano Atlântico). Para terminar esse trabalho, Hércules precisou da ajuda do
titã Atlas, o mesmo que sustentava o domo celeste. Após um acordo, Hércules sustentou o céu
sobre seus ombros, enquanto Atlas conseguia as frutas e as deu para o herói enquanto este lhe
entregava o peso dos céus.
Novamente, em ambos os episódios a região do extremo ocidente é caracterizada por
possuir uma riqueza natural, de fauna e flora. Para sustentar um imenso rebanho de bois, as
terras de Gerião deveriam ser muito férteis, com grandes planícies de pastagem, quase
inexistentes no território grego. Igual pensamento é aplicável ao pensamento dos mitógrafos
gregos ao localizarem os Jardins das Hespérides, jardins cuidados por ninfas silvestres, ou
seja, que potencializam quantitativa e qualitativamente as benesses de fertilidade,
desenvolvimento, diversidade da Natureza, próximo às terras ibéricas, e ao mesmo tempo,
muito distante das terras gregas, cujo solo pedregoso e acidentado não é um exemplo de clima
exuberante.
Curiosamente, a primeira versão escrita dos mitos gregos foi a obra de Hesíodo
(meados do século VII a.C.) intitulada “Teogonia”. Data muito próxima da redação do Livro
dos Reis pelos sacerdotes hebreus. Em ambos os documentos, temos a imagem coincidente de
localizar no outro extremo do mediterrâneo uma região rica em metais e em gêneros agrícolas.
Essa semelhança entre os relatos pode ser explicada de várias formas, indo desde origens em
histórias comuns possivelmente de origem fenícia, ou por conhecimento real adquirido
através da navegação, indiretamente pelos hebreus e diretamente pelos gregos. Em todo caso,
ambos os relatos nos fornecem a descrição de uma região próspera, com um considerável
nível cultural e com grandes potenciais naturais. Nada sobre povos que habitavam a região, ou
sobre contatos entre esses povos e os navegadores, comerciantes e colonizadores.
2. 2 - Biografia de Políbio.
O primeiro relato descrevendo a região peninsular com embasamento direto
adquirido em viagens pela região é a obra “História” produzida por Políbio de Megalópolis,
em meados do século II a.C. Políbio nasceu por volta de 200 a.C, na cidade grega de
Megalópolis, situada na região da Aquéia, no centro da península do Peloponeso. Quando de
seu nascimento, a divisão política da Grécia seguia, em termos gerais, a partilha da monarquia
30
universal alexandrina23. Na Macedônia os governantes provinham da dinastia Antigônida, na
Síria e parte da Pérsia os Selêucidas detinham o poder, e no Egito os faraós da casa de
Ptolomeu, também conhecidos como Lágidas, governavam seguindo preceitos culturais
unindo as idéias helênicas sob as regras da milenar cultura do Nilo. E todos esses reinos
estavam em luta pelas regiões livres que surgiram com a divisão feita pelos Diadocos, os
“sucessores” de Alexandre. Dentre essas regiões livres, estava a Aquéia de Políbio, em
constante atrito com os Antigonidas macedônios.
Além dos poderosos inimigos além dos limites da Hélade grega, dentro da própria
Grécia formavam-se coalizões em lutas, que acabavam sendo influenciadas pelos aliados
militares mais poderosos. As principais ligas gregas dessa época eram a Liga Aquéia,
englobando boa parte do litoral Peloponeso do Golfo de Corinto e da Arcádia; e a Liga Etólia,
formada em oposição à Liga Aquéia, abrangendo cidades da Grécia continental, indo da
Beócia à Ática. Ambas as ligas, além de disputarem entre si pela hegemonia sobre a Hélade,
também combatiam contra as pretensões macedônicas sobre as diversas póleis gregas, porém
tal oposição era bem maleável posto que quando o momento assim exigia, nenhuma das duas
ligas opunha-se a aliar-se com a Macedônia para obter vantagens militares e econômicas
sobre a liga oposta. A estrutura dessas ligas, em especial a Liga Aquéia, era muito diferente da
estrutura das primeiras ligas helênicas24. Superando as questões de preservação da tradição
individual de cada pólis, nesse novo tipo de liga, as póleis haviam unificado os códigos de
leis, sistemas monetários, de pesos e medidas, e possuíam um só corpo administrativo,
formado pelos mesmos magistrados, assembléias e tribunal25.
Políbio nasceu e cresceu em meio a mais alta esfera desse corpo de magistrados
únicos da Confederação26. Seu pai foi Licortas, amigo e discípulo de Filopôimen27, que após a
23
Por Monarquia Universal Alexandrina estamos nos referindo ao reino comandado por Alexandre, o Grande,
após conquistar a Pérsia e estender as fronteiras de seu governo até as fronteiras do rio Indo, na Índia.
24
Fazemos menção às Ligas anteriores, produzidas durante as Guerras Médicas (século V a.C.) e a Guerra entre
os Gregos (431 – 404 a.C.). Os exemplos mais emblemáticos são a Liga de Delos, voltada contra os persas e
capitaneada por Atenas, onde está pólis passou em pouco tempo da condição de principal defensora da liga para
cidade de hegemonia suprema; a Liga do Peloponeso, também criada para proteger as cidades gregas, em
especial da Lacônia, contra os persas, e liderada pela cidade de Esparta. Outras ligas famosas foram a Liga
Helênica, união das Ligas de Delos e Peloponeso na defesa conjunta contra as invasões persas, e a Liga da
Beócia, criada pelas pólis beócias como forma de proteção contra as ações devastadoras e intimidadoras das
Ligas de Atenas e Esparta durante a guerra entre ambas; era liderada por Tebas, e após a vitória sobre os
espartanos na Batalha de Leuctra (371 a.C.), tornou-se a liga hegemônica grega, até a intervenção de Filipe II da
Macedônia (346 a.C.).
25
POLIBIO, Livro II, 37
26
Os dados biográficos sobre Políbio ainda geram muitos debates. Para uma melhor explicação, cf. KURY,
Introdução. In: POLIBIO, Histórias. Tradução de Mário da Gama Kury, Brasilia, Editora Universidade de
Brasilia, 1985, p. 31 – 34; MARQUES, Juliana Bastos. Políbio. In: JOLY, Fábio Duarte (org), História e
Retórica – Ensaios sobre historiografia antiga. São Paulo: Editora Alameda, 2007, p. 45 – 48.
31
morte deste, assumiu seu cargo como estratego da Confederação, o mais alto magistrado e
comandante militar da liga, e que deteve ainda maior relevância num contexto de continuas
lutas entre aqueus e etólios e entre estes e os macedônios. Políbio inclusive teve a honra de
carregar a urna funerária com as cinzas de Filopôimen, escrevendo inclusive a biografia do
estratego, que infelizmente não chegou até nós, mas que pode ter sido usado por Plutarco
como fonte para sua “Vida de Filopôimen”. Políbio recebeu uma formação condizente com
sua posição entre os círculos de líderes militares, com uma educação filosófica e literária em
acordo com seu nascimento, demonstrando familiaridade com discursos de filósofos e
polígrafos como Isócrates28(século V – IV a.C.), mas seu conhecimento retórico não vai além
do padrão de formação aristocrático geral da época29.
Como seria previsível, Políbio seguiu a vocação do pai e também singrou para a vida
política e militar. Em 190 – 188, entre os 20 – 22 anos de idade30 provavelmente participou da
campanha romana contra Antíocos III na Ásia, e participou da campanha aquéia de socorro a
Eumenes quando da ameaça dos gálatas. Mesmo ainda não tendo idade legal para participar
de uma viagem diplomática, acompanhou o pai em meados de 180 a.C. numa embaixada para
renovação dos tratados entre a Liga Aquéia e ao Reino do Egito, governado por Ptolomeu V
Epifânio (210 – 180 a.C.). A partir desse evento, Políbio pode ser encontrado em estreita
sintonia com todos os eventos militares da Confederação na luta entre Roma e Macedônia
(171 – 168 a.C.).
Em 170 a.C, Políbio assume o importante cargo de Hiparco, comandante militar das
forças de cavalaria, posto de comando inferior apenas ao de Estratego. Devemos lembrar que
nesse período, nos campos de batalha ainda imperava o estilo alexandrino de combate, a
chamada técnica do Martelo e Bigorna, onde a infantaria segura o inimigo, e as forças de
cavalaria atacam a retaguarda do oponente. Logo, o cargo de Hiparca além de exigir uma
experiência militar de sucessos e conhecimento bélico avançados, demandava imensa
confiança por parte tanto da Confederação31, quanto da relação entre Hiparco e Estratego.
27
Filopôimen de Megalópolis (253 – 183 a.C.), considerado por Plutarco como o “último dos grandes helenos”.
Foi estratego da Liga Aquéia, responsável por valorosas vitórias dos aqueus frente aos etólios liderados pelo rei
Cleomenes III de Esparta (? – 222 a.C.). Em sua obra, Políbio descreve com grandes elogios ao seu valor
guerreiro e como grande líder militar.
28
KURY, op. cit. p. 31
29
MARQUES, op. cit. p. 47.
30
Sobre a idade de Políbio, há ainda grande debate, pois apesar de ser um consenso geral que Políbio nasceu por
volta de 200 a.C., não há uma precisão sobre o quão “acerca” seria essa data. Alguns pesquisadores modernos
apontam para 208 a.C., como RODRIGUES DA SILVA e KURY.
31
Não temos certeza sobre como eram escolhidos os magistrados na Confederação Aquéia, mas somos
inclinados a considerar que como todas as cidades participantes possuíam representatividade nas reuniões, e que
o corpo dos magistrados era comum a todas as cidades, muito provavelmente os magistrados eram eleitos e
32
Essa nomeação foi concomitante com o rompimento da posição de neutralidade da Liga frente
o conflito entre Roma e Macedônia (política defendida por Licortas, e muito provavelmente
pelo próprio Políbio), e a declaração de apoio da Liga em favor de Roma. Porém, enquanto
Políbio e seu pai estiveram à frente do governo, a política da Confederação voltou-se para os
assuntos internos à própria Grécia, sem pressa para unir-se aos romanos, mas também não os
hostilizando.
Em meados de 170 a.C., essa postura política sofre alterações. Em oposição à
proposta defendida pelo partido aristocrático (do qual Licortas era um dos principais líderes),
existia outra proposta, defendida pelo partido democrático liderada por Calicrates. A proposta
democrática era de uma união com Roma para eliminar os opositores internos, em especial a
ameaça representada pela Liga Etólia32 e a cidade de Esparta. Em 168 a.C., após vencer de
forma definitiva Perseus da Macedônia na Batalha de Pidna, os romanos passaram a exigir
uma aliança incondicional com a Liga Aquéia. O partido democrático utilizando essa pressão
externa conseguiu convencer a Liga a aceitar o pacto com Roma33, e Calicrates deu inicio a
uma “caça as bruxas”, denunciando todos os que eram contrários à aliança com Roma. Políbio
estava incluído entre os concidadãos denunciados. Os romanos, vencedores na Grécia,
reclamaram mil reféns34 dentre os mais nobres cidadãos, sendo um desses o próprio Políbio.
Políbio permaneceu como refém de Roma por dezesseis anos. E através dessa
condição, ele tornou-se um dos personagens que mais se envolveu com os grandes eventos do
mundo mediterrânico do momento, quase como um “correspondente de guerra” moderno. Há
uma discussão sobre como Políbio iniciou amizade com Cipião Emiliano, filho de Paulo
Emílio35. Em todo caso, a posição aristocrática de Políbio encontrou solo profícuo em Roma,
ratificados nas Assembléias comuns, realizadas duas vezes por ano, e que contava com a participação de todas as
cidades.
32
KURY, op. cit. p. 32
33
A aceitação do acordo com Roma acabou resultando em um erro tático. Enquanto que para a Liga Aquéia o
acordo foi interpretado como um acordo entre iguais, Roma interpretou-o como um acordo de subserviência da
Liga, isto é, que as cidades gregas da Confederação aceitavam ser dirigidas por Roma, bem como juravam
lealdade, fidelidade e prontidão para ajudar os romanos em suas lutas em território grego contra a Macedônia.
Essa discrepância de entendimento foi uma das diversas causas de desentendimento entre ambas as partes, e que
posteriormente, culminou com a Guerra da Acaia.
34
Em geral, os romanos retinham um numero muito menor de reféns, aproximadamente 100, como prova de
boa-fé dos pactos. O número distendido de reféns pode ser explicado pelo fato de ser uma adesão da Liga, e não
de cada cidade em separado, por isso, muito provavelmente esses reféns foram pegos de todas as cidades da
Liga, como garantias de lealdade individual das pólis através do pacto coletivo da Confederação com Roma.
35
Enquanto alguns pesquisadores defendem que Políbio entrou na esfera de amizade de Cipião assim que foi
transformado em refém de Roma, outros afirmam que Políbio, antes de ser “protegido” pela família dos
Cornélios Cipiões, foi obrigado a trabalhar nas minas itálicas. Porém, a maioria dos pesquisadores não menciona
esse fato, o envio para as minas, o que faz mais sentido dada a posição elevada de Políbio e o potencial de
negociação representado por ele. Não é de hoje que os trabalhos em minas poderiam resultar em acidentes e
perdas humanas, e considerando que Políbio era um refém importante, perde-lo nas minas seria inconseqüência
pouco usual dos romanos.
33
ainda mais nesse período, onde os aristocratas romanos buscavam aprender mais sobre a
cultura helênica-helenistica. Essa “filohelenia” iniciada com a conquista da Magna Grécia no
século IV a.C., amplificou-se no século II a.C., com a entrada de Roma nos assuntos do
mundo grego helenista. É importante salientar que enquanto os demais reféns eram enviados e
mantidos em diversas cidades italianas, Políbio foi agraciado com a licença para permanecer
em Roma, bem como viajar pelo território romano, contanto que não ultrapassasse os limites
da península itálica.
Devemos frisar que a família dos Cornélios Cipiões era uma das mais destacadas
famílias romanas da época. Cipião Emiliano, amigo e protetor de Políbio era filho de Emílio
Paulo, general romano responsável pela vitória sobre Perseu da Macedônia em Pidna. Porém,
já havia sido adotado36 pela família dos Cornélios Cipiões, cujo maior representante era o
“avô” Cipião, o Africano, vencedor de Aníbal em Zama. O próprio Cipião Emiliano adquiriu
imenso renome, ao vencer Cartago na terceira seqüência de lutas entre essa cidade e Roma, e
adquirir o apelido de “Africano Menor”, em 146 a.C. Também é conhecido como Cipião
“Numantino”, pois em 133 a.C., com a ajuda de Políbio como conselheiro militar na
poliorcética37, conquistou e destruiu Numância. Está claro que Políbio, através da amizade
com Cipião Emiliano, teve acesso aos eventos e bastidores políticos romanos.
Políbio recebeu o direito de regressar à Acaia38 em 150 a.C., junto com os demais
reféns. Ele fez uso desse direito, mas a partir de então começou a retornar freqüentemente a
Roma, que após quase 20 anos, tornou-se sua segunda pátria, fosse para visitar a cidade, ou
para acompanhar Cipião em suas campanhas (Políbio esteve presente durante a capitulação e
destruição de Cartago, em 146 a.C.). Em sua pátria-mãe, Políbio deparou-se com uma
situação muito diferente de quando havia deixado-a. A Liga Aquéia estava em grande
agitação contra a intervenção romana nos assuntos internos das cidades, e em vão Políbio
advertiu sobre os riscos de uma rebelião aberta, e após a captura e destruição de Corinto
(também em 146 a.C.), usou de sua influência para favorecer os seus concidadãos, ganhando a
gratidão de muitos, manifestada por várias cidades mediante a ereção de estátuas suas39.
36
A prática da adoção em Roma era forma de contrato político familiar, objetivando assegurar a sucessão de
uma determinada família, bem como para garantir uma forma de acesso às altas magistraturas civis e militares, e
ao Senado. Dessa forma, um homem poderia ser adotado já adulto, e mesmo que seu pai verdadeiro ainda
estivesse vivo.
37
A Poliorcética é o ramo das ciências bélicas que é dedicado as operações de cerco e captura de cidades.
Numância era a capital dos celtiberos revoltosos na Península Ibérica.
38
Nome pelo qual os romanos nomeavam a Grécia, derivado possivelmente da palavra “Aquéia”, nome da Liga
da qual Políbio foi eminente magistrado.
39
KURY, op. cit. p. 32.
34
Também coube a Políbio a missão de agir como intermediário entre o poder romano
e seus novos súditos, adaptando as cidades ao novo regime político e constitucional. A sua
obra História deve ter sido escrita nesse segundo momento de sua vida. Nessa época ele
realizou diversas viagens de estudo, além das constantes viagens feitas por razões políticas ou
de amizade, cujas datas não podem ser fixadas com precisão. Políbio viajou pela África, e foi
um dos primeiros, se não o primeiro historiador grego a percorrer tanto o litoral quanto o
interior peninsular, acompanhando Cipião Emiliano e recolhendo informações para trabalhar
em sua obra “História”, especialmente conhecendo os locais onde foram travados os eventos
mais recentes, em especial as cidades e os campos de combate entre romanos e cartagineses
durante as Guerras Anibálicas40, merecendo destaque o fato de ser o primeiro grego a visitar
as cidades cartaginesas no sul peninsular, como Cartago Nova, capital ibérica das possessões
cartaginesas. Ele também visitou a Gália, indo até o Oceano Atlântico41.
Além de sua obra “História”, escreveu outros trabalhos, a já referida “Biografia de
Filopôimen” e um tratado militar intitulado “Táticas”; ambas as obras não chegaram até nós.
Não sabemos muito mais sobre como foi a continuação de sua carreira após a participação em
Numância até a sua morte, que segundo a tradição42, ocorreu em 125 a.C., aos setenta e cinco
anos de idade43, em decorrência de uma queda de cavalo.
2. 3 - Políbio e as influências presentes em sua obra Histórias.
A biografia de Políbio deixa-nos claro que dificilmente haveria, nesse período,
alguém mais capacitado para escrever um relato histórico dessa época. E ele mesmo acaba
revelando isso em sua obra, cuja intenção inicial era mostrar e explicar como se deu a
escalada de Roma como potência hegemônica do Mediterrâneo, no período de 220 a 168 a.C.,
ou seja, no inicio das hostilidades da Guerra Anibálica até a derrota de Perseus da Macedônia.
40
Nome pelo qual Políbio nomeia o que atualmente chamamos de Segunda Guerra Púnica. Vale ressaltar que
Políbio não nomeia nenhum conflito como “guerra púnica”, pelo contrário, ele evita a utilização desse termo,
preferindo nomear as batalhas de diferentes formas. A conhecida Primeira Guerra Púnica é chamada de “Guerra
da Sicilia”, a Segunda Guerra Púnica é referenciada como “Guerra Anibálica” e a Terceira Guerra Púnica é
citada como “Guerra entre Cartagineses e Romanos”. O termo “púnico” deriva de “poeniké”, mesmo termo que
deu origem à palavra “púrpura”, utilizado tanto por gregos quanto por romanos e contendo uma imensa carga de
valores depreciativos e xenofóbicos. Muito posteriormente aos eventos é que eles passaram a ser nomeados
como “Guerras Púnicas”, já contendo o sentido de uma guerra justa contra um inimigo bárbaro e incivilizado
41
KURY, op. cit. p. 32
42
Para Bastos Marques, essa tradição é de origem duvidosa, provinda de um texto dúbio, a obra de PseudoLuciano, Macrobioi (ou Sobre a Longevidade), MARUQES, op. cit., p. 22 - 23
43
Não há um consenso acerca da idade de Políbio, pois alguns autores afirmam que Políbio morreu com oitenta
e dois anos, pois consideram que ele teria nascido em 208 a.C (MARQUES e KURY). Adotamos a posição de
Cury por ser coincidente com a de Walbank.
35
Porém, com a reabertura das hostilidades entre romanos e cartagineses, bem como a revolta
grega generalizada, que culminaram com a destruição de Cartago e Corinto, respectivamente,
fizeram Políbio ampliar o âmbito de sua obra. Dos trinta livros planejados, foram
acrescentados mais dez, para cobrirem os novos acontecimentos. Desses quarenta livros, trinta
e nove seriam da narrativa propriamente falando, e o ultimo seria um índice póstumo.
Assim como dezenas de outras obras da Antiguidade, sua obra nos chegou muito
fragmentada, estima-se que possuímos apenas um terço do texto real 44. Dos quarenta livros,
possuímos completos apenas os livros 1 ao 5, com o livro 6 quase completo, metade do 12 e
fragmentos diversificados dos demais livros. A maior parte desses fragmentos, trechos
maiores ou menores, foram conservados em citações de autores posteriores, sendo os
principais Estrabão, em sua obra “Geografia”, e Ateneus, nos “Deipnosofistas, Tito Lívio em
sua “História Romana”, Diodoro Sículo, Apiano e Plutarco, que em suas “Vidas Paralelas”
recorre com freqüência à obra de Políbio, dissimulada e abertamente.
O núcleo principal da obra de Políbio que chegou até nossos dias foi retirado da
compilação feita por ordem do imperador bizantino Constantino VII Porfirogeneta (912 –
959). Essa compilação é formada por dois corpos principais, a chamada Epitome ou Excerpta
Antiqua que é formada por diversos extratos de episódios anedóticos da lógica narrativa
original, e os Extratos Constantinianos, que abrangem toda a obra. Infelizmente, os livros 17
e 19 não aparecem em nenhuma dessas compilações, e não possuímos menção, trechos ou
extratos dos livros 37 e 40. Considerando o volume total da obra, e o fato de que muitos dos
manuscritos que contém a obra de Políbio remontarem a um único manuscrito original45, a
falta deles não é tão impressionante quanto os problemas inerentes à forma como os demais
livros foram preservados.
Não temos a obra completa, somente os livros iniciais e extratos de origens diversas.
Infelizmente esse corpo de texto restante não nos mostra um perfil sempre adequado do estilo
de Políbio, pois as digressões que abundam na obra que temos acesso, são exceções em seu
texto, visto que sua maior intenção e proposta visa a objetividade da narrativa. Entretanto, ele
mesmo também admite que a digressão faz-se necessária, sendo um item obrigatório numa
44
MARQUES, op. cit. p 49.
45
Sobre os percalços para a elaboração do que seria o “manuscrito original”, conferir na dissertação de
mestrado de RODRIGUES DA SILVA, José Guilherme. Roma e a representação de domínio do mundo no
contexto das guerras púnicas: uma leitura das Histórias, de Políbio, UFES, 2010. Em especial o Capítulo I
– “As Histórias e sua tradição manuscrita”, p. 22- 25.
36
obra histórica46. Para adequar objetividade e reflexão, essas duas partes são dispostas de
forma diferenciada, com os livros mais filosóficos ou de reflexões formando livros destacados
dentro da narrativa principal, como, por exemplo, o livro 6 dedicado a analisar a constituição
romana explicando como ela foi consolidada e principalmente como ela é a origem da
estabilidade, força e sucesso de Roma; no livro 12, Políbio faz uma reflexão crítica sobre os
historiadores helenísticos que o antecederam, em especial seu mentor Timeu; e no livro 34,
Políbio faz uma análise da geografia mediterrânica. É interessante lembrarmos que o projeto
inicial de Políbio eram 30 livros, mas a situação vivida por ele, como a realização de missões
diplomáticas a mando senatorial e o acompanhamento in loco das operações militares em
campos distantes do mediterrâneo deu-lhe a oportunidade tardia para viajar pelo mundo
mediterrânico, ampliando seus conhecimentos geográficos. Isso pode explicar a posição
deslocada dessa descrição geográfica dentro de sua produção.
Cabe nesse ponto situarmos Políbio dentro da tradição historiográfica helenística,
antes de comentarmos mais sobre o conteúdo de sua obra, e em especial os livros que livros e
extratos que analisaremos no presente trabalho.
Se a História nasceu com Heródoto e sua obra “História”47, foi Tucídides48 que deulhe os parâmetros de definição de como deve ser escrita, isto é, primando pela veracidade,
recorrendo a fontes confiáveis e a documentos reais, e os discursos devem ser transcritos
exatamente como foram proferidos, ou então o mais próximo possível (se possível, recorrendo
a testemunhas do evento). Desde o estabelecimento desse cânone, o gênero histórico pouco
evoluiu em método tendo um enriquecimento em forma escrita muito maior, sendo que
Políbio recebeu um gênero de rica acumulação factual, porém sem evolução metódica.
Em sua obra, ele mesmo cita os modelos que o instruíram, em muitos casos para
criticá-los duramente. Em ordem cronológica, os historiadores cujas obras serviram de
modelo à Políbio foram Teôpompo, Éforo, Calistenes, Timeu, Fílarco e Áratos de Sícion.
Esses historiadores cobrem os eventos ocorridos no período que vai dos séculos VI ao III a.C.,
dos quais nada restaram além do nome, ou alguns pequenos trechos das obras.
Teôpompo, originário de Quíos (378 – 323 a.C.), em sua obra principal “Filípica”
estabeleceu novas relações entre o gênero História e o gênero biográfico, ao destacar a
personalidade dos indivíduos, mais do que os acontecimentos. Nessa obra, uma espécie de
46
MARQUES, op. cit., p. 49.
A obra de Heródoto dedica-se a descrever como ocorreu a guerra entre Gregos e Persas, no século V a.C.
48
Sua obra “História” tem por objetivo dar um relato fiel e imparcial de como as coisas se desenvolveram na
Grécia desde a vitória sobre os persas, ponto final da obra de Heródoto, até a deflagração da guerra entre os
gregos e a vitória dos espartanos sobre a confederação liderada por Atenas.
47
37
continuação da obra de Tucídides, centraliza o período de transição da hegemonia tebana
sobre a península grega para a supremacia da Macedônia, na figura e na personalidade de
Filipe II, monarca macedônico. Esse personagem é representado tanto em sua genialidade,
prefigurando seu filho Alexandre, o Grande; quanto em seus vícios e fraquezas. Políbio critica
a obra de Teôpompo por este conceder demasiada importância para Filipe, bem como por
mostra-lhe de forma dúbia, com virtudes e fraquezas. Porém, o próprio Políbio cai nessa
contradição ao descrever Filipe V, igualmente um monarca macedônio. Inclusive,
apercebendo-se dessa contradição, em duas passagens diferentes Políbio tenta explicar os
motivos que o levaram a tais critérios49.
Éforo de Cime (405 – 330 a.C.) foi um dos grandes inspiradores reconhecidos pelo
próprio Políbio. Historiador grego originário da Eólida, na Ásia Menor, foi assim como
Teôpompo, um dos discípulos do mestre retórico Isócrates. Sua principal obra foi História,
um conjunto de 29 livros que cobrem a história do mundo grego e bárbaro desde o mítico
retorno dos Heráclidas50 (1.100 a.C) até o cerco e tomada de Perintos (341/40 a.C.) por Filipe
da Macedônia. Ele foi o criador do gênero histórico adotado por Políbio, a História Universal.
Inclusive, seria o primeiro e único segundo Políbio51. Baseando-se na proposta de Éforo,
Políbio busca ampliá-la, pois enquanto Éforo dedicou-se a alinhar uma história universal de
pequenas cidades, ele pretende escrever uma história que una Ocidente e Oriente, una o
desconhecido passado romano e o reconhecido passado helenístico.
Calistenes, sobrinho de Aristóteles e o historiógrafo oficial de Alexandre, o Grande,
foi um historiador de amplos interesses. Muito semelhante a seu tio, Calistenes dedicou-se a
estudar diversos aspectos do conhecimento humano, indo de teorias físicas à mitologia. E essa
ampla gama de assuntos era acompanhada por divagações e reflexões muito próximas ao
estilo introduzido por Políbio em sua obra52. Embora Heródoto seja taxado de divagador, e
que Tucídides também utilize esse recurso (num volume muito menor que Heródoto), é à
49
POLIBIO, Livro XVI, 28. Estou portanto sendo justo nessa ocasião ao censurar a passividade de Átalos e
dos ródios e ao aprovar a conduta de verdadeiramente régia de Fílipos e a sua magnanimidade e firmeza de
propósito, sem elogiar o seu caráter como um todo, mas assinalando com admiração a presteza de sua ação nas
circunstâncias presentes. Faço essa afirmação para evitar que alguém possa pensar que me estou
contradizendo, pois pouco antes elogiei Átalos e os ródios e censurei Fílipos, e agora faço o contrário.
50
Segundo a mitologia, mesmo terminando seus doze trabalhos, Heracles foi suplantado do trono de Micenas
por seu primo Euristeu, o mesmo que impunha os trabalhos ao herói. Após a morte de Heracles, seus filhos
juraram recuperar seu reino por direito, fugindo para Atenas e posteriormente para a Trácia. Nessas terras
bárbaras foram bem acolhidos e planejaram seu retorno, realizado três gerações depois. Esse episódio mítico, na
realidade, pode ser o modo como foi preservada na memória cultural dos gregos micênicos um evento real, a
chamada “Invasão Dórica”. Os dórios seriam um dos ramos dos povos gregos que habitavam o norte peninsular,
e que em dado momento foram pressionados rumo ao sul pela expansão dos chamados povos Tessálios.
51
POLIBIO, Livro V, 33.
52
KURY, op. cit. p. 33
38
Calístenes que Políbio faz referencia direta em sua obra. Tucídides é mencionado apenas uma
única vez53, enquanto que não aparece menção nenhuma à Heródoto, se bem que de forma
indireta ele está presente, posto que Políbio faz referencias a episódios54 presentes na famosa
obra do “Pai da História”.
Timeu Siciliano (352 – 256 a.C) foi um historiador grego conhecido por suas duas
obras principais, uma compilação de 38 livros sobre a história da Sicilia, e uma biografia
sobre Pirro do Épiro (318 – 272 a.C.). Em sua obra, Políbio dedica uma profunda, direta e
incessante crítica ao trabalho de Timeu, reprovando o modo como ele encaixa discursos
retóricos claramente seus como se pronunciados por personagens históricos que não iriam
discursar ou falar daquela forma. Igualmente reprovada é a suposta ignorância geográfica,
política e militar de Timeu, que seria um “historiador de gabinete”. Apesar de siciliota e filho
do tirano de Tauromenion55, Timeu foi expulso da ilha por ordem de Agátocles de Siracusa,
passando a viver em Atenas, onde recebeu lições de retórica e dedicou-se a compor sua obra
sobre a história de sua ilha natal. Essa seria a origem principal da crítica de Políbio, pois ao
fixar-se em Atenas e não saindo da cidade para escrever sobre regiões distantes, Timeu
escrevia coisas sobre as quais nunca viu, ou seja, escrevia sobre as coisas sem poder dar
qualquer tipo de garantia sobre a fidelidade sobre o que escrevia. Entretanto, Políbio utiliza-se
de muitos dos métodos desenvolvidos por Timeu sendo o mais relevante a contagem
cronológica utilizando as Olimpíadas56.
Fílarco (meados do século III a.C.) foi um historiador grego controverso. Não temos
certeza sobre seu lugar de nascimento, que varia entre os autores antigos entre Atenas,
Naucratis e Sícion. Suas produções eram narrativas57 que buscavam despertar as emoções dos
leitores através de descrições carregadas em elementos trágicos ou cômicos. Políbio censura
essa sobrecarga de emotividade nos textos, onde o historiador influencia no modo como os
personagens serão compreendidos pelos leitores, contemporâneos e futuros. Mas, apesar da
censura, Políbio não se furta de utilizar esses recursos de escrita para dar vida e acentuar
virtudes ou vícios dos personagens.
53
POLIBIO, Livro XVIII, 11
KURY, op. cit. p. 33.
55
Cidade localizada na ilha da Sicilia, próxima ao Estreito de Messina.
56
Não existia um calendário comum entre os gregos. Cada cidade utilizava seu próprio sistema de contagem do
tempo, que podia variar desde os nomes dos meses até mesmo na quantidade de dias por mês, e de meses no ano.
Mesmo os anos eram contatos de formas diferenciadas, indo desde um evento mítico importante até uma
contagem iniciada com a fundação da pólis.
57
Plutarco, em suas “Vidas Paralelas” utiliza da obra de Filarcos para escrever a biografia de Ágios e
Cleomenes.
54
39
Áratos (? - ? 213 a.C.) foi um historiador grego, reconhecido mais por seus feitos
como estadista do que como pesquisador. Sua principal obra foi “Memórias”, conhecida por
Políbio e utilizada por Plutarco para escrever sua “Vida de Áratos”. Ao contrário dos demais
autores anteriores, Políbio louva a obra de Áratos por ser um relato de um estadista e de uma
testemunha direta dos eventos que narra. Políbio, em sua obra, faz uma constante defesa de
que ser testemunha dos eventos, e ter experiência prática na política e nas artes militares é
essencial para que um historiador escreva boas obras, pois assim teria um conhecimento
muito mais profundo sobre o que está escrevendo. Profundo a ponto de ser decisivo ao ter que
escolher entre diferentes versões sobre o mesmo evento, diferentes relatos sobre uma mesma
personagem, ou ainda poderia ser decisivo para conseguir cobrir iluminar os trechos obscuros
dos acontecimentos.
Essas múltiplas influências perpassam toda a obra de Políbio. Infelizmente, não
temos como aumentar esse rol de influências, posto que atualmente só conhecemos essas por
estarem presentes, ou serem discerníveis, nos livros, trechos e extratos que chegaram até nós.
Como dito anteriormente, por termos somente alguns extratos, podemos ter um conhecimento
distorcido sobre o estilo de escrita empregado por Políbio. Acerca do estilo dele, há uma
grande polêmica, que devemos analisar para entender a escolha que fizemos dentre os
diversos livros, e extratos, para analisarmos no presente trabalho.
2.4 – A Obra de Políbio, objetivo, temas abordados, estilo e traduções.
No tópico anterior, apontamos que a historiografia helenística do período de Políbio
havia desviado-se muito das definições feitas por Tucídides, 200 anos antes. As narrativas
históricas tornaram-se anedóticas e de alcance restrito, muito semelhantes as narrativas
biográficas, que tiveram um grande aumento quantitativo. Mesmo nas obras dedicadas à
História de uma cidade ou região, os recursos narrativos literários típicos de uma biografia,
como exaltação de grandes feitos em guerras e a busca em despertar comoção emocional
favorável à posição da cidade, e contrária aos inimigos dela.58 Nesse sentido, a produção de
Políbio representaria uma retomada da objetividade defendida por Tucídides, por estar
58
POLÍBIO, Livro I, 14. Com efeito, da mesma forma que um ser vivo privado de sua vista fica totalmente
incapacitado, a História destituída de sua veracidade fica reduzida simplesmente a uma narração inútil. Não
devemos portanto esquivar-nos de acusar nossos amigos ou de elogiar nossos inimigos; tampouco devemos
constranger-nos se às vezes elogiamos e às vezes censuramos a mesma pessoa, pois nem é possivel que os
homens nas atividades normais da vida estejam sempre certos, nem é provável que eles estejam sempre errados.
Devemos portanto em nossas narrativas desviar nossa atenção dos atores e aplicar aos próprios atos as
observações e os juízos merecidos.
40
preocupado com uma rigorosa pesquisa sobre os eventos, a busca pela verdade e realidade das
ações, e o rigor de uma posição imparcial a ser adotada pelo historiador.
Para Políbio, o propósito da História não era o entretenimento, como estava sendo
proporcionado por seus antecessores. Sua obra deveria ser séria e sem argumentação ou
recursos retóricos, pois para ele, uma obra histórica deveria servir de exemplo aos homens,
como um guia contendo os erros e sucessos do passado que conduziriam as ações no presente
e no futuro. Aos nossos ouvidos, tal objetivo soa muito familiar, já que esse modo de entender
a História como “mestra da vida”59influenciou fortemente alguns pensadores e boa parte da
historiografia até o século XIX.
Porém, para Políbio, esse poder de ensinamento era mais restrito. Ele define o modo
de escrever a sua história como “pragmático”, isto é, uma história voltada para questões
práticas políticas e militares. Sua obra foi escrita e destinada como um manual ou instrumento
para líderes políticos, chefes estadistas, e também para aqueles que estivessem estudando
sobre a política e táticas militares. É interessante apontarmos que por mais que os possíveis
leitores de Políbio estivessem acostumados, senão já as dominasse, o historiador desenvolve
sua obra de forma muito didática, mencionando constantemente em cada inicio de capítulo ou
alternância de eventos, seu assunto principal, o motivo de apresentá-lo em determinado
contexto, como ele desenvolve tal apresentação, e também como não se deve fazê-lo.
Explicado qual era o sentido da História para Políbio, podemos comentar sobre quais
elementos tão autoridade a um historiador, segundo Políbio. Em síntese, podemos dividir
esses elementos em três partes: preocupação com as fontes; experiência pessoal; e
conhecimento geográfico60. Em primeiro lugar, temos a preocupação em consultar
documentos e testemunhas, as fontes principais para se conhecer as coisas passadas. E Políbio
possui um forte apego com a documentação e as testemunhas, viajando para diversos lugares
justamente para confirmar ou não aquilo que essas fontes informam, ou então para encontrar
documentos, transcrições de discursos, e tudo o mais que o auxilie em sua obra. Por exemplo,
para saber como foi feita a épica travessia dos Alpes, Políbio viajou pela mesma rota e
conseguiu identificar uma inscrição de Aníbal, informando com detalhes seus contingentes
militares quando da chegada na Itália61. Nesse sentido, é notável também o acesso que Políbio
teve a documentos romanos datando dos primeiros anos da República, como os primeiros
59
CÍCERO. De Oratore, II, 36
Para maiores detalhes, conferir MARQUES, op. cit. p. 52 – 53.
61
POLÍBIO, Livro III, 33
60
41
tratados entre romanos e cartagineses sobre as rotas do mediterrâneo62. Para nosso autor, é a
recorrência às fontes e a análise de documentos e testemunhos que impedem que o historiador
escreva uma história falha, ou ainda pior, baseada em falsidades.
Porém o uso dos documentos por Políbio faz-se de modo apenas comprobatório ou a
titulo de agregar informações. Para Políbio, não fazia sentido, e nem seria digno de mérito
repetir aquilo que já havia sido mencionada ou comentado por outros autores. Essas
informações somente mereceriam ser repetidas caso novas informações pudessem ser
agregadas, ou como mais ocorre na obra, quando as informações pudessem ser revistas e
corrigidas.
Em segundo lugar, Para Políbio, era indispensável que o historiador tivesse alguma
formação prática na política e na vida militar. Pode ser que essa alegação seja baseada na
própria formação dele, tanto na Liga Aquéia, como representante diplomático e hiparco,
quanto na função sob as ordens de Roma, ou auxiliar na estabilização da nova situação nos
territórios gregos após a Guerra da Acaia63. Este ponto é um dos que fazem ligação entre a
Historiografia Helenística e a posterior Historiografia Romana. Em geral, a escrita de histórias
no ambiente romano era uma atividade restrita a um pequeno grupo aristocrático, os
senadores. Chegaram até nós as obras de muitos autores que fogem à regra, como Tito Lívio,
Suetônio e Amiano Marcelino, porém Salústio e Tácito, dentre dezenas de outros autores
cujas obras foram perdidas no tempo, representam a noção romana de que a escrita da
História como “mestra da vida política”, o que exigia uma vivência nos círculos políticos e
vivência real no campo de batalha.
O terceiro elemento defendido por Políbio, o conhecimento geográfico está ligado
com sua experiência pessoal, e com a proposta de sua obra. Como diplomata, refém e auxiliar
de Cipião Emiliano em campanha, Políbio pode viajar por todo o mundo mediterrânico, a fim
de conhecer o mais exatamente possível o contexto onde ocorreram as batalhas e eventos que
narra em sua obra. Justamente por ser o primeiro a viajar tanto pelas costas orientais quanto
ocidentais do mediterrâneo, sua obra é a primeira a efetivamente ser “universal”, pois mesmo
que seu foco seja o desenvolvimento do poder romano ao longo do século III e II a.C., ele
comenta sempre que possível sobre os acontecimentos de todas as regiões do mundo.
62
POLÍBIO, Livro III, 22.
Após as Guerras Macedônicas, a Macedônia foi anexada como província romana. Logo em seguida, ocorreram
as desavenças entre etólios e aqueus. Roma tomou posição nessa questão, decidindo que várias cidades das ligas
deveriam ter estatuto autônomo. Essa imposição levou a desentendimentos que resultaram Guerra da Acaia (149
– 146 a.C.), na destruição de Corinto e na transformação do território grego sob as ordens do comandante da
Macedônia.
63
42
Ao escrever uma história universal, Políbio foi além de simplesmente buscar uma
verdade corrigindo os erros dos que o antecederam e agregando uma história a outra. Sua
história universal tem como proposta suprir a necessidade que surgia em sua época, isto é,
expandir os horizontes de conhecimento do mundo grego, fechado em si mesmo, para poder
abarcar todo o mundo realmente conhecido. Somente assim o fenômeno da rápida expansão
romana poderia ser entendido, quando fosse enquadrado em seu próprio contexto, bem como
no contexto vivido pelos reinos helenísticos. Com a entrada de Roma no jogo político
helenístico, a História deixou de ser uma série de eventos simultâneos isolados uns dos outros,
e passou a ser uma série de eventos simultâneos, mas que repercutiam tanto nas proximidades
quanto no outro extremo do mundo mediterrânico.
O ponto de inicio de sua obra são as produções de Timeu e de Áratos de Sícion, que
detinham seus trabalhos em 264 e 221 a.C., respectivamente. O tema de sua obra é o período
compreendido entre o inicio da Guerra Anibálica (221/218 a.C.) e a destruição de Cartago e
Corinto (146 a.C). Nesse período ocorreu uma das maiores mudanças na política da
Antiguidade mediterrânica, que podemos alterou o panorama deixado pelos feitos de
Alexandre Magno: tanto Ocidente quanto o Oriente caíram sob a influência de uma única
cidade, Roma. O mais próximo a isso foi a meteórica ascensão alexandrina, que tão rápido
conquistou, acabou esfacelando, enquanto que a conquista romana, apesar de muito mais
lenta, mostrou-se firme e constante. Esse período só passa a ser trabalhado a partir do Livro
III, pois Políbio quis realizar uma pequena introdução explicando os eventos ocorridos entre
264 e 221 a.C., ou seja, ele retrocede até a Guerra da Sicilia, ou também chamada de Primeira
Guerra Púnica. Esse retrocesso serve como forma de explicar de onde surgiu e onde foi
forjado o impulso conquistador romano. Impulso esse que acabou por dominar um mundo
muito tão extenso, e muito mais complexo, do que o mundo dominado por Alexandre séculos
antes, e culminou com a derrocada de duas culturas influenciadas pelo conquistador
macedônico: Cartago e Macedônia
Ao insinuar que a partir daquele momento, da vitória romana sobre Cartago e
Macedônia, um novo mundo estava para surgir, Políbio leva a crer que uma força
predeterminada passou a encaminhar a História para uma determinada direção. Devido a uma
seqüência lógica de causas e conseqüências, enquanto os helenos perdiam poder e influência
devido as suas crises internas, Roma adquiria cada vez mais poder e relevância. Essa idéia
controversa e em discussão até os dias atuais foi nomeada como Providência, Fortuna ou
“Tyché”. Políbio define essa “força misteriosa” como a responsável pela junção ordenada e
lógica dos fatores que permitiram, de forma ideal, que Roma expandisse seu domínio sobre
43
todo o mundo. Entretanto, ao mesmo tempo em que Políbio defende que essa força é lógica e
que as ações humanas são influenciadas por ela, ele a apresenta como uma força alheia à
vontade humana, caprichosa e de difícil (se não impossível) de dominar. O pensamento
resultante é que a aleatoriedade da Fortuna poderia anular o valor do conhecimento do
Passado proporcionado pela História como relevante para o Presente e Futuro. Políbio não nos
dá uma resposta pronta. Ela é inconstante, porém castiga os maus, e beneficia os bons.
Além dessa força que movimenta a História, Políbio também compartilha do
pensamento de uma História Cíclica64, onde a sociedade humana vive ciclos de ordenamento
e de caos político. Esse pensamento cíclico permeia sua obra e está por trás de grande parte de
sua lógica de escrita. Segundo Políbio, as sociedades nascem politicamente caóticas, sem leis,
regras ou liderança. De dentro do caos político surge o “Monarca”. Na Monarquia 65, o
monarca lidera com base na sua força física, social ou moral. Com o aumento da
complexidade das relações, surge o Basileu, um líder comprometido com a justiça e a
sensatez na aplicação de leis, recebendo a gratidão da população sua obediência. O passar das
gerações corrompe a Basiléia, que recai na Tirania despótica, e um grupo de cidadãos, os
melhores e mais renomados, dão um golpe de Estado e passam a governar. Surge a
Aristocracia66, que se corrompe com o tempo, tornando-se uma Oligarquia67. Eventualmente o
povo revolta-se com esse poder de alguns, e passa a governar em causa própria, nascendo
assim a Democracia68.Mesmo a democracia pode se corromper, recaindo numa Oclocracia69.
Nesse estágio, o governo não funciona mais, e a sociedade está em agitações que logo recaem
no caos até que um novo líder surja da massa.
Esse pensamento cíclico de Ordem degradada em Caos permeia a concepção
histórica e política polibiana. A mesma força indomável da Fortuna que elevou Roma a uma
posição hegemônica no Mediterrâneo é a mesma força que alguns séculos antes, havia
elevado a Macedônia como potência hegemônica do Oriente Próximo, e que da mesma forma
havia forçado a fragmentação e a caótica situação política que imperava na colcha de retalhos
formado após a morte de Alexandre. E mesmo ainda mais recentemente, essa mesma força
cíclica havia sido traiçoeira com os cartagineses, que no ponto mais alto de seu poder,
acabaram sofrendo uma série de golpes que o reduziram a uma força mais decorativa do que
representativa de seu poder passado.
64
Para maiores detalhes, MARQUES, op. cit. p. 57 – 62.
Monarquia, do grego “Monos” (um) e “Arché” (poder), isto é, “poder de um só”.
66
Aristocracia, do grego “Aristói” (melhores) e “Kratia” (poder), literalmente, “poder dos melhores”
67
“Governo de poucos”
68
“Governo do povo”
69
Termo raro usado por poucos autores além de Políbio. Significa “poder da multidão”.
65
44
Por fim, comentaremos sobre as dificuldades de interpretação da obra de Políbio,
conforme apontam vários autores70. Muitos pesquisadores atuais e tradutores criticam o modo
como Políbio escreve sua obra, afirmando que a composição é deficiente em estilo e elegância
textual, estando muito distante da graciosidade das obras de Heródoto e Tucídides. Essas
críticas, feitas tanto à época71 quanto na atualidade72, devem ser entendidas com muita
cautela. Infelizmente, não possuímos nenhuma versão datando daquela época73. A versão
mais antiga do documento, datando do século X, só apresenta os primeiros cinco livros
“intactos”. Todos os demais são extratos e seleções de trechos, que muito posteriormente
foram reordenados naquilo que seria a lógica original. Sem dúvida, no meio desse processo,
muito da qualidade de estilo da obra foi perdida, ou acabou sendo preterida frente a lógica das
informações textuais, quando de sua reorganização.
O objetivo ao qual dedicamos esse trabalho é a análise de como se deu o
“renascimento cartaginês” entre as guerras travadas com Roma. Para realizar tal análise,
utilizaremos principalmente os dois primeiros livros da obra de Políbio, tanto por serem os
livros que tratam sobre o período quanto por serem os mais conservados. Para algumas
questões de relevância, serão utilizados trechos dos demais livros, desde que possuam
relações com o período ao qual propomos nos pesquisar. A título de complementação,
também iremos utilizar extratos de outras obras temporalmente próximas, ou que sejam pouco
posteriores ao relato de Políbio.
Dentro das diversas traduções existentes, foi escolhida a obra de Políbio de
Megalópolis, “Histórias”, na versão traduzida do grego para português pelo filólogo Mário da
Gama Kury.
70
MARQUES, KURY E RODRIGUES DA SILVA.
Dionísio de Halicarnasso, em sua obra “Da Disposição das Palavras”, aponta que a “Histórias” de Políbio esta
entre as obras que ninguém tem paciência de ler até o fim. IN CURY, p. 35.
72
O principal crítico à falta de estilo de Políbio foi Alfred Croiset, em sua obra “Histoire de la Littérature
Grecque”, vol V.
71
45
CAPÍTULO III – O colosso cartaginês torna a se levantar.
Ao final da Guerra Líbica, Cartago havia perdido muito de sua projeção política na
região do Mediterrâneo Ocidental. Sem poder contar com as riquezas provenientes das férteis
terras sicilianas ou com as taxas comerciais obtidas nos entrepostos da Córsega e da Sardenha,
Cartago contraiu uma dívida com Roma na quantia extraordinária de 3000 talentos de prata,
que mesmo divididos ao longo dos vinte anos de prazo para o pagamento, continua sendo uma
quantidade muito significativa de metal a ser enviado à cidade do Lácio.
Para cumprir o tratado, que previa o pagamento imediato de parte desse montante, o
Senado cartaginês redirecionou parte dos recursos destinados ao pagamento das tropas
mercenárias para o saldo dessa parcela adiantada. Com isso, as lideranças das companhias
mercenárias passaram a encarar com desconfiança as atitudes cartaginesas. Somada as
dúvidas de que as dividas de guerra seriam saldadas, o medo de que Cartago tomasse atitudes
mais drásticas como represália ao resultado das lutas na Sicilia.
Essa dupla tensão na política externa e interna de Cartago, somada a outras
complexidades relacionadas, eclodiram numa sangrenta guerra civil, vencida a duras penas
pelos cartagineses liderados por Amílcar, cognominado, Barca (isto é, Raio, na língua
púnica). Mas a paz e a ordem interna não são obtidas apenas com sucessos no campo militar,
é necessária uma organização política funcional que consiga manter as tensões externas sob
controle, ao mesmo tempo em que precisa administrar a questão da guerra civil, garantindo
que a animosidade não avance do campo de confronto entre uma elite política e seus
contratados para o interior dessa mesma elite política.
Rupturas de governo causadas por distúrbios políticos decorrentes de disputas entre
partidos não eram desconhecidas dos cartagineses. Segundo nos relatam diversos autores da
Antiguidade, a cidade de Cartago foi fundada devido a querelas entre partidos políticos dentro
da cidade de Tiro, na região da Fenícia. Em sua origem, o governo cartaginês era uma
monarquia hereditária, porém sabemos que essa forma de governo havia sido abandonada
quando das guerras entre colônias gregas da Sicilia e as tropas de líbio-fenicios. Convém
analisarmos então qual era a forma de governo que regia Cartago quando de sua crise e de seu
renascimento, pois poderemos apreender muitos elementos que irão nos auxiliar nos
processos de estabilização e ascensão vividos posteriormente.
46
3.1 – O Sistema de Governo Cartaginês: estabilidade em decadência.
Como tudo o mais relacionado à Cartago, sua estrutura de governo, como
magistraturas, cargos, funções e instituições políticas é uma questão delicada que necessita ser
trabalhada com grande atenção. Infelizmente, seja pelo ímpeto destrutivo romano, ou por
razões que escapam ao nosso alcance analisar, não possuímos nenhum documento cartaginês
que relate, em detalhes, sua organização política.
As descrições mais próximas são fornecidas por observadores externos aos meandros
da prática política, ambos gregos, e que traçam paralelos entre a Constituição de Cartago e
outras constituições vigentes no universo heleno-helenístico, em especial Esparta e Creta. O
primeiro desses autores foi Aristóteles, em seu tratado intitulado Política. Nessa obra, o
sistema cartaginês de governo é descrita como semelhante à constituição lacedemônica
desenvolvida por Licurgo e a Constituição de Creta74.
Aristóteles, em linhas gerais, define Cartago como uma república aristocrática,
possuindo uma constituição onde elementos da monarquia, aristocracia e democracia estão
representados numa harmonia muito tênue. No topo do governo, estariam dois altomagistrados, referidos como “reis”, provenientes de algumas das famílias mais destacadas da
sociedade local. Não ascendem ao cargo de forma hereditária, mas eram eleitos dentre uma
parcela das grandes famílias. Não podemos ser ingênuos e imaginarmos que os membros de
todas as grandes famílias poderiam ser eleitos, pelo contrário, pois a condição para a eleição
era o mérito desfrutado pelo candidato junto dos demais elementos da aristocracia.
Abaixo dos “reis”, e com uma função semelhante aos éforos espartanos, isto é,
fiscalizar as ações públicas dos magistrados (incluindo os reis), existia o Conselho dos Cento
e Quatro. Esse conselho era formado pelos cidadãos mais virtuosos, originários das famílias
mais tradicionais da elite política citadina. Exerciam grande papel na gestão interna da cidade,
zelando pelo equilíbrio de poderes entre os reis e demais magistrados.
Tanto os reis quanto os membros do Conselho dos Cento e Quatro provinham de
uma instituição formada por um corpo muito maior de pessoas, o Senado. Tal como o Senado
espartano, ou o senado romano, sua função era manter a ordem e o respeito às tradições e às
leis. Segundo aponta Aristóteles, os poderes do Senado e dos Reis eram equivalentes, pois,
quando em comum acordo sobre alguma questão, ambos poderiam esconder essa decisão do
conhecimento do povo. Porém, caso entrassem em discordância, poderiam recorrer a uma
74
ARISTÓTELES, Política, Livro III, Capitulo VIII.
47
ultima instância: o julgamento por meio de todo o corpo de cidadãos75. Quando da
convocação da opinião popular, os cidadãos poderiam pedir não somente que os magistrados
expusessem suas razões, como, igualmente, poderiam tomar a palavra e pronunciar suas
opiniões sobre a questão em debate.
Subjacente a essas instituições, o poder político estava, de fato, nas mãos das
Pentarquias. As Pentarquias, conforme descrição de Aristóteles, eram comitês formados por
cinco magistrados, e possuíam diversas atribuições. A mais importante dessas funções era
referente à eleição de membros do Senado para a formação do Conselho dos Cento e Quatro,
bem como poderiam conceder a esse Conselho a ampliação de seus poderes. Aristóteles faz
uma observação que merece ser mencionada, a de que mesmo após deixar o cargo, os
pentarcas continuam como personagens muito poderosos dentro do cenário político.
A razão dessa influência política é apontada pelo sábio de Estagira, como
proveniente de uma falha na estruturação das virtudes cívicas cultuadas pelos cartagineses.
Enquanto outros povos acreditam que o poder deve ser confiado aos homens mais
distinguidos, os cartagineses confiavam os cargos públicos aos mais ricos. Isso se deve,
continua o pensador, ao pensamento de que os homens ricos e com posses não ambicionariam
os bens públicos, e nem ambicionariam ampliar suas riquezas pessoas à base de subornos ou
corrupção. Em conjunto a isso, também aponta Aristóteles, havia o habito de uma mesma
pessoa acumular diversos cargos públicos, pois seria um sinal de grandes méritos, prestigio e
riquezas.
O resultado final dessa construção ideológica do poder era a prática do suborno e da
compra de cargos praticada nos bastidores políticos. As comissões de Pentarquias, que
possuíam regência própria e definiam quais seriam os cidadãos que deveriam tomar assento
no Conselho dos Cento e Quatro, acabavam tomando parte dos meandros das articulações
políticas, facilitando, ou não, a ascensão familiar rumo a magistratura de Conselheiro. Dessa
forma, podemos compreender quais poderiam ser os motivos que tornariam, aos olhos de
Aristóteles, os Pentarcas poderosos, mesmo quando não mais ocupavam esse cargo.
Essa mesma idéia de que a Constituição de Cartago era bem definida, mas
apresentava problemas de prática encontramos em outros autores, sendo o mais emblemático
Políbio. Políbio, em seu Livro VI, dedicado a apresentar a Constituição de Roma e o quanto
75
Fica subentendido na descrição dada por Aristóteles que a cidadania cartaginesa era definida por critérios
censitários. Apesar da busca pela primazia do mérito, as altas magistraturas somente eram acessíveis aos
cidadãos que pudessem se afastar de suas ocupações normais e dedicarem-se integralmente ao serviço do
governo. E isso requeria, no mínimo, a posse de uma pequena fortuna pessoal.
48
ela estava em seu apogeu, sendo superior a todas as demais, também comenta sobre a
Constituição de Cartago:
A constituição dos cartagineses parece-me ter sido bem concebida em sua origem
quanto aos seus pontos mais característicos. Com efeito, eles tinham reis e o
Conselho de Anciãos era de natureza aristocrática, e o povo tinha a supremacia nos
assuntos de sua alçada; em conjunto a estrutura do Estado assemelhava-se
consideravelmente à de Roma e de Esparta. Entretanto, na época em que os
cartagineses entraram na Guerra Anibálica sua constituição já havia degenerado
(...). Cartago já havia começado a declinar (...) o povo em Cartago já havia obtido
a preponderância nas deliberações, enquanto em Roma ela ainda era do Senado;
por isso, como no primeiro caso as massas deliberavam e no outro os homens mais
eminentes, as decisões dos romanos acerca dos assuntos públicos ainda eram
melhores76.
Temos aqui uma pequena alteração de nomenclatura, porém com as mesmas
estruturas, cargos e funções principais: dois reis, o Conselho de Anciãos, isto é, o Senado77; e
a participação da população. Muito provavelmente, Políbio esteja estendendo a categoria
população para abraçar todo o contingente urbano de Cartago, como forma de comprovar sua
teoria dos estágios de evolução e decadência constitucional78, beneficiando Roma, ainda
governada por uma Aristocracia senatorial, e denegrindo Cartago, como dominada pelas
decisões da multidão.
A historiografia não nos fornece muito mais informações do que os trechos
elencados aqui. O maior avanço realizado para entender o funcionamento das estruturas
políticas cartaginesas refere-se à nomenclatura das funções e cargos79. Nesse sentido, merece
destaque a questão da terminologia utilizada pelos próprios cartagineses para referirem-se aos
“reis” mencionados pelos autores gregos. O termo originalmente utilizado em Cartago é
“sufete”, normalmente traduzido como “juiz”. Segundo vários autores80, esse termo tem
origem e paralelos na cultura semita do Oriente Próximo, tanto na cultura fenícia quanto na
cultura hebraica (com o termo schophetim).
76
POLÍBIO, Livro VI, 51
A palavra Senado tem origem na palavra latina Senex, isto é, “mais velho”, “ancião”.
78
Segundo MARQUES. Essa decadência seria uma conseqüência do tempo, onde a Aristocracia acaba sendo
substituída pela democracia. Quando o governo é exercido por todos os cidadãos, a falta de preparo para
governar (adquirido através da educação), e uma natureza corruptível pelo desejo de vingar-se das expropriações
sofridas durante o regime aristocrático corrompido (a Oligarquia), decai ainda mais, tornando-se uma
Oclocracia. Nesse estágio, o governo está mais próximo do estado de anarquia animalesca do que de alguma
forma de governo.
79
Para maiores informações dos nomes originais, na língua púnica, das funções, títulos e cargos, recomendamos
o trabalho CABRERO, Luiz A. R. “Dedicantes em los tofet: la sociedad fenícia em el Mediterráneo”. Gérion, v.
26, nº 1, p 89 - 148. Madrid, 2008.
80
HERVÁS, José Manuel Roldán. Historia de Roma I – La República Romana, 4ª Ed. Salamanca: Ediciones
Universidad de Salamanca, 1995, p.169; HERM, Gehard. A Civilização dos Fenícios. Rio de Janeiro, Otto
Pierri Editores Ltda, 1979, p. 280; LÉVÊQUE, Pierre. Impérios e Barbáries – do século III a.C. ao século I d.C.
Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1979, p. 82.
77
49
Em geral, esses mesmo autores modernos fazem um paralelismo perigoso entre a
nossa moderna divisão de poderes (judiciário; executivo e legislativo), possivelmente
induzida pelos nomes das magistraturas. Em todo caso, sabemos através das fontes e dos
vestígios epigráficos, aquilo que as magistraturas não poderiam fazer. Os sufetes não
poderiam declarar a guerra, e nem dispor do tesouro do governo.
Cabia ao Conselho dos Cento e Quatro, junto do Conselho de Anciãos, a função de
declarar a guerra, assim como a possibilidade de dispor das finanças, fosse para projetos
cívicos, fosse para projetos militares. E quando houvesse discussões entre essas duas
organizações, as Assembléias Populares eram convocadas para votarem nas melhores
propostas, ou nos melhores candidatos para ocuparem as magistraturas e tomarem assento nos
Conselhos. Sua influencia nas questões políticas ficava restrita a um papel indireto, pois as
Assembléias eram convocadas para eleger novos chefes civis, e militares. Nossa atenção
deverá focalizar nessa ultima informação.
Sobre essa estruturação política, Hervás, e Herm, comentam que o governo, dividido
dessa forma, evitaria golpes de instauração de uma tirania, ou uma monarquia militar. Apesar
de Aristóteles louvar que “Cartago não registra em sua história nenhum golpe de governo e
instauração de tirania”, sabemos81 que durante as guerras sicilianas dos séculos V e IV, um
personagem chamado Malcchus (também conhecido como Magon, Magão ou Mago) tentou
tomar o poder a força após ser derrotado na Sicilia, em 550 a.C82. A partir desse momento,
vemos um distanciamento entre essas duas esferas, a política e a militar. Esse distanciamento
é interpretado pela historiografia moderna como o momento de nascimento das chamadas
dinastias militares de Cartago. Apesar de muito questionável essa nomenclatura, pois os
cargos militares não eram de caráter hereditário e sim eletivo, esse conceito nos será muito
útil para analisarmos o sistema militar cartaginês que sobreviveu à revolta dos soldados e
possibilitou a expansão rumo às riquezas do Extremo Ocidente.
3.2 – Um Exército de Especialistas.
Militarmente, Cartago é lembrada por duas características principais: as “dinastias
militares”; e o emprego maciço e massivo de tropas mercenárias. Nenhuma das duas
características é novidade no mundo mediterrânico do período. Desde as disputas entre gregos
e persas temos o emprego de tropas mercenárias.
81
82
Através do historiador romano Justino.
HERM, op. cit., p. 281
50
E desde a divisão da monarquia universal alexandrina entre seus principais auxiliares
militares, os Diadocos (Sucessores), passou a ser comum, ou ao menos desejado, que os
governantes garantissem uma boa preparação aos seus sucessores. Essa preparação não ficava
restrita somente aos saberes intelectuais, filosóficos e políticos, estendiam-se também à
experiência militar. Ou seja, de certa forma, observamos a constante presença e participação
militar dos possíveis sucessores nas campanhas militares dos governantes Lágidas, Selêucidas
e Antigonidas, fundando o que seriam prefigurações de dinastias militares.
No caso cartaginês, essas duas características assumiram proporções únicas devido às
especificidades próprias de Cartago. A capital dos fenícios no Mediterrâneo Central não
contava com uma grande população sobre seu governo. Não possuímos censos da época, mas
através da arqueologia, tem-se estimado que a população total cartaginesa era de
aproximadamente 300 mil habitantes83; aproximadamente 100 mil habitantes viviam na área
urbana de Cartago84, enquanto os outros 200 mil estavam espalhados por todas as demais
cidades, entrepostos e bairros mercantis nas cidades helenísticas mediterrânicas. Para efeito de
comparação, sabemos que somente a cidade de Roma, nesse período entre 241 a.C até 218
a.C., possuía mais de 280 mil habitantes85.
Devemos lembrar que as principais fontes de renda cartaginesa eram o comércio e a
agricultura86. As atividades agrícolas, praticadas fora das muralhas da cidade empregavam um
grande contingente de escravos, obtidos através de comércio ou de guerras. Porém, as
atividades comerciais empenhavam grandes contingentes de cidadãos e homens livres, e estas
eram as atividades que faziam a cidade funcionar e desenvolver-se.
E quando falamos atividades comerciais, fazemos menção não só aos ateliês
artesanais (produtores de vasos cerâmicos, panos tingidos de púrpura87, jóias, artigos em
vidro, entre outros), ou aos mercados. Estamos nos referindo também aos mercadores, aos
marinheiros que impulsionavam a marinha mercante, aos construtores navais, aos
trabalhadores portuários, aos administradores de armazéns, aos representantes comerciais
83
LEVECQUE. op. cit., p. 84.
RODRIGUES DA SILVA, Roma e a representação de domínio do mundo no contexto das guerras púnicas:
uma leitura das Histórias de Políbio. 2010, 193f. Dissertação (mestrado) – Universidade Federal do Espírito
Santo, Centro de Ciências Humanas e Naturais. Vitória, 2010, p. 67.
85
Segundo Rodrigues da Silva, a população romana no período de 338 a 263, passou de aproximadamente 100
mil habitantes para 280 mil habitantes, dos quais, de 60 a 80 mil foram enviados para novas colônias.
RODRIGUES DA SILVA, op. cit., p. 59.
86
LEVECQUE, op. cit. p. 84; HERVÁS, op. cit. p. 171; HERM op. cit. p. 285, 294 – 296. É útil lembrar que a
única obra creditada pelos romanos como sendo de origem cartaginesa, e que acabou sendo muito difundida no
mundo romano, por muitos séculos, é um tratado sobre agricultura, escrito por certo personagem chamado
Magón.
87
Os panos tingidos de púrpura eram o principal artigo de luxo exportado por Cartago para todo o mundo
mediterrânico. Inclusive para seus inimigos políticos, os romanos.
84
51
espalhados pelo mundo helenístico... Enfim, nos referimos a todo um gigantesco contingente
de pessoas de cujas funções a cidade de Cartago dependia inteiramente.
Se, para manter as engrenagens comerciais funcionando, Cartago necessitava de uma
grande parcela da população, quando Cartago decidiu conquistar mais terras, ficou óbvio a
necessidade de dispor de mercenários para complementar suas tropas. Para ações cada vez
mais longas, e cada vez mais distantes da cidade, não seria nem suficiente, e nem rentável,
subtrair mão-de-obra das atividades econômicas para atividades bélicas.
Esses mercenários provinham das mais diversas regiões e dos mais diversos povos.
Políbio nos dá uma pequena descrição das variadas tropas que se revoltaram contra o
comando cartaginês durante o episódio da Revolta dos Mercenários:
Alguns desses soldados eram iberos, outros eram celtas, outros lígures e outros
ainda das ilhas Baleares; havia também entre eles muitos helenos mestiços, em sua
maioria desertores e escravos, porém, o contingente mais numeroso compunha-se
de líbios88
Cada um desses povos possuía uma especialidade de combate, que desde a reforma
militar promovida por Xantipo, era empregada em ações coordenadas aos moldes do “modo
de guerra helenístico”89, isto é, ao modo de ataque frontal, com manobras de envolvimento,
cujo objetivo era a aniquilação do inimigo. Esse modo de guerra exige muita disciplina e
sincronismo das tropas de infantaria no momento de choque e, das forças de envolvimento
(cavalaria, em especial).
Nascida com Filipe da Macedônia e elevada ao máximo com a tática do “martelo e
bigorna” de Alexandre, o Grande, essa doutrina militar90 exigia um elevado grau de
conhecimento e de experiência militar. E com isso vamos tratar sobre a segunda característica
cartaginesa: o desenvolvimento de famílias aristocráticas dedicadas aos ofícios militares.
As origens dessa especialização não podem ser demarcadas com exatidão, mas
podemos estimá-las com base no que sabemos sobre a estruturação política e questão da
constituição do exército cartaginês. A magistratura de sufete, apesar da existência dual, não
permitia nenhuma efetividade militar, devido a sua validade anual, tempo curto demais para o
desenvolvimento de uma campanha militar de ímpeto (devemos sempre contabilizar o tempo
de planejamento logístico e de recrutamento, ou melhor, contratação, de tropas). Em paralelo,
88
POLÍBIO, Livro I, 67.
SANT’ANNA, H. M. Mercenarismo grego e tradição helenística: uma análise das questões bélicas no
mediterrâneo do séc. III a.C. Ágora, Aveiro, v. 10, p. 25 – 43, 2008, p. 38.
90
Utilizamos a definição proposta pelo Glossário das Forças Armadas: Doutrina Militar é o conjunto harmônico
de idéias e entendimentos que define, ordena, distingue e qualifica as atividades de organização, preparo e
emprego das Forças Armadas. Englobam, ainda, a administração, a organização e o funcionamento das
instituições militares. In: MD35-G-01 Glossário das Forças Armadas, Ministério da Defesa (Brasil), 4ª edição,
2007, p. 83
89
52
acabou sendo necessária a criação de uma nova magistratura, representando no campo militar
as funções civis. O cargo de General era eletivo, tal qual o de Sufete, porém seu tempo era
distendido, variando conforme a duração das campanhas, ou o sucesso nas batalhas.
E seria natural que algumas famílias aristocráticas, antes dedicadas em obter a
magistratura de sufete, passassem a almejar a obtenção do cargo de general. Os poderes eram
mais restringidos, mas poderiam durar por muito mais tempo, rendendo mais influência e
prestigio dentro do círculo aristocrático. Por isso, observamos a tendência de especialização
de algumas dessas famílias, ao buscarem garantir a manutenção do poder militar em suas
mãos. Essa permanência da família no poder era adquirida através do investimento numa
melhor preparação para alcançar as vitórias em batalhas.
Não sabemos se Cartago possuía alguma estrutura similar a uma Academia Militar,
para o treinamento militar de soldados, ou para a preparação dos oficiais superiores. Políbio
não comenta sobre a existência de uma tropa formada pela própria população urbana, ou de
cidadãos cartagineses, durante as Guerras da Sicilia, ou mesmo durante as Guerras Líbicas91.
Dessa maneira, temos duas formas de um cartaginês adquirir conhecimento e prática no
campo militar: participar diretamente de uma batalha; ou então aprender com algum general
mercenário.
Em todo caso, o tino militar era de difícil obtenção, de grande procura, e
conseqüentemente, de grande valor. Dessa forma, podemos entender a tendência dos generais
de instigar a seu circulo familiar mais próximo a tomar em armas e participar de suas
campanhas. Dessa forma, o conhecimento militar poderia ser transmitido de forma direta, sem
intromissões, através de experiências práticas vívidas e marcantes. Apesar de todos os riscos
envolvidos, podemos imaginar que os benefícios advindos da especialidade militar, isto é, da
posse de um conhecimento militar restrito a algumas poucas famílias, eram compensatórios.
Políbio narra um episódio curioso das Guerras da Sicilia, justamente a contratação de
um general mercenário para reformar o exército cartaginês, um general espartano chamado
Xantipo. Esse capitão mercenário atualizou a tática de combate de Cartago para fazer frente
ao modo de ataque romano (ataque frontal, com tropas de infantaria pesada, com apoio e
suporte de unidades diversificadas, mas com uma cavalaria de qualidade inferior). A
participação de Xantipo ficou restrita a somente uma batalha, onde conseguiu utilizar de
forma coordenada as diversas unidades cartaginesas de forma a suprir a inexistência de uma
91
Quando utiliza a expressão “tropas cartaginesas” ou “soldados cartagineses”, fica subentendido que ele está
fazendo uma generalização, e não descrevendo uma tropa formada por cidadãos cartagineses.
53
infantaria pesada sob o comando da cidade africana92. Após essa vitória, Xantipo foi chamado
às pressas para ajudar em problemas com a sua cidade-natal.
Porém, os generais cartagineses continuaram a empregar a tática helenística, e
continuaram obtendo êxitos sucessivos. Entendemos disso que em algum momento Xantipo
transmitiu seus conhecimentos para os generais que assumiram o comando após a saída
dele93. Dos diversos líderes que o sucederam, um em especial conseguiu os melhores
resultados empregando, contra os romanos, os dispositivos táticos do combate helenístico
ensinado pelo mercenário espartano: o general Amilcar. A História consagrou-lhe um epíteto
para homenageá-lo por suas ações rápidas Barca, isto é, O Raio.
3.3 – Amílcar Barca: o batismo de fogo de suas capacidades.
A primeira aparição de Amílcar Barca em ação, por mais destoante que a nossos
olhares possa parecer, não foi numa campanha militar terrestre.
Logo após [obterem uma vitória naval sobre Roma] os cartagineses designaram
para o comando Amílcar cognominado Barca, e lhe confiaram as operações navais.
Ele zarpou em seguida com a frota para devastar a costa da Itália (isso aconteceu
no décimo oitavo ano da guerra),e depois de realizar incursões em Lócris e na
região bretiana deixou essas paragens navegando com toda sua frota contra o
território panormitano94
Nessa passagem, podemos destacar diversos elementos que nos auxiliaram a
entender sua ascensão na política mediterrânea. Por cartagineses, podemos entender tanto os
aristocratas mais abastados quanto os cidadãos que integravam as Assembléias Populares.
Como somente os mais destacados aristocratas poderiam assumir um posto militar de
comando, podemos entender que Amílcar pertencia a esse pequeno grupo, mais
especialmente, ao partido dos aristocratas cujos rendimentos provinham do comércio
marítimo.
Porém, suas ações não ficaram reduzidas somente a atividades de pirataria nas costas
itálicas próximas ao Estreito de Messina. Ao perceber que suas manobras não estavam
rendendo nenhuma vantagem tática, partiu para uma região próxima ao acampamento
92
SANT’ANNA, op. cit., p. 36
Apesar de abordar diretamente o caso de Xantipo e o Exército de Cartago; Alair Figueiredo Duarte e Maria
Regina Cândido comentam que “vemos através da experiência de Soldados-Mercenários as experiências de
combate eram transferidas, aproximando culturas distintas”. In: DUARTE, Alair Figueiredo. A Ação dos
Soldados-Mercenários no Período Clássico Helênico e a Experiência de Combate entre as Sociedades
Mediterrâneas. In: I ENCONTRO NACIONAL DE ESTUDOS SOBRE O MEDITERRÂNEO ANTIGO &
VIII JORNADA DE HISTÓRIA ANTIGA, 2009, Rio de Janeiro, Anais... UFRJ, 2009, 15p. Esse pensamento
está em sintonia com a tese desenvolvida por SANT’ANNA, de que houve grandes intercâmbios culturais, ao
menos ao nível militar, entre Cartago, os Reinos Helenísticos, Roma e as cidades gregas da Sicilia.
94
POLIBIO, Livro I, 56.
93
54
avançado romano, e de lá conseguiu frear os avanços romanos a ponto de garantir, para a sua
cidade natal, tempo o suficiente de armar uma imensa frota para um arriscado enfrentamento
naval. Infelizmente a frota cartaginesa levou a pior, e viu-se obrigada a assinar um Tratado de
Paz, com condições desfavoráveis à Cartago95.
Em prosseguimento aos trâmites de paz, Amílcar levou suas tropas até Lilíbaion,
ultimo porto aberto à Cartago, para iniciar a evacuação das forças cartaginesa da ilha. Nessa
mesma cidade, ele resignou de seu comando e retirou-se da vida militar. Não sabemos quais
seriam os exatos motivos para esse exílio auto-imposto, mas possivelmente está relacionado
com a recepção dada pela população aos chefes militares que haviam fracassado em batalha:
humilhação pública; com até mesmo possibilidades de pena capital. Esse temor quanto a
segurança pessoal torna-se compreensível quando lembramos que as condições do tratado de
paz colocam um ponto final aos projetos da aristocracia em estender a supremacia comercial e
política cartaginesa no Mediterrâneo Central.
Seu auto-exílio, porém, dura pouco. Quando da crise causada pelos sucessos dos
revoltosos na Guerra Líbica, Amílcar novamente reaparece no comando das forças
cartaginesas. Em algum momento, após a rebelião das tropas alastrarem-se até a Sardenha,
Políbio comenta sobre as preocupações de Matos e Spêndios, os líderes da revolta na Líbia:
Matos e Spêndios, e com eles o gaulês Autáritos, estavam apreensivos com o efeito
da generosidade de Amílcar para com os prisioneiros, temendo que os líbios e a
maioria dos mercenários pudessem ser atraídos assim e quisessem aproveitar-se da
impunidade oferecida (...). Não foi com a intenção de poupar-lhes a vida, disse ele
[Spêndios], que Amílcar tomou essa atitude com vistas aos prisioneiros, mas graças,
à libertação dos mesmos ele pretenderia capturar todo o exército 96.
No extrato acima, Políbio nos revela qual parece ter sido a principal tática de
Amílcar Barca para reconstruir o exército cartaginês. Ao que podemos supor, ao estourar a
revolta, uma pequena parcela dos mercenários, provavelmente aqueles que formavam a
guarda dos territórios africanos e da cidade (o mesmo exército que conseguiu vencer as tropas
romanas quando de sua aventura na região) permaneceu fiel a Cartago. Com posse dessas
tropas, e recebendo ajuda de Hiêron de Siracusa97, Amílcar Barca montou um novo exército,
conseguindo vitórias e fazendo prisioneiros.
Porém, o tratamento dado por Amílcar a esses prisioneiros foge das regras
helenísticas. Amílcar não executa os prisioneiros por traição. Pelo contrário, oferece-lhes a
95
Essas condições e as conseqüências delas já foram analisadas no Prólogo do presente trabalho.
POLÍBIO, Livro I, 79
97
POLÍBIO, Livro I, 83. “Os cartagineses, bloqueados por todos os lados, foram compelidos a recorrer às
cidades aliadas. Durante essa guerra Hiêron atendera sempre com presteza aos seus apelos, e agora estava
mais do que nunca, pois convencera-se de que, para a segurança de seu domínio na Sicília e de sua amizade
com os romanos, seria de seu próprio interesse assegurar a sobrevivência de Cartago”
96
55
liberdade e o perdão dos crimes de guerra. Assim a preocupação dos líderes revoltosos, de que
seus contingentes voltassem a servir à Cartago, atraídos pela generosidade e impunidade, nos
fornece uma possibilidade de resposta para uma das perguntas iniciais desse trabalho.
A força militar dos revoltosos não residia no talento ou na experiência militar de seus
líderes. Residia na superioridade numérica, e na simpatia conquistada junto da população
líbia, duramente oprimida pelos comandantes cartagineses durante a Guerra da Sicilia. O
oposto era observado no exército cartaginês, com um competente líder à frente, mas com um
reduzido contingente de tropas. Amílcar sabia do que os revoltosos poderiam ser capazes, pois
eram antigos soldados seus, e sabia que Roma não iria tardar em aproveitar-se da fraqueza de
Cartago para retirar mais benefícios dela, como mostrou o episódio da anexação da Córsega e
da Sardenha.
Ao poupar os prisioneiros, e integrá-los em seu exército, Amílcar reconquistava, aos
poucos, a lealdade de seus antigos soldados; ao mesmo tempo, minava o argumento principal
da revolta, isto é, o medo dos soldados mercenários de receberem um tratamento cruel como
represália da derrota na Guerra da Sicilia.
Sobre a clemência e indulgência de Amílcar, não podemos ser ingênuos e acreditar
que foi estendida a todos. Sabemos que a estratégica do Barca surtiu efeitos e Cartago
recuperou o controle sobre a Líbia, e que os líderes da revolta foram punidos exemplarmente.
Essa Guerra Líbica, que expôs Cartago a tais perigos, resultou não somente na
volta do domínio de Cartago sobre a Líbia, mas deu também a Cartago condições
para punir exemplarmente os autores da insurreição Sua cena final foi um cortejo
dos cartagineses mais jovens conduzindo Matos através da cidade enquanto lhe
infligiam toso os tipos de tortura98.
Se Amílcar havia perdido a guerra contra os romanos, e por essa razão poderia ter
sido executado pela aristocracia; ao ser convocado novamente para assumir o comando de um
combalido exército, e restaurar o domínio de Cartago na Líbia, recriando o exército
mercenário através de sua popularidade e não por pagamento de melhores soldos, não
podemos duvidar que seu status dentro do universo aristocrático estivesse no auge. E, não
podemos duvidar também, que esse mesmo universo aristocrático sentisse medo de que
Amílcar pudesse empregar o exército para tentar tomar o governo, como séculos antes
Malcchus havia tentado.
98
POLÍBIO, Livro I, 88.
56
3.3.1 – O primeiro exército cartaginês na Europa: o estabelecimento na Ibéria.
Em sua obra Histórias, Políbio inicia o Livro II retomando alguns pontos, como a
perda da Guerra da Sicilia para os romanos, e a vitória na Guerra Líbica. Segundo o
historiador:
Logo após o restabelecimento da situação anterior na Líbia os cartagineses
despacharam Amílcar para o território da Ibéria, confiando-lhe forças adequadas à
missão. Levando consigo esse exército e seu filho Aníbal, cuja idade na época era
oito anos, ele atravessou as Colunas de Héracles e começou a submeter a Ibéria aos
cartagineses.99
Nesse trecho da obra polibiana temos a descrição do inicio da expansão cartaginesa
para uma região tratada de forma distante em relação as convulsões que aconteciam no
Mediterrâneo Central, com as lutas entre Cartago e Roma; e Oriental, onde os reinos
helenísticos disputavam a primazia territorial e política. Mas, estaria mesmo essa região tão à
margem das movimentações políticas mediterrânicas, ou mesmo, tão a margem das interações
comerciais desenvolvidas em suas margens?
Durante a expansão comercial fenícia, diversos entrepostos foram criados, mas
poucas colônias foram fundadas100. O que houve com elas após a queda de Tiro,
historiograficamente é um mistério. A hipótese mais aceita é de que em algum momento
Cartago impôs sua hegemonia econômica e militar sobre elas, e que em algum momento
durante a Guerra na Sicilia e a Guerra Líbica, a cidade norte – africana perdeu sua supremacia
sobre a região.
Entretanto, essa hipótese apresenta falhas muito evidentes. Em nenhum momento de
seu relato, Políbio comenta sobre ações romanas contra cartagineses nessa região do extremoocidente mediterrânico. Pelo contrário, ambas as potências focalizam seus combates,
empregando suas máximas forças, no Mediterrâneo Central, nas ricas ilhas da Sicilia, Córsega
e Sardenha. Da mesma forma, em nenhum de seus livros encontramos indícios de que Cartago
possuísse um domínio, de qualquer espécie, sobre o sul da Península Ibérica.
Outra hipótese elencada pelos pesquisadores baseia-se na análise da cultura material
dos principais assentamentos fenícios, cobrindo, em especial, a janela temporal que vai do
99
POLÍBIO, Livro I, 1.2
Há uma diferença sutil entre esses dois modos de ocupação territorial. Entrepostos seriam assentamentos
ocupados esporadicamente; seriam ocupadas por uma quantidade mínima de pessoas; os contatos entre os
administradores do entreposto e a população local seriam de baixa intensidade, reduzindo-se ao aspecto
comercial apenas. Já as Colônias são assentamentos de ocupação permanente; habitado por uma população
relativamente grande; e as relações entre população colonial e os povos autóctones vão além do aspecto
econômico, estendendo-se para os campos políticos e militares. Sobre essa diferenciação, ALVAR, Jaime.
ALVAR, Jaime. Los primeiros Estados em la Península. In: ALVAR, Jaime (org.), Entre Fenícios y Visigodos
– La historia antigua de la Peninsula Ibérica. Madrid, La Esfera de los Libros, p. 28 - 30, 2008.
100
57
século VII a.C, data da queda de Tiro, até a expedição de Amílcar Barca, em 237 a.C.
Segundo os defensores dessa teoria, no período da chegada de Cartago, a região sul e a costa
atlântica Andaluza e Marroquina integrariam uma realidade cultural única, descendente da
cultura fenícia, mas distinta de Cartago. Essa hipótese, baseada em vestígios materiais 101,
pode ser colocada numa posição de diálogo com nossa fonte escrita, fazendo-a muito mais
comunicativa do que se considerada isoladamente.
Retornando ao trecho destacado acima, já podemos delinear algumas respostas sobre
os motivos que levaram à escolha da expansão em direção à Ibéria. Possuindo uma cultura
próxima à Cartago, mas não integrada com a cidade norte – africana, as cidades da região do
Estreito não sofreram nenhum impacto direto com a vitória romana. Pelo contrário, com o
recrudescimento comercial cartaginês, novos mercados estavam abertos aos seus produtos. O
que significa que suas elites estavam prosperando, enquanto as elites africanas estavam em
declínio, o que, sem dúvidas despertou a atenção cartaginesa.
Fora essa questão de desenvolvimento de uma estrutura organizacional pré-existente,
e que poderia ser convertida para beneficio cartaginês através da força bruta, ou diplomática,
a Península Ibérica resguardava outros grandes atrativos. Como seu próprio nome indica102, a
região era reconhecida por suas riquezas minerais e agrícolas. E como uma bonificação, as
tribos de celtas, celtiberos e iberos103 forneciam continuas levas de tropas mercenárias de
grande qualidade e força de combate.
Proposta uma hipótese sobre o motivo pelo qual a expedição foi dirigida rumo à
Ibéria, temos ainda uma segunda questão, o que seriam forças adequadas? Não temos
101
Sobre os vestígios materiais analisados, Mariñas, no artigo El espacio geopolítico gaditano em época púnica.
Revísión y puesta al dia del concepto de “Círculo del Estreito”. Gerión, v. 19, p. 313 – 354, 2001, dedica-se a
analisar o tipo cerâmico encontrado em diversos sítios em ambas as margens do Estreito de Gibraltar; e no artigo
Banquetes rituales em la necrópois púnica de Gadir. Gerión, Madrid, v. 24, nº 1, p. 35 – 64, 2006, reflete sobre
as práticas funerárias e os tipos de acompanhamentos que são empregados nessa prática. Tristan e Vargas, no
artigo Reflexiones en torno al área comercial de Gades: Estudio numismático y económico. Gerión, Madrid, v.
9, nº EXTRA 3, p. 139 – 168, 1991, debruçam-se sobre a dispersão e os tipos de moedas empregues na Península
Ibérica antes e durante a ocupação cartaginesa.
102
Os gregos, quando de sua expansão colonial, encontraram uma rica região no Mar Negro (Ponto Euxino),
com grandes jazidas minerais e um solo muito fértil. Deram-lhe o nome de Ibéria (atualmente, corresponde ao
território da Geórgia, no Cáucaso). Ao expandirem-se para o oeste, encontraram uma região com características
análoga as da Ibéria do Ponto. Disso vem a denominação usada por Políbio ao descrever a península que termina
nas Colunas de Hércules, a Península Ibérica. Políbio era de origem grega, e em sua obra, utiliza-se do termo
grego, por isso demos preferência em utilizar o termo Ibéria (e seus derivados) para nos referirmos àquela
região. O nome Espanha deriva de Hispânia, nome latino, originado, por sua vez, da nomenclatura fenícia i-spnea, traduzido pelos romanos como “costa de muitos coelhos”. Ignoramos como aos povos autóctones chamavam
a região. ALVAR, Cap. I – Los Primeiros... “Entre fenícios e visigodos” p. 49
103
Sobre as especificidades culturais de cada um desses grupos, e sua disposição na Península Ibérica, cf.
ALVAR, Jaime, op. cit., p. 49 – 58; MARCO, Francisco & SOPEÑA, Gabriel. Gênesis y Evolución de los
Pueblos. In: ALVAR, Jaime (org.), Entre Fenícios y Visigodos – La historia antigua de la Península Ibérica.
Madrid, La Esfera de los Libros, p. 65 – 106, 2008.
58
respostas, infelizmente, nem com base na obra Histórias, e nem através dos vestígios
materiais. Podemos especular, com base na formação das tropas cartaginesas de antes da
revolta, que essas forças adequadas poderiam ser companhias de mercenários oriundas da
região. Essas forças teriam um bom conhecimento do território, seus líderes, e os chefes de
companhia poderiam mesmo atuar como diplomatas, nos estágios iniciais da campanha. 104.
Ou, sendo mais realistas, essas forças adequadas seriam as tropas melhor preparadas, mais
fiéis à Cartago e a Amilcar, ou as tropas mais numerosas e em melhor estado.
Políbio não descreve como foi a campanha de Amílcar na península ibérica, e nem
por onde começou suas ações. Somente sabemos, através dele, que Amilcar Barca:
Nesse território ele demorou-se aproximadamente doze anos, durante os quais
sujeitou numerosas tribos ibéricas ao jugo dos cartagineses, em parte pela força
das armas e em parte pela diplomacia, e teve lá uma morte digna dos feitos
praticados ao longo de sua vida, perecendo heroicamente em combate com uma das
tribos mais belicosas e poderosas da região após expor-se voluntariamente ao
perigo no campo de batalha105.
Mesmo não sendo especificado o local de desembarque de Amílcar, diversos
pesquisadores apontam que a primeira incursão cartaginesa no continente europeu começou
pela cidade de Gadir (conhecida também como Gades ou Cádiz)106. Essa cidade marítima,
localizada numa ilha na foz do Guadalquivir, e uma das mais antigas colônias fenícias no
Mediterrâneo Ocidental. Como aponta Mariñas em seu artigo sobre o Círculo do Estreito, essa
seria a cidade mais desenvolvida da região, tanto no aspecto urbano quanto no de relações
sócio-políticas. O porto dessa cidade era um dos mais movimentados, impulsionado por uma
indústria de salgação de peixes e de exportação do garum, condimento tão típicos das mesas
mediterrânicas. Em concordância, seu templo dedicado a Melqart-Héracles Gaditanus era
reconhecido e freqüentado por gregos, romanos, siciliotas, cartagineses, orientais helenizados
e mesmo pela população autóctone. Mesmo as populações do interior, dedicadas à exploração
agrícola parecem ter freqüentado esse local (fig. 1).
104
No Livro I, 67, Políbio afirma que os generais cartagineses tinham por hábito conferenciar com os chefes das
companhias mercenárias: “Era, portanto impossível a qualquer pessoa reun´-los e dirigir-lhes a palavra como a
um grupo ou de outra maneira qualquer, pois como se poderia esperar que um general conhecesse todas as
línguas? Além disso, dirigir-se a eles por meio de vários intérpretes, repetindo as mesmas palavras quatro ou
cinco vezes, constituía – digamos assim – uma impossibilidade ainda maior. O único meio era dirigir-lhes
pedidos e exortações por intermédio de seus oficiais”.
105
POLÍBIO, Livro II, 1.
106
BARCELÓ, Pedro. Un Primer Ensayo Imperialista. In: ALVAR, Jaime (org.), Entre Fenícios y Visigodos –
La historia antigua de la Peninsula Ibérica. Madrid, La Esfera de los Libros, p. 107 – 148, 2008; WAGNER,
G. Carlos Los Bárquidas y la conquista de la Península Ibérica. Gérion, Madrid, v. 17, p. 263 – 294, 1999; p.
269; MARCO, J. J. S. La Historia Militar del Levante español en la Edad Antigua. Militaria, nº 11, Madrid, p.
17 – 27, 1998; p. 19; MARTÍNEZ, F. P. La presencia neopúnica em la Alta Andalucía: a propósito de algunos
referentes arquitectónicos y culturales de época bárquida (237 – 205 a.C.). Gerión, Madrid, v. 25, nº 1, p. 83 –
110, 2007; p. 84; entre diversos outros.
59
Fig. 1 – Limites da expansão cartaginesa na Península Ibérica sob o comando de Amílcar. A estrela azul marca a
cidade de Gades, e o círculo azul delimita os territórios sob a hegemonia de Cartago. Os pontos azuis marcam a
localização das principais cidades nesse período. É interessante contrapor esse mapa com o mapa da extensão do
Círculo do estreito (ANEXO I).
Como apontam Carlos Wagner, Jaime Alvar e José Manuel Roldán Hervás,
consolidado o domínio sobre Gades, Amílcar dedicou-se em garantir a possessão das áreas
mineiras da Andaluzia107. Observamos isso através da cunhagem, na recém conquistada
Gades, de uma série de moedas com elevada porcentagem de prata (até então, a cidade havia
cunhado séries de moedas em cobre). Como explica Wagner, essa produção acelerada pode
ser uma resposta para evitar a crise monetária que desencadeou a Guerra Líbica108.
Segundo apontam esses mesmo pesquisadores, com base em diversos outros autores
da Antiguidade, como Tito Lívio e Dion Cássio, um dos últimos atos de Amílcar na Ibéria foi
a fundação de uma nova base de ações, conhecida somente como Akrá Leuké. Sua localização
ainda é motivo de discussão, mas todos os autores concordam que a função principal dessa
cidade seria servir de base para ações rumo ao norte, ao longo da costa ibérica109.
Devemos ressaltar o destaque dado por Políbio aos modos como Amílcar conseguiu
reunir sob o comando de Cartago uma faixa de terras que vão desde o rio Guadalquivir até o
rio Segura. Entre esses dois rios, estão as minas de prata da Sierra Morena, as minas de ferro e
107
Os autores chamam a região por esse nome, apesar do termo somente surgir durante a ocupação muçulmana,
muitos séculos depois. Utilizando a terminologia mais próxima da época, a nomenclatura romana, a Andaluzia
seria equivalente a metade meridional das províncias da Baetica e Tarraconensis.
108
WAGNER, op. cit., p. 267. Segundo o pesquisador, uma moeda forte, isto é, com elevado grau de pureza da
prata, garantia a estabilidade interna e externa ao servir como pagamento aos mercenários sob o comando de
Amílcar.
109
WAGNER, op. cit., p. 267-8; HÉRVAS, op. cit., p. 223; MARTINEZ, op. cit., p. 89
60
cobre do litoral Múrcia, Málaga e Almeria110, e as ricas planícies da Sierra Nevada,
reconhecidas por sua grande fertilidade em trigo, vinhas e azeitonas. E, de forma geral, abarca
os núcleos populacionais que apresentam vínculos comerciais com Gades, segundo a teoria do
Círculo do Estreito. Os modos como essas ricas regiões foram conquistadas não incluíram
somente ações militares.
Amílcar utilizou-se de uma rede diplomática. A forma como elas foram estabelecidas
escapam de nosso conhecimento. Podem ter se desenvolvido naturalmente, a partir de
múltiplas perspectivas, isoladas ou todas ao mesmo tempo. A rede diplomática pode ser
originária dos contatos cartagineses peninsulares, os mesmo que garantiam o recrutamento de
tropas mercenárias; pode também ser um tipo de herança, adquirido quando da submissão de
Gades; podem ter sido formadas naturalmente, com Amílcar buscando apoio dos chefes locais
para reposição de tropas, segurança política e legitimação de poder. Ou mesmo, podem ter
sido formadas através da iniciativa local, que ao perceberem a rápida ascensão políticoeconômica de Cartago, buscaram, através de acordos, proteção e segurança quanto aos seus
domínios.
Deixando de lado as especulações baseadas nas informações que possuímos sobre o
modo como se desenvolviam as relações entre Cartago e os povos sob seu comando, agora,
vamos analisar o ultimo ponto levantado por Políbio: a morte de Amílcar. Sua morte em
combate, totalmente imprevista, sem dúvida deve ter causado apreensão junto das elites
aristocráticas no Senado cartaginês.
Apesar de Políbio não deixar explicito, o Senado cartaginês, ao enviar Amílcar para a
Ibéria, deu-lhe amplos poderes adicionais. Conforme apresentado por Aristóteles, a prática de
acumulação de cargos públicos e funções era comum aos cartagineses. Além da função de
general, podemos entender que Amílcar também desempenhava outras funções, como de
diplomata, negociando com os diversos chefes locais; e o de administrador. Essa última
função, um cargo que exige conhecimentos práticos sobre estabelecimento de rotas
comerciais, de transporte de cargas e linhas de suprimento.
Amílcar, como membro da aristocracia comercial, sabia administrar seus negócios,
da mesma forma como sua experiência militar (na guerra contra Roma, e no sufocamento da
rebelião mercenária) comprovou sua competência em estabelecer uma base segura de ações.
110
WAGNER, op. cit., p. 267;
61
Com sua morte, os planos da aristocracia de recuperar a economia111 estavam ameaçados,
com sérias chances de serem revertidas em um fracasso.
Até onde a fonte nos permite ir, Cartago não possuía nenhum general capacitado a
assumir a posição112 deixada por Amílcar naquele momento. Sem ter quem indicar, o governo
cartaginês estava com um exército fortemente ligado ao seu general 113 (doze anos de
combates tendo o mesmo general à frente cria uma forte ligação entre soldados e
comandante), em uma região distante, e em meio a processos de expansão territorial e
conquista. Mais uma vez, Cartago estava numa situação frágil.
3.4 – Asdrúbal Barca: um administrador diplomático.
Sem ter a quem indicar, o Senado esperou por uma atitude do exército na Ibéria.
Uma atitude muito perigosa, considerando que o exército ibérico era formado por tropas
mercenárias de diversas tribos da região. Porém, com as lembranças ainda frescas sobre as
conseqüências da eleição de generais que não contavam com a simpatia das tropas (uma das
causas da Revolta dos Mercenários), o Senado cartaginês preferiu ratificar a aclamação das
tropas.
“Os cartagineses confiaram então comando do exército a Asdrúbal,
genro de Amílcar e almirante de sua frota”114.
Quais motivos levaram à aclamação de um almirante para assumir o comando das
tropas de infantaria? Possivelmente os mesmos que levaram à eleição de Amílcar como
general quando da Guerra Líbica: experiência de comando.
Não devemos ser generalistas e pensar que depois de perder a hegemonia naval,
Cartago deixou de possuir uma marinha de guerra. Devemos estar conscientes que uma
111
WAGNER E ALVAR, em seus respectivos trabalhos, comentam sobre uma passagem de Dion Cássio acerca
dos sucessos da administração de Amílcar na Ibéria. Em 231 a.C., Roma enviou uma embaixada para pedir
explicações à Amílcar sobre suas intenções na Ibéria. Como resposta, Amílcar afirmou que os cartagineses
estavam conquistando a região para pagar a divida contraída com Roma.
112
Não estamos sendo ingênuos ao supor isso. Durante a narrativa da Guerra da Sicilia e da Guerra Líbica,
Políbio não cita mais do que três grandes generais atuando ao mesmo tempo, seja no mar, seja em terra. Além
dos Barcas, são mencionados outras duas famílias, uma descendente de Magon; e outra de um certo Giscon,
além de diversos outros líderes. Durante as Guerras Líbicas, Políbio ressalta as qualidades militares de outro
general, Anôn (Hannón), porém este foi executado pelos rebeldes.
113
Temos diversos exemplos históricos de que as tropas tendem a criar uma ligação muito forte com seus
comandantes, após longos períodos de tempo sob seu comando. Essa ligação supera mesmo os laços entre os
soldados e o governo ao qual eles estão ligados. Para citar alguns casos, temos a ligação quase mítica das tropas
Greco-persas durante as campanhas orientais liderados por Alexandre, o Grande; e também o caso de Júlio César
a frente de seus soldados, na Guerra Gálica.
114
POLÍBIO, Livro II, 1.2
62
expansão para “além-mar” demanda a existência de uma marinha eficiente. No Tratado de
Paz firmado com Roma, não havia nenhuma exigência com relação aos investimentos em
frota, fosse de guerra ou mercante. Cartago continuou possuindo uma frota de guerra, numa
escala muito inferior para não despertar novas suspeitas e nova ameaça de guerra pelos
romanos.
E essa frota, pequena, mas funcional, teve um importante papel para a expansão
cartaginesa na Ibéria. Entre Gades e Cartago, as comunicações são todas por via marítima,
seguindo por rotas pelo litoral africano (as costas mediterrânicas das atuais Argélia e Tunísia),
e pela rota mais tradicional e rápida, passando próximas as Ilhas Baleares, terra natal das
famosas tropas de fundibulários baleáricos, mercenários de grande precisão em batalha. Mas,
além dos mercenários, essas ilhas eram o lar de grupos piratas. E que atacavam em ambas as
rotas.
O almirante Asdrúbal provavelmente foi o responsável pela definição de rotas
seguras para o transporte da prata e dos demais gêneros produzidos na Ibéria, e enviados para
Cartago. E, devido a sua proximidade com Amílcar, sendo seu genro, esteve presente nos
principais episódios nos quais Amílcar tomou parte, garantindo-lhe experiência em batalhas
terrestres, e reconhecimento por parte das tropas.
Sobre suas ações, Políbio nos deixa um interessante relato. Não nos relata muito
sobre suas campanhas bélicas, mas nos dá diversas informações preciosas sobre seus projetos
administrativos:
“Voltemos aos acontecimentos na Ibéria, cuja narração interrompi
(...). Com efeito, essa época assinala o início da administração de
Asdrúbal, sensata e pragmática; a fundação pelo mesmo da cidade
chamada Cartago por algumas pessoas e Nova Cartago por outras,
contribuiu sobremaneira para melhorar a posição dos cartagineses,
especialmente por sua localização muito vantajosa com vistas a ações
tanto na Ibéria quanto na Líbia”115
Do trecho acima, Políbio elogia a administração de Asdrúbal e comenta sobre a
criação de uma nova cidade, em 227 a.C., com o mesmo nome da cidade-natal e financiadora
do projeto expansionista: Cartago. No Livro X, o historiador grego descreve com muito mais
detalhes a nova capital cartaginesa na Ibéria116:
115
POLÍBIO, Livro II, 13.1
WAGNER, em seu artigo Los Bárquidas y la conquista de la Península Ibérica. Gérion, Madrid, v. 17, p.
263 – 294, 1999, faz uma detalhada analise da descrição deixada por Políbio, bem como uma análise dos
vestígios arqueológicos referentes à cidade e que foram recuperados hodiernamente.
116
63
“praticamente a única entre as [cidades] da Ibéria dotada de um
porto com instalações convenientes para acolher uma frota e forças
navais, e que ao mesmo tempo sua localização era muito favorável
aos cartagineses para a travessia direta do mar quando vinham da
Líbia”117.
“A área urbana da cidade é côncava; em sua parte meridional é bem
acessível a partir do mar. Umas colinas ocupam o espaço restante,
duas delas muito volumosas e escarpadas, e três não tão elevadas,
mas abruptas e difíceis de escalar. A colina mais alta está a lesta da
cidade e se precipita no mar; em seu topo se ergue um templo
dedicado a Asclépio. Há outra colina frente a esta, de disposição
similar, na qual foram edificados magníficos palácios reais,
construídos, segundo dizem, por Asdrúbal, que aspirava a um poder
monárquico. As outras elevações do terreno, simplesmente uma
colinas, rodeiam a parte setentrional da cidade. Destas três, a
orientada para o leste se chama a de Hefesto, a que vem em
continuação a de Altes, personagem que, ao que parece, obteve
honras divinas por ter descoberto minas de prata; a terceira colina
leva o nome de Cronos. Foi aberto um canal artificial entre a lagoa e
as águas mais próximas, para facilitar o trabalho aos que se ocupam
com o mar. Por cima deste canal que corta o braço de terra que
separa o lago e o mar foi estendida uma ponte para que carros e
mulas pudessem atravessar por aqui, desde o interior da região,
trazendo os suprimentos necessários (...) Inicialmente o perímetro da
cidade media vinte estádios, ainda que eu saiba muito bem que não
falta quem fale de quarenta, mas não é verdade. O afirmo não de
ouvir, mas porque tenho examinado pessoalmente e com atenção;
hoje é ainda mais reduzida”118
Políbio pode nos legar uma descrição tão detalhada sobre Nova Cartago, pois a
visitou em suas viagens durante o tempo em que serviu junto do exército de Cipião Africano e
enquanto servia como diplomata sob as ordens de Roma. Essa minuciosa descrição deixa-nos
claro que Nova Cartago não foi uma cidade criada espontaneamente. Sua posição
estratégica119, próxima de ricas minas de prata; com férteis campos de esparto 120; e
dominando zona pesqueira muito produtiva121; somada com o planejamento urbano e militar
117
POLÍBIO, Livro X, 8.
POLÍBIO, Livro X, 10. Essa passagem não consta na tradução para o português empregue para o trabalho.
Ela foi reconstruída a partir das citações em WAGNER op. cit. p. 269; BARCELÓ, Pedro. Un Primer Ensayo
Imperialista. In: ALVAR, Jaime (org.), Entre Fenícios y Visigodos – La historia antigua de la Peninsula
Ibérica. Madrid, La Esfera de los Libros, p. 107 – 148, 2008; p. 111.
119
BARCELÓ, op. cit., p. 110;
120
Erva da qual se obtém uma fibra utilizada desde a fabricação de cordas até a fabricação de panos, roupas,
sapatos e velas de barco.
121
Atual Golfo de Mazarrón, cujas águas tépidas propiciam as atividades de pesca de atuns entre outras espécies
de peixe.
118
64
aplicado à cidade122; denota uma mudança, no planejamento estratégico das ações
cartaginesas tomadas por Asdrúbal Barca (fig.2).
Uma cidade planejada, preparada para integrar a rede comercial do exterior, com seu
porto bem preparado sendo um dos poucos capazes de receber uma frota e forças navais, e
com uma localização propicia aos transportes no sentido de Cartago para a Ibéria, indica uma
preocupação em intensificar os contatos entre a cidade norte - africana e suas possessões
ibéricas. Devemos interpretar como propõe Jaime Alvar, que ao batizar a nova cidade como
Cartago (Qarthadash em púnico), a intenção de Asdrúbal é pragmática: de aumentar a
presença da Cartago africana frente aos povos ibéricos que estavam agora sob a hegemonia
cartaginesa (Mapa 2).
Criando uma cidade funcional, preparada para ser um centro administrativo e militar,
Asdrúbal também diminui sensivelmente qualquer tipo de influência que as elites locais
poderiam ter sobre a administração cartaginesa. Não está clara a localização de Akrá Leuké
(Políbio nem sequer menciona a criação dessa cidade por Amílcar), e nem o tempo em que ela
foi ocupada pelo antecessor de Asdrúbal. Somos compelidos então a pensar que durante os
doze anos em que Amílcar esteve à frente da expansão de Cartago na península, a sua base de
ações estava localizada em Gades
122
WAGNER; op. cit., p. 270-271
65
MAPA 2 – Mapa delimitando a expansão máxima da hegemonia cartaginesa na Península Ibérica, segundo as
duas interpretações modernas. Em azul, considerando que o Íber de Políbio seria o rio Júcar; em verde, seria a
faixa territorial sob o comando de Asdrúbal, considerando o Íber de Políbio como o atual rio Ebro. A estrela azul
clara marca a localização da nova capital, Cartago Nova, em relação com a antiga capital, Gades (ponto azul
escuro). A estrela verde marca a possível localização de Akrá Leuké, capital que algumas fontes apontam como
criada por Amílcar. Em vermelho, Zacânton (Sagunto), marco dos limites do Tratado do Íber entre Roma e
Asdrúbal.
.
Segundo Tarradell, e os estudos de Mariñas e Tristan e Vargas, analisando os
vestígios arqueológicos como as ânforas e moedas, e suas dispersões anteriores à chegada
cartaginesa, aparentemente a cidade de Gades exerceu uma grande projeção comercial sobre o
sul peninsular. Essa cidade parece ter coordenado uma complexa rede de exploração
comercial agrícola e marítima, que floresce desde o século VIII a.C. Alvar, mesmo sem
referir-se diretamente a essa primazia gaditana, comenta que
“uma análise comparativa da topografia histórica e do legado das fontes literárias
nos permite desenhar os pilares da zona de domínio cartaginês edificado pelos
Bárquidas em pouco mais de um decênio. Seu centro de gravitação constitui o
território delimitado pelo Guadalquivir e o Segura ao norte, e o Oceano Atlântico e
o mar Mediterrâneo ao sul. Ali se localizam os espaços agrícolas e pecuários mais
produtivos e as zonas de exploração mineira mais próspera do Ocidente. Enquanto
que as planícies do interior permitiam métodos de cultivo extensivo e o
desenvolvimento de uma copiosa pecuária, os férteis vales do Guadalquivir e Genil
facilitavam uma exploração intensiva do solo, semelhante a que praticava Cartago
no norte da África e que rendia consideráveis quantidades de azeite, vinho e
cereais. É precisamente esta zona, que, desde o século VIII a.C. havia sido objeto de
66
um intenso processo de aculturação orquestrado desde as feitorias fenícias do
litoral atlântico e mediterrânico, o que constitui o núcleo da expansão bárquida na
Hispânia. Ainda que os assentamentos fenícios fossem erigidos para procurar
metais preciosos, no correr do tempo irá se desenvolvendo uma complexa infraestrutura econômica altamente diferenciada. O distrito de Tiotinto (Huelva), as
imensa reservas de cobre, minério de ferro e prata na vizinhança de Cástulo (Jaén)
, o setor mineiro da Serra Almagrera com saída ao mar de Villaricos (Almeria),
assim como as minas de prata próximas de Cartagena [Nova Cartago], farão desta
extensa e próspera comarca um dos território mais cobiçados do mundo antigo”123.
Unindo a asserções de Alvar com a teoria do Circulo do Estreito, temos a existência
da possibilidade de que Gades foi uma das principais (se não a principal) incentivadora para o
grande desenvolvimento regional como uma próspera região. O mais interessante desse
quadro é pensarmos que, enquanto o Círculo do Estreito desenvolvia-se como uma grande
liga comercial, e possivelmente cultural (posto que possuímos evidências que garantam uma
supremacia política), capitaneada por Gades; nem Roma, e nem Cartago estava preocupadas
com a região.
Sabemos que Roma estava desde o século VIII a.C. até o eclodir das guerras com
Cartago, imersa em problemas com as diversas tribos itálicas, com os etruscos e com os
gauleses. Compreensivelmente, estava sem tempo ou condições de cobiçar uma região tão
longínqua, por mais que tivesse contatos culturais com ela. Da mesma forma, sabemos que as
atenções da cidade africana estavam voltadas para o desenvolvimento de suas redes
comerciais, e posteriormente, com a obtenção da supremacia frente às colônias gregas da
Sicilia. De certa forma, podemos supor que as ações de ambas, Roma e Cartago, atraíram as
atenções bélicas da região, permitindo que as elites gaditanas desenvolvessem sua
estruturação comercial sem interferências.
Essas relações, construídas durante séculos, muito provavelmente criaram
oligarquias poderosas na região de Gades, com seu poder e influência legitimados na
existência dessas ligações de longa-duração temporal. Essa aristocracia local deve ser
elencada quando pensamos na realização da expansão cartaginesa. E, da mesma forma,
devemos pensar em como se desenvolveram as relações entre essa aristocracia ibérica, em
especial a gaditana, que estava implantada na principal cidade peninsular; e posterior capital
cartaginesa de Amílcar.
À chegada de Amílcar, comandando um exército experiente e integrado, e à
conquista de Gades, devem ter sido abertas as negociações entre a aristocracia gaditana e o
novo comandante da cidade. Como comentado por Políbio, Amílcar era um bom general e um
bom negociador. Criou acordos e tratados com os aristocratas gaditanos, garantindo assim a
123
BARCELÓ, op. cit., p. 111-112.
67
segurança do domínio cartaginês, que poderia ser facilmente suprimido. Não nos esqueçamos
de que essa região era uma das principais fornecedoras de tropas mercenárias, ou seja,
possuindo recursos, qualquer aristocrata (ou seu grupo), poderia levantar um exército. Como
tal não ocorreu, supomos que Amilcar conseguiu agradar às elites gaditanas.
Com a morte de Amílcar e a ascensão de Asdrúbal, temos uma mudança na situação
política, num nível diferente daquela enfrentada por Cartago. Se a situação política das
diversas aristocracias ibéricas estava estabilizada com Amílcar, como elas poderiam manter
essa estabilidade sob a liderança de um novo comandante? E como Amílcar poderia garantir a
boa convivência com essas elites locais? Infelizmente, não podemos responder essas questões
de forma enfática. Faltam-nos fontes, pesquisas, e análises do contexto arqueológico de toda
essa região.
Porém, podemos interpretar essa mudança de capital de forma a unir nossas
perguntas com os comentários do governo de Asdrúbal deixados por Políbio. Ao alterar seu
quartel-general para uma nova cidade, Asdrúbal distancia-se das influências da aristocracia
gaditana. Não sabemos, e nem temos como supor, como essa mudança foi entendida e
recebida pelas elites gaditanas. Mas, como não há menção de revoltas dos povos locais contra
Amílcar, podemos entender que a mudança de capital rendeu-lhe benefícios. A ponto tal de
despertar, após tanto tempo, a atenção romana:
Os romanos, vendo Asdrúbal no caminho propício à criação de um império ainda
maior e mais temível, resolveram começar a dedicar-se aos assuntos da Ibéria.
Descobrindo que até então haviam estado adormecidos e tinham dado a Cartago a
oportunidade de organizar forças poderosas, eles tentaram recuperar tanto quanto
possível o tempo. No momento os romanos não se atreveram a dar ordens aos
cartagineses, nem declarar-lhes a guerra, porque a ameaça de uma invasão dos
celtas pendiam sobre suas cabeças (..). Em face desse perigo eles decidiram mostrase inicialmente brandos e conciliados em relação a Asdrúbal, e só então atacar os
celtas (...). Conseqüentemente, após mandar emissários a Asdrúbal e concluir com
ele um tratado onde não se fazia menção ao resto da Ibéria mas os cartagineses
comprometiam-se a não cruzar armados o rio Ibér.124
Os romanos, receosos com os sucessos de Asdrúbal, e com o poder alcançado por ele
na Ibéria, enviam uma embaixada para Nova Cartago, em 226/7 a.C. Os motivos exatos dessa
embaixada são nebulosos. Segundo Polibio, os romanos enviaram essa embaixada para vigiar
Asdrúbal, e garantir a neutralidade de Cartago quando a campanha contra os gauleses ao norte
da Itália fosse iniciada. Analisando essa precaução romana, temos indícios interessantes a
serem elencados. O primeiro deles, e o mais evidente, é que Roma, segundo Políbio, havia
124
POLÍBIO, Livro II, 13.2
68
relaxado a supervisão sobre os projetos de Cartago. Podemos supor diversos motivos para
isso, como a existência de perigos mais eminentes com os quais o Senado Romano estava se
preocupando; a crença de que a hegemonia militar naval romana minou os fundamentos da
prosperidade cartaginesa; e o menos lembrado pela historiografia moderna, o cumprimento
rigoroso das clausulas do Tratado de Paz que selou a Guerra da Sicilia. Cartago não mais
assediou as ilhas do Mediterrâneo Central, e, estava pagando a vultosa indenização de guerra
conforme o esperado125.
Em todo caso, desconfiados com Asdrúbal, firmam um acordo de comprometimento,
onde nem os um lado e nem outros, bem como seus respectivos aliados, não poderiam
atravessar o curso do Iber126. Isso nos permite afirmar que as atenções de Asdrúbal estavam
voltadas para o sul dessa linha demarcatória. Indiferente a qual rio o tratado se referia, se ao
atual Ebro, ou ao Jucár, ou mesmo ao Segura127, é conveniente analisar quais os atrativos
teriam essas regiões. Para isso, iremos analisar mais um passagem em que Políbio comenta
sobre Asdrúbal:
“(...) na Ibéria, onde Asdrúbal, após governar esse território durante oito anos, foi
assassinado à noite por um certo celta em decorrência de ofensas de caráter
privado. Asdrúbal havia aumentado não um pouco, mas grandemente, o poderia dos
cartagineses, não mediante operações militares mas graças a uma convivência
amistosa com os chefes locais128.
Confiando no que afirma Hervás e Wagner, o assassinato de Asdrúbal Barca ocorreu
cinco anos após o estabelecimento do acordo entre o líder cartaginês e o Senado Romano, isto
é, 221 a.C. Nesses oito anos em que esteve a frente do comando cartaginês na Ibéria, o
domínio de Cartago foi dilatado grandemente. Porém, o modo como tal ampliação foi
conseguida é radicalmente diferente dos métodos empregados por Amílcar.
Deixando de lado o emprego de ações militares, Asdrúbal Barca dedica-se a
conquistar a Ibéria através da diplomacia. Roldán Hervas e Carlos Wagner afirmam que a
proeminência diplomática de Asdrúbal em aproximar-se dos chefes locais, tanto as
aristocracias das antigas colônias fenícias quanto dos chefes de tribos da península ibérica,
125
Braudel afirma que as cunhagens de moedas em Cartagena (isto é, Nova Cartago), entregavam até 300 libras
(aproximadamente 136 kg) de prata por dia, e as belas peças com representações de animais, como cavalos e
elefantes, testemunham essa prosperidade. BRAUDEL, Fernand. Memórias do Mediterrâneo – Pré História e
Antiguidade. Rio de Janeiro: Terramar/Multinova, 2001. p. 306 – 307.
126
Não é nossa intenção nos estendermos sobre a localização do curso desse rio. Mas, para efeitos de
esclarecimento há um intenso debate nas pesquisas atuais sobre onde estaria localizado tal rio. Enquanto diversos
pesquisadores defendem que o Iber de Políbio seria o Ebro atual (como Braudel, Herm, Hervás, Levecque e
Wagner), outros afirmam que esse rio deveria situar-se ainda mais ao sul, especialmente ao sul de Sagunto, como
o Jucár (Barceló).
127
BARCELÓ, op. cit., p. 116
128
POLÍBIO, Livro II, 36.
69
garantiu-lhe uma prestigiada posição. Desposando uma princesa local, conquistou o apoio das
aristocracias autóctones, sendo aclamado como chefe supremo de todos os iberos. Conforme
descreve Alvar129, na região onde foi fundada a cidade de Nova Cartago, estavam localizadas
diversas tribos autóctones, comumente designados nas fontes da Antiguidade como ibéricas.
Apesar de constituírem uma única cultura, estavam dispersos em diversos grupos (ou tribos),
alguns mais e outros menos influenciados pela cultura fenícia.
Estes grupos seriam regidos por uma aristocracia com base na posse da terra. Quando
havia necessidade, as diversas aristocracias dirigentes das diversas tribos uniam-se em
conselhos de guerreiros e em assembléias. E acima dessas organizações, era escolhido um
chefe militar, referenciado muitas vezes como monarca130. Ao que tudo indica, Asdrúbal
ocupou o cargo de chefe de uma união de tribos ibéricas. Infelizmente, não sabemos quais, ou
quantas, tribos ibéricas faziam parte dessa união. Mas, dada a preocupação romana com o
poder de Asdrúbal, podemos supor que fossem tribos muito importantes, ou populosas.
Mesmo sendo um líder diplomático e pragmático, o que na acepção de Políbio
significa que Asdrúbal agiu de forma prática, suas ações despertaram tensões dentro da rede
política peninsular. Devemos relativizar o comentário de Políbio, de que em Nova Cartago
havia palácios reais, pois Asdrúbal aspirava ao poder monárquico. Esse comentário parece
derivado de uma corrente de idéias criticada pelo próprio Políbio. Segundo o historiador
grego, Fábio Pictor, um historiador pró-romano foi o primeiro a comentar sobre os membros
da família Barca terem como meta pessoal estabelecer uma monarquia própria as custas de
Cartago131, e que por isso havia desavença entre o governo cartaginês e os chefes Barcas.
Políbio contra argumenta dizendo que caso o governo desaprova-se as ações de Asdrúbal e
Aníbal, o Senado Cartaginês não hesitaria em entregar o filho de Amílcar Barca, quando
Roma assim exigiu.
Mesmo com as tensões e a redução das ações militares, Asdrúbal deixou uma
organizada administração cartaginesa na Ibéria. Sua nova capital era uma sólida fortaleza,
criada para intensificar os contatos entre o governo cartaginês e as aristocracias urbanas e
tribais da península ibérica sob a sua hegemonia política. Com a morte de seu idealizador,
Nova Cartago serviria aos projetos de seu sucessor.
129
ALVAR, op.cit.; p, 51-58.
ALVAR, op. cit. p. 57
131
POLÍBIO, Livro III, 8.
130
70
3.5 – Aníbal Barca: um general com traços helenísticos?
Com a morte de Asdrúbal Barca, o posto de comandante da Ibéria estava novamente
aberto. O exército, novamente a instituição cartaginesa mais interessada e presente nos
projetos, e na política, peninsular, elege um novo líder.
Por ocasião da morte de Asdrúbal, a quem haviam confiado o governo da Ibéria
depois da morte de Amílcar, os cartagineses inicialmente aguardaram um
pronunciamento das tropas, e quando lhes chegaram noticias de seu exército a
respeito da escolha unânime de Aníbal pelos soldados para comandá-los, eles
convocaram prontamente um assembléia-geral do povo, que ratificou a uma voz a
escolha dos soldados132.
Os cartagineses escolheram Aníbal para ser o comandante-em-chefe na Ibéria,
apesar de sua pouca idade, tendo em vista a argúcia e coragem demonstradas por
ele em suas ações133.
Novamente, em um caso de exceção, o governo de Cartago aceita a aclamação das
tropas na Ibéria. Nesses trechos, temos três aspectos que devemos ressaltar: a aclamação
unânime por parte das tropas; a decisão de chamar uma assembléia geral para ratificar; e a
questão da pouca idade de Aníbal quando de sua aclamação.
Não podemos considerar a mais pura realidade a afirmação de Políbio sobre a
unanimidade de aprovação à indicação de Aníbal deve ser relativizá-la. O assassinato de
Asdrúbal Barca indica que havia tensões, e que os envolvidos nessas tensões eram de um
círculo de pessoas muito próximas aos Barca. Talvez o celta que atacou Asdrúbal integra-se o
grupo das aristocracias locais submetidas aos cartagineses, ou ainda, o que seria muito mais
provável, fosse algum chefe de tropas mercenárias irritado com a política diplomática
desenvolvida pelo líder Barca. Em todo caso, são desentendimentos que muito provavelmente
interferiam com os diversos grupos militares, unificados pelo comando cartaginês.
Dessa forma, podemos entender a aclamação ao comando militar como a aclamação
de uma maioria das tropas, ou ainda, como o resultado de negociações políticas na própria
Ibéria. Mas, além das negociações que mantiveram um membro da família Barca no poder na
península, podemos perceber que ocorreu o mesmo em Cartago. Sabemos que a Assembléia
Popular era convocada para eleger comandantes militares, ou quando houvesse divergências
graves entre Senado, Conselho dos Cento e Quatro e sufetes. Se a eleição de Asdrúbal foi
reconhecida pelo Senado Cartaginês (Políbio não faz menção à Assembléia Popular), a de
Aníbal necessitou ser ratificada por todos os cidadãos.
132
133
POLÍBIO, Livro III, 13.
POLÍBIO, Livro II, 36
71
Qual seria o motivo da divergência em Cartago sobre a aclamação de Aníbal? Políbio
nos fornece uma possível resposta: a pouca idade de Aníbal. Segundo Políbio, Aníbal tinha
entre nove e dez anos quando acompanhou seu pai à Ibéria. O governo de Amílcar durou doze
anos, enquanto que o de Asdrúbal durou mais oito anos. Ou seja, quando da aclamação ao
cargo de general cartaginês na Ibéria, Aníbal tinha aproximadamente entre 29, 30 anos.
Não possuímos muitas informações sobre quais seriam as exigências para que algum
aristocrata cartaginês se candidatasse à magistratura militar. Mas, dado que havia preocupação
sobre sua juventude, podemos supor duas alternativas: que o candidato a chefe militar deveria
ter mais de 30 anos; ou então, a pouca idade foi uma alegação de uma facção anti-Barca em
Cartago. Quanto à primeira opção, a exigência de ter mais de 30 anos não era anormal no
mundo político helenístico e romano134. Em relação à segunda alternativa, não possuímos
elementos que comprovem essa oposição à Aníbal, pelo contrário, Políbio afirma que o
Senado Cartaginês apoiava as ações de Aníbal Barca.
(...) depois de enfrentar a guerra durante dezessete anos em obediência à decisão de
Aníbal eles [o governo de Cartago] não abandonaram a luta até o momento em que,
perdidas todas as esperanças, viram sua pátria e seus compatriotas expostos a
perigos que lhes ameaçavam a própria existência135.
No trecho acima, Políbio refere-se ao pensamento de Fábio Pictor, de que havia uma
forte desavença entre a família Barca, em especial Amílcar e Aníbal, e as elites cartaginesas.
Nesse ponto, cabe um ultimo esclarecimento sobre a proposta de nosso trabalho.
Desde o início, nosso foco de análise tem sido voltado para como Cartago conseguiu impor-se
na Ibéria logo após recuperar-se de uma ostensiva e desgastante guerra externa e interna. E o
governo de Aníbal Barca apresenta uma dificuldade no sentido de estabelecermos até onde
seu governo foi voltado para a ampliação do domínio cartaginês na península, e a partir de
que momento sua política administrativa tornou-se uma preparação para a campanha itálica.
Políbio deixa claro em sua obra que Aníbal tinha intenção de atacar os romanos
desde muito antes de chegar ao poder. E que essa intenção já estava latente desde muito antes
do próprio Aníbal, talvez sendo um projeto pessoal da família Barca, começando pelo
revanchismo de seu pai, Amílcar:
Mas, voltando à guerra entre Roma e Cartago (...), devemos ver como sua causa
primeira a indignação de Amílcar, cognominado Barca, o verdadeiro pai de Aníbal,
Com o espírito em nada abatido pela guerra da Sicilia (...), ele permaneceu
134
Inclusive, essa era a idade mínima necessária para que um cidadão romano pudesse ocupar a magistratura de
Questor, o primeiro passo para a realização do chamado Cursus Honorum, isto é, o percurso seqüencial das
magistraturas políticas, indo do Questor (procurador/coletor de impostos) até a magistratura de Cônsul (com 43
anos), o cargo máximo da República Romana.
135
POLÍBIO, Livro III, 8.
72
decidido e ficou na expectativa de uma oportunidade para atacar. Se não tivesse
ocorrido a sublevação dos mercenários, tanto quanto estava em seu poder Amílcar
teria criado sem demora outros meios e outros recursos para reiniciar a luta, mas
foi impedido de fazê-lo pelos distúrbios intestinos que lhe absorveram toda a
atenção.136
(...), logo após haver finalmente esmagado a sublevação dos mercenários e
garantido a segurança de sua pátria concentrou imediatamente todos os seus
esforços na conquista da Ibéria, com o objetivo de usar os recursos assim obtidos
para empreender a guerra contra Roma.137
Para o historiador grego, caso Amílcar tivesse vivido por mais tempo, as lutas entre
Roma e Cartago teriam sido reiniciadas muito antes. E essa aversão extrema à Roma teria sido
passada por Amílcar à seu filho, antes mesmo de qualquer certeza sobre o sucesso da
expedição cartaginesa na Ibéria:
Desde o momento de sua assunção ao comando as medidas por ele tomadas
evidenciaram sua intenção de entrar em guerra contra os romanos; ele realmente
veio a tomar essa atitude, e o fez em dentro de muito pouco tempo. A partir da
entrega do comando a Aníbal as relações entre cartagineses e os romanos passaram
a caracterizar-se por suspeitas recíprocas e atritos; os primeiros, desejosos de
vingar-se dos reveses sofridos na Sicilia, deram prosseguimento aos seus planos
hostis, enquanto os últimos, percebendo tais planos, demonstraram profunda
desconfiança138.
Na época em que Aníbal, vencido finalmente pelos romanos, tinha deixado sua
pátria e estava vivendo na corte de Antíocos, os romanos, percebendo o plano dos
etólios, mandaram uma embaixada a Antíocos com o objetivo de obter informações
completas acerca das intenções do rei. Os embaixadores, vendo que Antiocos estava
dando atenção aos etólios e se mostrava disposto a entrar em guerra contra Roma,
dispensaram muitas atenções a Aníbal, desejando despertar em Antíocos suspeitas
contra ele; e isso realmente aconteceu. Com o passar do tempo a desconfiança com
relação a Aníbal tornou-se cada vez mais forte; em certa ocasião eles chegaram a
ter uma conversa acerca do distanciamento que vinha crescendo veladamente entre
os dois. Durante a conversa Aníbal defendeu-se apresentando vários argumentos, e
afinal, incapaz de encontrar outros, recorreu ao exposto a seguir. O cartaginês
disse que por ocasião dos preparativos finais para a expedição de seu pai com um
exército contra a Ibéria, ele mesmo, então com nove anos de idade, estava de pé nas
proximidades de um altar, enquanto Amílcar oferecia sacrifícios a Zeus. Quando,
em face dos presságios favoráveis, Amílcar havia espargido libações aos deuses e
cumprido os rituais costumeiros, ele ordenou às outras pessoas presentes no
sacrifício que se afastassem até uma certa distância, e pedindo a Aníbal para
aproximar-se perguntou-lhe afetuosamente se ele desejava acompanhá-lo na
expedição. Aníbal aceitou entusiasmado, e agindo à maneira das crianças pôs-se a
insistir com seu pai para levá-lo; o pai segurou-lhe a mão, conduzindo-o até o altar,
e mandou-o estender sua mão sobre a vítima sacrificada no mesmo e jurar que
jamais seria amigo dos romanos. Em seguida Aníbal disse a Antiocos, agora
conhecedor desse fato, que enquanto suas intenções fossem hostis aos romanos
contasse confiantemente com ele e acreditasse que teria nele um aliado sincero, mas
a partir do momento em que passasse a colaborar com os mesmos não lhe seria
necessário sequer esperar por acusações; deveria desconfiar dele e tomar
136
POLÍBIO, Livro III, 9
POLÍBIO, Livro III, 10
138
POLIBIO, Livro II, 36.
137
73
precauções em relação a ele, pois não se absteria de fazer coisa alguma contra os
romanos139.
Não iremos nos deter desse tópico, por uma opção simples. Caso aceitemos que os
chefes militares da família Barca possuíam como projeto pessoal a intencionalidade de
reiniciar as lutas entre Cartago e Roma, estaremos aceitando integralmente a hipótese de
Políbio, que ao fim, legitima a atuação romana posterior, isto é, a destruição de Cartago.
Iremos centrar nossas atenções para as campanhas militares de Aníbal antes do
incidente da conquista de Sagunto, considerado por historiadores antigos (Políbio e Tito
Lívio) e modernos (Wagner, Levecque, Braudel, Garrafoni) como estopim para a Guerra
Anibálica, ou Segunda Guerra Púnica.
Acerca da administração de Aníbal Barca, Políbio comenta especialmente o caráter
bélico de seu governo. Talvez um retorno à política de seu pai, que fazia do exército uma
importante instituição política.
Assumindo o comando Aníbal pôs-se em ação imediatamente com o objetivo de
subjugar a tribo dos Olcades, e chegando diante de Altaia, sua cidade mais
poderosa, acampou ali com seu exército e logo capturou-a mediante vigorosos e
terrificantes ataques sucessivos; em face desse sucesso o resto da tribo foi tomado
de pânico e submeteu-se aos cartagineses. Depois de impor um tributo às cidades e
de obter assim recursos consideráveis em dinheiro, Aníbal retirou se para o seu
aquartelamento de inverno em Nova Cartago. Graças à generosidade demonstrada
por ele na ocasião para com as tropas sob seu comando, fazendo-lhes pagamentos e
prometendo-lhes mais, Aníbal lhes inspirou um forte devotamento e grandes
esperanças140
Ao contrário dos demais modelos de exércitos mediterrânicos, como os helenísticos e
o romano, o Exército cartaginês era composto por diversas tropas mercenárias. Essas tropas
não eram comandadas diretamente pelo comandante cartaginês. Pelo contrário, antes dos
combates o general cartaginês se reunia com os chefes das tropas mercenárias e, através de
interpretes, repassava-lhes a estratégia. Esse modo de operação bélica exigia uma relação
muito forte de confiança entre o representante de Cartago e os representantes das tropas.
Muito provavelmente, essa confiança era adquirida através de trocas de favores, como
distribuição dos espólios de guerra, ou nomeação para posições maiores dentro da hierarquia
do exército. Ou mesmo, com a negociação de posições políticas, como administrador de uma
região ou cidade.
Infelizmente, não possuímos um conhecimento aprofundado sobre como era de fato a
estrutura administrativa da Península Ibérica sob os cartagineses. Não sabemos se a
magistratura de Comandante na Ibéria também era responsável por organizar a estrutura
139
140
POLÍBIO, Livro III, 11.
POLÍBIO, Livro III, 13.
74
administrativa de exploração do território. Da mesma forma, não sabemos se Cartago
interferia diretamente nessa administração, enviando um corpo de responsáveis em garantir
uma exploração territorial. Pelo que podemos retirar de Políbio, era o próprio líder militar
cartaginês quem organizava o território, posto que em momento algum é mencionada a
existência de funcionários enviados de Cartago para a administração da Ibéria. Possivelmente,
a nomeação para os cargos administrativos fosse também uma ferramenta para garantir a
fidelidade militar dos chefes mercenários.
Com a redução das campanhas ocorrida na administração de Asdrúbal, o Exército, e
por conseqüência os chefes de tropas mercenárias, além das próprias tropas, perderam
destaque dentro da estrutura política administrativa. E, antes de ser uma magistratura
administrativa, o posto de general tem uma função primordialmente militar, seu poder deriva
do sucesso nas campanhas bélicas. Ao focar-se na organização dos territórios ibéricos,
Asdrúbal pode ter perdido o apoio militar que o aclamou como líder. E, pode ainda ter
interferido nas possíveis relações políticas pré-existentes na península; desagradando sua
própria base de poder, e despertando a inimizade de algumas tribos peninsulares.
Nesse sentido, devemos procurar compreender o inicio da administração de Aníbal.
Com a subida desse novo líder em 221 a.C., a política diplomática dá lugar a uma política de
ações bélicas. Possivelmente para atender a uma demanda dos grupos que o aclamaram como
general de Cartago na Ibéria. Sua primeira campanha foi dirigida contra os Olcades, uma tribo
celtibérica. Grosso modo, estariam localizados ao norte dos Oretanos e ao leste dos
Carpetanos141, entre os cursos superiores do Rio Guadiana e o Rio Tajo 142, em território da
atual Província de Cuenca (Espanha) (Mapa 3).
Quais os motivos que levaram Aníbal a entrar em luta contra essa tribo, e as tribos
subseqüentes ainda é motivo para especulações na atualidade. A opinião dos pesquisadores
modernos varia conforme concordem ou não com a idéia de que Aníbal queria iniciar a guerra
contra Roma desde que chegou ao poder. Carlos Wagner e Eduardo Sánchez Moreno não
descartam nenhuma dessas interpretações, e apresentam ambas como hipóteses válidas.
Seguindo a corrente que defende a postura anti-romana, as campanhas de Aníbal ao
interior da península (especialmente zonas de grande potencial mineral, agrícola e humano)
eram preparativos para a campanha itálica. Ao atacar essas regiões Aníbal estava obtendo e
141
MARCO, Francisco & SOPEÑA, Gabriel. Gênesis y Evolución de los Pueblos. In: ALVAR, Jaime (org.),
Entre Fenícios y Visigodos – La historia antigua de la Peninsula Ibérica. Madrid, La Esfera de los Libros, p.
63 – 106, 2008; p. 71.
142
HERVÁS, José Manuel Roldán. Historia de Roma I – La República Romana, 4ª Ed. Salamanca: Ediciones
Universidad de Salamanca, 1995; p. 226.
75
estocando mantimentos143 em alguma base avançada, na desembocadura do atual Rio Ebro.
Caso optemos pela teoria de que a guerra entre Roma e Cartago foi iniciada de forma
acidental, isto é, que não fora planejada anteriormente pela família Barca, a motivação para
essas campanhas foram uma resposta à possíveis ataques dessas tribos celtiberas contra as
tribos aliadas de Cartago, ou ainda, poderiam ser simples incursões de rapinagem para
reanimar o exército144Em todo caso, qualquer que fosse a intenção de Aníbal com essas
campanhas, nosso foco é analisar como elas transcorreram, e não suas possíveis causas.
MAPA. 3 – Mapa da Península Ibérica durante o comando de Aníbal, (221 – 220 a.C.). Em azul, as regiões sob
hegemonia cartaginesa, considerando o Ibér ao sul de Sagunto. Em verde considerando o Íber como o atual Ebro.
Em verde escuro a região dominada pelos Olcades; em Lilás a bacia do Douro dominada pelos Vacaios; e em
amarelo a região entre o Tajo e o Guadiana sob a tribo dos Carpésios. A seta preta assinala a campanha de
Aníbal contra os Olcades em 221 a.C.; a seta azul marca o possivel trajeto das tropas de Aníbal quando da
incursão contra os Vacaios, em 220 a.C.
143
WAGNER, op. cit., p. 272; MORENO, E. S. Releyendo la campaña de Aníbal en el Duero (220 a.C.): La
apertura de la meseta occidental a los intereses de las potencias mediterráneas. Gerión, v. 18, p. 109 – 134,
2000; p. 115.
144
Hipótese defendida por HERVÁS, op. cit., p. 226
76
Retomando a análise sobre o desenvolvimento da campanha militar de Aníbal Barca
contra os Olcades, temos no trecho acima elencado diversos aspectos interessantes para
analisarmos. Ao nível estratégico, há uma alteração no eixo de atenção de Cartago na Ibéria.
As ações de Amílcar e Asdrúbal voltavam-se muito mais para o litoral peninsular, região de
colônias fenícias tão (ou mais) antigas que Cartago; e que desde muitos séculos antes,
pareciam estar em sintonia cultural com a cidade de Gades, no extremo-sul da península. Com
Aníbal, esse eixo muda: temos a primeira menção a atividade bélica por parte de Cartago indo
ao norte do rio Guadiana, para o interior da península ibérica.
Podemos supor que essa foi a primeira incursão cartaginesa ao interior da península
devido a brevidade da campanha, iniciada em 221 a.C. e encerrada no mesmo ano, com o
retorno das tropas à Cartago Nova para divisão do butim e pagamentos, como afirma Políbio.
A brevidade também pode ser fruto do imediatismo da preparação da incursão, montada em
seqüência à subida do general ao poder.
Ao nível tático, temos alguns detalhes cuja análise nos permitirá descortinar um
pouco sobre os conhecimentos militares de Aníbal antes dele se tornar o grande mestre das
artes militares, e o terror dos romanos. Políbio comenta que a tática utilizada para tomar de
assalto a cidade de Altaia145, capital dos Olcades, foram ataques sucessivos de grande
violência. Duas coisas chamam a atenção: o objetivo de tomar diretamente a capital da tribo; e
a conquista através de múltiplos ataques sucessivos.
Para que ambas as coisas resultassem em sucesso, Aníbal deveria estar no comando
de um exército impressionante. Ou com grandes expectativas de vitória, posto que marchou
rumo à capital inimiga em pleno território rival, e acampou próximo ao alvo. Ou seja, sem
impor um cerco à Altaia. Ignoramos se os Olcades atacaram o acampamento cartaginês, da
mesma forma como não temos meios de saber qual foi a razão para que Aníbal não coloca-se
a cidade em cerco. Mas podemos imaginar que a cidade impôs uma grande resistência,
explicando o vigor e a necessidade de mais do que um ataque; e da mesma forma, os ataques
devem ter custado uma quantidade significativa de tropas, tendo em vista que as investidas
eram terríveis e o tratamento dado aos vencidos colocou toda a tribo em pânico.
O resultado final, a submissão de todas as demais cidades da tribo; um valioso butim;
e um rentável tributo em dinheiro; conseguiram aquietar as possíveis tensões políticas da
145
Sobre essa cidade, há uma discussão. Barceló defende que sua localização é desconhecida; Franscisco Marco
e Gabriel Sopeña levantam a hipótese de que estaria localizada onde hoje temos o oppidum de Alcochel de la
Estrella; e Carlos Wagner sugere que seja próxima a atual Alcoy.
77
administração anterior, herdadas por Aníbal. Podemos concluir isso a partir do comentário de
Políbio, de que devido à generosidade demonstrada pelo general com suas tropas, estas
dedicaram-lhe grande devoção e esperanças. Devemos perceber a sutileza por trás dessa
generosidade e devoção; em realidade, devemos entender que Aníbal comprou o apoio das
tropas através do butim, e da promessa de conseguir mais, caso eles permanecessem com ele.
As grandes esperanças das tropas foram respondidas rapidamente. As tropas de
Aníbal não tiveram descanso, bem como sua administração, e os encarregados pelos contatos
com o mundo mediterrânico. Sua próxima campanha foi uma incursão ainda mais profunda
dentro da península ibérica:
No verão subseqüente ele efetuou um novo ataque, agora aos vacaios, assaltando e
capturando Hermândica na primeira investida, mas teve de sitiar Arbucala, uma
cidade grande e com uma população valente e numerosa, e somente pode tomá-la
de assalto após muitas dificuldades146.
Os Vacaios ocupavam uma região a oeste da Celtiberia. Seus limites podem ser
definidos, ao norte pela confluência do Pisuerga e o Arlanza, fechando ao sul com os
contrafortes da Serra do Guadarrama; ao oeste o rio Esla seria sua fronteira, e a leste, a cidade
de Roa seria a mais oriental147. Era uma tribo com várias cidades, e destacam-se explorando
um fértil solo, através da plantação de cereais e da criação de bois e cabras 148. Ao contrário
dos vários povos da península, careciam de metais, tanto de uso cotidiano quanto metais
preciosos, que eram adquiridos através do comércio com povos do noroeste, como asturios,
arévacos e vetões149.
Não sabemos se as cidades vacaias atacadas eram as capitais, mas podemos supor
que tenham sido as mais desenvolvidas, tendo em base que Aníbal provavelmente empregou
uma tática similar à empregada na campanha contra os olcades, isto é, atacando as principais
cidades para submeter toda a tribo. Novamente, iremos nos centrar, primeiramente, nos
aspectos técnicos dessas conquistas.
A cidade de Hermândica (atual Salamanca150) caiu na primeira investida das tropas,
enquanto Arbucala (Toro151, ou El Viso de Bamba152) precisou ser sitiada. Ambas as cidades
pertenciam a mesma tribo, e estavam sujeitas as mesmas interferências. Então, é possível
146
POLÍBIO, Livro III, 14.
MARCO E SOPEÑA, p. 82.
148
MARCO E SOPEÑA, p. 83
149
MARCO E SOPEÑA, p. 83
150
BARCELÓ, p. 120
151
BARCELÓ, P. 120
152
MORENO, p. 116
147
78
supormos que ambas as cidades teriam um potencial de resistência comum. Então, quais
motivos podem ter levado uma das cidades a cair num primeiro ataque, enquanto a segunda
conseguiu opor resistência? A hipótese mais provável seria que o ataque das tropas
cartaginesas foi fulminante, ou repentino. Considerando que o deslocamento da tropa
dificilmente passaria despercebido, e que Aníbal não pretendia desgastar as tropas em
múltiplos e sucessivos ataques, como ocorreu contra Altaia, seu ataque inicial contra
Hermândica obteve a vitória.
Porém, ao deslocar-se contra Arbucala, uma cidade maior que Hermândica e com
uma população mais belicosa, esta conseguiu impor-se contra o ímpeto cartaginês. Foi
necessário sitiar a cidade para obter a rendição, conquistada após muitas dificuldades. Não
sabemos como foi desenvolvida essa manobra de sítio. Provavelmente pela época do ano em
que o cerco ocorreu, era época das colheitas de cereais na região 153, Arbucala contaria com
boas reservas alimentícias. Ou seja, a cidade não caiu sob o comando cartaginês devido à
fome.
Aníbal poderia ter empregado máquinas de assédio? Não temos nada de concreto que
nos possa embasar, e nem meios de supor isso. O mais próximo que temos sobre a
composição das forças de incursão cartaginesas é o comentário de Políbio sobre o retorno das
tropas da bacia do Douro até Cartago Nova:
Em seguida, por ocasião de seu retorno, Aníbal viu-se numa situação muito
perigosa, pois os carpésios – a tribo mais forte da região – uniram-se para atacá-lo,
apoiados pelas tribos vizinhas, convocadas para isso pelos Olcades remanescentes,
e também pelos homens que haviam escapado de Hermândica. Se os cartagineses
tivessem sido obrigados a enfrentar toda aquela multidão num combate regular,
eles teriam certamente sido derrotados; Aníbal, porém, demonstrou grande
sagacidade e sensatez fazendo meia-volta e recuando de maneira a ficar protegido
pelo rio chamado Tagos, e permaneceu ali para disputar a travessia, beneficiandose da ajuda tanto do próprio rio quanto de seus elefantes (em número de
aproximadamente quarenta); dessa forma, contra a expectativa geral tudo correu
de conformidade com seus cálculos. De fato, quando os bárbaros tentaram forçar a
travessia simultaneamente em vários pontos, a grande maioria deles pereceu ao sair
do rio, pois os elefantes estavam dispostos ao longo dos barrancos e avançaram
sobre eles logo após firmarem os pés em terra. Muitos foram interceptados pela
cavalaria no próprio rio, pois os cavalos podiam firmar-se melhor contra a
corrente, e os cavalarianos estavam a uma altura maior que a dos homens da
infantaria. Finalmente o próprio Aníbal atravessou o rio e atacou os bárbaros,
pondo em fuga mais de cem mil homens.
Nesse extrato, o mais marcante não são os números exagerados dos inimigos, os
“cem mil homens”, mas a presença dos elefantes entre as tropas anibálicas. O uso de elefantes
em guerra deriva da experiência cartaginesa contra Pirro do Épiro. Após as desastrosas
153
BARCELÓ, op. cit., p. 120; MORENO, op. cit., p. 117
79
vitórias na Itália, Pirro transportou suas tropas para a Sicilia, onde Cartago entrou em contato
com essas poderosas unidades bélicas. Podemos supor que esse destacamento de paquidermes
empregado por Aníbal em sua incursão fosse proveniente da capital norte africana. Mas, de
onde Cartago haveria havia contratado ou comprado esses animais?
Conforme aponta Hérnan G. H. Taboada, os elefantes empregados pelos cartagineses
eram de uma espécie menos robusta do que os elefantes africanos e indianos utilizados pelos
Reinos Helenísticos154. Porém, no mesmo artigo, o pesquisador aponta sobre os raros sucessos
obtidos quando os próprios africanos buscavam treinar seus elefantes155. A saída encontrada
para suprir essa lacuna era a contratação de indianos para domesticarem, amestrarem e
treinarem os elefantes para as batalhas. Isso quando não importavam os animais diretamente
de sua origem, a Índia, com condutores e tudo o mais, como a panóplia de guerra própria aos
paquidermes. Quando Políbio trata sobre a campanha romana conduzida pelos romanos contra
os cartagineses na Ibéria, em finais da Guerra Anibálica, o historiador deixa passar um
interessante informação sobre os elefantes:
Os elefantes haviam prestado serviços equivalentes a ambos os lados na batalha;
com efeito, encurralados entre os dois exércitos e molestados pelos projéteis eles
levaram a confusão simultaneamente às fileiras dos romanos e dos iberos (...). Seis
dos elefantes [originalmente eram 10] foram mortos com os respectivos condutores
e os outros quatro foram capturados sozinhos, depois de abrir caminho entre as
fileiras e abandonados pelos seus condutores indianos156.
Mas, retomando a análise da campanha de Aníbal ao interior da Península Ibérica,
analisando as forças que se opuseram às forças cartaginesas, percebemos que mesmo após o
sucesso da campanha realizada no ano anterior, e durante a campanha em finalização,
elementos das tribos vencidas opuseram resistência e emboscaram as tropas de incursão
durante sua retirada. Políbio elenca além dos carpésios, habitantes da chamada Carpetânia
(região da bacia do Tajo, entre o Guadiana e o Guadarrama157), olcades remanescentes e
vacaios que sobreviveram à conquista de Hermândica.
Essa coligação nos aponta que apesar da submissão das tribos, havia um contingente
muito significativo que não havia reconhecido ainda a hegemonia de Cartago, representada na
figura de Aníbal Barca. Especialmente a tribo dos carpésios, tribo combativa que habitava
uma região perigosamente próxima à região do Círculo do estreito, a saber, o litoral extremo
154
TABOADA, H. G. H. Políbio (5. 84.5 S.) y los elefantes de Rafia. Habis, Sevilla, v. 26, p. 113 – 117, 1995;
p. 115.
155
TABOADA, op. cit. p. 117.
156
POLÍBIO, Livro XI, 1.
157
MARCO E SOPEÑA, p. 71
80
sul da península; o núcleo original da expansão cartaginesa, conquistado pro Amílcar Barca
20 anos antes.
Não sabemos se essa tribo havia entrado em contato com as forças cartaginesas antes
desse episódio, seja sob o governo ibérico sob o comando de Amílcar, seja sob o comando de
Asdrúbal. Igualmente não podemos lançar qualquer hipótese sobre os motivos que os levaram
a atacar os cartagineses quando de sua passagem por seu território, além de prestarem auxilio
aos olcades e vacaios derrotados. Em todo caso, Políbio afirma que:
Após essa derrota nenhum dos povos daquele lado do Iber se aventurou com
facilidade a enfrentar os cartagineses, à exceção dos zacântios. Aníbal tentou tanto
quanto pôde manter-se afastado da cidade destes últimos, porquanto não desejava
dar aos romanos qualquer pretexto válido para a guerra antes de ele mesmo haver
estabelecido firmemente o seu domínio sobre todo o território restante, seguindo
quanto a isso as sugestões e advertências de seu pai Amílcar”158
A partir desse ponto, o relato de Políbio assume um novo foco. Suas atenções são
dedicadas a traçar os caminhos que levaram até o incidente com Sagunto, e a posterior guerra
com Roma. Iremos elencar somente uma última passagem, que poderá nos auxiliar a entender
qual era a percepção dos cartagineses sobre as tribos ibéricas sobre sua hegemonia, ou, ao
menos, a percepção grega sobre qual seria a percepção cartaginesa sobre sua hegemonia na
Ibéria.
(...) Mas Aníbal mandou pedir instruções [para iniciar ações militares] a Cartago,
pois os zacântios, confiantes em sua aliança com os romanos, estavam hostilizando
alguns dos povos aliados aos cartagineses. 159
Segundo Políbio, as ações de Aníbal no interior da península começaram a inquietar
a cidade de Zacânton, isto é, Sagunto. Esta se aliou aos romanos, e confiantes nessa aliança,
passaram a hostilizar tribos aliadas à Cartago. Essa passagem pode ser interpretada de
múltiplas formas; pode ser considerada como um recurso retórico para justificar a versão
romana de que Aníbal era falso e queria a guerra a todo custo160. Ou então, como uma
oportunidade de lançarmos uma ultima hipótese sobre o sucesso da expansão cartaginesa na
Ibéria: as influências helenísticas.
Nessa passagem, vemos uma alteração no modo como os cartagineses interpretavam
sua atuação na península. Alguns dos povos submetidos deixaram de ser tratados como
subjugados e passaram a ser entendidos como aliados que estavam sendo atacados. Esse
recurso retórico, de transformar Cartago numa espécie de Hegemon dos povos peninsulares e,
158
POLÍBIO, Livro III, 14
POLÍBIO, Livro III, 15.
160
Nessa passagem, Políbio afirma que “inteiramente dominado pela irreflexão e pelo ódio, Aníbal não alegou
as verdadeiras razões verdadeiras” (Políbio, Livro III, 15). Essas razões verdadeiras seriam o seu desejo por
uma nova guerra entre as duas potências mediterrânicas.
159
81
que por esse motivo, deveria defendê-los dos zacântios, somente possuiria sentido num
universo que compartilhasse dos conceitos próprios do universo político helenístico do
período. Ou seja, podemos inferir que Aníbal, e as elites de Cartago, não estavam estanques
ao mundo cultural helenístico161, e compartilhavam de alguns traços culturais162 que iam além
da esfera material. Estão na esfera da ideologia de Poder.
Desde os confrontos contra Pirro do Épiro, antes da Guerra da Sicilia travada contra
Roma, Cartago convivia diretamente com o Mundo Helenístico. No conflito contra a cidade
do Lácio, Cartago recorreu a grandes personagens desse mundo para desenvolver sua cultura
militar. E, nos vinte anos de atividades na Ibéria, desenvolveu uma hegemonia política de
forma muito próxima ao tipo de hegemonia desenvolvida por Alexandre, o Grande nos
territórios distantes do Indo; onde as aristocracias locais eram integradas, mantendo o poder
em troca de sua liberdade de ação política e militar.
Com o comando de Aníbal, Cartago vivenciou o auge de seu poderio. A antiga
colônia fenícia havia perdido sua primazia no Mediterrâneo Central, mas sob a conduta dos
Barcas, seus domínios abarcavam uma região ainda mais ampla do que antes. Na Ibéria, a
hegemonia de Cartago se estendia desde a bacia do Douro, ao norte, até a bacia do
Guadalquivir, ao sul; e desde o curso do rio Guadiana a oeste, até o litoral mediterrânico da
Península Ibérica (talvez até o atual Ebro, talvez somente até o Rio Júcar) ao leste.
Amílcar, Asdrubal e Aníbal Barca reergueram uma cidade, transformando o grande
Mediterrâneo em um palco pequeno demais para a atuação de dois colossos político, o do
poderio romano e do novo poderio cartaginês.
161
TRONCOSO, Victor Alonso. “La Paidéia del príncipe y la ideologia helenística de la realeza”. Gérion
Anejos, Madrid, IX, p. 185-204, 2005.
162
Sobre os elementos culturais helenístico presentes em Cartago, como a existência de um templo grego em
pleno centro urbano, assim como evidencias de uma reurbanização a partir do planejamento urbano helenístico,
cf. SILVA, José Guilherme Rodrigues da. Cartago: Arqueologias e Representações. In: Em Tempo de
História, PPG-HIS/UnB, n. 13, Brasília, 2008, p. 124 – 147.
82
CONSIDERAÇÕES FINAIS.
Ao analisarmos o governo da dinastia Barca na Península Ibérica, percebemos como
foi possível a uma cultura em crise reerguer-se de uma posição de submissão até o posto de
enfrentamento. O renascimento cartaginês começou antes da expansão propriamente dita, na
verdade, nasceu em meio às convulsões da guerra civil entre Governo e Mercenários. A
Guerra Líbica, iniciada quando as tropas mercenárias incitaram a rebelião dos povos líbios
submetidos à Cartago foi uma experiência de choque para a cidade do norte da África, pois
sua própria existência foi seriamente ameaçada.
Nesse momento de crise, o Senado e a população cartaginesa pediram o retorno de
Amílcar Barca, um experiente general que havia negociado o tratado de rendição com Roma.
Infelizmente nossa fonte, a obra Histórias de Políbio de Megalópolis, não menciona como o
general Barca conseguiu obter suas primeiras vitórias. Somente sabemos que suas tropas eram
formadas parte por mercenários revoltosos que eram feitos prisioneiros; e parte por
mercenários atraídos pela generosidade do general, isto é, pelo perdão do crime de traição,
caso as tropas integrassem seu exército. Ao fim, o conflito serviu como um filtro para a
criação de Exército mais disciplinado e obediente; nesse novo exército estavam presentes as
tropas mais experientes e leais à cidade, e seu novo comandante mostrava mais uma vez sua
capacidade estratégica. Contando com o apoio e a estima de uma integrada e organizada força
militar, junto do apoio do governo, Amílcar foi enviado ao sul da Península Ibérica.
Tanto a Península Ibérica quanto o norte da África haviam integrado, séculos antes, a
rede comercial de colônias e entrepostos fenícios. Porém, com a queda da Fenícia sob as
ordens de potências estrangeiras, cada colônia teve que se adaptar de forma autônoma à nova
realidade. Cartago assumiu a primazia sobre a região do Mediterrâneo Central, enquanto que
no Mediterrâneo Extremo-Ocidental, as diversas colônias organizaram-se numa liga
comercial, capitaneada pela cidade de Gades. Esse é o núcleo principal da argumentação dos
pesquisadores que defendem a existência do chamado Círculo do Estreito, o termo pelo qual é
chamada, na ausência de qualquer indicio de auto-referencia, a liga comercial gaditana na
Ibéria e costa atlântica africana, desenvolvida enquanto Cartago lutava contra os gregos e
romanos na Sicilia.
Com a queda da hegemonia econômica cartaginesa no comércio mediterrânico ao
longo dos anos da Guerra da Sicilia, as cidades do Círculo do Estreito começaram a prosperar.
A integração cultural e comercial gaditana, somada ao rico potencial agrário e mineral
peninsular, junto com a disponibilidade de tropas da região (grande parte dos contingentes
83
mercenários empregados por Cartago, e outras potências helenísticas, eram oriundas da
Ibéria) podem ter sido as razões que pontuaram a orientação da expansão cartaginesa para o
exterior do norte da África, e não para o interior líbio ou númida.
Recebendo do Senado Cartaginês o comando sobre tropas selecionadas, Amílcar
avançou para a conquista da Ibéria, em 237 a.C. A historiografia moderna afirma que o ataque
de Cartago foi direcionado contra a cidade de Gades, que no período, era uma consagrada
cidade mercantil, com um templo reconhecido em todo o Mediterrâneo e um excelente porto
comercial. Nessa cidade, o comandante Barca teria instalado sua base logística e diplomática;
e a partir dela, vemos a influência cartaginesa estender-se pelo litoral sul da península,
especialmente pelas cidades que formariam o Círculo do Estreito.
As atividades de Amílcar não foram restritas somente ao litoral da península.
Podemos encontrar moedas cunhadas em Gades, durante o comando desse general também no
Vale do Guadalquivir, no interior. Através da arqueologia, podemos indicar que a região
desde o litoral gaditano até a Serra Morena esteve sob o comando de Cartago por meio de seu
representante, Amílcar. Essa faixa de território sob influência cartaginesa foi conseguida
através de doze anos de atividades militares e diplomáticas. Estabelecendo contatos com as
regiões pesqueiras, mineiras, agrícolas; e fornecedora de mercenários, as bases para a
progressão da expansão foram bem fixadas em solo ibérico, e prenunciavam uma vitoriosa
expansão. Porém, em meio ao processo, Amílcar morreu.
Cartago, distante logística e politicamente da realidade ibérica, acatou a aclamação
das tropas que elegeram como novo comandante o genro de Amílcar, Asdrúbal Barca (229
a.C.). Esse novo comandante alterou o modo de Cartago estender sua influência na península.
Apoiando-nos na descrição de Políbio sobre como Asdrúbal comandou a Ibéria, percebemos
que em seu governo há uma preocupação com a administração da zona de influência
cartaginesa. A cidade de Cartago Nova, fundada com a intenção de ser a nova capital do
governo, abrigando o centro administrativo dentro de uma cidade fortificada, com um porto
aparelhado para atender navios mercantes e a reduzida frota bélica cartaginesa.
Partindo de sua nova capital, Asdrúbal estendeu a influência de Cartago através do
litoral mediterrânico da Ibéria. Ainda há debates sobre quais foram os limites dessa influência,
se até o atual Rio Ebro, ou algum rio mais ao sul. De forma segura, podemos afirmar que o
comandante cartaginês estendeu a faixa de domínio cartaginês do Vale do Guadalquivir até a
região dos rios Júcar e Turia. Se houve um desenvolvimento administrativo de um lado,
ocorreu uma redução nas atividades militares. Com isso, o Exército perdeu importância,
talvez a ponto de serem os incentivadores, ou apoiadores, do assassinato do comandante, em
84
221 a.C. Outros suspeitos desse crime podem ser as antigas aristocracias locais, que
deslocadas de sua posição pelo avanço da hegemonia político-econômica cartaginesa,
ressentiam-se ante a conduta de Asdrúbal.
Como na ocasião anterior, o Exército aclama um novo líder, oriundo da família
Barca e filho do grande comandante que os trouxe até a Ibéria: Aníbal. No mesmo ano, esse
jovem general cuja experiência era contestada em Cartago, organizou uma incursão ao interior
da Ibéria, na direção dos Montes de Toledo. Vitorioso, conseguiu angariar a simpatia e o
apoio das tropas através do butim de guerra e promessas de mais ganhos.
No verão seguinte, cumprindo com sua promessa, Aníbal partiu para uma nova
incursão ao interior. Essa incursão, porém, penetrou ainda mais profundamente no interior
peninsular, em plena Bacia do Douro, para além da Serra do Guadarrama. Vencendo a
resistência das tribos celtiberas dos vacaios, em seu retorno pelo sudoeste da Serra de Gredos,
caiu em uma emboscada organizada pelas tribos recém subjugadas. Nessa batalha,
demonstrou seu talento tático vencendo uma força inimiga numericamente superior.
Os sucessos militares de Aníbal Barca reacenderam não só a confiança militar
cartaginesa dentro do território ibérico. Se a política diplomática de Asdrúbal atraiu adesões
entre as diversas tribos da península; as diversas cidades livres e colônias gregas localizadas
na parte setentrional do litoral mediterrânico ibérico sentiram-se ameaçadas por Aníbal. E
procurando proteção à ameaça de Cartago, trouxeram Roma para dentro das intrincadas
relações políticas ibéricas. Dessa tensão, resultou a campanha itálica de Aníbal, o pontapé
inicial das Guerras Anibálicas, isto é, da Segunda Guerra Púnica (218 – 201 a.C.).
Amílcar, Asdrúbal, e Aníbal. Três personagens que reergueram Cartago. O primeiro,
ao inserir o governo cartaginês no topo das produtivas relações comerciais criadas por Gades.
O segundo, ao ampliar o âmbito das relações peninsulares, integrando a pré-existente rede de
relações políticas do Círculo do Estreito com diversas tribos ibéricas, celtiberas, celtas e de
origem fenícia. E o terceiro, ao confirmar a hegemonia política de Cartago através do
exercício da supremacia militar contra regiões que até o momento, não haviam entrado em
contato com o governo cartaginês sediado em Cartago Nova. Seus esforços inundaram o
governo de Cartago com prata. Foi com esse metal precioso que Cartago pôde saldar suas
dívidas, reerguer sua economia e financiar as tropas tanto na Ibéria quanto no norte da África.
E esse mesmo metal reacendeu as ligações entre os há muito tempo separados
mundos mediterrânicos do Ocidente e Oriente. Junto dos indianos condutores de Elefantes de
Guerra, uma parcela da cultura Helenística era transferida para a Ibéria. Dessa forma,
devemos nos desfazer da falsa impressão de que Cartago, e a Ibéria, eram regiões estanques as
85
influências helenísticas. Alexandre, o Grande e seus sucessores estenderam o mundo
helenístico até os confins do Oriente; e os Barcas sob o comando de Cartago fizeram o mesmo
nos confins do Ocidente, até as margens do Mar-Oceano.
Como comentário final, devemos ressaltar o caráter inicial dessa pesquisa. Muitas
das questões levantadas em seu começo não puderam ser respondidas de forma embasada. E
muitas das respostas propostas para entendermos o modo como ocorreu a expansão de
Cartago na Ibéria são especulações baseadas nas poucas informações disponíveis sobre esse
recorte espaço-temporal. Muito provavelmente, pesquisas futuras, mais aprofundadas e
abarcando um âmbito maior de fontes e dados críticos possam aprimorá-las, corrigi-las, ou
mesmo desconstruí-las para recriar hipóteses melhores e mais plausíveis. Entretanto,
queremos deixar aqui nossa contribuição, uma pequena vela para iluminar uma grande “Zona
Obscura” da História Antiga.
86
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92
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MARCO, J. J. S. La Historia Militar del Levante español en la Edad Antigua. Militaria, nº
11, Madrid, p. 17 – 27, 1998
94
GLOSSÁRIO.
Andaluzia – Região do sul da Península Ibérica. Essa denominação não é da Antiguidade,
surgiu durante a ocupação muçulmana, que denominava a região como Al – Andalus. Nesse
trabalho, utilizamos esse termo para a região por descrever melhor os limites geográficos
referidos. Durante a Antiguidade, especialmente sob o governo romano, a região da Ibéria na
qual concentramos nossos estudos, passou a ser dividida em diversas províncias e regiões,
destacadamente Baetica e Tarraconensis.
Ânfora – Recipiente de cerâmica, usado na Antiguidade para acondicionar, conservar,
guardar, e transportar alimentos e bebidas. Poderiam ter diversas formas e tamanhos, indo
desde pequenas ânforas de mesa, do tamanho nossas atuais garrafas de vidro ou plástico, até
imensas ânforas, capazes de guardar dezenas de litros de vinho ou quilos de trigo. Sua forma
básica é uma estrutura esférica, cuja boca pode ser tanto uma abertura simples quanto uma
estrutura cilindro-cônica que vai afunilando do bojo até o gargalo. Alguns modelos possuíam
alças laterais, ou seu bocal possuía uma espécie de bico para despejar líquido; outros modelos
apresentavam uma saliência no fundo, para facilitar a manobra de incliná-la.
Cartago – colônia fenícia fundada no norte da África, próxima ao Monte Byrsa. Sua
fundação é cercada de lendas, sendo a mais reconhecida a de que Dido, uma importante
princesa de Tiro, opunha-se a regência de poder de seu marido ou primo Pigmaleão. Apoiada
por um grupo de aristocratas contrários a Pigmaleão, essa princesa tomou posse dos tesouros
da cidade e navegou com seu séquito até um local distante e seguro. Nesse local, fundou a
cidade de Cartago (meados do século VIII a.C.). Com a queda de Tiro no século VI a.C.,
assumiu o controle sobre as demais colônias fenícias do Mediterrâneo Central. Foi destruída
em 146 a.C., pelos romanos.
Colônia – Na Antiguidade, uma Colônia era um núcleo populacional estabelecido como
forma de reduzir a pressão populacional sobre uma cidade; ou para ocupar, manter e cuidar de
um território estratégico. Normalmente seu núcleo de habitantes eram formados por um corpo
de cidadãos de uma única cidade, contando com acresimos de escravos e dependentes de
diversas origens. Desde o séc. X a.C., diversos povos criaram colônias através do
mediterrâneo. Os povos mais destacados foram os fenícios, criando colônias em diversos
pontos para apoio às suas rotas comerciais; e os gregos, cujas colônias populacionais eram
criadas para aliviar a pressão na cidade-natal, ou para garantir a posse de terras férteis ou
privilegiados portos marítimos. As colônias poderiam, ou não, adotar as mesmas formas de
governo de suas cidades-natais. Igualmente, nem todas as colônias mantinham contato, ou
estavam sob as ordens do governo da cidade natal.
Cultura – Conjunto de elementos que são adquiridos pelo homem como membro de uma
sociedade e que o permitem diferenciar a sociedade a qual pertence de outras sociedades
humanas. Esses elementos são o Conhecimento dominado pelo grupo; suas Crenças, sua Arte,
sua Moral, suas Leis, seus Costumes e todos os outros hábitos que o permitam a reconhecerse dentro de um determinado grupo humano, e ao mesmo tempo diferente de outros grupos.
95
Cultura Material – Conjunto de elementos materiais, como utensílios, tecidos, armas,
ferramentas, moedas, ruínas, pinturas, estelas, entre outros; que formem, permitam formar, ou
formaram, o ambiente cultural de uma sociedade. O modo de fabricação, o padrão, o estilo, a
forma e o uso de um objeto são determinações culturais. Através desses elementos, podemos
ter acesso a alguns aspectos da vida cultural de povos desaparecidos há muitos séculos.
Porém, devemos ter claros que esses elementos são muito mais vestígios do que evidências de
uma cultura. Devemos sempre analisá-las junto com as informações fornecidas pelas fontes
literárias, que as mencionam, explicam ou comentam sobre seus usos e funções dentro de uma
cultura. Ao tomarmos um vestígio material por si mesmo, podemos interpretar essa fonte de
forma equivocada, ou fazermos suposições acerca dela que não condizem com a possível
realidade histórica
Estratégia – Arte de preparar e aplicar o poder para conquistar e preservar objetivos,
superando todo e qualquer obstáculo. Seria a arte de planejar os deslocamentos, manobras e
antecipar possíveis contratempos que venham a existir ao longo da campanha militar. Difere
da Tática.
Estratego (Strategoi) – Comandante Supremo nos exércitos helenísticos. Sua elevada função
requeria não só elevada experiência militar, mas uma grande aptidão política, pois era ele
quem deveria organizar e preparar o exército; assim como atuava como Diplomata entre as
Ligas Gregas durante o séc. II a.C.
Fenícia – Região localizada no atual Líbano, antiga região de Canaã. Era composta, na
Antiguidade, por diversas póleis, politicamente autônomas, mas que partilhavam de uma
mesma cultura de fundo cananeu. Suas principais cidades eram Biblos, Sídon e Tiro. Era
famosa pela excelência de seus marinheiros, os primeiros a cruzarem o Mediterrâneo para a
prática comercial. Também são conhecidos como os primeiros a circunavegarem a África, sob
as ordens do faraó Necao II (VII a.C).
Fontes Históricas – São todos os elementos que nos permitam analisar a cultura de um povo.
Podem ser documentos escritos (cartas, livros, diários, roteiros, romances, entre outros), ou
vestígios materiais (ruínas, fragmentos de objetos, monumentos, entre outros). Podemos fazer
a análise em separado de cada tipo delas, sejam escritas ou materiais. Porém, quando
analisamos de forma conjunta, obtemos muito mais informações e podemos interpretar
melhor ambas as fontes, pois enquanto que o relato sobre um objeto esclarece seu papel
cultural; a existência do objeto dá credibilidade ao relato, tornando-o muito mais lógico e
confiável.
Garum – Molho muito apreciado na culinária mediterrânica, muito utilizado na culinária
grega, helenística e romana. Era feito a partir das entranhas de peixe maturadas com ervas e
sal. Existiam diversas regiões produtoras, mas o mais elogiado e apreciado era o garum
proveniente da Península Ibérica, devido sua qualidade e sabor. No sítio arqueológico de
Corinto, na Grécia, foram encontradas diversas pilhas de restos de ânforas provenientes de
Gades. Algumas não foram abertas, e os restos orgânicos identificados revelaram uma mistura
de atum, sardinha, especiarias, frutos do mar desidratados e em conserva.
96
Helenístico (Mundo, Cultura) – Referente à cultura Helenística, surgida da união entre a
cultura grega clássica, e a cultura oriental (persa, egípcia, indiana, bactriana...). Nesse
trabalho, utilizamos o termo Cultura Helenística nos referindo às práticas políticas e militares
praticadas pelos Reinos Helenísticos. Como principais pontos da Cultura Helenística, temos o
surgimento de um suporte ideológico para a prática da Monarquia; a gradual transição de uma
concepção de mundo político centrado na Pólis para um mundo político muito mais amplo, o
de interação entre Reinos ou Ligas de pólis.
Hegemonia – Em História Política, é a supremacia de um povo sobre outro, através da
imposição cultural, ou superioridade militar. Uma cidade sob a hegemonia de um poder
externo não necessariamente perde sua autonomia política interna; mas passa a reconhecer e
obedecer a um poder político superior e externa à essa cidade. Essa prática política deriva da
palavra Hegemon, nome pelo qual os gregos do séc. IV a.C. chamavam o hipotético cargo de
defensor e vingador de todas as cidades gregas frente aos persas, e que posteriormente foi
dado à Filipe da Macedônia.
Hiparco (Hiparcoi) – Comandante da cavalaria nos exércitos helenísticos. Era uma função de
elevado status político-militar, dada a importância da cavalaria nos combates helenísticos.
Ibéria – Nome grego de uma rica região do Mar Negro (atualmente a Geórgia Caucasiana).
Quando eles chegaram ao Ocidente Mediterrânico, encontraram uma região com uma
configuração semelhante. O nome Hispania é de origem latina, que por sua vez deriva do
nome púnico da região (I – sepha – im).
Magistratura – Dentro do universo do poder político, função investida de autoridade por
uma Instituição, e reconhecida por toda a sociedade. Pode ter autoridade sobre aspectos
únicos (magistratura civil, militar, religiosa) ou englobar dois ou mais desses aspectos.
Instituição (Instituições) – mecanismos sociais criados para organizar e controlar o
funcionamento de uma sociedade. Podem ser de vários âmbitos, como política, religiosa,
cultural, militar, entre outros. No recorte do presente trabalho, a Instituição mais destacada da
Antiguidade eram o Senado e as Assembléias Populares, cujas funções e decisões eram
tomadas por uma parte ou por toda a comunidade cívica, e que afetavam a toda a população
de uma cidade.
Pólis (póleis) – Esse conceito político vai além da sua tradução por “cidade”. Politicamente, a
pólis é uma unidade autônoma de poder, formada pelo seu corpo cívico, onde quer que este
corpo esteja. Não estava restrito à seus limites de existência física, apesar de existirem
espaços dentro das cidades para o exercício dos direitos cívicos (como a Ágora e os espaços
de Conselhos). Apesar de normalmente ser usada somente para se referir à estruturação
urbana grega entre os séculos VIII a.C. – I d.C.; podemos utilizar esse conceito em referencia
aos diversos centros urbanos mediterrânicos que possuíam estruturas políticas autônomas e
auto-regidas por instituições e magistraturas próprias.
Tática – Arte de dispor, movimentar e empregar as forças militares em presença do inimigo
ou durante o combate. Cuida do emprego imediato do poder para alcançar os objetivos
97
fixados pela estratégia, compreendendo o emprego de forças, incluindo seu armamento e
técnicas especificas. A principal tática de combate helenística consistia no emprego de tropas
especializadas para manter os inimigos concentrados num choque frontal, enquanto tropas
ligeiras e cavalaria procuravam contornar a formação para atacá-la pela retaguarda (tática do
“Martelo”, a cavalaria; e “Bigorna”, a infantaria pesada das falanges). Eventualmente, antes
do choque frontal, era liberada uma carga (ataque direto e em velocidade) de Elefantes de
Guerra, para espalhar a confusão no inimigo, desorganizando sua disposição e amedrontando
seus soldados.
Tiro (Cidade) – principal cidade fenícia durante os séculos X e VI a.C. Junto das demais
cidades fenícias estenderam uma ampla rede de entrepostos e colônias comerciais, cobrindo
rotas marítimas que iam do Oriente Próximo até as costas atlânticas do Marrocos, Península
Ibérica, possivelmente atingindo até as terras da Hibérnia (atual Irlanda); também atuaram
como grandes comerciantes no Mar Vermelho, trabalhando sob as ordens de faraós egípcios,
reis hebreus e monarcas persas. A partir do século VI a.C., caiu sob o governo acádio,
perdendo completamente sua primazia marítima após ser cercada e conquistada por
Alexandre, o Grande, em 332 a.C.
98
ANEXO A - O Círculo do Estreito.
Em meados da década de 1960, Miquel Tarradell desenvolveu uma idéia inovadora
com relação às estruturas culturais pré-existentes na Península Ibérica anteriormente à
chegada dos cartagineses comandados por Amílcar Barca. Indo na contramão das correntes
que creditavam à hegemonia cartaginesa todas as colônias fenícias, os vestígios dos sítios no
Estreito indicaram o desenvolvimento de uma cultura própria, unindo ambas as margens do
Estreito, mas profundamente diferenciada da cultura cartaginesa. O principal fundamento
dessa diferenciação estava evidente na tipologia das ânforas encontradas nos sítios do estreito
e em Cartago, desde o século VII até a introdução romana, no século II a.C. De fato, enquanto
que as ânforas encontradas em Cartago e suas colônias na Sardenha, Córsega e Sicilia
demonstram uma evolução a partir da interrupção dos contatos com Tiro, nos sítios do
Estreito temos o desenvolvimento de uma cerâmica própria, descendente direta do mesmo
tipo cerâmico tradicional, vindo da metrópole fenícia.
Sendo que essas antigas colônias fenícias que compartilham de traços culturais
diferenciados de Cartago estão localizadas no atual Estreito de Gibraltar, e formam como uma
espécie de circuito ao redor dessa região, essa cultura foi nomeada como “Circulo do
Estreito”. Formariam parte desse Círculo, como núcleo organizador, as antigas colônias
fenícias de Gades, atual Cádiz; o sítio de Castilo de Doña Blanca. Em direção ao leste do
Estreito de Gibraltar, integrariam os sítios de Malaca, atual Málaga; o sítio de Cerro del Mar;
e no seu limite, Almeria. Em direção ao oeste, integrariam os sítios de Huelva; com seu limite
no sítio de Castro Marim, na fronteira atual entre Portugal e Espanha. E, estendendo-se pelo
litoral atlântico marroquino, formariam parte as colônias e sítios de Lixus, próxima à cidade
de Larache, na antiga foz do Qued Loukos; sendo o limite meridional no sítio de Banasa (a
cidade romana de Iulia Valentia Banasa), próximo a atual cidade de Mechra Bel Ksiri, sítio
atualmente localizado longe do litoral, mas que na Antiguidade estava muito próximo à foz do
antigo curso do Qued Querrha.
O tipo de ânfora característico dessa cultura seriam as ânforas classificadas como
Mañá-Pascoal A4. Essas ânforas são caracterizadas pelo formato esguio, com um gargalo
muito estreito e desenvolvido (quando existente), sendo que suas bordas da abertura são
moldadas para fora. Poderiam ser produzidas em torno de oleiro ou não, e eram finalizadas
em altos-fornos cilindros-cônicos (alguns desses fornos foram utilizados durante a República
e o Principado Romanos). Sua produção era voltada para uso doméstico, mas principalmente
para o uso de exportação do garum, um molho a base de peixe muito apreciado no mundo
99
mediterrânico inteiro. Os maiores e mais antigos ateliês de produção das ânforas MañáPascoal A4; assim como o maior complexo de exploração de recursos pesqueiros e produção
do garum foram localizados no sítio da antiga cidade de Gades. Por isso, os pesquisadores
modernos apontam que essa cidade seria a mais desenvolvida, e por conseqüência,
centralizaria a produção e comercialização desse recurso tão requisitado na gastronomia
mediterrânica.
Na análise dos trabalhos sobre os vestígios arqueológicos na região da bacia do
Guadalquivir e da Serra Morena, os autores fazem menção à teoria de Miguel Tarradell
(1960) sobre o “Circulo do Estreito”. Essa idéia criada por Tarradell em 1960, e desenvolvida
por O. Arteago (1994) consistiria numa reavaliação do contexto sul peninsular, integrando-o
aos processos verificados ao longo de todo o mediterrâneo justamente no “período obscuro”
da pré-história peninsular (séc. VII – V a.C.). Para esses autores (e também para Braudel, em
trabalho de 1970), devido a fatores internos e externos, a economia de extração e exportação
metálica entrou em crise, sendo modificada para uma economia de exploração agro-pecuária
para exportação. Segundo Ana Mª N. V. Mariñas, essa modificação ocorreu primeiramente
em Gades, onde uma “indústria” de exportação de salgações e garum foi primeira
desenvolvida. Com o passar dos séculos, essa indústria alastrou-se por diversas outras excolônias fenícias da região, unindo-as numa espécie de liga comercial (posto que não temos
como provar que a liga estendesse-se para fatores políticos). Tal união gerou laços culturais
que manifestam-se até avançado tempo (até época alto imperial romana), através da
homogeneidade observada pelos autores nos registros materiais (especialmente ânforas).
Associado à ânforas, encontradas a partir de extratos arqueológicos datados do
século V a.C., foi constatado a existência de um tipo cerâmico igualmente diferente do de
Cartago. Essa cerâmica, nomeada como Kouass eram produzidas para suprir as necessidades
das aristocracias locais, que não mais tiveram acesso à cerâmica ática, já que os constantes
conflitos que assolaram a Grécia a partir do século V a.C. minaram com o volume de
produção cerâmico e sua exportação para os diversos consumidores, seja de forma direta, ou
indireta (exportação através de intermediários comerciais, como os comerciantes cartagineses,
ou das colônias gregas sicilianas ou mesmo da Península Ibérica, como Emporion e Rhodes).
O interessante é que conforme apontam Mariñas e Tristan & Vargas em seus artigos, Cartago
produzia uma versão própria dessas cerâmicas, ou seja, as aristocracias locais não consumiam
a versão cartaginesa, mas sim a versão produzida em sítios como Lixus e Banasa. Essa
preferência não indica só uma possível diferença no nível de possíveis custos dessas
100
cerâmicas, pois seu uso seria de ostentação de poder, mas indicam uma preferência a nível
cultural, de uma diferenciação de gostos existentes entre aquela região e Cartago.
Além dessa diferenciação cerâmica, a região, chamada por Tarandell de “Circulo do
Estreito” e que as novas pesquisas feitas por Ana Maria N. V. Mariñas em finais da década de
1990 conseguiram delimitar geoeconomicamente (traçando o padrão de dispersão e extensão
da cerâmica gaditana e do comércio por meios delas indicado), há outras mostras de
desenvolvimento em paralelo, não interligados, com Cartago: a adoção de um padrão
monetário próximo ao padrão das dracmas das colônias gregas de Emporion e Rhodes
(localizadas na Península Ibérica) ou então do padrão de bronze comum ao mundo da Magna
Grécia e do Estreito de Messina, deixando de lado o padrão shekel cartaginês.
Essa série de dados nos leva a crer que, enquanto Cartago dedicou-se em criar uma
hegemonia no Mediterrâneo Central, nas ilhas entre o norte da África e da Itália, a cidade de
Gadir (conhecida como Cádiz ou Gades) criou uma rede hegemônica sobre o Estreito e a
costa atlântica Andaluza e Marroquina. Essa hipótese, da existência de duas realidades
descendentes fenícias, mas independentes entre si, nos permite entender e problematizar o
período do domínio cartaginês de forma muito mais sensata e direta.
Sendo o “Círculo do Estreito” uma organização econômica concorrente de Cartago,
não sofreu golpe nenhum com a derrota cartaginesa na 1ª Guerra Púnica. Pelo contrário, teria
conseguido ainda mais prosperidade ao ter um mercado maior de atuação. Cartago,
economicamente falida e em dívida, mas com uma renascida e reestruturada força militar
erguida por Amilcar Barca sobre as fundações deixadas por Xantipo (mercenário espartano
que atualizou o exército púnico com as táticas helenísticas), lançou-se ao domínio desse
“Círculo”, economicamente forte, mas sem expressão militar.
101
ANEXO B – Exemplos de ânforas Mañá-Pascoal e da Cerâmica Kouass.
Figura 1 – Cultura material cerâmica procedente dos ateliês cerâmicos gaditanos, comum aos
sítios do Círculo do Estreito entre os séc. V e II a.C. (quadro presente no artigo de ROMERO,
A. et al. Nuevas aportaciones a la definición del Círculo del Estrecho: la cultura material a
través de algunos centro alfareros (SS. VI – I a.n.e.). Gerión, Madrid, v. 22, p. 31 – 60, 2004.
102
ANEXO C – Rede Comercial da Fenícia (VIII – V a.C.)
Mapa com algumas das colônias e entrepostos que compunham a rede comercial da Fenícia durante os séc. VIII
a V a.C. A área circulada marca o território da Fenícia, com suas principais cidades assinaladas com as estrelas.
As duas principais colônias fenícias (Cartago e Gades) também foram assinaladas.
FONTE: mapa criado pelo autor sobre mapa do mediterrâneo disponível em: <http://dmaps.com/carte.php?num_car=5860&lang=es> (Acessado: 04/09/2011)
103
ANEXO D – O Círculo do Estreito.
Mapa com a localização do Círculo do estreito em relação à Península Ibérica, assim como as principais cidades
integrantes do Círculo do Estreito. A estrela marca a localização de Gades, possível centro desse Circulo
comercial, as demais localização são os centros presentes na Península Ibérica. O circulo vermelho indica a
principal área de projeção dos laços culturais dessa região.
FONTE:
Mapa
produzido
pelo
autor
a
partir
de
mapa
disponível
em:
<
http://tp.revistas.csic.es/public/journals/1/tp_mapa2010.jpg> (Acessado em: 20/09/2011).
104
ANEXO E – A Península Ibérica sob o comando de Amílcar Barca (237 – 229 a.C.).
Mapa dos limites da expansão cartaginesa na Península Ibérica sob o comando de Amílcar. A estrela azul marca
a cidade de Gades, e o círculo azul delimita os territórios sob a hegemonia de Cartago. Os pontos azuis marcam a
localização das principais cidades nesse período. É interessante contrapor esse mapa com o mapa da extensão do
Círculo do Estreito.
FONTE:
Mapa
produzido
pelo
autor
a
partir
de
mapa
disponível
em:
<
http://tp.revistas.csic.es/public/journals/1/tp_mapa2010.jpg> (Acessado em: 20/09/2011).
105
ANEXO F - A Península Ibérica sob o comando de Asdrúbal Barca (229 – 221 a.C.)
Mapa delimitando a expansão máxima da hegemonia cartaginesa na Península Ibérica, segundo as duas
interpretações modernas. Em azul, considerando que o Íber de Políbio seria o rio Júcar; em verde, seria a faixa
territorial sob o comando de Asdrúbal, considerando o Íber de Políbio como o atual rio Ebro. A estrela azul clara
marca a localização da nova capital, Cartago Nova, em relação com a antiga capital, Gades (ponto azul escuro).
A estrela verde marca a possível localização de Akrá Leuké, capital que algumas fontes apontam como criada
por Amílcar. Em vermelho, Zacânton (Sagunto), marco dos limites do Tratado do Íber entre Roma e Asdrúbal.
FONTE:
Mapa
produzido
pelo
autor
a
partir
de
mapa
disponível
em:
<
http://tp.revistas.csic.es/public/journals/1/tp_mapa2010.jpg> (Acessado em: 20/09/2011).
106
ANEXO G - A Península Ibérica sob o comando de Aníbal Barca (221 – 220 a.C.).
Mapa da Península Ibérica durante o comando de Aníbal, (221 – 220 a.C.). Em azul, as regiões sob hegemonia
cartaginesa, considerando o Ibér ao sul de Sagunto. Em verde considerando o Íber como o atual Ebro. Em verde
escuro a região dominada pelos Olcades; em Lilás a bacia do Douro dominada pelos Vacaios; e em amarelo a
região entre o Tajo e o Guadiana sob a tribo dos Carpésios. A seta preta assinala a campanha de Aníbal contra os
Olcades em 221 a.C.; a seta azul marca o possível trajeto das tropas de Aníbal quando da incursão contra os
Vacaios, em 220 a.C.
FONTE:
Mapa
produzido
pelo
autor
a
partir
de
mapa
disponível
em:
<
http://tp.revistas.csic.es/public/journals/1/tp_mapa2010.jpg> (Acessado em: 20/09/2011).
107
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